Dossiê

Liceu de Artes e Ofícios da Bahia: dos ofícios à formação cidadã através da arte

Liceu de Artes e Ofícios da Bahia: from crafts to citizen education through art

Liceu de Artes e Ofícios da Bahia: des métiers à l’éducation citoyenne par l’art

Renata Pitombo Cidreira 1
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil
Renata Costa Leahy 2
União Metropolitana de Educação e Cultura, Brasil

Revista de Ensino em Artes, Moda e Design

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2594-4630

Periodicidade: Bimestral

vol. 7, núm. 1, 2022

reamd.ceart@udesc.br

Recepção: 26 Outubro 2022

Aprovação: 11 Janeiro 2023

Publicado: 01 Fevereiro 2023



DOI: https://doi.org/10.5965/25944630712023e2874

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution 4.0 Internacional, que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Resumo: Este artigo é fruto da vertente baiana da pesquisa interinstitucional Escolas de Artes e Ofícios no Brasil: história, propostas formativas e continuidades na formação do Bacharelado em Design de Moda. De natureza qualitativa, a pesquisa prioriza uma linha de investigação histórica, analisando o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (1872-2007), seus primórdios e desenvolvimento, na busca de vestígios do ensino voltado a atividades vestimentares, como corte e costura. Nesse percurso, tentamos compreender o papel da instituição na formação de cidadãos, sobretudo a partir da conjuntura social que se colocava à época do seu surgimento, de uma população recém-liberta da escravidão em uma cidade em vias de industrialização. Além disso, procura compreender qual papel o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia cumpre na sociedade soteropolitana, sobretudo nas décadas de 1990 e 2000, inquerindo se teve como direcionamento o ensino de modelagem e costura. Em termos metodológicos, a investigação utilizou como principal recurso a pesquisa bibliográfica, reunindo informações sobre a instituição e o contexto socioeducativo baiano através dos trabalhos de Cunha (1979), Leal (1996), Trinchão (2008) e Reis (2012), com amparo em questionário com alguns profissionais que atuaram na instituição no período mais recente. Conclui-se que o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia perpetuou seu objetivo principal de assistir e formar classes menos favorecidas economicamente. Não houve maior desenvolvimento de atividades relacionadas às práticas vestimentares, das quais somente foram encontrados vestígios. Nos seus últimos anos, o Liceu atuou para promover uma formação cidadã através das artes.

Palavras-chave: Artes e Ofícios, Educação, Cidadã.

Abstract: This article is the result of the strand of Bahia of the inter-institutional research Schools of Arts and Crafts in Brazil: history, training proposals and continuities in the formation of the Bachelor of Fashion Design. Of a qualitative nature, the research prioritizes a historical investigation, analyzing the Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (1872-2007), its beginnings and development, searching for clothing activities, such as cutting and sewing. We try to understand the role of the institution in the formation of citizens, especially from the social conjuncture that existed at the time of its emergence, of a population recently freed from slavery in a city in the process of industrialization. In addition, it seeks to understand what role the Liceu plays in soteropolitan society, especially in the 1990s and 2000s, inquiring if it had as direction the teaching of cloth modeling and sewing. Methodologically, we used as main resource the bibliographic research, gathering information about the institution and the socio-educational context of Bahia through the works of Cunha (1979), Leal (1996), Trinchão (2008) and Reis (2012), with support in a questionnaire with some professionals who worked at the institution in the most recent period. It is concluded that the Liceu de Artes e Ofícios da Bahia perpetuated its main objective of assisting and instructing economically disadvantaged classes. There was no further development of activities related to clothing practices, of which only traces were found. In its last years, the Liceu promoted citizen education through the arts.

Keywords: Arts and Crafts, Education, Citizen.

