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Lekòl La: as crianças haitianas e a inserção escolar na rede pública em Porto Velho-RO
Lekòl La: as crianças haitianas e a inserção escolar na rede pública em Porto Velho-RO
Revista Presença Geográfica, vol. 06, núm. Esp.01, 2019
Fundação Universidade Federal de Rondônia
Resumo: O presente estudo buscou analisar como se deu o processo de inserção e escolarização de crianças haitianas em três escolas da capital rondoniense, vindas com seus pais ou responsáveis do país caribenho, após a entrada em massa desses imigrantes no país, a partir do ano de 2010.O objetivo foi identificar, descrever e refletir acerca dos processos de inserção e permanência escolar adotados por escolas públicas do ensino fundamental. O recorte abrangeu três instituições de ensino fundamental, localizadas na área central da cidade, próximas de bairros nos quais esses imigrantes se concentravam. O estudo de abordagem qualitativa foi desenvolvido a partir dos referenciais teóricos-metodológicos encontrados nos conceitos de relativismo-cultural e da observação participante. Os instrumentos de coleta de dados foram as entrevistas abertas, a observação em ambientes escolares e sociais e a participação em organização de aulas de português e de reforço para esses sujeitos. Os dados indicam a necessidade de capacitação para os professores e demais funcionários para um melhor acolhimento desses estudantes, além de políticas públicas mais abrangentes. Nesse sentido, ações concretas do poder público aliadas à capacitação continuada da equipe pedagógica a respeito dos processos migratórios é essencial para que a inserção, o ensino, a aprendizagem e a permanência dessas crianças nas escolas públicas brasileiras tenham êxito.
Palavras-chave: Crianças haitianas, inserção escolar, Porto Velho/RO.
Resumen: el presente estudio busca analizar cómo se dio el proceso de inserción y escolarización de niños haitianos en tres escuelasde la capital rondoniense vinieron con sus padres o responsables del país caribeño después de la entrada masiva de esos inmigrantes en el país a partir del año 2010. El objetivo fue identificar, describir y reflexionar acerca de los procesos de inserción y permanencia escolar adoptados por las escuelas públicas de la educación de la educación básica. El artículo abarca trés instituciones del centro de la ciudad, cercanas a los barrios donde los inmigrantes sé concentraban. El estudio cualitativo fue desenvuelto a partir de referencias teórico-metodologicas encontradas en los conceptos de relativismos-cultural y de la observación del participante. Los instrumentos de recolección de datos fueron las entrevistas abiertas, la observación en ambientes escolares y sociales y la participación en organización de clases de portugués y refuerzo de dichos sujetos. Los datos indican la necesidad de capacitación de profesores y demás empleados para el mejoramiento de la recepción de los estudiantes, además de políticas públicas más inclusivas. En este sentido, se necesitan acciones concretas del poder público, direccionadas a la capacitación continua del equipo pedagógico con respecto a los procesos migratorios es esencial para la inserción, la enseñanza, el aprendizaje y la permanencia de esos niños en las brasileras sea exitosa.
Palabras clave: niños ahitianos, inserción escolar, Porto Velho/RO.
INTRODUÇÃO
O artigo foi produzido a partir de dados reunidos por meio de Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Ciências Sociais e é decorrentede um período de convivência de 4 anos (2014-2018) com alunos haitianos frequentadores de um projeto de extensão da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, denominado “Migração Internacional na Amazônia Brasileira: linguagem e inserção social de haitianos em Porto Velho” que objetiva o ensino da língua portuguesa para esses imigrantes.
A chegada de homens e mulheres de nacionalidade haitiana em grande número no estado de Rondônia se deu a partir do ano de 2011, conforme afirma Cotinguiba (2014). Com o crescente aumento de postos de trabalho, mediante o fomento das áreas do comércio e construção civil no estado, aquecido pela instalação de duas hidrelétricas no Rio Madeira, alguns haitianos se fixaram na cidade (COTINGUIBA; PIMENTEL, 2012). Entretanto, as barreiras linguísticas e socioculturais se fizeram presentes no trajeto desses indivíduos. Questões como a dificuldade no aprendizado da língua portuguesa, tão diferente de seu idioma materno, o Kreyól Ayisyen (crioulo haitiano) bem como as diferenças culturais impactaram no processo de busca de emprego e utilização de serviços, como postos de saúde, órgãos públicos etc.
Diante dessas questões, em 2011, um haitiano que já havia aprendido a falar português, com auxílio da Pastoral do Migrante[1], iniciou aulas para seus conterrâneos também aprenderem a falar. Essa iniciativa chamou a atenção de pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia, uma linguista e um cientista social, que em 2012 inauguraram o projeto de extensão acima citado.
Com a estabilização financeira, muitos traziam seus familiares que haviam ficado no Haiti e assim, esposas e filhos desses haitianos também desembarcaram em território brasileiro (COTINGUIBA, 2014). Logo que chegavam, trazidos por amigos e parentes que já frequentavam o projeto, essas pessoas iniciavam as aulas para vencerem as dificuldades linguísticas.
Visando a inserção em escolas públicas da capital, meninos e meninas buscavam ajuda não só para aprenderem o idioma nacional, mas para entenderem como conseguir vagas nas instituições escolares. É este processo de chegada, inserção e permanência estudadodurante a investigação que será apresentado neste trabalho.
A pesquisa foi desenvolvida no período de 2015 a 2017, em três escolas municipais que atuam com o ensino fundamental. Nosso objetivo foi identificar possíveis causas de dificuldades enfrentadas, tanto por essas crianças e seus pais, quanto pela equipe pedagógica desses locais.
