Dossiê
Uniformes do Colégio Nossa Senhora Das Dores: memórias da cultura escolar da Belle Époque (1890-1914) nos confins de Minas Gerais
Uniforms of Colégio Nossa Senhora das Dores: memories of the school culture of the Belle Époque (1890-1914) in the confines of Minas Gerais
Uniformes du Colégio Nossa Senhora das Dores: mémoires de la culture scolaire de la Belle Époque (1890-1914) aux confins du Minas Gerais
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 7, núm. 1, 2022
Recepção: 27 Novembro 2022
Aprovação: 27 Janeiro 2023
Publicado: 01 Fevereiro 2023
Resumo: Neste artigo, investigo a relação dos uniformes escolares com a moda em Minas Gerais no período da Belle Époque (1890-1914) (FOGG, 2014, p. 196). Essa relação pode ser identificada em diversos veículos de memória da cultura material da vida escolar em Minas Gerais: na narrativa de uma estudante normalista de Diamantina (1893-1895), no projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora (1896) e, por último, nos artefatos fotográficos do Colégio Nossa Senhora das Dores (CNSD) de Uberaba (1908-1912), escola confessional católica, feminina, no período final da Belle Époque no Triângulo Mineiro. O estudo se baseia numa leitura de documentos textuais e iconográficos com o objetivo de compreender a materialização de conteúdos de moda e seus sentidos que, pelos portos litorâneos, entravam no país, se disseminando por Minas, até chegar ao Triângulo Mineiro, e que envolviam os uniformes escolares. Embaso a pesquisa na investigação de periódicos de moda; na narrativa de uma normalista mineira; em um projeto de uniformes desse período e em fotografias de alunas formandas do CNSD; buscando compreender os conceitos de moda na memória da vida escolar. Como procedimento teórico-metodológico parto do entrecruzamento de texto e imagens com várias outras fontes numa perspectiva dialética que situa o conceito de moda, o contexto histórico e os recursos da cultura material, permitindo compreender a produção de cultura e de memória nas escolas laicas e confessionais mineiras, questões que passam pela absorção da moda francesa na Belle Époque brasileira.
Palavras-chave: Memória, Uniformes escolares, Belle Époque, Minas Gerais.
Abstract: In this article, I investigate the relationship between school uniforms and fashion in Minas Gerais during the Belle Époque period (1890-1914) (FOGG, 2014, p. 196). This relationship can be identified in several vehicles of memory of the material culture of school life in Minas Gerais: in the narrative of a normalist student from Diamantina (1893-1895), in the uniform project of the Normal School of Juiz de Fora (1896) and, finally, in the photographic artifacts of Colégio Nossa Senhora das Dores (CNSD) in Uberaba (1908-1912), a female Catholic confessional school in the final period of the Belle Époque in the Triângulo Mineiro. The study is based on a reading of textual and iconographic documents with the objective of understanding the materialization of fashion content and its meanings that, through the coastal ports, entered the country, spreading through Minas, until reaching the Triângulo Mineiro, and that involved the school uniforms. I base the research on the investigation of fashion periodicals; in the narrative of a normalist from Minas Gerais; in a design of uniforms from that period and in photographs of CNSD graduating students; seeking to understand the concepts of fashion in the memory of school life. As a theoretical-methodological procedure, I start from the intersection of text and images with several other sources in a dialectical perspective that situates the concept of fashion, the historical context and the resources of material culture, allowing to understand the production of culture and memory in secular and confessional schools from Minas Gerais, questions that go through the absorption of French fashion in the Brazilian Belle Époque.
Keywords: Memory, School uniforms, Belle Époque, Minas Gerais.
Résumé: Dans cet article, j’étudie la relation entre les uniformes scolaires et la mode dans le Minas Gerais pendant la période Belle Époque (1890-1914) (FOGG, 2014, p. 196). Cette relation peut être identifiée dans plusieurs véhicules de mémoire de la culture matérielle de la vie scolaire dans le Minas Gerais : dans le récit d’un étudiant normaliste de Diamantina (18931895), dans le projet uniforme de l’École Normale de Juiz de Fora (1896 ) ) et, enfin, dans les artefacts photographiques du Colégio Nossa Senhora das Dores (CNSD) à Uberaba (1908-1912), une école confessionnelle catholique féminine de la dernière période de la Belle Époque dans le Triângulo Mineiro. L’étude est basée sur une lecture de documents textuels et iconographiques dans le but de comprendre la matérialisation du contenu de la mode et ses significations qui, à travers les ports côtiers, sont entrés dans le pays, se sont répandus à travers Minas, jusqu’à atteindre le Triângulo Mineiro, et qui ont impliqué le uniformes scolaires. Je fonde la recherche sur l’investigation des périodiques de mode; dans le récit d’un normaliste du Minas Gerais; dans un dessin d’uniformes de cette période et dans des photographies d’étudiants diplômés du CNSD; cherchant à comprendre les concepts de la mode dans la mémoire de la vie scolaire. En tant que procédure théorique et méthodologique, je pars de l’intersection du texte et des images avec plusieurs autres sources dans une perspective dialectique qui situe le concept de mode, le contexte historique et les ressources de la culture matérielle, permettant de comprendre la production de la culture et de la mémoire. dans les écoles laïques et confessionnelles du Minas Gerais, des questions qui passent par l’absorption de la mode française dans la Belle Époque brésilienne.’ aculture acul’em’’ acul’ acultu acultu’’emem’’ aculem’ aculture aculture’
Mots clés: Mémoire, uniformes scolaires, Belle Epoque, Minas Gerais.
