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A educação na Terra Indígena Rio Guaporé: percepção, avaliação e desafios vivenciados

Education in the Guaporé River Indigenous Land: perception, evaluation and challenges experienced

http://orcid.org/0000-0002-2279-6949 Hellen Virginia da Silva Alves
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-1758-4116 Maria das Graças Silva Nascimento Silva
Universidade Federal de Rondônia, Brasil

A educação na Terra Indígena Rio Guaporé: percepção, avaliação e desafios vivenciados

Revista Presença Geográfica, vol. 06, núm. Esp.01, 2019

Fundação Universidade Federal de Rondônia

Recepção: 28 Maio 2019

Aprovação: 29 Agosto 2019

Resumo: Este estudo apresenta a percepção das mulheres, alunos e alunas da Terra Indígena Rio Guaporé (TIRG) em relação à educação ofertada nas escolas do território indígena. O objetivo foi identificar como a comunidade avalia aspectos como qualidade e contextualização do material didático ofertado aos alunos, ensino e aprendizagem da língua materna e do português e perfil dos docentes, bem como mapear as principais reivindicações da comunidade para melhoria da qualidade da educação ofertada na TIRG. O estudo desenvolvido se fundamentou na Geografia Fenomenológica e de Gênero. Utilizamos os conceitos de Merleau-Ponty (2015) e Kozel (2007) para analisar a percepção da comunidade. Para pontuar os aspectos culturais e de gênero que envolvem a percepção e avaliação coletiva foram empregados conceitos de Nascimento Silva e Silva (2014), Nascimento Silva e Alves (2017), Freire (2010), Maldi (1991), Caspar (1953; 1955) e Brah (2006). Os instrumentais de pesquisa utilizados foram rodas de conversa, entrevistas e questionários semi-estruturados aplicados às mulheres, alunos e alunas da TIRG. Através das pesquisas realizadas, identificamos a existências de variadas demandas em relação à qualidade da educação que é ofertada em território indígena, dentre as quais destacam- se a necessidade de material didático contextualizado ao cotidiano e à cultura local, a contratação de professores indígenas e merendeiras, o desenvolvimento de projetos que estimulem a integração e o intercambio de saberes tradicionais entre jovens e ido sos, a necessidade de transporte escolar, de elaboração de cardápio adequado à dieta dos povos que habitam a TIRG e de efetiva orientação ou acompanhamento pedagógico por parte da SEDUC aos professores locais, dentre outras. No contexto da educação indígena é primordial que a comunidade de acesso e condições de permanência na escola e a formação e contratação de professores indígenas, bem como a oferta de material didático adequado ao contexto vivenciado pelos alunos e alunas são aspectos fundamentais para que o ensino-aprendizagem tenha êxito.

Palavras-chave: Educação Indígena, Terra Indígena Rio Guaporé, Desafios.

Abstract: This study presents the perception of women, students and students of the Rio Guaporé Indigenous Land (TIRG) in relation to the education offered in schools in the indigenous territory. The objective was to identify how the community evaluates aspects such as quality and contextualization of the didactic material offered to the students, teaching and learning of the mother tongue and Portuguese and profile of the teachers, as well as to map the main demands of the community to improve the quality of the education offered in the TIRG. The study was based on Phenomenological and Gender Geography. We use the concepts of Merleau-Ponty (2015) and Kozel (2007) to analyze the perception of the community. In order to assess the cultural and gender aspects of collective perception and evaluation, the concepts of Nascimento Silva e Silva (2014), Nascimento Silva e Alves (2017), Freire (2010), Maldi (1991), Caspar ) and Brah (2006). The research instruments used were talk wheels, interviews and semi-structured questionnaires applied to women, students and students of TIRG. Through the research carried out, we identified the existence of a variety of demands regarding the quality of education offered in indigenous territory, among which the need for teaching material contextualized to the daily life and the local culture, the hiring of indigenous teachers and lunch-boxes , the development of projects that stimulate the integration and exchange of traditional knowledge among young and old, the need for school transportation, the elaboration of a menu appropriate to the diet of the people living in TIRG and effective guidance or pedagogical accompaniment by SEDUC to local teachers, among others. In the context of indigenous education, it is essential that the community of access and conditions of stay in school and the training and contracting of indigenous teachers, as well as the provision of teaching materials appropriate to the context experienced by the students are fundamental aspects so that teaching- successful.

Keywords: Indigenous Education, Guaporé River Indigenous Land, Challenges.

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é um país constituído por diversos povos indígenas. Cada povo possui seu modo de vida e cultura, sua forma de viver, de construir as relações sociais e constituir o espaço. Logo, que cada povo indígena possui demandas específicas em função das diferenças que definem o seu grupo social e seu território.

Dentre as demandas dos povos indígenas estão as relacionadas à educação ofertada no território.

A educação indígena se destaca como uma educação diferenciada, que além de atender às bases curriculares nacionais deve ser contextualizada ao modo de vida e cultura dos alunos. Para tanto, deveria ser planejada e executada em comum esforço entre os indígenas e o Estado, em um esforço coordenado para se adequar à realidade das comunidades tradicionais, fortalecer suas culturas e suas concepções sobre aspectos da realidade coletiva e de suas imagens de mundo.