A pesquisa, deabordagem qualitativa, foi desenvolvida por meio de observação participante registrada em diário de campo e entrevistas abertas, além de dados quantitativos relativos às matrículas.
Dessa forma, nosso trabalho está estruturado da seguinte maneira: na primeira parte apresentamos a contextualização da pesquisa por meio dos aspectos históricos e da conjuntura educacional no Haiti, o que nos leva para a segunda parte que versa sobre alguns fatores que determinam a elevada emigração haitiana, entre eles a motivação para fins escolares, culminando em um processo de imigração para países desenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil. A terceira e última parte traz uma descrição e análise da migração haitiana para a cidade de Porto Velho, a busca de famílias por vagas na rede pública e as ações de equipes pedagógicas e membros do projeto de extensão universitário para garantir não só o acesso, mas a permanência das crianças nas escolas públicas brasileiras.
Aspectos históricos e educação no Haiti
A República do Haiti, mais conhecida simplesmente por Haiti, é um país localizado na América central, no mar caribenho. Divide uma pequena porção da ilha de Hispaniola junto com a República Dominicana e possui uma população de aproximadamente 9,7 milhões de pessoas (TISATTO, 2016).
Possui uma história marcada por escravidão, lutas, exploração e ditaduras ferrenhas, assim como a maioria das ex-colônias europeias da América.
Foram nessas terras de paisagens paradisíacas e solo fértil, que em 1492 chegaram as navegações de Colombo, sendo o Haiti denominado então, como o berço do chamado Novo Mundo. Dominado inicialmente pela Espanha e posteriormente pela França, foi denominado Haiti ou “Aiyti” (terras de montanhas altas) segundo a língua dos nativos locais, que com a chegada dos conquistadores, foram completamente dizimados (SANTIAGO, 2013). Dessa forma, a mão de obra negra escravizada foi uma alternativa para iniciar um grande projeto: o de ser a maior produtora de açúcar da época, o que realmente aconteceu. A colônia francesa do Haiti produzia toneladas e toneladas de açúcar, produto raro e caro nos tempos da navegação, tanto que ficou conhecida como a “Pérola das Antilhas”.
Após muitos anos de exploração, os negros escravizados iniciaram um processo de libertação de seus algozes franceses. De acordo com Gorender (2004) no ano de 1804 em uma insurreição que ficou conhecida como a Revolução Haitiana, o povo haitiano, que era um misto de escravos negros, crioulos e mulatos, se libertou da metrópole francesa, expulsando-os de seu território e instaurando a primeira república negra do mundo e a maior revolução de escravos realizada com sucesso. Ao longo de sua jornada como país independente, a busca por poder desses governantes, o boicote e exploração sofrida por várias nações e a dívida externa exorbitante por terem se emancipado da França, levaram ao contexto de miséria e sofrimento da população como sê vê nos dias de hoje.
Fora o caráter repressor da ditadura duvaliana, como ficou conhecidoo governo de François Duvalier que durou de 1957 a 1986, outro ponto característico dessa fase foram as graves crises econômicas pelas quais o país passou, levando ao aumento meteórico da dívida externa junto ao Fundo Monetário Internacional – FMI, que perdura até os dias de hoje (FOURON, 2016). Quanto a esse momento de profunda crise econômica e política em face do passado glorioso de lutas e libertação e que resultou em um retrocesso sem medidas e a intervenção de outros países em seu território, Tissato (2016, p.54) nos diz que:
O país passou a mendigar, pedindo ajuda, tamanha as suas dívidas e descontrole econômico, necessitando de auxílio econômico de diversas economias mundiais. O regime ditatorial de Duvalier restringiu-se à manutenção do poder. Outras ditaduras, embora utilizassem a repressão, buscavam a conciliação entre a manutenção do poder e o desenvolvimento do país [...] Duvalier não elaborou/ executou nenhum projeto, nenhum plano de desenvolvimento.
Em detrimento das conquistas de outrora e da completa evasão dos colonizadores, a língua falada no Haiti continuou sendo o francês e oidioma falado principalmente pelos escravos daquela colônia, o crioulo haitiano, um misto de francês e outros dialetos de matriz africana que assim como a religião Vodu – ou vodoo – constitui o berço cultural do povo haitiano (JOINT, 2008).
Pesquisadores apontam que o crioulo haitiano é falado por cerca de 90% da população ou aproximadamente 8,5 milhões de pessoas (COTINGUIBA; PIMENTEL; RIBEIRO, 2016) e desde 1961 graças ao empenho de intelectuais como Felix Morisseau-Leroy, escritor e grande incentivador do uso do idioma, é reconhecido como a língua oficial do Haiti, bem como o francês.
Sobre o surgimento e a importância do crioulo haitiano para seu povo, Cotinguiba, Pimentel e Ribeiro (2016), refletem que a língua materna haitiana constitui mais do que um simples idioma, é parte das estruturas que compõem a identidade do povo haitiano – juntamente com a religião vodu e a bandeira haitiana – pois mesmo tendo o Francês como a língua ensinada nas escolas e utilizada nas instituições burocráticas, os haitianos sabem que é a língua do colonizador e o preterem.