1 MEMÓRIA E CULTURA MATERIAL DA VIDA ESCOLAR MINEIRA
Um livro e duas coleções, uma arquivística e uma museológica, nos interessam neste estudo: o romance de Helena Morley, um item de acervo do Arquivo Público Mineiro e a coleção de fotografias de alunas do Colégio Nossa Senhora das Dores de Uberaba (CNSD). No entrecruzamento de conteúdos dessas fontes constatamos que texto e imagens são testemunhos da cultura escolar mineira e de sua relação com roupa e moda materializadas nos uniformes escolares.
Nossa primeira fonte, a embasar este artigo, é o romance “Minha vida de menina” de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, que, aos treze anos de idade, iniciou a escrita de um diário que retrata a relação da autora, então aluna da escola normal de Diamantina, com a moda e os uniformes na vida escolar e social de uma cidade mineira entre 1893 e 1895. “A meio caminho do diário e da ficção, caderno de anotações escrito à margem da literatura, num calmo dia a dia que a adolescência e a província iluminam de modo peculiar” (EULÁLIO, 2016, p. 07)Este diário foi publicado em livro pela primeira vez em 1942, “amanheceu clássico”, como sinaliza Alexandre Eulálio (2016, p. 07) na introdução da versão em análise, e “antecipou a voga das histórias do cotidiano e dos relatos confessionais de adolescentes” (Ibidem) ao traçar o relato da vida numa cidade de província na passagem do séc. XIX para o séc. XX).
O projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora, faz parte dos Actos da Secretaria do Interior de Minas, acervo do Arquivo Público Mineiro (APM). Entre relatórios, cartas etc., e documentos que primam no rigor da objetividade da burocracia que compõe os atos da Secretaria do Interior de Minas está o modelo proposto para o uniforme da Escola Normal criada em 1896 naquela cidade.
O Arquivo Público Mineiro foi criado em 1895, como parte do projeto de modernização da recém-República brasileira, com atribuição de conservar e classificar documentos das mais variadas naturezas, atrelados a Minas Gerais e que remontam aos períodos colonial, imperial e republicano. Criado ainda na cidade de Ouro Preto, o Arquivo Público Mineiro é a instituição cultural mais antiga do Estado. Em 1901, transferiu-se para Belo Horizonte onde ainda é sediado.
A coleção de fotografias de alunas do CNSD, nossa terceira fonte e base fundamental, faz parte do acervo do Museu da Capela das Dominicanas de Monteils (MCNSD)2, ordem católica e feminina francesa, sediada na cidade de Uberaba-MG, desde 1885. Entre objetos e documentos veiculados à história da Congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils, encontram-se vários álbuns de fotografias que registram uniformes que foram usados pelas alunas da escola num período que vai de 1908 aos dias atuais3.
O museu privado, o lugar da memória da comunidade dominicana feminina uberabense, foi criado em 1985, por ocasião do centenário de fundação do CNSD e reinstalado em 2000 por iniciativa da congregação (Ibidem). Memória e conhecimento norteiam o discurso de preservação do acervo. O que se preserva, existe como coleção desde 1950, e em 2000 foi submetido a um projeto museográfico (Ibidem, p. 07)4. O museu abriga parte da importante Coleção Loreto, de rochas e minerais, e a coleção de objetos vários e relacionados às áreas de atuação das irmãs dominicanas: pesquisa, educação, saúde e assistência social (Ibidem). No setor de objetos se destacam os álbuns de fotografias das alunas e uma coleção de réplicas de uniformes e de acessórios originais.
A congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário nasceu em Bor, no Aveyron, França, em 1851 (BICHUETTE; LOPES, 1986) com vocação eclesiástica e dedicada à alfabetização. Com 35 anos de idade a congregação, por iniciativa do bispo de Goiás, Dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão (LOPES, 2010)), entra no Brasil através da fundação do CNSD se instalando na “Boca do Sertão”, como, à época, era nominada a cidade de Uberaba. Depois a congregação se expande para Goiás e outros estados.
Esse movimento acontece no final do século XIX, ao apagar das luzes do Segundo Império, momento este em que a mulher, em geral burguesa ou oligarca, será integrada a um projeto de educação no Brasil e essa será a primeira escola confessional católica da região do Triângulo Mineiro. O período ao qual nos concentraremos nesse estudo é aquele que vai de 1908 ao fim do período da Belle Époque (1890-1914) (FOGG, 2014, p. 196). No entanto, os uniformes escolares, citados nos livros contábeis da escola, aparecem em registros fotográficos somente 23 anos após o início das atividades de ensino. Do vasto registro de uso dos uniformes, nos interessam apenas aqueles que correspondem a este recorte temporal e que são os das fotografias das alunas formandas de 1908 (CNSD, Álbum Nº 6); das “normalistandas” (sic.) de 1908 e 1910 (CNSD, Álbum Nº 2); e uma fotografia avulsa das normalistas de 1912 (CNSD, foto 0935). Ao todo analisaremos quatro fotografias de uniformes autênticos do período final da Belle Époque. Os mais antigos testemunhos da moda desse período nos uniformes da escola são as fotografias de 1908, que registram uniformes manufaturados 19 anos após a Proclamação da República no Brasil.
Os uniformes registrados nessas fotografias, testemunham a difusão da moda Belle Époque em Uberaba, Minas Gerais. A divulgação dos conteúdos de moda era feita através dos periódicos de moda internacionais e nacionais e da escola das irmãs francesas que ministravam aulas de “trabalhos manuaes próprios de uma senhora como: costura, crochet, bordados, etc.” (Monitor Uberabense, 17 de outubro de 1885, p. 3). Esses conteúdos e matérias eram presentes no programa escolar da instituição (Ibidem.) e viabilizavam a materialização de uma moda francesa e a formação de uma cultura de construção de roupas no Triângulo Mineiro.
Esse estudo parte da cultura material para se expandir com o entrecruzamento de várias outras fontes, materiais e imateriais, com o objetivo de refletir e compreender os conceitos de moda na memória da vida escolar em Minas, em especial do CNSD, ou seja, nos artefatos fotográficos.