Porém a realidade vivenciada por muitos povos indígenas está distante do ideal de educação que deveria ser a eles ofertada. Entre esses coletivos o acesso e permanência na escola é um desafio cotidiano e as demandas relacionadas ao desejo de uma educação de qualidade são diversificadas. Entre esses povos estão os moradores da Terra Indígena Rio Guaporé (TIRG), que vivem em um território de difícil acesso, localizado às margens do Rio Guaporé no município de Guajará Mirim e onde a educação ainda precisa trilhar um longo caminho para se aproximar do ideal.

Este artigo apresenta a percepção das mulheres, alunos e alunas da Terra Indígena Rio Guaporé (TIRG) em relação à educação ofertada nas escolas do território indígena, identificando a avaliação que a comunidade faz a respeito de aspectos como qualidade e contextualização do material didático ofertado aos alunos, ensino e aprendizagem da língua materna e do português e perfil dos docentes. As pesquisas de campo realizadas oportunizaram ainda o mapeamento das principais reivindicações da comunidade para melhoria da qualidade da educação ofertada na TIRG.

Foi possível ainda constatar uma relação de proximidade entre os aspectos pontuados a respeito da necessidade de melhoria da educação ofertada no território e as questões de gênero entre os povos indígenas. Portanto, espera-se contribuir com estudos inovadores na área da Geografia de Gênero, bem como estimular demais pesquisas relacionadas à Geografia Cultural e de Gênero que retratem aspectos da educação e da cultura das comunidades indígenas.

2. SOBRE O MÉTODO E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Em novembro e dezembro de 2016 foi realizado o primeiro trabalho de campo na Terra Indígena Rio Guaporé, ocasião em que houve a coleta de dados através de questionários e rodas de conversa. Retornamos à localidade em janeiro de 2018, ocasião em que realizamos rodas de conversa e entrevistas com moradores locais.

Considerando a importância da cultura, o modo de vida, os aspectos do território e do espaço e as peculiaridades vivenciadas no cotidiano das comunidades indígenas para a percepção e avaliação dos desafios vivenciados em relação à educação na terra indígena Rio Guaporé, optamos pelo método fenomenológico por compreendermos que a fenomenologia “(...) é a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer” (MERLEAU-PONTY, 2015 p.01-02). Nesta perspectiva, a o método fenomenológico nos permite uma análise detalhada da forma como a comunidade percebe a avalia a educação ofertada aos moradores locais, bem como da identificação do que consideram como demandas relacionadas à educação.

Utilizamos como metodologia de trabalho o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), pois os dados ora apresentados foram coletados através de questionário e posteriormente validados pelo coletivo indígena a partir da realização de duas rodas de conversas com as mulheres indígenas das Aldeias Ricardo Franco e Baía das Onças, e três rodas de conversas com a juventude das Aldeias acima mencionadas. Os dados coletados através dos questionários foram tabulados e deram origem aos gráficos apresentados nesta pesquisa. Segundo Lefèvre & Lefèvre (2012, p. 27), DSC “é uma técnica de pesquisa empírica que tem como objeto o pensamento de coletividades que permite iluminar o campo social pesquisado, resgatando nele o universo das diferenças e semelhanças entre as visões dos atores sociais ou sujeitos coletivos que o habitam”. A aplicação do método DSC possibilita estudar a representação de coletividades por meio do conhecimento do sentido comum utilizado nas interações e comunicações cotidianas (MOSCOVICI, 2012). O DSC nos possibilitou conhecer e descrever opiniões e representações de caráter descritivo, preventivo e avaliativo fornecendo um panorama da educação, segundo a perspectiva das mulheres e da juventude da Terra Indígena Rio Guaporé, bem como propor ações que posteriormente possam ser desenvolvidas para atender as demandas percebidas, como por exemplo: programas educativos e culturais, cursos profissionalizantes, acesso às tecnologias e ao ensino médio e superior, dentre outros.

As informações apresentadas são representações da percepção dos povos indígenas que habitam a Terra Indígena Rio Guaporé possuem a respeito da educação ofertada no território. Portanto, a representação não substitui o algo percebido (objeto), mas seleciona determinados detalhes dele e se faz a partir de uma concepção ou escala de valores que o emissor da representação tem do objeto representado (Kozel, 2007).

3. TERRA INDÍGENA RIO GUAPORÉ: LAR DE MUITOS POVOS

A Terra Indígena Rio Guaporé (TIRG) foi homologada há 20 anos e está localizada no Município de Guajará Mirim, Estado de Rondônia. Divide-se em cinco Aldeias, sendo; Baía da Coca, Baía das Onças, Baía Rica, Ricardo Franco e Urussari, conforme figura 1 a seguir:

Figura 1 - Mapa da Terra Indígena Rio Guaporé
Figura 1 - Mapa da Terra Indígena Rio Guaporé
Fonte: Elaborado a partir das Coordenada tirada em campo. 2017

Na aldeia Ricardo Franco está concentrada boa parte da infraestrutura disponível na TIRG, esta também é a aldeia mais populosa do território, que concentra a maioria (em termos quantitativos e de diversidade) dos povos que ali habitam.

A infraestrutura existente na aldeia consiste em algumas instalações e construções, sendo; 2 (duas) escolas, 1 (um) Centro de Cultura, 1 (uma) Casa de apoio da FUNAI, 1 (um) Posto de Saúde (que na ocasião das pesquisas de campo passava por reforma), 1(uma) Igreja da Assembléia de Deus, banheiros conjugados com lavanderias, ambos de uso coletivo e 1 (um) campo de futebol, que é utilizado diariamente.