Mesmo com a instituição do francês como língua oficial no país desde a independência, até a constituição de 1987 – que elege também o crioulo como língua oficial – nunca a população haitiana adotou de fato o francês como sua língua. [...] O francês é uma língua estrangeira no Haiti, tanto para o haitiano menos favorecido, sem estudo que vê o francês como língua dos brancos colonizadores, como para uma elite escolarizada, com instrução que vê o francês como a língua da França ou de outros países. [...] Nos dois casos, são conscientes do fato de que falar francês é característico do não-pertencimento à identidade étnica nacional haitiana (COTINGUIBA; PIMENTEL; RIBEIRO, 2016, p. 35).
Entretanto, para muitos, o crioulo haitiano ainda é visto como a língua dos escravos “rebeldes”, do povo pobre e atrasado e essa desmistificação no imaginário coletivo haitiano ainda deve percorrer sinuosos meandros até sua total transformação.
A partir dessa breve contextualização histórica a respeito da formação do povo haitiano e de um dos seus principais pilares identitários, a língua crioula, podemos partir para uma análise de como a educação no Haiti ainda continua elitista, colonizadora e limitada, fomentando a emigração de crianças e até mesmo de grandes intelectuais.
A educação no Haiti como fator preponderante na emigração haitiana
Para entendermos a problemática contida no processo de inserção das crianças haitianas nas escolas públicas brasileiras, precisamos entender o funcionamento das instituições de ensino no Haiti e traçar uma comparação com as nossas, além de conceber os motivos dessas crianças migrarem e buscarem ser escolarizados em escolas estrangeiras.
Segundo Joint (2008), as crianças haitianas emigram em busca de educação, pois as principais escolas no Haiti ainda são mantidas, em sua maioria, por igrejas e ONGs que dominam a educação haitiana e são pagas, mesmo sendo congregacionais. Dessa forma, o sistema educacional haitiano perpetua, ainda nos dias de hoje, o que tinha como base no passado: o objetivo de formar os filhos das elites separadamente dos das classes populares.
Especifiquemos o sentido de “sistema educacional”. Considero-o, sobretudo no sentido escolar do termo, naquilo que se refere à instrução. Teoricamente, as bases do ensino haitiano foram determinadas pela política educacional do libertário Toussaint Louverture e dos fundadores do Estado haitiano. Entretanto, esse sistema tem suas origens nas práticas educacionais em vigor na época da colonização e da escravatura. Os fundadores, guiados pelo modelo educacional deixado pelos antigos colonos franceses, reproduziram-no após a independência do Haiti. Mas os princípios da nação haitiana são marcados por muitas incertezas e ameaças que tiveram repercussões nas políticas educacionais dos primeiros haitianos (JOINT, 2008, p. 182).
Como podemos observar, as marcas da colonização francesa no Haiti ainda são muito fortes, principalmente no contexto do sistema de educação que reproduz o sistema do colonizador. Isso faz com que a educação haitiana ainda não tenha uma identidade própria e abra margem para a intervenção de instituições religiosas e não governamentais que ao realizarem serviços de cunho social também fazem o de cunho educacional. Quanto ao Estado, “[...] este tem dificuldade em aplicar uma política educacional que possa responder à demanda escolar de formação da população”(JOINT, 2008, p. 83).
Além desses percalços, o sistema de educação no Haiti tem por característica a demarcação das classes sociais. Inicialmente quando o Estado criou as primeiras escolas, tinha como objetivo atender os filhos de classes abastadas o que descartou antecipadamente uma rede pública de escolas para todos.
Consoante a isso, ainda segundo Joint, nas poucas escolas controladas pelo governo existe o pagamento de taxas escolares que visam a contratação de funcionários e docentes, porém com a defasagem da manutenção, não valorização e falta de pagamento de professores, desencadeiam irregularidades como atrasos e faltas. De acordo com esse sociólogo, com relação à estrutura e qualidade de ensino oferecido, as escolas no Haiti podem ser divididas em:
· Escolas “borlette” (de loteria): de má qualidade, em vista de seu mau funcionamento. O aluno que nela estuda geralmente foi recusado por uma boa escola ou por não ter pago as taxas escolares.
· Escolas independentes “onde se levam as coisas a sério”: Possuem nível médio, mas não são rigorosas com os alunos com relação às taxas o que acarreta a evasão de professores por falta de pagamentos.
· Escolas congregacionais: possuem um quadro de professores estável, bem formados, estruturas pedagógicas e materiais didáticos um pouco mais adequados e realizam o acompanhamento escolar.
· Escolas internacionais: no topo da “hierarquia” educacional haitiana, são geridas por estrangeiros e possuem um quadro de professores muito qualificados. Aplicam os programas vigentes em países como França, Canadá e Estados Unidos e preparam seus alunos com foco nos estudos posteriores principalmente no exterior. São as mais caras e frequentadas pelos filhos dos funcionários de altos cargos e estrangeiros residentes no país.
Dessa forma, muitos pais haitianos optam por matricularem seus filhos em escolas estrangeiras, para que aprendam a língua francesa e se possível, o inglês, objetivando uma possível emigração e com ela alcançarem status, oportunidades e melhoria de vida.
Conforme situa Cotinguiba (2014), com o intuito de serem um futuro dyasporá[2], esses pais migram e levam consigo seus filhos e filhas, que estudarão em países considerados superiores economicamente e quando retornarem ao Haiti serão figuras de grande prestígio social, uma vez que os haitianos nutrem um sentimento de valorização aos conterrâneos que estudam fora e depois retornam.