2 MÉTODOS E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA PARA UMA ANÁLISE DA MEMÓRIA DE UNIFORMES ESCOLARES EM MINAS
Este estudo é embasado na cultura material, na pesquisa documental e bibliográfica e se estrutura como descrição e interpretação pelos métodos dialético e historiográfico através de operações como contextualização, associação, comparação, análise e ampliação.
O estudo dos artefatos da cultura escolar do CNSD nos leva a conjugar e analisar conceitos de roupa, moda, uniformes, cultura material e memória.
Anna Maria Curcio, sustenta que
[a] roupa imposta como forma de moda imperante no contexto (primitivo ou moderno) não serve somente a cobrir o corpo, a torná-lo mais atraente, mais “à la page”, mas a definir a sua aparência e seu pertencimento social, a colocá-lo neste ou naquele âmbito, através da forma da qual se cobre.(CURCIO, 2015, p. 11)5
Do nascimento à morte, estamos envolvidos em têxteis: panos ou roupas. E “o tecido é o elemento que materializa a forma da indumentária” (SALTZMAN, 2004, p. 37)6 em muitas de suas diversas possibilidades. Existiram roupas muito antes que a moda existisse (SVENDSEN, 2010, p. 14).
A moda é um fenômeno social e ela “só se configura quando a mudança é buscada por si mesma, e ocorre de maneira relativamente frequente” (SVENDSEN, 2010, p. 24). Para o filósofo Gilles Lipovetsky (1989, p. 23), “a moda não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações”, mas está vinculada ao nascimento e ao desenvolvimento do mundo moderno Ocidental. Como fenômeno social ela está ligada ao renascimento das cidades ocidentais e traz consigo “um traço vital da modernidade: a abolição de tradições”. (SVENDSEN, 2010, p. 25).
No entanto, diante de uma questão tão complexa, dois grandes autores fazem leituras aparentemente divergentes quanto à lógica desse fenômeno: para Simmel (2015, p. 16) sua força motora está na pluralidade de forças e de tensões inerentes à natureza humana como, por exemplo, a tendência psicológica à imitação e à diferenciação, à coesão e à distinção. Para esse autor, quando em sociedade, se imita um modelo dado pela moda, se apaga a necessidade de apoio social e o singular é conduzido por uma estrada comum fazendo de cada indivíduo um mero exemplo. Simmel (2015, p. 19) sustenta que esse desejo de imitação, “apaga a necessidade de diversidade, a tendência à diferenciação, às mudanças, ao distinguir-se” e torna-se um produto da divisão de classes da sociedade moderna. Isso se dá porque o desejo de coesão com uma classe coexiste com aquele de distinção em relação a outra. No entanto, a conjunção e tensões dessas forças são ainda mais complexas, pois ao mesmo tempo em que o indivíduo almeja afinidade com o seu grupo social, ele busca a diferenciação como forma de individualização no seio desse mesmo grupo (Idem, Ibidem., p. 19). “Quando falta uma das duas tendências sociais, que devem convergir para a criação da moda, a necessidade de coesão de um lado, do outro aquele de diferenciação, a criação desse fenômeno cessará e será o fim do seu reino”. (SIMMEL, 2015, p. 27). Por outro lado, o filósofo da moda Giles Lipovetsky sustenta que
[a]o contrário dos esquemas da luta simbólica das classes […], na história da moda, foram os valores e as significações culturais modernas, dignificando em particular o Novo e a expressão da individualidade humana, que tornaram possíveis o nascimento e o estabelecimento do sistema da moda da Idade Média tardia. (LIPOVETSKY, 1989, , p. 11)
Para o filósofo, é nesse momento histórico que “a renovação das formas se torna um valor mundano, a fantasia exibe seus artifícios e seus exageros na alta sociedade, a inconstância em matéria de formas e ornamentações já não é exceção, mas regra permanente” (LIPOVETSKY, 1989, p. 23) e é isso que marca a ordem da moda.
Entendendo que esses dois autores se complementam e não se contrapõem, como aparentemente Lipovestisky sustenta, eles ampliam nosso referencial teórico para a análise dos artefatos fotográficos, desse estudo. A moda que se apoia na conjunção de duas lógicas, a do efêmero e da fantasia estética (LIPOVETSKY, 1989) promovendo a mudança de formas, em períodos relativamente frequentes e buscada por si mesma, serve tanto às diferenciações de classe quanto à expressão da individualidade humana. Ademais, o século XIX será aquele em que a moda sai dos salões da aristocracia, a alta sociedade, e é apropriada pela burguesia emergente no Ocidente.
O período da Belle Époque (1890-1914) foi aquele em que a sociedade ocidental experimentou uma velocidade jamais vista até então: tanto a produção de bens quanto o trânsito de pessoas, o de conhecimentos e de produtos experimentaram a velocidade da máquina a vapor. Além disso, a imprensa se expande em muitos gêneros. A moda passa a ser tema pulverizado nas colunas sociais, naquelas de política e economia, nas de humor, além daquelas especializadas na divulgação dos figurinos e nas técnicas de corte, de costura e de bordados. Esse fluxo intenso de pessoas, de coisas e de informações transnacionais, aceleram as mudanças nas sociedades e consequentemente na moda. Para Simmel:
[a]s mudanças da moda indicam a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas. (SIMMEL, 2014, p. 32)
A alternância das modas no período da Belle Époque será intensa também para uma elite econômica e social no interior do Brasil, buscando se distinguir das classes sociais inferiores, mas também de etnias como a indígena e a africana, e está presente nos uniformes do CNSD.