A aldeia Baía das Onças é a primeira das cinco aldeias com a qual nos deparamos durante o trajeto de Costa Marques à Terra Indígena Rio Guaporé. Está distante da aldeia sede Ricardo Franco e seu acesso só é possível via fluvial. Sua infra-estrutura conta com campo de futebol, casa de farinha, banheiro e lavanderia coletiva, poço artesiano coletivo, escola de ensino fundamental e posto de saúde (que na ocasião das pesquisas de campo encontrava-se em estado de abandono e precisando de reforma).

Figura 2 - Crianças na escola da Aldeia Baía das Onças
Figura 2 - Crianças na escola da Aldeia Baía das Onças
Fonte: NASCIMENTO SILVA, Maria das Graças Silva. Acervo Kanindé. 2016

Nesta aldeia não há energia elétrica e os equipamentos utilizados na escola contam com a energia captada por placas solares. O acesso à água do poço artesiano coletivo é possível com o uso de um motor a diesel.

A aldeia Urussari fica vizinha à Ricardo Franco, sendo possível o acesso entre as duas aldeias via fluvial ou terrestre. Em ambos os casos o trajeto pode ser concluído sem muita demora. É comum o deslocamento diário dos moradores de Urussari para Ricardo Franco, pois boa parte dos serviços essenciais necessários aos moradores, como escola de ensino fundamental e posto de saúde inexistem na aldeia Urussari. A infraestrutura da aldeia consiste em uma lavanderia e banheiro coletivo e casa de farinha.

Fenômeno semelhante acontece com os moradores da aldeia Baía Rica, que devido à sua proximidade com a aldeia Ricardo Franco e à inexistência de serviços básicos como saúde e educação, comumente se deslocam todos os dias até Ricardo Franco. O acesso de Baía Rica a Ricardo Franco é realizado principalmente via terrestre, mas também é possível via fluvial.

A aldeia de Baía da Coca é um pouco mais distante de Ricardo Franco e seu acesso também é dificultado pelas péssimas condições da estrada. Em determinados períodos do ano só é possível chegar à Baía da Coca via fluvial e durante os períodos em que é possível chegar via terrestre existe a necessidade de máquinas tipo trator ou motocicletas, devido aos trechos com atoleiros e brejos.

Na Aldeia Baía da Coca existe campo de futebol, 1 (uma) escola de ensino fundamental e posto de saúde. O deslocamento dos moradores de Baía da Coca à Ricardo Franco não costuma ocorrer com frequência, restringindo-se a períodos de festas ou rituais e em necessidade de visitar parentes.

O cenário descrito abriga grande variedade de povos indígenas, que foram retirados de seus territórios ancestrais no início do século XX, durante o período da exploração seringueira na região do médio Guaporé. Em 1930 foi criado pelo Serviço de Proteção do Índio - SPI, que designou o Posto Indígena de Atração Ricardo Franco, hoje Terra Indígena Rio Guaporé. A primeira demarcação desta área ocorreu em 1935, e teve a aprovação do Marechal Rondon. Sua história não difere dos demais postos do SPI, criado com o objetivo de “civilizar” os indígenas. Inicialmente projetado como colônia agrícola, teve seu “ápice” na década de quarenta quando os funcionários do SPI levaram para este Posto de Atração parte dos povos dos afluentes do médio Guaporé, os Rio Mequéns, Colorado, Corumbiara e afluentes (FUNAI, 1985), sendo os povos; Tupari, Makurap, Arikapo, Jaboti, Aruá, Kanoé, Wajuru, Wari, dentre outros.

Os povos levados ao Posto de Atração Ricardo Franco consistiam em sobreviventes das epidemias de sarampo e de conflitos com os brancos seringueiros e trabalhadores da Estrada de Ferro. Entre as décadas de 40 e 70 do séc. XX, já era possível observar no Posto Indígena Ricardo Franco as alianças de casamento entre os povos, conforme o relatório de Maria Auxiliadora de Sá Leão (FUNAI, 1985).

Um panorama histórico da ocupação e colonização da região da margem direita do Guaporé foi descrito por Maldi (1991, p. 211-214):

O fato de ter sido o Guaporé uma baliza natural na fronteira entre as duas Américas coloniais e alvo direto do Tratado de Madri (1750) conferiu à região um tipo de ocupação fortemente identificada para a defesa e a posse dos territórios de dois reinos tradicionalmente rivais [Espanha e Portugal] [...]. Ao final do Séc. XVIII, quando os movimentos de independência nas Américas começaram a tomar corpo e os limites coloniais perderam a importância, a região esvaziou-se com notável rapidez. A partir da segunda metade do Séc. XIX, voltou a ser intensamente ocupada, desta vez pela demanda da borracha. [...] Os contingentes indígenas da margem direita, na sua maioria, ainda se mantinham isolados, habitando áreas menos acessíveis. [...] A partir da terceira década do Séc. XX o contato se intensificou, sobretudo quando, no contexto da II Guerra, a demanda por borracha aumentou. Os povos Tupi e outros que então habitavam territórios situados entre os afluentes da margem direita do médio Guaporé, na parte alta dos rios Mequéns, Colorado, São Simão, Branco e São Miguel, são então duramente atingidos. Tiveram suas aldeias invadidas, sofreram epidemias e foram obrigados a abandonar seus territórios, instalando- se em alguns dos principais barracões.