Trajetória de inserção e permanência de crianças haitianas nas escolas de Porto Velho/RO
A cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, é a terceira maior capital da região Norte e a quarta em Desenvolvimento e Produto Interno Bruto (PIB), ficando atrás apenas das cidades de Belém, Manaus e Parauapebas.[3]
Marcada em sua história por grandes ciclos econômicos e migratórios, em 2011, quando chegaram os primeiros grupos de haitianos, a cidade vivia mais um momento de grandes investimentos e explosão econômica e demográfica, devido à construção de duas usinas hidrelétricas, Jirau e Santo Antônio, financiadas pelo governo federal, para exploração do potencial energético do rio Madeira, rio que banha a cidade e faz parte da bacia Amazônica ocidental (COTINGUIBA, 2014).
Esses primeiros indivíduos que chegavam à capital ficavam em lugares públicos, como praças, abrigos da prefeitura e grande parte foi acomodada em escolas, pois era período de férias e, portanto, não havia funcionários nem alunos ocupando as salas, e no ginásio poliesportivo Claudio Coutinho, no centro da cidade. Eram locais com pouca ou nenhuma privacidade, e muitos em condições insalubres. Recebiam falsas promessas de emprego e eram enganados até por quem poderia ajudá-los. Sobre essa chegada e a situação em que se encontravam Cotinguiba e Pimentel (2012) esclarecem:
No início de 2011, no auge da construção das duas hidrelétricas, no rio Madeira, chegaram os primeiros imigrantes em Porto Velho, atraídos inicialmente por uma promessa de trabalho de uma suposta empresa que estaria instalada no distrito de Nova Mutum, a 110 km de Porto Velho. Esse grupo de pouco mais de 50 haitianos se disse “enganado” por um funcionário do governo do Acre na cidade de Brasiléia, fronteira do Brasil com a Bolívia, que fornecera um número de telefone aos imigrantes de uma empresa que não existia. Enquanto os haitianos tentavam encontrar uma solução para o impasse, as autoridades governamentais já haviam sido acionadas e, em um ônibus, levou-os para a cidade de Porto Velho e os alojou no Ginásio de Esportes Claudio Coutinho, na região central da cidade. Naquela mesma semana a cidade recebeu o total de 105 haitianos. A chegada dos grupos maiores de haitianos a partir de março de 2011, fez com que o governo estadual se mobilizasse e buscasse uma solução ou um paliativo imediato para duas demandas principais, alojamento e alimentação. (COTINGUIBA; PIMENTEL, 2012, p. 263)
Mediante a informação da chegada desses imigrantes, grandes empresas vieram em busca de mão de obra barata e qualificada, visto que outros grupos, simultaneamente, migraram para outras partes do país e não era nenhuma novidade que esses indivíduos almejavam oportunidades de emprego. Em Rondônia, parte da demanda de triagem e recrutamento de indivíduos para o trabalho ficou aos encargos da Secretaria de Assistência Social – SEAS.
Na ânsia de conseguirem trabalho para o seu sustento e para o sustento de suas famílias deixadas no Haiti, inicialmente, muitos haitianos aceitavam empregos de baixos salários, outros de grande esforço físico, como no caso dos que foram trabalhar no ramo da construção civil, principalmente nas usinas hidrelétricas em construção. No entanto, conforme foram tendo ampla aceitação e construção de uma imagem positiva de bons trabalhadores, poliglotas e pessoas honestas, os trabalhos começaram a variar, conforme o grau de instrução dos imigrantes.
Os primeiros haitianos foram empregados, na sua maior parte, no principal ramo de atividades da época, a construção civil, especialmente para atender à demanda no contexto urbano. A partir da triagem e de reportagens, foi atribuída aos haitianos uma identidade de um grupo composto por poliglotas e com alto índice de preparação profissional em diversas áreas, o que consideramos como um fator relevante para o processo de inserção desses imigrantes na cidade de Porto Velho. (COTINGUIBA, 2014, p. 121)
Diante desse cenário, é possível perceber que conforme conseguiam estabilidade financeira, seus parentes deixados no Haiti também desejavam vir para o Brasil, formando uma grande rede de relações fincadas no movimento migratório.
Boa parte dessas pessoas buscavam imóveis alugados para morar, esses eram partilhados por grupos de três, quatro ou cinco pessoas, geralmente, pois assim poderiam dividir o valor do aluguel, que naquele momento estavam supervalorizados mediante o inchaço populacional (COTINGUIBA; PIMENTEL, 2012).
Foi nesse contexto que surgiu a demanda de um local que servisse como ponto de apoio para receber, assessorar e ensinar língua portuguesa para esses imigrantes. Dessa forma, surgiu o projeto de extensão já mencionado, que após um curto período em local improvisado, passou a funcionar fixamente na Escola Estadual de Ensino Fundamental 21 de Abril, que funciona até os dias de hoje. Com a divulgação sendo feita entre os próprios participantes, um número elevado de crianças com intuito de aprender a língua local, começou a aparecer. Elas tinham as mais diversas faixas etárias e os pais procuravam escolas próximo à residência, o que fez com que as três escolas apresentadas nesse trabalho fossem escolhidas para o recorte da pesquisa. Dessa forma, a partir da vivência com famílias que frequentavam o projeto de extensão, passamos a acompanhar o trajeto delas para conseguir vagas nas escolas públicas da capital.
Concomitante à entrada em campo, para realização da observação participante, algumas outras ações foram necessárias. Primeiramente, iniciamos uma pesquisa com recursos dos próprios coordenadores do projeto, que consistia em mapear o quantitativo de crianças haitianas na capital, ou pelo menos, no perímetro de maior concentração desses habitantes.
