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Notas sobre a educação feminina nos primeiros liceus de Artes e Ofícios em Porto Alegre: entre poética, técnica e formação1
Notes on women’s education at the firsts Arts and Crafts schools in Porto Alegre: poetics, technics and formation
Notas sobre la educación femenina en los primeros liceos de Artes e Oficios de Porto Alegre: poética, técnica y formación
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design, vol. 7, núm. 1, pp. 01-19, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê

Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 7, núm. 1, 2022

Recepção: 09 Outubro 2022

Aprovação: 16 Janeiro 2023

Publicado: 01 Fevereiro 2023

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution 4.0 Internacional, que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: A educação feminina em Liceus, no Rio Grande do Sul, foi desenvolvida desde o século XIX, mas principalmente sob a égide do Estado, no início do século XX. A pesquisa bibliográfica e documental buscou encontrar relações entre a formação feminina e o ensino em artes e ofícios. A investigação em teses, dissertações, artigos e jornais de época evidenciou a marca permanente do currículo voltado à formação limitada ao horizonte doméstico. Dessa forma percebemos em relações com a literatura e o cinema a manutenção de padrões de comportamento e inserção feminina fixos, nos quais a questão do gênero aparece sempre marcada pela domesticidade e cuidado com a casa e filhos.

Palavras-chave: Educação feminina, Gênero, Currículo.

Abstract: Female education in Liceus, in Rio Grande do Sul, has been developed since the 19th century, but mainly under the aegis of the State, in the early 20th century. The bibliographic and documental research sought to find relationships between female education and teaching in arts and crafts. The investigation in theses, dissertations, articles and periodicals showed the permanent mark of the curriculum aimed at training limited to the domestic horizon. Thus, in relations with literature and cinema, we perceive the maintenance of fixed patterns of behavior and female insertion, in which the issue of gender is always marked by domesticity and care for the house and children.

Keywords: Female education, Gender, curriculum.

Resumen: La educación femenina en Liceus, en Rio Grande do Sul, se desarrolla desde el siglo XIX, pero principalmente bajo la égida del Estado, a principios del siglo XX. La investigación bibliográfica y documental buscó encontrar relaciones entre la educación femenina y la enseñanza en artes y oficios. La investigación en tesis, disertaciones, artículos y periódicos mostró la marca permanente del currículo dirigido a una formación limitada al horizonte doméstico. Así, en las relaciones con la literatura y el cine, percibimos el mantenimiento de patrones fijos de comportamiento e inserción femenina, en los que la cuestión del género está siempre marcada por la domesticidad y el cuidado de la casa y los hijos.

Palabras clave: Educación femenina, Género, plan de estudios.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de pesquisa bibliográfica, através de documentos, artigos, teses e dissertações, que se voltaram sobre à história dos primeiros liceus de artes e ofícios e formação feminina no Rio Grande do Sul. A pesquisa é parte integrante do projeto interinstitucional: Escolas de Artes e Ofícios no Brasil: história, propostas formativas e continuidades na formação do Bacharelado em Design de Moda (SANT´ANNA, 2020), com núcleo central na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), envolvendo pesquisadores de diversas instituições públicas e privadas de todo o Brasil. O tema de pesquisa no projeto é a história e os processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos nas Escolas de Artes e Ofícios do país, e como se dá a formação dos cursos superiores de Moda.

De modo geral, a delimitação dos temas se refere à região de cada pesquisador e nossa proposta de pesquisa partiu dos Saberes e fazeres nas regiões do sul do Brasil: artes e ofícios entre poética, técnica e profissionalização. Ao ingressarmos no projeto, tínhamos presente a inquietação sobre a tensão entre a formação da área de moda no Brasil transitar entre a noção mercadológica técnica, centrada nas formações em design, e sua postura como campo de criação; espaço de crítica relacionado às atividades artísticas: tema tratado por Acom e Moraes (2017), no artigo “O campo acadêmico da Moda como território interdisciplinar”. Pensar os cursos superiores de Moda no país envolve as reflexões face ao Campo acadêmico da Moda, seja por sua gênese quando emerge das Escolas de Belas Artes, ou no contemporâneo “enquadramento” do Ministério da Educação (MEC) à área do design, o que o reduz o Campo, muitas vezes, à esfera da indústria e mercado, em detrimento de sua dimensão de fenômeno sociocultural (MARQUES, 2014).

Contudo, nossa pesquisa, que olha de modo interessado o currículo como artefato de cultura (TADEU, 1999), não foi direcionada aos cursos atuais em sua lógica do mercado e da indústria versus o potencial antropológico e processos de criação. Pelos caminhos que a pesquisa nos conduziu, a investigação voltou-se para as formações anteriores aos cursos superiores de moda ou estilismo. Nos deparamos com as primeiras instituições públicas, em que pudemos observar as “disciplinas” de costura, modelagem ou chapelaria, por exemplo. Ao voltar no tempo, este artigo pensa os primeiros liceus (ensino técnico público secundarista) juntamente com os alguns cursos particulares de corte e costura em Porto Alegre.

O processo de ensino e aprendizagem de habilidades e ofícios manuais está na origem dos estudos sobre uma “formação em moda”, assim como dos estudos sobre criação e do próprio conceito de modernidade (BENJAMIN, 2009; BAUDELAIRE, 2006). Dessa forma, ao investigarmos em Porto Alegre, na primeira metade do século XX, os primeiros indícios de uma educação voltada às artes manuais e produção do vestir, em última instância; encontramos duais instituições principais: O Instituto Parobé, criado por volta de 1906, dentro da Escola de Engenharia (futura faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que em 1920 cria uma divisão feminina, chamada, a partir de 1929, de Instituto de Educação Doméstica e Rural. E posteriormente a Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles, de 1946.