O uniforme é definido como roupa oficial, que caracteriza a ocupação do usuário (DAVIES, 1994). É uma roupa que “identifica aquele, que o veste como membro de algum grupo e muitas vezes o situa em uma hierarquia; às vezes, fornece informação sobre suas realizações, assim como os distintivos de mérito e os galões de batalha de um general” (LURIE, 1997, p. 33) ou, por exemplo, a colação de grau escolar. Nesse sentido o sentimento de pertencimento à uma instituição de prestígio, como, por exemplo, o CNSD, certamente favorecia também a distinção na sociedade uberabense. A regulamentação da forma, dos detalhes internos, das cores, das padronagens etc., geralmente servem a definir o grupo e sua função ou o uso da roupa e é uma característica dos uniformes (ALMEIDA, 2003, p. 78). Essa regulamentação é, com frequência, consciente e deliberadamente simbólica (LURIE, 1997, p. 34). No caso dos uniformes escolares, elas podem variar segundo o grau (ensino fundamental, médio etc.) e segundo a função (solenidades, atividades ordinárias, atividades físicas etc.). Essa regulamentação oficial, pretende a padronização, o que proporciona a anonimidade do indivíduo, favorecendo as decisões objetivas, inerentes aos interesses da educação, como também possibilita o conforto do sujeito como membro do grupo. Em contrapartida pode também fomentar o desejo de distinção no seio desse mesmo grupo como mostra os referenciais aqui analisados.
Indivíduo e grupo, distinção e coesão, estão inscritos na cultura material.
Por cultura material podemos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. (MENESES, 1993, p. 112)
Sendo assim, a fotografia, um artefato “que marca a materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares, nos informam sobre determinados aspectos desse passado — condições de vida, moda, infraestrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc.” (MAUAD, 2004, p. 22), é uma fonte preciosa para este estudo. Esse conjunto de fotografias é também símbolo, aquilo que, no passado a Congregação das Irmãs Dominicanas estabeleceu como imagem a ser perenizada para o futuro (Idem.) como forma de preservação da memória da vida escolar do CNSD.
É no entrecruzamento de métodos e referenciais teóricos, que busco articular a dimensão transnacional (França), nacional (Brasil), regional (Minas Gerais) e local (Uberaba) dos conteúdos de moda presentes nos uniformes escolares do CNSD, mas também os relatos de uma normalista de Diamantina e o projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora.
As fontes de pesquisa incluem ilustrações de periódicos de moda; a narrativa de uma normalista mineira, um projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora e, por fim, as fotografias de alunas do CNSD. Abordo a moda nas revistas e nos uniformes de escolas normais de Minas para em seguida fazer a análise dos uniformes e de moda no Triângulo Mineiro da Belle Époque, objetivo maior deste estudo.
3 A MODA NAS REVISTAS E NOS UNIFORMES DE ESCOLAS NORMAIS DE MINAS
A primeira crônica de Helena Morley data de 5 de janeiro de 1893, quando Helena iniciava a Escola Normal em Diamantina-MG, e a última de 31 de dezembro de 1895, portanto, a autora escreveu ao longo de três anos, no início do período considerado como Belle Époque. Esse é um registro precioso para este estudo, pois pode nos ajudar a compreender como uma adolescente do fim do século XIX, no interior de Minas, se relacionava com a moda e o uniforme escolar.
Segundo Helena, o uniforme teria sido adotado pela Escola Normal de Diamantina em 1894, um ano após o ingresso da narradora nessa escola. Na narrativa da autora, fica evidente as várias funções que o uniforme pode assumir na vida de uma estudante e da própria família:
[p]or felicidade nossa foi adotado uniforme para nós na Escola. É de uma fazenda forte, azul-escuro, que suja pouco e é muito durável. Mamãe vai descansar da luta de me arranjar vestidos para a Escola, que lhe estava dando um trabalho horrível. Com o uniforme agora tudo será mais fácil; eu mesma o lavarei na quarta-feira e passarei na quinta. Queria só saber da cabeça de quem saiu esta idéia tão boa, que devia ter aparecido há mais tempo. (MORLEY, 2016, p. 124-125).
Nessa fala da autora fica evidente os aspectos funcionais do uniforme: ele elimina a necessidade de variação de peças de vestuário, o tecido grosso favorece a durabilidade e as cores escuras facilitam a manutenção do mesmo. Nesse aspecto, tanto o investimento econômico quanto aquele físico são simplificados e esse é um aspecto relevante da adoção de um uniforme. Outro aspecto é a padronização da vestimenta nas instituições destinadas à educação. Segundo Simmel,
a tirania da moda é mais insuportável nos campos aos quais devem ser válidas somente as decisões objetivas: a religiosidade, os interesses científicos, [...] mas os motivos pelos quais estes conteúdos vitais deveriam ser adotados estão em contraste absoluto com a completa falta de objetividade das manifestações da moda e até mesmo com aquele fascínio que lhe advém do fato de ser estranha ao significado do conteúdo das coisas e que, como totalmente externo a essas decisões últimas, lhes confere um traço de frivolidade. (SIMMEL, 2015, p. 24).
No entanto, traços de frivolidade são aspectos que também definem o uniforme: os conteúdos de moda (forma, proporções, cores, linhas, materiais etc.) e a qualidade da construção (modelagem/corte e costura). Os primeiros aspectos são externos ao mundo escolar e o último é conferido ao savoir-faire da costureira. Helena conta que de suas tias inglesas, quatro fizeram a Escola Normal em Diamantina. Das três que viviam mais perto de sua família, Ifigênia e Cecília eram boas modistas, já Madge, sua tia protetora, era professora e tinha uma escola particular dedicada à alfabetização de crianças. Essa não sabia costurar e não se convencendo disto se prontificou a fazer o uniforme de Helena enquanto Ifigênia assumiu a confecção daquele de Luisinha, irmã mais nova da escritora. Segundo Helena,
[t]ia Ifigênia é madrinha de Luisinha e poucas vezes toma os vestidos dela para fazer, sendo modista. Mas quando toma algum faz muito bem feito. Eu, se quero ter um vestido a meu gosto, tenho que fazê-lo sem tia Madge saber.