Esse mapeamento objetivava demonstrar alguns aspectos e produzir dados sobre essas crianças, como: há quanto tempo estavam no Brasil, como haviam chegado, idade, sexo, se estavam estudando ou não, dentre outras informações. Porém, não foi possível dar continuidade, devido à dificuldade de pessoal e logística para tal pesquisa, além de que os haitianos não gostavam de dar muitas informações para quem não conheciam[4]. Entretanto, a coleta de dados dessas fichas preenchidas, um total de 50, foi de fundamental importância para este trabalho, pois assim, soubemos que haviam muitas crianças fora da escola e o desejo dos pais era que elas aprendessem o idioma para matriculá-las o mais rápido possível.
Com estas informações retiradas das fichas de recenseamento, e após conversas informais com pais de crianças que haviam acabado de chegar ou que tinham vontade de trazer seus filhos para estudarem no Brasil, iniciamos um mini curso de ensino de língua portuguesa voltado exclusivamente para crianças e adolescentes que estavam pleiteando vagas.
Esse mini curso foi ministrado em janeiro de 2015, sob coordenação do Mestre Geraldo Castro Cotinguiba, que por ser fluente em kreyól[5] conseguia entender e traduzir as aulas para os alunos. Dois membros do projeto, incluindo a pesquisadora, foram designados para aplicar os conteúdos, que consistiam em: ensino das classes gramaticais, expressões verbais, ortografia, sinais, etc. O objetivo era auxiliar no aprendizado mais rápido da língua portuguesa para esses alunos aproveitarem a chamada escolar, que ia acontecer em poucos dias. Contava com a participação de cerca de 10 crianças e adolescentes, de diversas idades. Alguns eram irmãos e isso facilitava a ajuda mútua das lições em casa. Com duração de duas semanas, o curso terminou com a maioria sendo aprovado no teste de localização e matriculados na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Herbert de Alencar.
Após o término do minicurso, demos continuidade às observações, orientando os pais em como proceder para conseguirem as vagas. Em grande parte das famílias, era o pai que estava à frente do processo, visto que as mães, assim como as crianças, estavam recém-chegados no país e tinham dificuldades em se comunicar.
Era necessário primeiramente traduzir os documentos dos futuros alunos para que pudessem ser compreendidos pela equipe pedagógica da escola. Esse problema foi solucionado com a utilização dos serviços de tradução de um professor da Universidade Federal de Rondônia e pelos próprios coordenadores do projeto, visto que nenhuma secretaria ou órgão público do estado ou município dispunha de tal servidor.
Mesmo após as traduções dos documentos, os desafios ainda estavam por vir. Os documentos solicitados pelas escolas eram: histórico escolar, certidão de nascimento, cópias dos documentos dos pais e comprovante de residência, porém, muitas crianças não tinham trazido o histórico escolar o que acarretou na falta do documento no período de chamada escolar, o que também foi sanado com a aplicação do “teste de localização”[6] pelas escolas.
A disponibilização de vagas nas escolas estaduais e municipais em Porto Velho é oferecida durante cerca de 2 a 3 dias, sempre em Janeiro ou Fevereiro do ano corrente. Alguns pais chegam a dormir na escola para garantir as senhas distribuídas logo no começo da manhã e assim possam conseguir a vaga para seus filhos. Adquirir a senha não é garantia de conseguir a vaga, pois algumas vezes a série escolar do aluno não é compatível com as vagas oferecidas. Os pais haitianos tiveram que fazer o mesmo procedimento. Muitos saíam do trabalho na construção civil e outros locais para dormir nas creches e escolas próximas às suas residências.
Ao nos depararmos com vários pais haitianos em uma escola municipal de ensino infantil e creche, dois deles conhecidos por frequentarem o projeto, pedimos autorização para realizar o acompanhamento do processo. Eles haviam chegado ainda de madrugada, e estavam sentados em um banco no pátio da escola, com as mãos segurando os documentos necessários. Nos boletins constavam aprovação em todas as disciplinas estudadas, a maioria com notas altas.
Como dito anteriormente, no Haiti a realidade escolar é um grande desafio. Parte das escolas não possuem estrutura adequada e a evasão de bons professores para países desenvolvidos e emergentes é comum, porém o nível intelectual e a capacidade de tirar boas notas dos alunos haitianos não está condicionado a esses fatores. É importante ressaltar, que as disciplinas cursadas nas escolas haitianas são em sua maioria semelhantes às cursadas no Brasil, com exceção de que ainda no ensino fundamental o aluno tem contato com matérias como Filosofia, Educação Moral, Geometria, etc.
Por saberem que irão precisar de boas notas pois possivelmente irão para outro país, ainda na infância ou quando crescerem, meninos e meninas haitianas dedicam horas para o estudo, não só das disciplinas básicas das escolas, como também o aprendizado de outros idiomas, como inglês e espanhol (SANTOS et al, 2015).
Dessa forma, não raramente, durante o acompanhamento escolar, vimos boletins com notas altas e poucas faltas. Para as matrículas nas escolas da capital era um fator positivo para as crianças haitianas. No entanto, durante aquele dia de chamada escolar a tristeza em saber que a escola não possuía vaga tomou conta após a notícia. Os dois pais haitianos que estavam aguardando voltaram para casa com a orientação de irem até a Secretaria Municipal de Educação – SEMED, para poderem garantir vagas a seus filhos. Assim foi feito, no dia combinado, eles foram até o local e conseguiram vagas para suas crianças na Escola Municipal Antônio Ferreira.
Durante nossas observações, portanto, pudemos constatar que o mesmo acontecia nas outras escolas. Os pais chegavam a noite ou de madrugada para pegarem a senha no início da manhã e quando não tinha vaga para a série do filho, a orientação era ir até a secretaria de educação para saber o local de outra escola que tivesse vaga mais próxima do endereço deles.