Résumé: Cet article est le résultat de la branche bahianaise de la recherche interinstitutionnelle Écoles des Arts et Métiers du Brésil : histoire, propositions de formation et continuités dans la formation du Cours Supérieur en Design de Mode. De nature qualitative, la recherche privilégie l’investigation historique, analysant le Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (18722007), ses débuts et son développement, à la recherche de traces d’enseignement sur les activités vestimentaires. Nous essayons de comprendre le rôle de l’institution dans la formation des citoyens, notamment à partir de la conjoncture sociale qui existait au moment de son émergence, d’une population récemment libérée de l’esclavage dans une ville en voie d’industrialisation. En outre, il cherche à comprendre quel rôle joue le Liceu dans la société soteropolitaine, en particulier dans les années 1990 et 2000, en demandant s’il avait pour direction l’enseignement de la couture. Méthodologiquement, on utilise la recherche bibliographique sur l’institution et le contexte socio-éducatif de Bahia à travers les travaux de Cunha (1979), Leal (1996), Trinchão (2008) et Reis (2012), avec support dans un questionnaire auprès de quelques professionnels ayant travaillé dans l’établissement dans la période la plus récente. Il est conclu que le Liceu de Artes e Ofícios da Bahia a perpétué son objectif d’assistance et de formation des classes économiquement défavorisées. Il n’y a plus eu de développement d’activités liées aux pratiques vestimentaires, dont seules des traces ont été retrouvées. Au cours de ses dernières années, le Liceu a promu l’éducation citoyenne par les arts.

Mots clés: Arts et Métiers, Education, Citoyen.

1 O LICEU DE ARTES E OFÍCIOS DA BAHIA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia foi criado em 1872, o segundo a ser fundado no Brasil – após o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (1856) –, e voltava-se à formação e profissionalização através de cursos e oficinas durante os anos em que esteve em atividade. O surgimento dessa instituição na Bahia ocorre em um contexto de ajuste socioeconômico ao processo de industrialização pela qual a cidade de Salvador passava no século XIX. Como primeira capital do Brasil, com estruturas de funcionamento físicas e administrativas das mais antigas do país, a cidade não era mais o alvo principal dos olhares e investimentos, já que a capital, àquele momento, era a cidade do Rio de Janeiro. Buscava-se, assim, no Brasil e na Bahia, investir em modelos educacionais cuja formação pudesse dar conta da realidade industrial que se apresentava.

Em termos educativos, Trinchão (2008) informa que uma série de ações, especialmente voltadas à educação pública, foram previstas e realizadas naquele momento em nível nacional para institucionalizar a educação formal, como a criação do ensino público secundário. Tais políticas deram origem a colégios “modelar”, liceus provinciais e escolas normais, que supririam os ditos atrasos e inadequações identificados na educação, mas também visavam preparar a população para atuar no desejado progresso da nação. Assim, em 1837, criou-se o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, para servir de modelo para a criação de instituições secundárias brasileiras.

Na Bahia, particularmente em Salvador, foram criadas algumas instituições inicialmente voltadas principalmente à elite econômica. O Liceu da Bahia – depois nomeado Ginásio da Bahia, Colégio Central da Bahia e, hoje, Colégio Estadual da Bahia – instituição criada em 1837, tinha como intuito a “formação de bacharéis, objetivo primeiro dos liceus, e de técnicos ao instrumentalizar as aulas de Geometria aplicada às artes, em uma espécie de ensino técnico e profissionalizante.” (TRINCHÃO, 2008, p. 184). Vale esclarecer que este Liceu não deve ser confundido com o de “Artes e Ofícios”, que viria a ser criado somente no final do século XIX. No que tange a possíveis interfaces com o ensino e aprendizagem do design e das vestimentas, Trinchão (2008), ao pesquisar sobre a aplicação de aulas de desenho na educação baiana, observa que tais investimentos no Liceu da Bahia (ou Colégio Central, como ainda é bastante conhecido) eram voltados à formação de bacharéis em letras e ciências, e também àqueles que cursariam “Geometria e Mecânica aplicadas às Artes e Ofícios”.

O Liceu da Bahia / Colégio Central passou por questões administrativas e constantes reformas curriculares realizadas pelo poder público, em que as disciplinas relacionadas ao desenho eram reavaliadas e remanejadas, voltadas tanto para o professorado secundário, como para “preparar para as profissões comerciais e industriais, bem como para escolas e academias de caráter científico.” (TRINCHÃO, 2008, p. 181-182). Mais tarde, em 1881, o desenho na instituição passou a ser oferecido somente como parte da Geometria, sendo a cadeira transferida para a Escola Normal por determinação pública.