Ao observarmos os estudos de outros pesquisadores sobre estas instituições, percebemos que, inevitavelmente, a pesquisa versa sobre a história da educação feminina no sul do país, o que deve ser compreendido como resultado de interpretações, representações e relações de poder (COLLING, 2014) ao longo da história da ocupação e colonização desse “Continente”. Consequentemente, ao constatar os currículos, relatos ou excertos de jornal, torna-se necessária uma abordagem pós-crítica (TADEU, 1999) sobre percepções de gênero características do período.

A pesquisa sobre a Escola Técnica Ernesto Dornelles encontra os estudos de Guacira Lopes Louro e Dagmar Meyer, ambas professoras e pesquisadoras da Faculdade de Educação da UFRGS. Dagmar Meyer coordena o grupo de pesquisa em estudos de gênero (GEERGE – Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero) criado em 1990 e referência na área. Ademais desses estudos, encontramos a dissertação de Mestrado em Educação (PUC/RS), apresentada em 2012, de Raphael Scholl: Memórias (entre)laçadas: mulheres, labores e moda na Escola Técnica Sen. Ernesto Dornelles de Porto Alegre/RS (1946-1961).

Sobre o Instituto Parobé, encontra-se alguns artigos na web, como o de Carmen Angela Straliotto de Andrade (2010), que possui pesquisas em educação e gênero orientada por Ana Maria Colling na UNILASALLE, e as pesquisas de Raquel Rodrigues Lima (1996, 2000) em Arquitetura e Leticia Azambuja Godoy (2000) em Educação, que podemos ler em artigos na web e em suas dissertações em exemplar físico nas bibliotecas da UFRGS. Além disso, na pesquisa consultamos periódicos locais da época, no acervo digital da Biblioteca Nacional.

Dessa forma, nosso olhar para estes institutos adquiriu uma percepção dos currículos pautados em artes e ofícios, mas sempre carregados do viés doméstico feminino. O embasamento teórico para estes estudos, além de referir às pesquisas educacionais de gênero de Guacira Louro, é pensado desde teorias do currículo em Tomaz Tadeu e Sandra Corazza. Tendo os conceitos de pesquisa em arte também presentes, investigamos esse mesmo currículo como artefato cultural: que imagem ele nos apresenta?

Ao observarmos as disciplinas oferecidas, como por exemplo, corte e costura, bordados; além de formas de cuidar da casa, filhos e puericultura e alguns trechos de colunas em jornais elogiando a formação e os dotes das alunas e egressas encontramos o eixo doméstico e o feminino sempre em união, como articuladores desses currículos e de todo processo educativo (LOURO; MEYER, 1993).

Os currículos dos cursos, então, possuem uma dupla implicação entre a formação técnica e a formação para o lar – e essa confusão do ofício técnico de ser, em última instância, uma “profissional do lar”, como uma das únicas alternativas para a “formação” feminina. De acordo com relatos de egressas, alguns pais não autorizavam outro estudo, mas esta era uma formação desejável, como uma espécie de “dote simbólico”, para utilizar uma terminologia que se aproxima dos escritos de Pierre Bourdieu (1996), sobre o capital simbólico. Havia ainda os casos de famílias menos abastadas, em que existia a necessidade do emprego, e estas formações possibilitavam o trabalho como governantas ou modistas, ou ainda o tradicional “costurar para fora” a fim de complementar a renda familiar.

2 INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DOMÉSTICA E RURAL (INSTITUTO PAROBÉ)

Com a chegada das Irmãs Franciscanas, em 1875, foi fundado o colégio de meninas na cidade de São Leopoldo, região de colonização alemã, no Vale do Sinos do Rio Grande do Sul. Este é considerado um primeiro momento de ensino profissionalizante, de acordo com Scholl (2012), pois o colégio já contava com o ensino de trabalhos manuais, permitindo um meio de subsistência feminino, se necessário. Raphael Scholl cita outra instituição das Irmãs Franciscanas em Santa Maria:

[...] no ano de 1922, a criação da Escola de Artes e Ofícios Santa Teresinha, na cidade de Santa Maria, por iniciativa da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. A instituição funcionou em regime de internato e externato até 1942, sob a direção das Irmãs Franciscanas. Consta que, no ano de 1928, a escola dispunha de cursos de Corte e Costura e de Confecções de Chapéus. A Escola de Artes e Ofícios Santa Teresinha, no ano de 1943, passou a ser de responsabilidade do governo estadual, transformando-se em 1945, na Escola Artesanal Dr. Cilon Rosa [...] (SCHOLL, 2012, p. 75).

Em 1906 é criado o Instituto Técnico-Profissional, que se tornou a mais importante escola técnica do Rio Grande do Sul[4]. O instituto era voltado para o público masculino e pertencia à Escola de Engenharia de Porto Alegre. Foi chamado de Instituto Parobé, a partir de 1917. A instituição era uma referência, “formando mestres e contramestres para as áreas da construção mecânica e civil, marcenaria e artes. Destinava-se também à população de baixa renda e o ensino, gratuito, era em regime de internato.” (ANDRADE, 2010, p. 1). Em 1920 foi criada a Seção Feminina, voltada para o preparo de mulheres nos trabalhos domésticos e rurais. O objetivo desta divisão era oportunizar um ofício a meninas de famílias carentes ou proletárias. No ano de 1929, a instituição passa a se chamar Instituto de Educação Doméstica e Rural (IEDR), aportando o ensino nos níveis elementar e técnico.