Quando acontecia da criança chegar no meio do ano letivo, a principal medida era tomar conhecimento da série que havia deixado no Haiti para poderem igualar à série no Brasil. Às crianças que chegavam primeiro no projeto com o objetivo de aprenderem a língua portuguesa era realizada uma triagem para saber se ela tinha conhecimento do espanhol ou não, pois o domínio dessa língua facilitava o aprendizado da língua portuguesa. Se a criança não tinha, convidávamos a ter aulas de português particulares em domicilio, uma hora-aula _ às vezes até duas_ por semana, a fim de que ela pudesse aprender o mais rápido possível antes de fazer o teste de localização.
Essas aulas aconteciam na casa da criança ou da pesquisadora, com a autorização dos pais, pois eram eles mesmos que iam deixar e buscar a criança no local. O método utilizado era o ensino de palavras, verbos e expressões básicas da língua portuguesa utilizando livros com figuras que expressassem o que queríamos ensinar. Por exemplo, se era o verbo “correr”, mostrávamos a figura de uma pessoa correndo, perguntávamos o correspondente da palavra em Kréyol e em seguida traduzíamos para o português. Dessa forma, a criança associava a palavra com a figura e anotava em seu caderno, formando assim um pequeno dicionário próprio para estudos em casa.
Foi assim que o menino Pierre[7] aprendeu mais rapidamente palavras do cotidiano escolar para que pudesse se preparar para o teste de localização da Escola 21 de Abril.
Após a tradução dos documentos exigidos pela escola e organização dos demais papeis necessários para a matrícula, era marcado um dia, em sala separada, para que o aluno fizesse o teste. Na escola 21 de Abril, segundo a diretora, o conteúdo eram algumas questões de interpretação de texto, verbos, adjetivos, substantivos e algumas questões de matemática e ciências.
Alguns alunos conseguiram lograr êxito em dar continuidade à série deixada no Haiti, porém, com boa parte desses meninos e meninas aconteceu de outra forma: a equipe pedagógica, após análise dos testes, optaram por colocar Pierre em uma série “mais baixa”. Acontecia dessa forma: se o aluno tinha cursado a 6ª série do fundamental no Haiti, aqui a equipe pedagógica o matriculava no 4º ano do mesmo nível.Isso gerou novos problemas: muitas dessas crianças ficaram bastante atrasadas nas séries, algumas por serem de mais idade tinham vergonha de ficar entre os mais novos, ou então ficavam desmotivados a aprender novamente o conteúdo que já tinham aprendido no Haiti, o que gerou desistência e até caso de depressão em uma adolescente haitiana.
Mesmo após conseguirem se matricular, os haitianos e equipe pedagógica das escolas sabiam que o maior desafio estava por vir. Como garantir a permanência desses alunos, com pouco conhecimento do idioma português, em séries atrasadas, com uma cultura totalmente diferente e com um preconceito racial e xenofóbico explícito reproduzido por crianças brasileiras motivadas por uma visão etnocêntrica?
Nós apenas refletimos sobre esses questionamentos, quando ao entrar em contato com a primeira escola visitada, a Herbert de Alencar, uma coordenadora pedagógica nos relatou alguns fatos vivenciados pelas professoras e outros funcionários da escola com os alunos que tinham entrado no início do ano letivo de 2015, após o curso de férias. Segundo a coordenadora, esses alunos demonstravam em sala de aula profundo respeito pelo professor e tinham uma facilidade muito grande de absorver o conteúdo ministrado, mesmo com as dificuldades da língua.
Os elogios dos professores para com esses alunos, suscitou um sentimento de ciúme por parte de algumas crianças brasileiras, que não gostavam da forma que as professoras as tratavam. Outras, que também reproduziam o que ouviam em casa, nas mídias sociais, etc., começaram a fazer “brincadeiras” de cunho discriminatório quando iam para o intervalo ou na saída da escola. Frases como “volta pro teu país, macaco”, “aqui não é lugar de africano”, “nega do cabelo duro”, “passa-fome”, eram comuns. Em dado momento, as crianças haitianas também revidavam as ofensas e a situação reverberava para as agressões físicas mais graves.
Como nessa escola havia duas crianças haitianas que já estavam matriculadas antes do mini-curso e já conheciam bem a vivencia com as crianças brasileiras e o dia a dia na escola, começaram a ajudar os novos conforme esses iam entrando na escola, em uma típica ação de pertencimento e reconhecimento dos indivíduos de sua comunidade, na perspectiva de Hall (2015).
Segundo uma professora, elas ajudavam a ensinar a língua portuguesa e auxiliavam nas tarefas, faziam a tradução do que elas falavam para as professoras e vice-versa. Elas também mediavam as situações de conflito com as crianças brasileiras, levando os acontecimentos até a direção e explicando em português o que os alunos haitianos falavam em kreyól.
Em uma situação relatada pela coordenadora, uma criança brasileira havia xingado uma haitiana, e esta por sua vez havia mordido o braço dela, porém somente a ação de morder foi flagrado pelas funcionárias do pátio, que imediatamente levaram a criança haitiana para a direção para ser penalizada. Porém, ao ouvir as motivações da criança haitiana, feita pela menina que estava na escola há mais tempo, é que a diretora entendeu a situação e resolveu de forma que o conflito acabasse.