Outra das iniciativas voltadas à educação pública baiana foi a Escola Normal da Bahia – depois nomeada Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA), mais conhecido como Escola Normal ou Instituto Normal, instituída em 1836, mas com funcionamento mais efetivo a partir de 1843. Voltava-se à formação de professores para o ensino primário, que formariam o operariado que atuaria na indústria e no comércio baianos. A Escola Normal da Bahia se desenvolveu em duas frentes, uma para meninos e outra para meninas, ao modelo francês3, onde o desenho era considerado importante e mesmo obrigatório para as meninas, como parte dos trabalhos de agulha e referência nos trabalhos de bordado e confecção (D’ENFERT apud TRINCHÃO, 2008). A partir da década de 1850, escolas normais nos regimes de externato e internato foram criadas e, na década de 1870, no internato normal feminino, eram ministradas disciplinas como caligrafia, desenho colorido, prendas domésticas e costura.

Já as Escolas Médias Industriais4 surgiram na segunda metade do século XIX, momento de intensificação nos investimentos à industrialização no país e também de vulgarização das atividades relacionadas ao desenho no mundo voltadas à produção fabril, como a Exposição Universal de Londres de 1851 e a série de Exposições Universais de Paris, iniciadas em 1855. “No Brasil, as atenções se voltaram para o atendimento da demanda oriunda das classes menos abastadas, com foco na formação da mão-de-obra industrial e o discurso do governo da Bahia se voltou para a criação de escolas médias industriais.” (TRINCHÃO, 2008, p. 211).

Em suma, e de maneira geral, o estudo realizado por Trinchão (2008) aponta que dentre tipos de instituições que compunham o ensino localizado entre o primário e o superior, as Escolas Liceais e as Escolas Normais, especialmente na Bahia, em grande medida de inspiração francesa, se voltavam para a preparação intelectual e para formação de quadros administrativos, enquanto as Escolas Médias Industriais, de inspiração prussiana, visavam classes menos abastadas, cujas disciplinas vinculadas ao desenho serviam às cadeiras industriais e da agrimensura, ou seja, para a formação de mão-de-obra técnica.

Brasão do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia na entrada do Solar Saldanha
Figura 1
Brasão do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia na entrada do Solar Saldanha
Paul R. Burley, 2018. Wikimedia Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Liceu_de_Artes_e_Oficios_da_Bahia_Sign_2018-1011.jpg.

É nesse contexto que surge o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, em 1872. A criação de Liceus de Artes e Ofícios também vinha sendo fomentada pelo Império brasileiro, no intuito de desenvolver a força de trabalho técnica para estimular o progresso do país. Com desenvolvimentos diversos pelo Brasil5, a instituição da Bahia voltava-se a classes menos abastadas da população soteropolitana, especialmente ao operariado artífice e dos ofícios, vindo, em grande medida, de uma realidade escravocrata e negra.

2 SOCIEDADES DE OFÍCIOS E ABOLIÇÃO COMO BASE DO LICEU BAIANO

A Sociedade de Artes e Ofícios, logo após denominada como o Imperial Liceu de Artes e Ofícios da Bahia6, é instituído por decreto do presidente da província, Joaquim Pires de Machado Portella, em 9 de março de 1872, mas inaugurado em 20 de outubro do mesmo ano, data reconhecida como a de fundação. Segundo Cunha (1979), a criação de instituições de ensino de ofícios manufatureiros no Brasil provinha de iniciativas diversas, desde associações civis à presença do Estado, da nobreza, da burguesia latifundiária e de instâncias eclesiásticas, ou mesmo de forma híbrida.

O autor identifica o contexto abolicionista como uma das motivações para a criação da Sociedade de Artes e Ofícios e seu Liceu, ainda que, como afirma, não seja possível precisar o responsável pela iniciativa, pois suas fontes pesquisadas indicam desde os próprios operários a desembargadores.