Os registros históricos e científicos sobre os acontecimentos nas áreas adjacentes à TIRG, seja durante o século XIX ou em períodos anteriores, são escassos em virtude ausência do contato, já que os povos indígenas viviam em situação de isolamento nesta época. Porém, se a intensificação do contato entre indígenas e não indígenas proporcionou o surgimentos de registros e relatos sobre o modo de vida e cultura das sociedades indígenas, também ocasionou o desaparecimento de muitos povos a respeito dos quais sabemos pouco ou nada. Segundo Maldi (1991, p. 234) “O processo de conquista e colonização da região, oscilando entre ocupações intensivas e períodos de ostracismo, deixou um saldo paradoxal: sociedades inteiras desaparecidas e sociedades cujo destino se ignora completamente.”

Os registros que datamdo século XX atestamque entre os grupos indígenas do Médio Guaporé existiam relações de proximidade entre os grupos Tupi-Tupari e de língua isolada Jaboti (Caspar, 1955). Na década de 30 do século XX, todos os povos da região de encontravam “num rápido processo de assimilação cultural” dos Makurap “as outras tribos recebem e assimilam muitos elementos materiais e mesmo espirituais”. O etnólogo alemão Stethlage observou na década de 30 os Makurap assumiram uma posição hegemônica entre os grupos da região e a sua língua se transformou no "idioma intertribal", língua franca da região. Suas canções, música instrumental e vocal também eram muito valorizadas e entoadas frequentemente pelos outros grupos (Caspar, 1953). O que nos permite concluir que a proximidade e a integração entre os povos que hoje habitam a TIRG é fruto do compartilhamento contínuo de saberes que se estabeleciam entre eles é antiga, porém, pode ter se intensificado a partir da necessidade de convívio em uma mesmo território, ou seja, a terra indígena Rio Guaporé.

As interrelações entre os povos que habitam a TIRG adotaram novos arranjos e assumiram um grau de complexidade com o passar do tempo e do convívio no território, de forma que atualmente são comuns os casamentos entre povos distintos. Atualmente o idioma makurap cedeu lugar de idioma franco ao português que é ensinado nas escolas da terra indígena. Nas situações em que se formam casais de povos indígenas com troncos lingüísticos diferentes o diálogo na língua portuguesa se torna possível. Porém, apesar da existência de escolas bilíngües em território indígena, a realidade vivenciada na TIRG é cheia de especificidades e de desafios que serão descritos a seguir.

4. A EDUCAÇÃO NA TERRA INDÍGENA RIO GUAPORÉ SEGUNDO A PERCEPÇÃO DE SEUS HABITANTES: DESAFIOS E DEMANDAS

A oferta de educação na Terra Indígena Rio Guaporé é de competência da Secretaria de Estado da Educação de Rondônia - SEDUC. Em termos estruturais podemos afirmar que atualmente a TIRG conta com escolas de ensino fundamental I e II. Nestas escolas não são ofertadas turmas de Educação de Jovens e Adultos – EJA, apesar de que no passado já houve esta oferta, porém em função da baixa adesão por parte dos adultos a oferta foi encerrada.

Discutir educação entre povos indígenas requer estudos sobre diversidade, diferenciação e cultura, a fim de evitar o equívoco de abordagem essencialistas.

O essencialismo é definido por Brah (2006, p. 331) como “... uma noção de essência última que transcenderia limites históricos e culturais”. Os riscos presentes em análises realizadas a partir de um conceito essencialista de diferença podem considerar a especificidade de uma experiência social particular como própria de uma raça, determinando assim categorias fixas que nem sempre estarão contextualizadas com os aspectos históricos e sociais. Este tipo de análise possui relação estreita com etnicismo, que segundo Brah (2006) “... define a experiência de grupos racializados principalmente em termos “culturais”: isto é, postula “diferença étnica” como modalidade principal em torno da qual a vida social é constituída e experimentada.” Nessa perspectiva as necessidades culturais seriam definidas em termos amplos e de forma independente de outras experiências sociais como aquelas centradas em classe, gênero, raça ou sexualidade. Logo, um determinado grupo identificado como culturalmente diferente seria compreendido como homogêneo internamente, porém este fenômeno não ocorre, pois em um mesmo grupo pode haver muitas diferenças relacionadas às experiências individuais relacionadas à gênero, sexualidade, classe, dentre outros. As vivenciadas de uma jovem mulher indígena em seu cotidiano exprimem sua forma de ver e perceber o mundo, suas demandas, suas possibilidades de viver a cultura e outros múltiplos fatores que são bastante diferentes daqueles vivenciados por uma mulher anciã do mesmo povo. Tais de diferenças se acentuam ainda mais ao considerarmos as vivências dos homens e crianças indígenas.

Considerando que a educação é um direito de todos, e neste caso especificamente dos povos indígenas, precisamos considerar a dinamicidade dos processos culturais que se estendem aos processos de reivindicações de mulheres, homens, jovens e crianças de um povo, logo, as análises e estudos sobre questões de educação entre povos indígenas não devem ser construídas em termos essencialistas.