Os fundadores do instituto objetivavam dar as meninas pobres uma educação que possibilitasse uma colocação profissional autônoma, desempenhando funções de: governantas, babás e empregadas domésticas nas residências de famílias de elite ou atuando como auxiliares de enfermagem, camareiras de hotel, datilógrafas ou funcionárias em indústrias alimentícias. (SCHOLL, 2012, p. 74).

De acordo com o próprio nome, o Instituto de Educação Doméstica e Rural possuía atividades voltadas para o meio rural: o cultivo de plantas e o cuidado com víveres sem dúvidas, ofícios domésticos que ainda eram comuns nestes tempos (anos 1920-1930) de transição entre meio rural e modernização das cidades no país, sobretudo tratando-se do Rio Grande do Sul, onde pecuária e agricultura sempre tiveram destaque, com grande número de “zonas rurais” e urbanização tardia.

Letícia Godoy (2000), em sua dissertação, conta que nessa formação de “condutoras de trabalhos domésticos e rurais”, havia dois níveis de cursos: um elementar, de quatro anos, e um técnico, de três anos. As meninas, além dos conteúdos habituais escolares, aprendiam trabalhos manuais, Economia Doméstica, artes, culinária, corte e costura, além da formação rural, envolvendo elementos como jardinagem, pomicultura e produção de laticínios. Dessa forma, elas tinham contato com todos os saberes necessários para administração de um lar familiar na esfera do campo ou cidade.


Figura 1
Instituto Técnico Profissional Parobé, em 1928.[5]
www.ufrgs.br/patrimoniohistorico/

3 ESCOLA TÉCNICA FEMININA SENADOR ERNESTO DORNELLES

A Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles (ETSED) é, de certo modo, resultado do “Plano Nacional de Educação (PNE)” de 1937, do Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Deste plano advém a Lei Orgânica do Ensino (1942)[6], da década seguinte e conhecida dentre a “Reforma Capanema”. Essa Reforma, que organiza e incentiva o ensino profissionalizante, sobretudo de formação industrial, está norteado pelos princípios positivistas de Auguste Comte, como podemos ver nos estudos de Paulo Sérgio Machado (2018).

A doutrina positivista fora também apontada por Carmem Andrade (2010, p. 2) em sua pesquisa sobre a divisão feminina do Instituto Parobé entre os anos 1920 e década de 1930. “O Positivismo e a moral conservadora, ao limitar a mulher no espaço privado, produziram um achatamento do potencial cultural feminino, ao direcionar sua educação para torná-la esposa, mãe e educadora dos filhos.”.

Sobre o Plano Nacional de Educação (1937), podemos observar o viés positivista na existência de um seguimento referido aos “institutos educativos”: uma educação técnica profissionalizante e as diferenças sociais marcantes entre classes. A reforma enfatizou uma “cultura de aplicação imediata à vida prática” ou ao preparo “para as profissões técnicas de artífices, tendo sempre em vista a alta dignidade do trabalho e o respeito devido ao trabalhador” (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 21). Sobre a educação feminina profissional, era priorizada a ênfase “doméstica”.

Aspecto curioso é a sistematização da preparação profissional das mulheres. Usando de um vocabulário específico, mesmo quando o objetivo do curso era, como no caso das escolas industriais para mulheres, prepará-las “para o trabalho na indústria dentro ou fora do lar”, este ensino era nomeado e chamado de doméstico. Assim, tínhamos o ensino doméstico geral, para meninas a partir dos 12 anos, e com três de duração (dois de formação, um de aperfeiçoamento) e que dava, ao final, o “certificado de dona-de-casa”; o ensino doméstico industrial, que visava preparar a mulher para a indústria “dentro e fora do lar”, prevendo, assim, o trabalho por encomenda; e o ensino doméstico agrícola. Em todos os casos, as diferenças destes cursos profissionalizantes femininos com os demais, destinados aos homens, era principalmente de sexo e função, e não tanto de saber. O “doméstico” é claramente usado em substituição a “profissional”. (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 25)

Dessa forma, a partir do que podemos chamar de um “projeto político de educação doméstica”, é criada no ano de 1946 a Escola Técnica Senador Ernesto Dornelles. Raphael Scholl (2012, p. 84) comenta sobre as notícias que relatavam a inauguração da escola como projeto do Governo Riograndense da época; no jornal Correio do Povo, de dois de abril de 1946: “ ‘Será instalada nesta capital a Escola Técnica Feminina de Porto Alegre’, tendo, por subtítulo ‘O Preparo da mulher para o lar e para as fábricas’ ”. A notícia destacava o objetivo do preparo, através de uma formação, da mulher para diversas atividades, entre uma “educação feminina para o lar”, e ainda o “aperfeiçoamento de profissionais para atividades industriais e técnicas”.

O sistema de ensino era composto por dois ciclos, o primeiro correspondia ao ginásio industrial com quatro anos de duração, que possuía os Cursos de Corte e Costura e de Chapéus, Flores e Ornatos; e o segundo ciclo técnico, de três anos de duração, que era dividido em dois cursos: Artes Aplicadas e Decoração de Interiores. A escola funcionava nos regimes de semi-pensionato (em dois turnos) e internato gratuito (SCHOLL, 2012).