Tia Madge sabendo da história do uniforme foi logo dizendo a meu pai que comprasse a fazenda que elas fariam. Tia Ifigênia fez o de Luisinha, uma beleza de bem feito. Tia Madge inventou de fazer o meu com saia da moda, que é de sino, e eu penso que ela não sabia cortar. Saiu uma coisa horrível! A saia ficou curta na frente e comprida atrás, e para completar minha infelicidade, ela alinhavou só as mangas e eu fui assim para a Escola. Os alinhavos eram fracos; se fossem fortes não acontecia o que aconteceu. Elvira, vendo que a manga estava só alinhavada, puxou de um lado e Jeninha do outro, me deixando de braços de fora. Tive que pregar as mangas com alfinete e ir na carreira à casa de tia Madge. (MORLEY, 2016, p. 125).
A qualidade do “corte e da costura” colaboram com a “distinção” dentro da “coesão” de formas da indumentária. Os alinhavos são feitos com pontos manuais e frouxos, e servem à acomodação dos tecidos para que a etapa posterior, a da costura definitiva, seja feita com precisão garantindo estética e resistência (função). De fato, Helena tem razão em seu julgamento quanto à qualidade da costura de Madge: pontos provisórios numa peça acabada são sinais de desleixo. Se Helena não buscava se distinguir positivamente do grupo, pela qualidade superior do “corte e costura” do seu uniforme, deixou claro que não aceitaria se diferenciar negativamente, pela baixa qualidade da mesma. No entanto, se a costura não qualificava o uniforme de Helena, a descrição que a autora faz do “corte” da saia, nos leva a pensar que, de fato, a mesma poderia ser de moda e por isso um elemento de distinção. À época, revistas e periódicos de moda sugeriam com profusão as saias tipo sino com cauda atrás e Madge deu inúmeros indícios de ser atenta às coisas de moda.
Folheando o periódico A Estação, de 1891 a 1893, na BnDigital, podemos ver claramente como a saia de cauda, em várias dimensões, era recomendada pela editora da revista: saia de meia cauda (A Estação, 15 de janeiro de 1892, p. 2); saia colchetada sobre a cauda (Ibidem., p. 3); “vestido com corpinho de abas e cauda inteiriça” (Ibidem) etc. Para meninas de 16 e 18 anos, ou seja, pouco mais velhas que a narradora, o periódico apresenta propostas de saias sino mostrando os pés (Id., 15 de janeiro de 1891, p. 8, desenho 81) como Helena descreve a sua. As propostas de saias com caudas ocupavam as páginas de destaque como, por exemplo, a capa da sessão “Correio das Modas” ou a dupla página 13 de 31 de janeiro de 1893. Nesta página, o periódico A Estação estampa uma imagem de destaque com 7 figurinos que nos mostram a diversidade de saias à moda da época (FIG. 1). Nos três figurinos em primeiro plano, podemos identificar: saia curta franzida, que mostra a ponta dos pés; saia sino em meia cauda e a terceira, no vestido à direita, saia sino em cauda longa, todas endereçadas a mulheres jovens e adultas. A saia do centro da imagem apresenta comprimento de 106 cm na frente, de 112 cm na lateral e de 150 cm nas costas como podemos ver no molde nº 21 da imagem à direita da figura 1.
No entanto, a cauda de uma saia é incompatível com a adolescente inquieta que era Helena, assim como com as ruas de terra que circundavam a narradora. Descontente com a primeira proposta de uniforme, a de tia Madge, em 27 de novembro de 1894, Helena decide fazer um vestido para usar na Escola.
Estou radiante com a idéia que tive: vou fazer um vestido de lã azul, de casaco, com um colete branco, que pareça uniforme e sirva também para passeio. Avalio já como vou ficar elegante! (MORLEY, 2016, p. 200).
Conciliando vida social e escolar, em quatro dias após a encomenda ela recebe o vestido pronto e, no sétimo dia, ela o veste para dar exames na Escola. Assim Helena narra a experiência de usar o vestido:
Hoje fui com meu vestido à Escola. Sei que está bonito pela inveja que causou. As colegas logo disseram: “Isso nunca foi uniforme nem aqui nem na China. O diretor é que devia ver isso e suspender. Daqui a pouco estão fazendo até uniforme de seda na escola. Você já não fez de lã com colete de fustão? Palavra que eu tive medo que elas fossem reclamar ao diretor e ele viesse mesmo me proibir o vestido. (Ibidem, p. 201-202).
Se consideramos que o uniforme marca uma categoria, ou um grupo, essa narrativa nos remete à afirmação de que “o comportamento que encontra quem está na moda é uma benéfica mistura de aprovação e de inveja” (SIMMEL, 2015, p. 35). Quem está na moda é invejado como indivíduo ao mesmo tempo em que é aprovado como ser universal (Ibidem). Percebemos que no seio do grupo, o das alunas da Escola Normal, Helena busca a distinção e se regozija com a inveja causada, constatação de que realizou seu intento. Prosseguindo a narrativa, Helena completa:
[à]s vezes eu mesma fico pasma de como me vem inteligência para certas coisas. Foi tudo Nossa Senhora. Ela viu que eu precisava ao mesmo tempo de um de uniforme e de um vestido e me inspirou tudo direitinho. O vestido foi tirado todo da minha cabeça, sem ver um figurino. Como eu podia ter tido uma idéia tão boa! Acabamos os exames estou no feito. Um dia eu ponho o vestido com colete e gravata; quando quiser variar visto a saia com uma blusa branca ou de cor, e ninguém me passa mais na frente.