Acreditando que a escola deve ser um espaço de esperança (Harvey, 2004) e um lugar de inclusão e de liberdade (Freire, 2009) e sabendo a diversidade cultural existente no território, buscamos investigar o perfil dos docentes que lá atuam.

A pesquisa revelou que os docentes que atuam nas escolas são predominantemente indígenas, formados no Ensino Médio pelos Projetos Açaí I e II. Também existem professores com formação superior em especial, a Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. A maioria dos docentes é do gênero masculino (54%).

Gráfico 1 -
Docentes por gênero
Gráfico 1 - Docentes por gênero

Amostragem: docente/gênero - TIRG (2016)

Fonte: Pesquisa de Campo Análise de Gênero. Kanindé, 2016

A predominância de docentes indígenas contribui para o fortalecimento da identidade e da cultura do povo, uma vez que apenas um indígena seria capaz de compreender os aspectos relacionados à cultura e ao modo de vida de seu povo e só é capaz de mediar o processo de ensino aprendizagem quem de fato possui a competência e o conhecimento a ser ensinado. Freire (2009, p.7) explica que: Em sociedades cuja dinâmica estrutural conduz à dominação de consciências, "a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes". Os métodos da opressão não podem, contraditoriamente, servir à libertação do oprimido, logo, pensar a educação em terra indígena pressupõe a existência de professores indígenas que conheçam e compreendam a cultura dos povos e que possam de fato fortalecer a identidade indígena dos alunos e que não tentem reproduzir um modo de vida que muitas vezes é descrito nos livros didáticos, porém que não condiz com a realidade de seus alunos.

A presença de professores indígenas permite ainda o ensino bilíngüe. Na TIRG o ensino é realizado em português e nos idiomas Tupari, Wajuru, Makurap e Jaboti. Apesar da diversidade de povos e de línguas faladas no território, o ensino dos idiomas mencionados ocorre em virtude de que essas são as línguas conhecidas e faladas pelos docentes.

Em função da multiplicidade de idiomas falados na TIRG, os alunos são alfabetizados em português devido às dificuldades enfrentadas pelos docentes para o domínio e repasse na língua materna da totalidade de alunos. Com exceção dos alunos que tem como língua materna os idiomas Tupari, Wajuru, Makurap ou Jaboti, os demais não terão a oportunidade de serem alfabetizados e aprender a língua nativa na escola. Portanto, se a família não realizar o ensino do idioma para as crianças e os jovens, esse tipo de aprendizado não acontecerá.

Figura 3 - Meninas na escola da Aldeia Baía das Onças
Figura 3 - Meninas na escola da Aldeia Baía das Onças
Fonte: NASCIMENTO SILVA, Maria das Graças Silva. Acervo Kanindé. 2016

Segunda o registro da percepção dos docentes indígenas, seria muito importante que os alunos fossem alfabetizados inicialmente na língua materna e só depois de alfabetizados aprendessem a Língua Portuguesa. De acordo com os docentes, esta prática poderia melhorar o aprendizado entre os alunos indígenas.

Uma das especificidades vivenciadas pelos moradores da TIRG é que nem sempre o ensino da língua materna em família é possível, pois de acordo com a cultura dos povos indígenas o ensino na língua à criança é uma atribuição feminina. A sociedade que povoa a TIRG é patrilinear, ou seja, o filho ou filha de determinado casal será sempre considerado “do pai”, ou seja, pertencente à etnia paterna.

A respeito da organização social fundamentada na diferenciação de gênero que é característica da Terra Indígena Rio Guaporé, Pinto (2010, p. 17) afirma:

A ideologia patrifiliativa comum entre os povos residentes da T.I. Rio Guaporé é em grande parte mediada pelas conexões de sangue entre o pai e seus filhos . O filho é do pai, mulheres aumentam o sangue, o parente dos outros, são proposições que trazem tal caráter contínuo à reprodução masculina. Desta maneira, a constituição das unidades sociopolíticas, os grupos étnicos, vista sobretudo pela linearidade vertical masculina, ancora-se em conceitos sobre a reprodução e a diferenciação de gênero.

Portanto, as crianças devem aprender a língua falada pelo pai, porém, cabe à mãe o ensino da língua. Essa dinâmica é muito prática quando consideramos um casal de etnia semelhante, mas entre casais de etnias diferentes existem algumas barreiras para o ensino da língua, afinal, como poderá a mãe ensinar ao filho uma língua que ela desconhece?

Como conseqüência das uniões entre povos indígenas de troncos lingüísticos distintos em um lugar como a Terra Indígena Rio Guaporé, onde o casamento entre povos de troncos lingüísticos diferentes é comum, muitas pessoas desconhecemsua língua nativa. Por esse motivo é tão comum o diálogo familiar na língua portuguesa. A pesquisa revelou que em alguns povos, como é o caso dos Kujubim, não existe evidências de pessoas falantes da língua nativa.

Outro desafio vivenciado é a insuficiência de professores. Devido à este fator a escola de Ensino Fundamental II localizada na aldeia Ricardo Franco oferece no turno matutino, em uma mesma classe o sexto e sétimo anos, e no turno vespertino o oitavo e nono anos. Em virtude desta realidade o professor precisa lidar com dois planejamentos e dois materiais didáticos diferentes ao mesmo tempo. A mesma situação é vivenciada nas demais escolas de Ensino Fundamental I.