Ao observarmos os quadros curriculares da Escola organizados por Scholl (2012), junto às notícias e artigos que citavam disciplinas e habilidades adquiridas pelas estudantes, reorganizamos essas disciplinas pensando sobre uma imagem-currículo (CORAZZA, 2010; OLINI, 2017) a partir de um “eixo doméstico” de ensino (LOURO; MEYER, 1993). A imagem-currículo procura apresentar esse caminho de investigação que se articula incialmente na moda, como campo de conhecimento e pesquisa, pelo ensino da produção de vestes e adornos, e se depara com uma condição de gênero.


Figura 2
Imagem do currículo-doméstico-feminino
imagem produzida pelas autoras

Desde essa imagem-currículo identificamos uma educação especializada, as técnicas de artesania, moda e decoração parecem se constituir como complemento às técnicas voltadas ao lar e maternidade. Como se o aprendizado técnico e teórico (destaque para as disciplinas de tecnologia) fosse um acúmulo ao “dote simbólico” feminino, para donas de casa e esposas, ao mesmo tempo que não deixava de ser a aquisição de um ofício – uma possibilidade de certa autonomia. No entanto, de acordo com as egressas entrevistadas por Raphael Scholl (2012), muitas tornaram-se professoras do próprio curso e não modistas ou artesãs. Em relatos que se escuta, a respeito de cursos de Corte e Costura em geral da época, apontam o desejo e a possibilidade de profissão, mesmo que a pessoa tenha utilizado o aprendizado domesticamente. A imagem do currículo é como uma imagem da sociedade que o produziu, ao atribuir uma dinâmica doméstica ao currículo é materializada a imagem do estereótipo de gênero; concepção de mulher e esposa vigente no período, com a possibilidade de uma formação institucional legítima.

Para Tomas Tadeu (1999), a percepção do “currículo” também se origina nas leituras junto à publicidade e reportagens do contexto cultural em que está inserido. Estes elementos estão envolvidos em uma economia do afeto, produção de subjetividades e identidade social. O que pode ser observado ao folharmos o Jornal das Moças da mesma época: vemos a marcação de gênero do ensino de Corte e Costura (juntamente ao Curso Normal) como matéria simbólica da identidade feminina.

O “fazer” doméstico, transformado em disciplinas escolares é, nesse currículo, altamente complexo. Passa por um processo de racionalização e tecnificação de tarefas como o “lavar”, o “cozinhar”, o “passar” e o “limpar”, minuciosamente desdobradas em passos e sequências, de forma a atender dois requisitos básicos: eficiência e economia na administração do serviço doméstico. [...] A escolarização do doméstico, vai além da complexidade e racionalização do “fazer”. Envolve o reconhecimento da escola como instância legítima da formação integral da mulher, na acepção mais ampla do termo. Daí que a educação feminina deve compreender a formação da esposa e da mãe das futuras gerações. (LOURO; MEYER, 1993, p. 52 – 53).

A marca do positivismo nesta institucionalização da educação doméstica feminina pode ser vista nos próprios escritos de Auguste Comte (1978) ainda no século XIX. A mulher deveria ser o anjo tutelar, a rainha do lar, que educa moralmente seus filhos. O “anjo deve ser igualmente invocado como protetor e como modelo” (COMTE, 1978, p. 174). De acordo com o pensador, as condições materiais da própria constituição doméstica resultavam do destino moral e social do lar em que a mulher era responsável. Comte (1978) afirma que o duplo ofício fundamental da mulher era ser mãe e esposa, encerrada em seu santuário doméstico e garantindo o aperfeiçoamento moral de seu esposo e de seus filhos. Este papel seria equivalente, em relação à família, ao do poder espiritual no Estado.

[...] para que as mães possam dirigir a iniciação doméstica, elas próprias devem ter participado dignamente da instrução enciclopédica, de que ninguém deve ser excluído, salvo raras exceções individuais. Sem esta plena universalidade, a fé positiva não poderia obter o ascendente sistemático exigido pelo seu destino moral. Ademais, a mãe não poderia conservar assaz a superintendência moral da educação humana se sua própria ignorância a expusesse aos desdéns mal dissimulados de um filho amiúde cheio de orgulho teórico. Duvido, contudo, que as mulheres devam seguir os mesmos estudos que os homens, e sob os mesmos mestres, posto que com lições separadas. (COMTE, 1978, p. 261).

Na segunda metade da década de 1940, contexto em que a Escola Técnica se desenvolvia, o mundo vivia o pós-guerra e as funções femininas em geral, penderam para dois caminhos desequilibrados: se por um lado na Europa algumas mulheres se emancipam, tornam-se enfermeiras, vão ao front, ou lutam para sobreviver em um cenário de recessão; do outro lado temos em 1947 a criação do New Look por Christian Dior e a indústria têxtil. Isso significava o retorno de uma feminilidade frágil e elegante exacerbada, dificilmente a mulher se daria a trabalhos intensos com uma ampla saia rodada, salto e cintura apertada. De modo que este “anjo do lar”, a esposa perfeita e impecável, também torna-se signo do American Way of Life importado para o mundo todo. Nessa “sociedade que se modernizava, a mulher foi elevada à condição de ‘rainha do lar’, ‘anjo tutelar’, nos moldes do ideário positivista” (ABRANTES, 2006, p. 1) que parecia coisa do século anterior. Esses movimentos reforçaram padrões de comportamento, já citados por Virgínia Woolf (2013) também no passado, em que havia divisões e restrições de atividades, espaços sociais, modos de agir e papéis a serem desempenhados pelas mulheres.