Estou gozando a inveja que causei às colegas quando passei na loja do Mota, na vinda para o almoço e na volta, e eles vieram para a porta me olhar. Tião veio de lá de dentro me cumprimentar pelo vestido. O diretor passou por mim duas vezes, viu e não disse nada. Foi um sucesso! (MORLEY, 2016, p. 201202).
Helena corrigiu a saia de cauda fazendo um vestido “tirado todo da sua cabeça”, sem ver um figurino, com certeza se apropriou de elementos que compunham roupas do período, pois o convívio com a moda era percebido no ateliê das tias modistas (Idem.) e muito presente na cultura local.
Segundo Ostrower,
[a] natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores de vida. No indivíduo confrontam-se, por assim dizer, dois pólos [sic.] de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de sua cultura. (OSTROWER, 1987, p. 5).
Diante da afirmação de Fayga, concluímos que Helena foi criativa. “Em dados momentos de nossa vida, a criatividade parece afluir quase que por si e dotar nossa imaginação com um poder de captar de imediato relacionamentos novos e possíveis significados” (ibidem, p. 55). Isso foi o que deduziu Helena acreditando que teria sido tudo obra de Nossa Senhora. Helena ficou quase dez meses do seu segundo ano na Escola Normal, ou seja, de 20 de fevereiro a 27 de novembro de 1894, se debatendo com o uniforme feito por Madge. Nesse processo nossa narradora não cogitou, em nenhum momento, reformar a barra da saia, o que seria mais simples. Parece que, desde sempre, queria mais que um uniforme: um vestido de passeio onde as frivolidades da moda podem se manifestar. No processo criativo, certamente Helena trabalhou intensamente, “pois o ato criador abrange [...], a capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar” (Ibidem, p. 9) para concluir. “As conclusões muitas vezes nos surpreendem como um resultado original” (Ibidem, p. 67), mas são resultados de funções das “tendências ordenadoras da percepção que aproximam, espontaneamente, os estímulos das imagens referenciais já cristalizadas em nós” (Ibidem, p. 66). Helena, possivelmente retirou da cultura de moda que circundava Diamantina as imagens para a criação de seu uniforme: tirou da coletividade a sua parcela de individualidade (SIMMEL, 2015, p. 41).
A cultura de moda local, da qual Helena se serviu, foi percebida por Rugendas quando de sua passagem pelo local no início do século XIX, quando ainda nominado de Arraial do Tejuco, o que comprova uma tradição ligada ao tema. Segundo o artista, no arraial “[o] comércio é grande, principalmente de artigos de luxo e modas de Paris” (RUGENDAS, 1979, p. 84). No fim do século XIX, Diamantina já tinha experimentado a decadência da mineração, mas as modas de Paris agora circulavam de forma mais democrática, pois estampavam A Estação, revista de maior circulação no País e que ditava os parâmetros das aparências no Brasil. Mais uma vez nos recorremos a Simmel para refirmar a força de Helena e de sua ação criativa para o modelo da roupa, pois segundo o filósofo, “o débil evita a individualização, o apoiar-se objetivamente sobre si mesmo, com as suas próprias responsabilidades e as próprias necessidades, o defender-se com suas próprias forças”. (SIMMEL, 2015, p. 42).
Outro exemplo da junção de conteúdos de moda a esse tipo de roupa, está na criação do modelo de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora. Esse uniforme foi proposto no ofício nº 92 de 2 de outubro de 1895 pelo então diretor da unidade e foi aprovado por Homar da Silva Brandão em Ouro Preto em 20 de fevereiro de 1896 (Actos do Secretário S. do Interior – 1896/1904, Arquivo Público Mineiro). “A Escola Normal de Juiz de Fora, existindo anteriormente, foi instalada ou encampada pelo Estado em 15 de fevereiro de 1894” ano em que Helena Morley ali estudava. (MOURÃO, 1962, p. 43).
Dois anos após sua instalação, a proposta de uniforme oficial e partindo do governo de Minas para essa escola, compreende um vestido de saia franzida até os pés, manga longa bufante à moda presunto, ou gigot, com punhos franzidos sobrepostos a longos punhos justos (FIG. 2). A blusa franzida na frente tem gola marinheiro.
A instigante questão que envolve esse projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora se refere à temática “marinheiro”, que é própria das regiões litorâneas e portuárias. “Essa roupa, introduzida no final do século XVIII nas escolas que treinavam rapazes para a Marinha, logo foi vista em crianças de todas as idades e dos dois sexos” (LURIE, 1997, p. 55). Sendo uma escola sediada no interior de Minas, a adoção desse tema nos impele a uma questão: de onde vem a inspiração para o modelo marinheiro? O tema marinheiro era muito disseminado nas revistas e periódicos de moda europeus da Belle Époque, assim como também no periódico de moda francesa A Estação. O tema era explorado em roupas para meninos (A Estação, 31 de janeiro de 1883) e para meninas (Idem, 15 de outubro de 1903, p. 47). As instruções para o corte e costura das roupas podiam ser disponibilizadas pelo próprio periódico, como podemos ver na proposta de gola marinheiro com gravatinha e os três debruns de contorno, mencionando inclusive o “Molde e descipção (sic.); no Suplemento Verso, Nº XIX, fig. 63” (Idem, 15 de julho de 1882, p. 153). O periódico apresentava inclusive os acessórios que poderiam completar o visual, como no edital de 31 de dezembro em que propõe “chapéo de feltro marinheiro [...] atualmente muito em voga, vai também nas creanças como nos adultos, sobretudo se for de feltro cinzento. A aba tem 4 cent.” (A Estação, 1891, p. 188 e 189).
Em 1892, cinco anos antes da criação do uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora, a revista A Estação, na sessão “Correio da Moda”, propõe um “vestido com collarinho marinheiro” (15 de julho de 1892, capa), decote “V”, manga presunto e punho longo com três vivos no contorno da gola, nos punhos, na pala e na barra da saia (FIG. 3).