De acordo com a percepção do coletivo indígena, uma das maiores dificuldades vivenciadas no ambiente escolar é a ausência de material didático contextualizado ao modo de vida e ao cotidiano indígena. Sempre que os professores e professoras precisam de material didático para trabalhar questões relacionadas ao cotidiano indígena precisam construir o material didático em conjunto com seus alunos. Muitas vezes precisam envolver os mais velhos neste processo de criação, já que eles são fonte viva de pesquisa sobre a cultura e a língua, mas nem sempre os anciãos têm a disponibilidade para participar destas atividades. Os professores produzem material didático através do programa Saberes Indígenas.

Os docentes relataram que o modelo do planejamento das aulas que é encaminhado pela SEDUC de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN’s é ineficaz à realidade indígena.

Uma das principais e mais antigas reivindicações dos professores que ainda não foi atendida é a necessidade de orientação ou acompanhamento pedagógico, que segundo eles, deveria ser realizado pela SEDUC. O atendimento desta reivindicação contribuiria de forma significativa para a melhoria do ensino aprendizado.

Como conseqüência às dificuldades apresentadas, atualmente, metade dos moradores da TIRG encontra-se fora da escola.

Gráfico 2 - Pessoas
fora da escola
Gráfico 2 - Pessoas fora da escola

Amostragem: Pessoas fora da escola - TIRG (2016)

Fonte: Pesquisa de Campo Análise de Gênero. Kanindé, 2016

Investigamos junto ao coletivo quais os principais motivos apontados para a permanência fora da escola e constatamos que para 36,11% dos entrevistados a permanência fora da escola se deve à ausência de turmas de ensino médio.

As responsabilidades da vida adulta, geralmente relacionadas ao casamento aparecem em situação de destaque dentre as causas para a evasão escolar, sendo que constituir família aparece com incidência de 33.3%, ausência de creches com 14% e o nascimento dos filhos com 5,55%.

A ausência de educação especial foi apontada como motivo para o afastamento da escola por 11,11% das pessoas entrevistadas, como pode ser constatado no gráfico a seguir.

Gráfico 3 - Motivações para não estudar
Gráfico 3 - Motivações para não estudar

Amostragem: Motivações para não estudar - TIRG (2016)

Fonte: Pesquisa de Campo Análise de Gênero. Kanindé, 2016

Em algumas localidades da TIRG existem dificuldades de acesso às aldeias onde se localizam as escolas, principalmente nos períodos chuvosos. Por esse motivo, nem sempre o deslocamento via terrestre é possível. A ausência de transporte escolar impede muitos alunos de estudar, principalmente aqueles que precisam se deslocar de aldeias vizinhas. A escola de Ensino Fundamental II de Ricardo Franco, por exemplo, atende alunos de Ricardo Franco, Urussari e Baía Rica.

Outro desafio vivenciado pelos alunos da TIRG são os períodos sem merenda escolar que, de acordo com os moradores locais, são freqüentes.

Segundo relatado pelo coletivo, apesar da existência de Associações de Pais e Mestres (APM) na TIRG, o gerenciamento da merenda escolar é feito pela SEDUC. A comunidade já ouviu falar nas diretrizes estabelecidas pela Lei nº 11.947, de 16/6/2009, que determina que 30% do valor repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE seja investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, visando estimar o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades. Em função da possibilidade de aquisição de produtos da agricultura familiar e visando a melhoria do valor nutricional da merenda ofertada aos alunos da TIRG, a comunidade solicitou aos representantes da SEDUC autorização e capacitação para comprar merenda escolar dos produtores locais (frutas, legumes e verduras), mas de acordo com os relatos a SEDUC não demonstra interessa na realização de licitação.

Conhecendo parte dos desafios vivenciados e das demandas relacionadas à educação, buscamos investigar o nível de escolarização na TIRG. A pesquisa revelou diferenças significativas em relação ao gênero, sendo que as mulheres apresentam menor grau de escolarização em relação à escolarização dos homens, como demonstra o gráfico abaixo:

Gráfico 4 - Nível de escolaridade
Gráfico 4 - Nível de escolaridade
Fonte: Pesquisa de Campo Análise de Gênero. Kanindé, 2016

A baixa escolaridade constatada ente as mulheres indígenas da TIRG pode ser considerada como um fenômeno relacionado às relações sociais de gênero e analisar quaisquer fenômenos ocorrida nos coletivos indígenas é uma tarefa complexa. Apesar da diversidade cultural que marca a existência dos povos indígenas brasileiros, segundo Freire (2009) ainda há certa dificuldade em empreender discussões sobre as temáticas de gênero nas comunidades indígenas, já que apesar da existência de farto material acadêmico sobre a questão de gênero feminino e sobre a situação das mulheres brasileiras, há um vazio significativo sobre as mulheres indígenas. No que se refere às discussões sobre a relação das questões de gênero situadas no âmbito da Geografia de Gênero este vazio se intensifica.

Discussões relacionadas às questões de gênero em contexto indígena precisam considerar os aspectos referentes à diferença, diversidade, pluralismo e hibridismo devido ao modo de vida, cosmogonia e cultura que são próprios de cada povo. De acordo com Brah (2006, p. 331) “Diferença, diversidade, pluralismo, hibridismo – esses são alguns dos termos mais debatidos e contestados do nosso tempo. Questões de diferença estão no centro mesmo de muitas discussões dentro dos feminismos contemporâneos.”