Dessa forma, Guacira Louro e Dagmar Meyer (1993) pensando a ETSED, colocam a situação de que: uma escola técnica, de caráter profissionalizante, criada com a proposta de formar moças das classes trabalhadoras, fora concebida sob a égide do imaginário de grupos dominantes, pois o fim último era “conciliar a artesã habilidosa e a dona de casa econômica e prendada” (idem, p. 47). As autoras transcrevem a reportagem do Jornal Correio do Povo sobre a escola, em que a própria diretoria da instituição apresentava a função do preparo da mulher para “o lar e para a Pátria”.

Aqui se aprende a cuidar da família e da nossa tradição: e para que se tenha uma ideia do nosso programa geral de ensino, basta dizer que uma moça que aqui faz seu estágio de estudos sai absolutamente capaz para tomar conta desde a simples cozinha caseira até os trabalhos mais delicados como confecção de tapeçaria artística e trabalhos de fina escultura em metal. Além de boas donas de casa, as nossas alunas, dentro de seus próprios lares, poderão ajudar no orçamento doméstico, trabalhando em artefatos industriais de apresentação artística que, como sabemos, têm grande aceitação no comércio. Isto, de certo modo, vem fixar a mulher dentro de sua própria casa, dando-lhe um clima favorável onde possa apegar-se à família, pois se sente útil ao ajudar seu esposo e seus filhos, cooperando para lhes dar mais conforto. Assim preservaremos nossa tradição, fazendo com que nossas donas de casa não tenham necessidade de se afastar para exercer atividades fora de sua residência. Além disso — as mulheres assim não terão necessidade de fazer concorrência invadindo os setores masculinos. (Correio do Povo, 07/09/1947).


Figura 3
Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles
https://escernestodornelles.wixsite.com/escernestodornelles/historia

A intenção de formar competentes donas de casa era explícita nos ideários educativos. A Escola seria uma espécie de estágio antes do casamento, e a defesa de se seguir esta formação materializava todos os elementos de uma construção de gênero. A formação como costureira, modista, chapeleira, tapeceira ou decoradora representava importantes “dotes simbólicos”, que valorizavam as moças no “mercado do casamento”. Podemos ver essas impressões no texto do famoso escritor e jornalista do Diário de Notícias na época, Josué Guimarães, em 26 abril de 1947. Com o título: “Onde a mulher aprende a ser uma dona de casa perfeita: a ideia, a história e a vida da escola técnica feminina” (LOURO; MEYER, 1993, p. 47).

[...] e dali saem não somente profissionais hábeis e competentes, mas e principalmente, excelentes donas de casa! Nosso conselho aos rapazes que pretendem casar seria este: nada feito antes de conhecer as moças da Escola Técnica Feminina Ernesto Dornelles. Elas preparam seu almoço, fazem seus fardamentos, seus sapatos de bailado, lavam suas roupas, passam-nas e cumprem suas obrigações escolares. E às 17 horas e trinta elas saem sorridentes e eufóricas daquele sólido casarão da rua Duque de Caxias. Serão amanhã profissionais das melhores e, o que ainda é muito mais interessante, completas donas de casa. (Diário de Notícias, 26/04/1947).

Produzir jovens “prendadas”, fabricar sujeitos, era o trabalho destas escolas. Formar moças capazes “dos mais delicados e complexos trabalhos de agulha ou de pintura. As marcas da escolarização se inscreviam, assim, nos corpos dos sujeitos” (LOURO, 1997, p. 62). Nesta mesma pesquisa sobre a Escola Técnica Senador Ernesto Dornelles, Louro e Meyer (1993) lembram que a “construção de gênero” não se dá apenas por uma imposição unilateral da sociedade. O gênero envolve recepções passivas, mas também aspectos de contradições sociais.

Portanto não só há, frequentemente, expectativas divergentes (até contraditórias) para os sujeitos sociais, como também que estes são capazes de acomodações, resistências, adaptações, transformações. Daí a importância de observarmos como mulheres que passaram por essa escola vivenciaram enquanto sujeitos concretos, as práticas educativas e sociais em que se viram envolvidas. (LOURO; MEYER, 1993, p. 47).

De fato, são os comportamentos de resistência e fora do padrão que fazem avançar as possibilidades de entendermos e refletirmos sobre a história da educação e da profissionalização feminina. Durante esta pesquisa, na região Sul do Brasil, lembramos de algumas mulheres e seus comportamentos avant-garde, ainda no século XIX: escritoras e personalidades que propuseram assassinar o “anjo do lar”.

4 É PRECISO ASSASSINAR O ANJO DO LAR

A partir da imagem do currículo-doméstico-feminino do ETSED juntamente com a pesquisa sobre “escolarização do doméstico” de Guacira Louro e Dagmar Meyer (1993), compreendemos essa formação institucional da mulher como o “anjo” ou “rainha” do lar: imagem positivista, apoiada no poema vitoriano de Coventry Patmore, mas que encontrou eco na identidade feminina, sobretudo até o período dos anos 1950.

Pensar os anos do New Look como uma estética de gênero indica bem mais do que uma tendência de moda, da costura e têxtil. “Os estereótipos de gênero estavam não apenas amplamente disseminados, mas eram parte integrante da formação que se dava nas próprias instituições educacionais.” (TADEU, 1999, p. 92). Ao mergulhar nestas reflexões, as imagens do cinema e da literatura tornam-se abundantes na memória e nos auxiliam na compressão do funcionamento estrutural.