Além desses conflitos, outra dificuldade, segundo as professoras, eram as provas que por serem em português, os alunos haitianos recém-chegados não conseguiam responder. Eles entendiam o enunciado, mas na hora de responder ou deixavam em branco ou respondiam em kreyól. Nessas ocasiões, as docentes cogitavam fazer uma prova diferenciada, sem tanta complexidade, ou deixar fazer a prova em dupla, com os alunos mais antigos que poderiam ajudá-los. Por outro lado, elas se questionavam se isso poderiam deixar os alunos brasileiros confusos ou em desvantagem.
A segunda escola a ser visitada na capital foi a Escola Estadual de Ensino Fundamental Bom Jesus, pois enquanto a Herbert de Alencar era de ensino fundamental, a Bom Jesus atendia crianças da pré-escola (dos 2 aos 5 anos).
Nessa escola não tivemos êxito em conversar com professoras, pois sempre estavam muito ocupadas ou em época de avaliações. Uma entrevista de forma espontânea, aconteceu no pátio da escola, com a funcionária mais antiga do local, que era cozinheira há uns 15 anos. Ela quem fazia as merendas e conhecia todas as crianças que ali estudavam. Carinhosamente chamada de tia Maria[8] descreveu de forma terna e emocionada a relação dela e dos outros funcionários com os oito estudantes haitianos da escola. Segundo ela, algumas crianças nunca haviam se alimentado de algumas coisas que eram servidas no refeitório, como saladas de frutas e yogurte, por exemplo, e como sempre muito educadas que eram, comiam e tinham vergonha de repetir, ficavam rodeando a cozinha até que ela percebia que elas queriam mais salada e colocava em seus copos. Segundo a diretora, com quem conversamos rapidamente alguns dias antes do início do ano letivo de 2016, no ano de 2015 a escola chegou a receber 16 alunos haitianos, já no ano seguinte esse número caiu para 8, devido algumas terem sido transferidas por causa da idade, já que ali só atendia o pré-escolar, e outras porque os pais mudaram-se de cidade.
Nessa escola, conforme afirmação da diretora, os conflitos mais comuns eram porque as mães nunca apareciam para as reuniões, somente os pais, e estes por sua vez iam poucas vezes já que a maioria trabalhavam o dia todo e não podiam pedir dispensa do trabalho para ir. Dessa forma, as professoras tinham dificuldades em passar alguns recados e informar sobre o desempenho escolar dos alunos.
Esse comportamento das mães foi notado não só pela equipe pedagógica da escola Bom Jesus, mas também por todas as outras instituições que observamos. Isso pode ser explicado pelo fato de que, no Haiti, as mulheres vivem em um contexto que não lhes permitem serem as chefes de casa, esse posto é sempre de um homem, do marido, ou do filho quando o primeiro falece. Além disso, por não serem estimuladas a conviver com os brasileiros e assim levam muito mais tempo para aprender o idioma, elas preferem deixar com que o marido tome conta da situação.
Transcrevemos abaixo, uma entrevista realizada em agosto de 2016 com uma mãe de aluno haitiano que pouco falava o português, mas como havia morado na República Dominicana e falava bem o espanhol, foi possível conversar:
Pesquisadora: - Porque você veio para o Brasil?
Mãe de aluno: - Para acompanhar meu marido. Ele veio primeiro e eu vim depois com as crianças.
Pesquisadora: - O que é mais difícil e o que é mais fácil para você aqui no Brasil?
Mãe de aluno: - Aqui meu marido ganha mais dinheiro do que na República Dominicana e o mais difícil é aprender o português (risos).
[...]
Pesquisadora: - Porque você não vai na reunião da escola?
Mãe de aluno: - Porque meu marido entende mais o português e ele pode conversar com a professora melhor que eu.
A terceira escola foi a Escola Estadual de Ensino Fundamental 21 de Abril. Foi a escola que mais tivemos acesso a professores e equipe pedagógica, devido ao fato de nos cederem os espaço todos os sábados para a realização do projeto de extensão. Quando alguma criança que tinha cursado o nível fundamental no Haiti e não possuía o documento, era logo encaminhada para o teste de localização nessa escola. As entrevistas e observações, bem como o acompanhamento de alunos haitianos dessa escola ocorreram em diversos momentos, no ano de 2016. Essa escola chegou a ter cerca de 17 alunos durante o período de 2015 e 2016, conforme dados da secretaria pedagógica.
Para sanar alguns desses problemas, principalmente com relação ao preconceito implícito na sociedade rondoniense e dialogar com os pais de brasileiros e haitianos, em todas as escolas participantes a solução da equipe pedagógica era promover oficinas e palestras para apresentar uns aos outros, mostrar como era saudável a convivência de uma multipluralidade de culturas na mesma sala de aula e demonstrar que certas atitudes eram consideradas preconceituosas. Na Herbert de Alencar, essa semana de interação escolar passou a fazer parte do calendário letivo. Na 21 de Abril, o foco era na formação de professores e funcionários para mediar os conflitos e no contato com a língua e cultura haitiana. Tudo isso sem qualquer ajuda ou auxílio pedagógico ou financeiro da secretaria de educação – SEMED. Em algumas dessas palestras, a equipe do projeto era chamada para colaborar com algumas falas.
No último ano de observação, após solicitação de dados da SEMED, conseguimos com que nos apresentassem um documento formal detalhado com o quantitativo de alunos matriculados em toda a rede municipal e as respectivas escolas frequentadas. É o que se pode verificar no gráfico abaixo:
Como podemos observar, os 35 alunos no total, estavam distribuídos de forma quase igualitária em todas as escolas, com exceção da E.M.E.I Cosme e Damião que possuía o maior número de crianças matriculadas e da E.M.E.F. Antônio Ferreira, já que como foi dito anteriormente, os pais procuravam escolas mais próximas de suas residências, e estas acima citadas por sua vez, estavam localizadas em regiões de fácil acesso e dentro dos bairros mencionados como conglomerados haitianos na capital rondoniense.