São as diferenças sociais e culturais, geralmente associadas à diferença “racial” que demarcam as “... diferenças e antagonismos organizados em torno a outros marcadores como “gênero” e “classe” (Brah, 2006, p. 331). A observância de tais questões é importante porque nos auxilia na compreensão de aspectos como identidade, comunidade e tradição. De forma contrária, facilmente pode-se incorrer na generificação dos povos e no essencialismo.

Dessa forma, o fenômeno da baixa escolaridade entre as mulheres da TIRG se deve a vários fatores que impem ou dificultam expressivamente a permanência das mulheres na escola, um deles é não ter tido a oportunidade estudar enquanto criança, pois antigamente não havia escolas em todas as Aldeias. Esse fator encontra maior incidência entre as idosas de diferentes povos que são não alfabetizadas.

Outro fator que impede as mulheres de concluírem seus estudos é a dificuldade de mobilidade, pois muitas vezes as estudantes precisam se deslocar para a cidade, em especial para cursar o Ensino Médio e Superior. A mobilidade feminina na TIRG é menor que a mobilidade masculina. Na maioria das vezes a saída da terra indígena não é oportunizada para elas, outras vezes é preciso negociar muito com a família e com parentes, para romper com essa barreira. São poucas as mulheres que recebem permissão dos parentes para se deslocar da TIRG para fins de estudo e são poucas as que conseguem negociar maior mobilidade com a família.

Figura 4 - Mulher Ajuru moradora de Baía das Onças
Figura 4 - Mulher Ajuru moradora de Baía das Onças
Fonte: NASCIMENTO SILVA, Maria das Graças Silva. Acervo Kanindé, 2016

Apesar das dificuldades encontradas pelas mulheres em relação à educação ofertada para si e para seus filhos, o sonho de acesso a educação de qualidade, ao ensino médio e superior é uma das principais demandas femininas mapeadas a partir da pesquisa, como demonstrado no gráfico 5 abaixo:

Gráfico 5 - Demandas femininas mapeadas a partir da pesquisa de campo
Gráfico 5 - Demandas femininas mapeadas a partir da pesquisa de campo
Fonte: Pesquisa de Campo Análise de Gênero. Kanindé, 2016

Vale destacar que do universo total das demandas relacionadas pelas mulheres da TIRG, podemos constatar que as principais reivindicações estão relacionadas à melhoria na qualidade da educação (20,63%), perdendo apenas para as demandas por melhorias na saúde (30,16%).

Existem ainda outras demandas mapeadas que possuem relação direta com a educação, como por exemplo, a melhoria da qualidade do material didático e escolar (1,60%), incluindo a elaboração de uma cartilha indígena (1,60%). A melhoria da estrutura da escola foi relatada por 3,17% dos entrevistados.

A demanda melhoria de acesso foi relatada por 1,60% dos entrevistados. Essa demanda também está relacionada à educação, uma vez que a dificuldade de acesso à escola é um problema vivenciado por muitos estudantes que moram distante das aldeias que possuem escola.

Em relação à formação e qualificação profissional, houve relatos (1,60%) de demanda pela oferta de cursos de formação e qualificação profissional para as mulheres e jovens da TIRG.

Durante a pesquisa de campo, realizamos duas rodas de conversa com a juventude da aldeia Ricardo Franco. Importa mencionar que o diálogo com a juventude é de suma importância para a avaliação da qualidade percebida em relação à educação, uma vez que boa parte dos jovens da TIRG também são alunos das escolas locais, ou estão qualificados para opinar e avaliar na condição de egressos. Portanto, é de extrema importância que estejamos dispostos a ouvir os jovens, para que eles possam expressar através de suas falas todas as suas angústias e reivindicações. Ouvir as preocupações dos jovens é, portanto, fundamental para compreensão e participação deles nas mudanças futuras.

Apresentamos a seguir as demandas relacionadas à educação que foram pautadas pelos jovens que participaram das rodas de conversas:

Demandas apresentadas

  1. · Melhorias na escola como oferecimento de ensino médio, disponibilização de uniforme e transporte escolar.

    · Possibilidade de acesso a cursos de nível superior por meio da divulgação sobre a existência de cotas para indígenas e inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM.

    · Melhorias na infraestrutura da escola e incentivo às práticas esportivas através da construção de uma quadra poliesportiva.

    · Aquisição de bebedouro para os alunos.

    · Aquisição de ventiladores para as salas de aula.

    · Melhoria na qualidade da merenda escolar através da inserção de verduras e legumes cultivados na comunidade no cardápio da merenda.

    · Pleno funcionamento e acesso ao laboratório de informática da escola.

    · Necessidade de contratação de um professor para cada matéria/disciplina (da mesma forma que ocorre na cidade), pois a comunidade acredita que isto melhoraria a qualidade do ensino.

    · Necessidade de contratação de uma merendeira e uma zeladora para a escola.

    · Necessidade de material didático especifica para a realidade indígena (não se sentem retratados/contemplados no material enviado pela SEDUC).