O filme O Sorriso de Mona Lisa (2003), retrata uma atmosfera dos anos 1950, em uma escola tradicional para moças de classe abastada norte-americana, onde as meninas recebem uma educação de alto nível e cultura erudita, para a época, mas seu destino é serem esposas. O “dote simbólico” valorizava a futura noiva que poderia ser culta e “prendada” nas artes domésticas, mas praticamente não existia outra possibilidade afora o casamento e seus filhos. O conflito está, justamente, na professora que enxerga potenciais acadêmicos em algumas alunas e se frustra ao perceber a distância de seus planos com relação à Universidade.

Já o filme alemão Bauhaus (2019), trata de um período anterior, os anos 1920 na revolucionária escola de artes, arquitetura e design. Bauhaus é uma marca do modernismo e foi conhecida por sua vanguarda em muitos sentidos, incluindo a admissão de mulheres. Contudo, na prática esse ideal era relativo: as mulheres não eram tão facilmente admitidas quanto os homens, e ao ingressarem eram excluídas em muitos aspectos, com uma estranha divisão de implícitas “oficinas de mulher”. No filme, acompanhamos a trajetória de Alma Siedhoff-Buscher, criadora de um surpreendente mobiliário-brinquedo infantil. Mas precisou entrar em disputa com o diretor para estudar o que lhe interessava. Walter Gropius não admitia o ingresso da moça nas oficinas de marcenaria, pois acreditava ser uma função “de homem”.

Em As Horas (2002) temos a história de três mulheres de diferentes gerações, mas entrelaçadas pelo romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Podemos dizer que, de certo modo o “anjo do lar”, esse “fantasma”, para usar a expressão da própria Virgínia Woolf, assombra essas mulheres de modos distintos. Nos anos 1950, temos Laura Brown, uma dona de casa atormentada pelo sentimento de aprisionamento em vida e de casamento infeliz. Laura subverte essa lógica do “anjo do lar” e abandona sua família, e eventualmente lidará com a consequente rejeição e incompreensão de seu filho. A personagem do ano de 1923 é a própria Virgínia Woolf, enquanto escreve o romance Mrs. Dalloway, ao mesmo tempo em que lida com situações domésticas, como atender a cozinha e seus empregados e a preocupação com seu atencioso marido. Virgínia Woolf, embora sofresse de depressão, o que acabou acarretando em seu suicídio no ano de 1941, foi essa mulher que tinha o trabalho de escritora e editora junto ao marido, mas carregava uma espécie de fardo por não suprir as próprias expectativas de gênero da qual sua consciência a cobrava. Sua subversão não deve ser encarada como o suicídio, mas sim, de se tornar uma das maiores e mais revolucionárias escritoras e mestre do fluxo de consciência. A personagem dos anos 2001, Clarissa Vaughan, aparentemente seria a mais subversiva das três, afinal ela teve uma filha de modo independente e é casada com outra mulher. Contudo, é aqui que nos surpreendemos: podemos ver que essa “função feminina”, o anjo, também pode se modernizar. Clarissa não tem uma grande virada, sua vida é esta: ela se preocupa com todos, com a casa, com a filha, com a companheira e com seu grande amigo moribundo. Clarissa vive as preocupações de um lar contemporâneo, seu papel está arraigado a isto e não veremos uma revolução, além dos eventuais momentos de sofrimentos e alegrias.

Estes exemplos são os que nos ocorrem ao vermos a imagem de currículo da Escola Técnica e ao pesquisarmos a história da educação feminina: a construção de gênero desde os princípios da escolarização. A pesquisa, que possuía a intenção principal de buscar as origens da formação profissional nas artes do vestuário ou demais artes aplicadas e decorativas, se depara com as formações de “competentes donas de casa”, e isso nos desacomodou e encaminhou os estudos por outros trajetos.

Virginia Woolf foi convidada em 1931 para falar na Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres, sua conferência foi intitulada Profissões para mulheres, e publicada postumamente:

Quando a secretária de vocês me convidou para vir aqui, ela me disse que esta Sociedade atende à colocação profissional das mulheres e sugeriu que eu falasse um pouco sobre minhas experiências profissionais. Sou mulher, é verdade; tenho emprego, é verdade; mas que experiências profissionais tive eu? Difícil dizer. Minha profissão é a literatura; e é a profissão que, tirando o palco, menos experiência oferece às mulheres (WOOLF, 2013, p. 3).

Foi nesta conferência que Virgínia citou o “Anjo do Lar”, e revelou seu tormento entre ser responsável por um lar, ser atenciosa com o marido e ter uma profissão. Falar sobre a atividade de “ser escritora” envolvia “matar o anjo”. “Anjo do Lar” é o nome de um poema escrito por Coventry Patmore (1823 – 1896) sobre o casamento feliz, em que a mulher possui um papel ideal e doméstico: a imagem da mulher perfeita, que torna o homem feliz (PATMORE, 2014). Woolf (2013) conta como o anjo do lar prejudica o seu trabalho, sobretudo em crítica literária, pois, socialmente, ela está condicionada a agradar e elogiar os homens, sendo sempre educada, gentil e renunciando a suas preferências para manter tudo em ordem.

E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher [...] “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. [...] Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias

– os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. [...] Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. (WOOLF, 2013, p. 4).