Nas escola públicas estaduais não foi possível obter o quantitativo de alunos haitianos, pois o mesmo não existia, assim como na SEMED foi necessário entrar com um pedido antecipado de levantamento dessas informações, na Secretaria Estadual de Educação – SEDUC, era preciso um tempo ainda maior para realizar tal estudo, visto que é onde se concentram mais escolas e também o maior número de alunos da rede pública, e deslocar funcionários para obter essas informações não estavam nos planos dos gestores dessa secretaria.
No estado de Rondônia, as escolas tiveram grande dificuldades para matricular e garantir que esses pequenos imigrantes evadissem das aulas. Todas as ações em prol da comunidade haitiana foram experiencias que somaram para o currículo docente desses professores e funcionários. Mesmo sem uma legislação especifica para acolhimento de crianças migrantes, em todas as escolas investigadas, a equipe pedagógica elogiava o desempenho e inteligência dos alunos haitianos, faziam o possível para matricular e/ou abrir vagas para que não ficassem de fora da escola e mediavam os conflitos.
Em consequência de cenários como esse, a imigração de crianças para o Brasil, não só as haitianas, constitui uma série de problematizações e experiências, que mesmo após inúmeros ciclos de imigrações, ainda perduram no contexto educacional brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou demonstrar como o processo de ingresso e permanência de crianças estrangeiras pode ser difícil no Brasil, ainda nos dias atuais, como é o caso das crianças haitianas. Mesmo após séculos de imigrações, com variados aspectos e por determinado motivos, as crianças imigrantes que vem com seus familiares para o nosso país, ainda não conseguem ser acolhidas de forma a garantir todos os direitos desse público, principalmente no quesito educação.
Com a chegada de uma população que majoritariamente veio para o país em busca de melhores condições de vida, por meio do trabalho e da educação, os haitianos configuram um fenômeno migratório que é considerado um dos mais importantes do século no Brasil (SANTIAGO, 2013).
Por meio da análise dos dados, podemos perceber que as dificuldades enfrentadas pelas famílias e pelas equipes pedagógicas das escolas constituem um coeficiente negativo para a educação de crianças não-nacionais, pois elas não atingem somente crianças haitianas.
A insuficiência de políticas públicas governamentais voltadas para esse grupo social fomenta uma desigualdade no processo de escolarização, uma vez que fatores como atrasos nas séries, dificuldades linguísticas, pouca formação continuada de professores para aprenderem como lidar com as diferenças culturais, entre outros, provocam evasão escolar e desmotivação em seguir estudando. Como foi descrito, as escolas buscavam formas distintas de sanar as diferenças entre os alunos brasileiros e haitianos, não houve uma padronização nesse processo, o que nos leva a refletir que ocorreu desigualdades no método de inserção das crianças haitianas nesses locais. Além disso, o estereótipo de país atrasado, pobre e de maioria negra, foi motivo para reproduzir conflitos de cunhos raciais e xenofóbicos dentro de sala de aula. Atribuímos a esses fatores a evasão escolar, bem como alguns problemas psicológicos como a depressão que chegou a atingir alguns deles.
Apesar de toda uma conjuntura que pesava mais negativamente do que positivamente, os estudantes haitianos demonstravam que o seu foco não era desvencilhado. Notas altas, elogios por parte dos professores, rentável rendimento escolar constituem a característica principal quando se fala dos haitianos em todas as escolas observadas. Por virem de um país onde as chances de estudar em boas escolas são escassas, a não ser que se tenha muito dinheiro, migrar é uma opção para esses pequenos indivíduos conseguirem melhoras de vida para si e suas famílias e assim retomarem a autonomia de suas vidas e de seu país, há muito explorado e colonizado por nações imperialistas modernas.
A principal contribuição desse trabalho foi, portanto, suscitar discussões e reflexões sobre o tema abordado, sem esgotá-lo. Desse universo, emergem possibilidades múltiplas de pesquisas que este estudo sozinho não poderia dar conta de tratar.
Referências
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COTINGUIBA, G. C & PIMENTEL, M. L. Apontamentos sobre o processo de inserção social dos haitianos em Porto Velho. In. Travessia (São Paulo). V. 70. P. 99-106, 2012.
COTINGUIBA, G. C; PIMENTEL, M. L; RIBEIRO, A. S. O crioulo haitiano e o seu reconhecimento político. In: Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 14, n. 1, p. 31-40, jan/jun/2016.
DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução a Antropologia Social. 6a Ed. Rio de Janeiro: ROCCO, 2000.
FOURON, G. O Haiti e as correntes migratórias na encruzilhada das falhas de governança e a política hegemônica do capitalismo global. In: I Seminário Internacional do Observatório das Migrações em Rondônia: Populações e Fronteiras na Amazônia da Universidade Federal de Rondônia.Porto Velho, 2016.
GORENDER, J. O épico e o trágico na história do Haiti. Scielo, 2004. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100025. Acesso em: 15/06/2018.
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SANTIAGO, A.(org.). Haiti por si: A reconquista da independência roubada.Fortaleza, Expressão Gráfica e Editora, 2013.
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VELHO, G. Observando o familiar. Rio de Janeiro. Zahar Editora, 1978.
Notas