O desembargador, também conselheiro e presidente da província, [Freitas Henriques,] visaria à formação profissional dos filhos de escravos, libertos pela lei do ventre livre, de iniciativa do Visconde do Rio Branco (1871). Os estatutos da sociedade teriam sido encomendados por Freitas Henriques a Frederico Marinho de Araújo, considerado o advogado dos escravos e criador das sociedades libertadoras surgidas na Bahia a partir de 1870. (CUNHA, 1979, p. 34)

Em A arte de ter um ofício: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia 1872-1996, Leal (1996) esclarece que a estrutura monárquica de lógica colonial estava em crise frente à lógica capitalista, bem como já decaía o sistema escravocrata. Assim, as dinâmicas da força de trabalho vinham sendo modificadas, com aumento da população livre, principalmente em Salvador, e, com a intensificação do processo de urbanização e industrialização, era necessário preparar a mão-de-obra para que atuasse nas novas necessidades. Ao mesmo tempo, soma-se o fato de que a crescente população forra se voltava justamente aos serviços manuais como forma de sustento, dentre as “profissões liberais secundárias”, como sangradores, barbeiros, pilotos de barcos; libertos que se tornaram pequenos lavradores; e os chamados “artífices”, entre ferreiros, serralheiros e ourives, por exemplo.

A importância da participação operária para a fundação do Liceu é percebida não só pela manifestação das comissões, mas pelo interesse do próprio Estado ao reconhecer a sua importância para a realização de um ato oficial sintetizador das necessidades práticas das “classes desfavorecidas da fortuna”. O objetivo do Estado, representado pelo presidente da Província, era criar um Liceu de Artes e Ofícios em Salvador, com a participação direta dos artistas e operários, sem a qual não poderia ser levado a efeito o referido projeto. (LEAL, 1996, p. 115)

As corporações de ofícios baianas deram base e tiveram participação ativa na criação e na aprovação dos estatutos do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (CUNHA, 1979). Segundo Reis (2012), é importante esclarecer que tais corporações possuem formação peculiar no Brasil, de realidade colonial e escravocrata, com pessoas negras escravizadas ou alforriadas em sua composição, diferente de sua matriz portuguesa, de contexto de trabalho livre.

Um fato relevante apontado pela autora, nesse sentido, foi justamente o trabalho realizado pelas pessoas negras, escravizadas ou forras, principalmente pela inserção do “trabalho de ganho”, lógica na qual eram autorizadas a trabalhos em serviços manuais diversos, ficando o lucro para si ou dividindo com seu “senhor”. Amplia-se, deste modo, o mercado de trabalho manual e de ofícios mecânicos, que, por sua vinculação ao povo negro, vieram a perder o “prestígio” que tinham no período colonial, quando realizados por brancos. Ainda assim, Reis (2012) destaca que há poucos registros de pessoas negras em documentos do século XVIII sobre artes liberais e mestres artífices, ainda que compusessem as corporações de ofícios. Tal característica é considerada pela autora como importante diferença entre as corporações brasileiras e as portuguesas:

Durante o período colonial, homens livres, oriundos da metrópole, ocupavam-se da maioria das atividades artesanais e manufatureiras. Depois, os nascidos na própria colônia passaram a exercê-las. Essa foi também a constatação de Gilberto Freyre (1936, p. 301), que ressaltou que o “[...] téchnico estrangeiro se tornara tão necessário como o próprio ar [...] até que o mulato aprendeu com elle”. Em Portugal, os escravos africanos também estiveram presentes nas artes mecânicas, muito mais como coadjuvantes do que como atores principais, pois, quando eles chegaram, as corporações já estavam estabelecidas, eram o locus da agremiação de trabalhadores subalternos portugueses. Sobre o Brasil, pode-se dizer o contrário: os ofícios mecânicos só se estabeleceram graças à mão de obra escrava que esteve na base da produção e que, paradoxalmente, muito contribuiu para que o sistema corporativo não vigorasse. (REIS, 2012, p. 78)

Outra vinculação inicial do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia era a confrarias religiosas (LEAL, 1996), fazendo com que a instituição ultrapassasse, assim, a questão do ensino e se voltasse também a um caráter mutuário e beneficente aos associados, apoiando trabalhadores livres e escravizados, que recebiam auxílio, pensão, remédios e escolarização. Visava criar “um espaço que absorvesse artistas e operários para promover o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das artes e ofícios entre si e seus filhos e estabelecer a prática da beneficência, desempenhando a função de sociedade mutuária.” (LEAL, 1996, p. 11). Portanto, para os fins educacionais aos sócios e seus filhos, a Sociedade fundou um Liceu (como uma escola), com biblioteca, oficinas e exposições públicas. Além disso, existiam esforços para que os alunos oriundos desse Liceu fossem preferidos pelas instâncias governamentais nas contratações para obras.