Inspirada por esse texto, a escritora Maria Aurèlia Capmany (1918 – 1991), feminista, tradutora de Virginia Woolf, Marguerite Duras, Betty Friedan e prefaciadora das obras de Simone de Beauvoir para o catalão, também quis matar o “anjo do lar”, do qual falava Virgínia. Uma posição libertária, capaz de instigar a mulher de seu tempo a continuar “assassinando” o anjo do lar, e tornar-se agente de seu próprio papel social, profissional ou familiar.

Assassinei o anjo do lar. E não foi fácil, acredite-me; talvez por isso me sinta orgulhosa. Em primeiro lugar, não é muito simples assassinar um anjo; não se está nunca quieto, voa e desaparece, e reaparece quando menos esperas, e é todo doçura, e te cativa com as suas asas brancas que têm cheiro de naftalina. [...] Aplica a história, senhora de bem, e acredita-me: se queres fazer alguma coisa de boa neste mundo, não te resignes a ser um esboço de pessoa, assassina o anjo do lar; apenas assim começarás a viver (CAPMANY apud GODAYOL, 2007, págs. 17 – 20, tradução nossa).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme narramos, a pesquisa inicia como investigação sobre a formação em “artes e ofícios” no Rio Grande do Sul e acaba por se tornar uma reflexão sobre a “construção de gênero” a partir da história da educação profissional feminina. Não por acaso o trabalho com moda e produção do vestir, ainda nos dias de hoje, é uma atividade praticada por uma grande maioria de mulheres. No entanto, em nossa investigação na origem das propostas formativas em produção de vestuário, costura e adornos, este eixo feminino se relaciona às habilidades domésticas, com reflexo em atividades de costura como forma de subsistência. No Rio Grande do Sul, a continuidade da prática de moda, desenvolvida a partir de um eixo de design e industrialização, seguiu um caminho diferente não sendo forjada neste ramo das escolas de artes e ofícios aqui citadas.

Se um dos problemas iniciais estava na tensão presente nos currículos de dos cursos de Design de Moda contemporâneos, em penderem para uma formação industrial-técnica-mercadológica em detrimento da formação em seu aspecto de criação artística; nos deparamos com uma tensão bem anterior a esta: entre obter uma profissionalização, a possibilidade de ser uma modista, artista manual de artes aplicadas ou decorativas, ou somente adquirir uma formação de mãe e esposa habilidosa. É importante ressaltar que ao citarmos essas identidades, não se trata de uma crítica absoluta aos papéis, o que é criticado é a ausência de possibilidade das alunas desses institutos se enxergarem de outro modo – o que fica demonstrado pelos excertos de jornal escolhidos. Por isso, apresentamos algumas expressões do cinema e literatura, que expuseram essas identidades e mostraram condições contraditórias, possibilidades de núcleos de resistência e transformações, como citam Louro e Meyer (1993) até períodos bem mais recentes.

Objetivamente, concluímos que no Rio Grande do Sul, esses liceus que ensinavam artes e ofícios, com ênfase em costura, bordados e chapelarias não se transformaram em Escolas de Moda. O Instituto Parobé é hoje a Escola Técnica Estadual Parobé, com formações técnicas ligadas às engenharias. E a Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles, ainda no mesmo prédio original, oferece cursos técnicos de Prótese Dentária e de Nutrição e Dietética; a formação mais próxima das artes é o curso técnico em Design de Interiores. Nas universidades federais os cursos se desenvolveram nas áreas de Engenharia ou Belas Artes, chamado posteriormente de Artes Visuais. Recentemente, em 2007, a UFRGS criou o curso de graduação em Design (visual e de produto) junto à faculdade arquitetura. Os cursos técnicos relacionados à indústria, corte e costura, ficaram a cargo do Sistema S (SENAI, SENAC), sistema de formações técnicas também resultantes da “Reforma de Capanema”. O SENAC-RS de Porto Alegre só teria um curso de graduação em moda por volta de 2011.

As primeiras faculdades de Moda foram idealizadas por uma necessidade industrial, em polos que já produziam moda. O primeiro curso nasce na UCS, em Caxias do Sul, em 1992/93: Tecnólogo em Moda e Estilo, hoje em dia, Bacharelado em Moda. Caxias do Sul fica na região serrana do Rio Grande do Sul, com um cenário de produção em malharia retilínea e tricô. O segundo curso surge no Vale do Sinos, em Novo Hamburgo – região, por excelência do setor coureiro-calçadista – na Universidade Feevale em 2002: Bacharelado em Moda. Após isso outros cursos surgiram, todos já no século XXI, mas sempre mais próximos de um viés técnico-profissionalizante ou do design como área aglutinadora. As universidades federais do estado herdaram (UFRGS, UFSM, UFPel e FURG), nessa divisão entre artes e ofícios, a faceta ligada às artes.

Com esse percurso foi possível pensar a trajetória de ensino em artes e ofícios, suas relações com a produção de roupas como espaço feminino. O currículo é lugar, espaço e território, e constitui, visivelmente, relações políticas e de poder. Como o currículo nas palavras de Tomas Tadeu (1999), nossa pesquisa por ele constituiu-se como trajetória, viagem, percurso. Construímos, então, uma imagem-currículo e perpassamos devaneios literários e cinematográficos para pensar como essa construção do gênero feminino ultrapassou nosso pensamento sobre a poética das roupas, conteúdo que habitualmente costuma tomar nossas pesquisas.