Além do figurino detalhado, a matéria anuncia o molde no suplemento. As instruções para o corte e costura dos modelos marinheiros não povoavam somente os periódicos e revistas de moda, os manuais técnicos de corte e de costura europeus também se ocupavam do assunto, como por exemplo, no “Vètements pour enfants” de Alice Guerre (1888) e comprova que o tema era difundido entre os dois mundos: América e Europa (LURIE, 1997).
Ainda que a proposta do uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora não seja idêntica às sugestões encontradas no periódico A Estação, o criador do projeto também se serviu da cultura de moda vigente no período para criar a sua.
Podemos constatar a influência da moda tanto na criação espontânea do uniforme de uma normalista da Escola Normal de Diamantina em 1893 quanto no projeto oficial da Escola Normal de Juiz de Fora em 1896.
4 EDUCAÇÃO E MODA NO TRIÂNGULO MINEIRO DA BELLE ÉPOQUE
15 anos após a experiência de Helena e 12 anos após a criação do projeto de uniforme da Escola Normal de Juiz de Fora, encontramos conteúdos de moda na memória dos uniformes do CNSD. A moda, no entanto, era outra: a silhueta em “S”. Nos uniformes de 1908 a 1912, de alunas do ensino elementar e/ou médio (de 7 a 11 anos) (FIG. 4) e de normalistas e “normalistandas” (sic.) (de 11 a 13 anos) do CNSD (FIG. 5 e 6), os elementos comuns que percebemos são a gola alta até o queixo e as mangas compridas, que podem ser, a de “três quartos” ou aquelas que vão até o punho. Mas estes são elementos muito genéricos para se compreender os uniformes do CNSD, além do que são presentes na moda ocidental desde terceiro quartel do século XIX.
Na figura 4, as normalistandas (sic.) de 1908, Edith Novaes França, de Sacramento-MG e Alice Bittencourt, do Prata (CNSD, Álbum Nº 2)7, vestem casacos de mangas gigot abertos, com coletes, camisas de golas e gravatas borboleta. Analisando o conjunto, é evidente um peitilho de camisa, provavelmente branca, composto por nervuras verticais de largura em torno de 1,0 cm. A gola de bico redondo e colarinho são altos até o queixo e finalizados com a gravata borboleta, ambos em cor clara. O conjunto é finalizado pela boina em cor escura e, provavelmente, por uma saia longa, peça exclusivamente feminina na cultura brasileira.
A “camisa” idealizada a partir do modelo masculino, na Europa e nos E.U., era combinada com o casaco e uma ampla saia escura, e se transformava no uniforme da mulher emancipada e/ou esportiva (FOGG, 2014, p. 195). Esse uniforme, lembra o tailleur, roupa que passou a integrar o guarda-roupa feminino na segunda metade do séc. XIX na Europa (FOGG, 2014, p. 195). O tailleur e o conjunto de técnicas que definem a construção dessa tipologia de roupas, ou seja, a alfaiataria, já se direcionavam à indumentária feminina desde a segunda metade do séc. XIX, mas no último quartel dos oitocentos essa roupa se populariza com advento de hábitos esportivos na Europa (FOGG, 2014, p. 195) e alcança os periódicos de moda de circulação transnacional.
Retornando ao periódico de moda A Estação, o “casaco”, peça fundante da alfaiataria inglesa, aparece citado pela primeira vez em 30 de outubro de 1883 (A Estação, 1883, p. 231). Na “Chronica da Moda”, editorial de 30 de novembro de 1884 d’A Estação, o “genero alfaiate, de corte inteiramente masculino, fechado ou aberto sobre collete” em diversas formas foi amplamente festejado. A partir daí, e até o encerramento da edição deste periódico em português, em 1904, “o costume gênero alfaiate com colletinho” será frequente em suas as páginas. Essa proposta de uniforme das “normalistandas’ de 1908, destoa de todas as propostas apresentadas nas outras fotos aqui analisadas. No entanto, a escola retomará esta versão de uniforme em outros anos subsequentes, como nos de 1915 e naqueles de 1931 CNSD (Álbum Nº 3).
Virgília Moreira e Raula de Chirée, ambas de Uberaba-MG, e Alda Lobo, de Ribeirão Preto8 (FIG. 5), “normalistandas” de 1910 (CNSD, Álbum Nº 2), vestem os icônicos vestidos “lingeries” da moda do período (MILBANK, 2015, p. 102) em rendas claras. As mangas, são, provavelmente, longas e o decote redondo é coberto com tule bordado e transparente terminando na gola que é alta até o queixo. Os ombros são contornados por largas abas arredondadas que em italiano são nominadas de “sprone”9, elemento muito presente nas revistas de moda internacionais (L’Eleganza, 1900-1910; La Moda Illustrata (1912) e em manuais técnicos de “corte e costura” do período (SENTA, 1912). Essa pala, aba etc., é um pedaço de tecido que nas blusas, camisas, spencers, ou ainda em outros vestimentas, cai dos ombros sobre o colo e segue até cobrir as cavas das mangas mar-cando-os e ampliando suas proporções. Podemos reconhecê-lo em diversas formas: qua-dradas, em “V”, a xale ou redonda. Enquanto é claro o formato arredondado das palas das blusas de Raula de Chirée e de Alda Lobo, a de Virgília Moreira sugere a forma em “V”.
Além da gola alta, o sprone é o elemento comum nas fotografias das figuras 5, 6 e 7, o que demonstra sua inserção no sertão de Minas. O vestido “langerie”, modelo de roupa típico desse período, é caracterizado pela presença da cor clara e de rendas na composição das peças das normalistandas que, no dia de formatura, vestem as típicas blusas da silhueta em “S” europeia complementada pela boina, um acessório recorrente nos uniformes para compor o uniforme de cerimônia.