Dessa forma, podemos constatar que apesar dos desafios vivenciados pelos moradores da TIRG para ter acesso ao direito fundamental da educação, o sonho do acesso à educação de qualidade para crianças, mulheres, homens, jovens e idosos toma forma na percepção de múltiplas demandas existentes. O povo sabe que o atendimento das demandas de educação implicaria na melhoria da qualidade de vida para o coletivo, pois através da educação do nível fundamental, médio e superior haveria mais oportunidades para a geração de renda, para buscar recursos através de parcerias com organizações não governamentais nacionais e internacionais.

5. CONCLUSÃO

Através da pesquisa realizada foi possível concluir que os povos indígenas que habitam a Terra Indígena Rio Guaporé vivenciam inúmeros desafios para acessar e permanecer em contato com a educação. Esses desafios acompanham toda a trajetória escolar dos mesmos, não havendo período em que os mesmos sejam minimizados ou sanados, portanto podem ser analisados em uma trajetória linear com características de linha temporal.

A educação infantil ofertada no território inicia no primeiro ano do ensino fundamental I, não havendo qualquer tipo de escola ou creche que atenda às crianças durante o período que antecede o primeiro ano.

Portanto, é a partir do primeiro ano do ensino fundamental I até o novo ano do ensino fundamental II que as crianças, jovens e adultos lutam pelo acesso e permanência da escola. Alguns desistem da luta em função de muitos contextos, dentre os quais as responsabilidades do casamento precoce e da vida adulta aparecem como fator predominante.

Para os estudantes que permanecem na escola são apresentados muitos desafios e as professoras, os professores, as alunas e alunos e a família se unem na tentativa de minimizar os impactos destes na qualidade do aprendizado. Unidos, o povo encontra e cria alternativas para contornar os obstáculos possíveis, mas o fato é que muitas dessas alternativas só se tornam possíveis devido ao perfil dos docentes da TIRG, pois o corpo docente é composto predominantemente de professores e professoras indígenas, que conseguem sanar algumas ausências e lacunas dos materiais didáticos realizando atividades que integram jovens e idosos e que fortalecem a identidade indígena a partir da contação de mitos, do ensino do artesanato, dos festejos e demais atividades culturais da localidade. É nesse contexto, que os professores e professoras contam com o apoio da comunidade para enfrentar uma das principais dificuldades vivenciadas: a ausência de material didático contextualizado ao modo de vida e cultura dos povos indígenas.

Os professores indígenas também são pais, lideranças, moram e participam do cotidiano das aldeias e também viveram experiências de modelos escolares colonizadores, motivo pelo qual buscam a mesma trilha de reflexões teóricas desenvolvidas por Berger & Luckmann (1987) e Benjamin (1985, 1987), que atestam para a importância da socialização primária e das narrativas pertencentes à tradição oral para que se possa garantir a sobrevivência das experiências e das tradições do lugar no processo de construção das identidades. Benjamin insiste na ideia de que na narrativa se imprime a marca do narrador elaborada pela arte da memória e da repetição (elementos próprios da tradição oral) o que representa a preservação do vivido e contado, das experiências coletivas e individuais, da cultura dos povos.

As mulheres da Terra Indígena Rio Guaporé desempenham ao longo da história um papel muito relevante na educação das crianças e jovens, pois em uma sociedade patrilinear as mulheres têm a responsabilidade de ensinar sobre a língua e a cultura. Ao lado das mulheres estão os anciãos que, de acordo com os costumes e tradições dos povos, são consultados para aconselhamento pelos mais jovens. É durante o aconselhamento que os anciãos compartilham a sua sabedoria, na intenção da continuação de uma história que deve continuar a ser narrada de “geração a geração”. De forma geral, boa parte das demandas da educação que ainda não foram atendidas pelo Estado são minimizadas pelo trabalho do coletivo indígena. Em um esforço contínuo as mães se revezem voluntariamente para suprir as ausências de merendeiras e auxiliares de serviços gerais, os pais e irmãos mais velhos acompanham os pequenos nos longos percursos de caso até a escola, os vizinhos e parentes se revezam no acompanhamento das crianças. Na ausência de quadras e de uniforme escolar as crianças brincam e se divertem no pátio da escola em brincadeiras simples, vestindo o que possuem.

Enquanto o coletivo media o que é possível ser mediado, os jovens e os adultos sonham em um dia concluir o ensino médio para depois ter acesso ao ensino superior. Eles sonham em serem médicos, enfermeiros, professores, ambientalistas, chefes de cozinha e advogados, que depois de formados retornarão para atuar em defesa da sua comunidade e para assegurar a melhoria da qualidade de vida do povo. São sonhos e expectativas simples, se considerarmos que a educação é um direito fundamental de todo cidadão, mas ao mesmo tempo são complexos se considerarmos que os povos indígenas, apesar de serem a população originária do nosso país, a cada dia vêem direitos serem negados e os já conquistados serem ameaçados.

Apesar de todas as dificuldades, seguem compartilhando o sonho e o desejo de acesso à educação de qualidade para si e para seus filhos.

REFERÊNCIAS

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Notas

AGRADECIMENTOS À Fundação de Amparo ao Desenvolvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e a Pesquisa de Rondônia - FAPERO pelo auxílio financeiro ao desenvolvimento do projeto de pesquisa através do PROGRAMA DE APOIO AO PESQUISADOR RONDONIENSE (PQR) CHAMADA FAPERO Nº. 003/2017.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo auxílio financeiro através do programa de bolsas de doutorado EDITAL 002/2019/PPGG/ BOLSA/CAPES.

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