Concluímos com Tadeu (1999, p. 146): que é impossível “pensar o currículo simplesmente através de conceitos técnicos como os de ensino e eficiência ou de categorias psicológicas como as de aprendizagem e desenvolvimento ou ainda de imagens estáticas como as de grade curricular e lista de conteúdos.” O currículo é matéria viva de pesquisa, em que observamos a reprodução cultural da estrutura social onde é originado. Como imagem, o currículo também reúne as matérias sociais, mas é dessa forma que sua subjetividade e estética pode ser extraída.[7]

REFERÊNCIAS

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ACOM, Ana Carolina; MORAES, Denise. O campo acadêmico da Moda como território interdisciplinar. Revista D.: Design, Educação, Sociedade e Sustentabilidade, Porto Alegre, v. 9, n. 2, 3-23, 2017.

ANDRADE, Carmen Angela Straliotto de. A Educação Profissional Feminina no Instituto Parobé nos anos 20. Anais do 9º Fazendo Gênero: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2010.

BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história. Dourados: Editora UFGD, 2014.

COMTE, Auguste. Comte – Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CORAZZA, Sandra Mara. Currículo da infância e infância do currículo: uma questão de imagem. In: Artigos Sandra Mara Corazza, UFRGS, Escrileituras, 2010. Disponível em: https://www.ufrgs.br/escrileiturasrede/sanmarcorartigos/

CORSETTI, Berenice. Cultura política positivista e educação no Rio Grande do Sul/Brasil (1889/1930). Cadernos de Educação, Pelotas, v. 31, p. 55-69, jul./dez. 2008.

GODAYOL, Pilar. Maria Aurèlia Capmany, feminisme i traducciò. Quaderns Revista de traducciò, v. 14, p. 11-18, 2007.

GODOY, Letícia Azambuja. O Instituto de Educação Doméstica e Rural da Escola de Engenharia de Porto Alegre: uma escola-lar (1920-1931). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2000.

LIMA, Raquel Rodrigues. Liceu Parobé: um instituto das artes e ofícios. Arqtexto. Porto Alegre, n. 0, 2000, p. 74-84. Disponível em: https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_0/0_%20Raquel.pdf.

LIMA, Raquel Rodrigues. Os liceus de artes e ofícios do Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

LOURO, Guacira Lopes; MEYER, Dagmar. A Escolarização do Doméstico: A Construção de uma Escola Técnica Feminina (1946 – 1970). Caderno Pesquisa, São Paulo, n. 87, p. 45-57, nov. 1993.

MACHADO, Paulo Sérgio. A Influência do Positivismo de Augusto Comte na Primeira Lei Orgânica do Ensino brasileiro: A Reforma Capanema. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, 2018.

MARQUES, Cyntia Tavares. Do estilismo ao design: os currículos do bacharelado em moda da Universidade Federal do Ceará. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2014.

OLINI, Polyana. Noodramatização do currículo: arquiarquivo do Projeto Escrileituras. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

PATMORE, Coventry. The Angel in the House. Salt Lake City: Project Gutenberg Literary Archive Foundation (PGLAF), 2014. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/4099/4099-h/4099-h.htm. Acesso em: out. 2022.

SANT´ANNA, Mara Rúbia. Projeto de Pesquisa: Escolas de Artes e Ofícios no Brasil: história, propostas formativas e continuidades na formação do Bacharelado em Design de Moda. Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, 2020.

SCHOLL, Raphael. Memórias (entre)laçadas: mulheres, labores e moda na Escola Técnica Sen. Ernesto Dornelles de Porto Alegre/RS (1946-1961). Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.

SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY Helena; COSTA Vanda. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

TADEU, Tomaz. Documentos de Identidade: Uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

WOOLF, Virgínia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2013.

Notas

1 Pesquisa vinculada ao Projeto de Pesquisa interinstitucional: Escolas de Artes e Ofícios no Brasil: história, propostas formativas e continuidades na formação do Bacharelado em Design de Moda.
2 Pós-doutoranda no PPG Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). http://lattes.cnpq.br/7164611825752287, http://orcid.org/0000-0002-7106-0401, anacarolinaacom@gmail.com
3 Docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): atua no Bacharelado em História da Arte, coordena o Grupo de Pesquisa História da Arte e Cultura de Moda (CNPq/UFRGS) e é diretora do Museu Moda e Têxtil da UFRGS. lattes.cnpq.br/2938354734194794, http://orcid.org/0000-0001-6563-116X, joanabosak@gmail.com
4 Pode-se dizer que a educação básica, naquele momento, era um dos pilares da República Positivista, encabeçada por Borges de Medeiros, que seguia o projeto de Estado deixado por Julio de Castilhos. Na doutrina positivista encampada e base dos políticos rio-grandenses, a ideia de civilização através da educação era uma máxima que seguia os primados do francês Auguste Comte, tão seguido no Brasil na Primeira República, conforme estudo de CORSETTI, 2008, principalmente no que se refere à manutenção de certa ordem social.
5 Atualmente o prédio ainda pertence a Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é utilizado pelos cursos de graduação e pós-graduação em Engenharia Mecânica e pelo Museu do Motor.
6 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4244-9-abril-1942-414155-publicacaooriginal-1-pe.html
7 Revisado por Joana Bosak de Figueiredo, Doutora em Letras e Literatura pela UFRGS, 2006, email: joanabosak@gmail.com

Autor notes

1 Pós-doutoranda no PPG Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
2 Docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): atua no Bacharelado em História da Arte, coordena o Grupo de Pesquisa História da Arte e Cultura de Moda (CNPq/UFRGS) e é diretora do Museu Moda e Têxtil da UFRGS


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