Nas roupas das normalistas de 1912 (FIG. 6): Honorina Barra, de Uberaba-MG e Natalina de Oliveira, de Araxá de Minas-MG (CNSD, Foto 0935), podemos identificar outro elemento específico da moda Belle Époque: o volume franzido fazendo o efeito de “peito de pombo” na frente da blusa, que é marcado também pelo contraste com o cinto que ajusta a cintura, como podemos ver embaixo na linha horizontal.
O jogo de sombra no ombro de Natalina de Oliveira (à esquerda), assim como nas fotos das outras formandas do grupo10, sugere que ela usa uma sobreveste de gola rendada sobre uma blusa, enquanto na de Honorina (à direita) é claro os relevos bem definidos de um bordado na gola, no sprone, que aqui contorna do decote na frente, e no peito da blusa. O Tratado de Trabalhos de agulha (A Estação, 31 de dezembro de 1900, s/p) fazia parte das edições da Typ. e Livraria Lombaerts & Comp., a mesma editora do periódico A Estação que também fornecia instruções para os diversos tipos de bordados sugeridos pela revista desde o primeiro exemplar de edição da revista publicado no Brasil (15 de janeiro de 1879, p. 2).
A figura 7 parece retratar alunas do ensino elementar e/ou médio e superior da escola feminina dominicana uberabense (CNSD, Álbum N° 6) em 1909. Exceto a criança de branco na frente e as duas moças de roupa escura à esquerda, 42 duas crianças e jovens, que ladeiam a freira ao centro, vestem o que parece se tratar do uniforme das atividades cotidianas. Esse uniforme parece se compor de duas peças: blusa interna de gola alta tipo padre e manga longa de punho justo e ornamentados com rendas; sobreveste em corpinho com cinto justo na altura da cintura, gravata, manga três quartos de punho mais largo, saia longa mostrando os pés com três tomas ornamentando a barra. A sobreveste apresenta decote em “V” arredondado contornado por abas largas, o sprone, que cobre os ombros e a cabeça da manga bufante tipo gigot. O conjunto em cor escura é ornamentado com rendas claras na gola e nos punhos da blusa interna, na gravata e nas palas da sobreveste. O cinto que ajusta a roupa na cintura formando o recorrente franzido na frente da blusa, é de cor escura.
Se olhamos com distância, o grupo de 42 crianças e jovens que ladeiam a freira parece se vestir de modo homogêneo. No entanto, se nos aproximamos a imagem para uma análise rigorosa, podemos perceber a distinção entre as diversas peças de uniforme. É muito evidente que a primeira aluna à direta da menina de branco no centro, veste uma sobreveste cujas mangas bufantes tipo gigot são muito mais avolumadas que as das colegas que a circundam. Além disso, os cintos das alunas à esquerda na primeira fila é de cor intermediária e não escura, enquanto algumas outras usam cintos com fivelas. Outro aspecto importante é a quantidade de tomas nas barras das saias: elas variam de três a cinco e implicam, assim como o volume das mangas, em quantidades diferentes de consumo de tecidos: quanto maior o volume e a quantidade de tomas, maior o consumo de tecido, mais cara será a roupa. Na análise das rendas que ornamentam os sprones podemos perceber diferenças substanciais. Além disso, a pala pode se apresentar dupla, como na sobreveste da aluna à esquerda na terceira fila, ou com a ponta em formato arredondado ou quadrado, visíveis nas alunas da primeira fila.
Excluindo a qualidade da costura, que pelo documento não podemos aferir, esses aspectos acabam definindo o caráter estético e estilístico da roupa. Confirma que na coesão do grupo o indivíduo se destaca de forma positiva ou negativamente.
5 CONCLUSÃO: ENTRELAÇANDO MEMÓRIA, FOTOS E ROUPAS E SUAS REPRESENTAÇÕES
Nos uniformes escolares que compreendem um arco de 19 anos da passagem do séc. XIX para o séc. XX em Minas Gerais, os conceitos de moda e suas dinâmicas estão evidentes nos testemunhos materiais e imateriais de todos eles. Pela periodicidade e pelo volume de registros analisados na coleção de fotografias de uniformes escolares do CNSD de Uberaba, podemos constatar que a memória que foi preservada pelas dominicanas, testemunha a absorção de uma considerável velocidade dos conteúdos de moda divulgados nos periódicos dedicados ao tema.
Para estarem registrados em fotografias, esses artefatos foram manufaturados o que implica na absorção de matérias primas (tecidos, linhas, aviamentos em geral), de técnicas de corte, de costura e de ornamentação (bordado), inerentes às modas francesas e impressas em livros, periódicos e manuais. A dimensão transnacional tem na França e Inglaterra, os centros criadores e difusores de modas e técnicas. Muitos outros países europeus, assim como nos Estados Unidos da América, eram centros de fabricação de matérias primas e utensílios diversos que alcançavam o Brasil, na sua dimensão nacional; as Minas Gerias;no regional e o Triângulo Mineiro/Uberaba, na dimensão local.
Retornando agora aos conceitos de Simmel (2015), podemos concluir que os uniformes escolares, ainda que comportem mudanças consideravelmente mais lentas em relação às aparências, para as quais as decisões objetivas não sejam prioridade, são também um produto de moda. Ainda que eles sejam destinados às atividades mais objetivas, “onde a tirania da moda é mais insuportável”, como no caso da educação, trata-se de definir um grupo no interior do qual encontramos as nuances das divisões de classes sociais que aparecem nos detalhes da construção de um padrão. Podemos aferir que, mesmo que esse grupo, esteja sujeito a padronizações de formas de indumentária, ela pode sofrer diferenciações que marcam a individualidade do sujeito e sua condição sociocultural como expressam a narrativa de Helena Morley, fonte imaterial, assim como os uniformes das alunas do CNSD, nossas fontes materiais.
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Notas
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