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia inicialmente funcionava na sede da Sociedade Monte-Pio dos Artistas e em um prédio da atual rua Chile em Salvador (LICEU, 2018), época em que eram oferecidas, em período diurno e noturno, aulas de primeiras letras; desenho, álgebra e geometria aplicada à arte; línguas (francês, inglês e latim); geografia e história; e gramática filosófica, “sendo a de desenho a mais procurada” (CUNHA, 1979, p. 35). Após, a partir de 1874, a instituição foi fixada no casarão Solar Saldanha7, localizado na região do Pelourinho. Oferecia as oficinas de escultura, encadernação, marcenaria, douração e pintura decorativa, com algumas aulas modificadas e acrescidas outras, como desenho de figuras de ornado (com separação para meninos e meninas), desenho indus trial, piano e canto (para meninas) e orquestra e canto (para meninos). Tais oscilações nas oficinas e aulas permearam durante todo o período de funcionamento do Liceu: desde 1872, passando por um incêndio em 1968, até o fechamento no ano de 2007 por pendências administrativas e financeiras.

Casarão do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia no Solar do Saldanha
Figura 2
Casarão do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia no Solar do Saldanha
Google Maps, 2022. Disponível em: https://goo.gl/maps/nUEtWUyme7DW2r5J7.

3 DAS ARTES AOS VESTÍGIOS DE CORTE E COSTURA

À época da fundação do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, no final do século XIX, o ensino teórico e humanístico predominava – já bastante presente nos esforços de gestão educacional liberal e cientificista do Brasil voltada às elites, na primeira metade do século XIX – em disciplinas como letras, desenho, música, gramática, filosofia e francês; as práticas aconteciam em oficinas de escultura, pintura, encadernação e marcenaria, aproximando-se a um modelo de Academia de Belas Artes. Quanto aos direcionamentos pedagógicos da criação de um Liceu que se denominava de “artes e ofícios”, Leal (1996) coloca essas duas categorias, bem como os próprios artistas e operários, como mal definidas e em transição na virada do século XIX ao XX, onde se localizam os primeiros passos do funcionamento do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia.

Segundo a autora, os trabalhos manuais (como sapataria, alfaiataria ou carpintaria), realizados pelos chamados “artífices”, eram diferenciados daqueles em que a criatividade e a imaginação tinham maior participação, chamados de “artes liberais”. Como vimos, no contexto baiano colonial (especialmente o soteropolitano), a mão de obra apta aos trabalhos manuais, composta de homens brancos e livres, não era propriamente abundante, o que lhes conferia certo status e prestígio. A partir do século XVIII, com o aumento de pessoas negras libertas ou delegadas a trabalhar oferecendo serviços manuais nas ruas como trabalho de ganho, as atividades relacionadas aos artífices e ofícios mecânicos perderam posição prestigiosa na sociedade.

As instituições educacionais criadas encontravam-se nesse contexto, de uma população negra liberta em uma conjuntura recém-industrial, quando foram articuladas tanto vias de qualificação da mão de obra executora de trabalhos manuais objetivos, quanto outras opostas, que valorizavam a disposição artística voltada ao deleite e à apreciação.

O artista, enquanto tal, exercia uma arte liberal (arquitetura, escultura, pintura), imbuída de independência criativa. O artífice, artesão ou oficial mecânico aplicava a sua arte manual na execução ou fabricação de objetos de utilidade para o consumo. Enquanto o primeiro era possuidor de “status”, num período de valorização das artes plásticas, o segundo perdia, gradativamente, a independência e o antigo prestígio de possuidor do conhecimento e das ferramentas de trabalho. Era importante para esta categoria de trabalhadores, que se via desprestigiada na sua arte, resistir e lutar para manter-se independente e proprietária do saber artístico. A conjuntura apontava para a direção oposta, ou seja, para a completa dependência, transformando-a em assalariada e empregada de outrem, e desqualificação, em vista do avanço das técnicas e das indústrias. (LEAL, 1996, p. 51-52)

Também Cunha (1979) vai pontuar tal distinção no contexto da criação e estruturação de Academias de Belas Artes e de Liceus de Artes e Ofícios na segunda metade do século XIX no Brasil, sendo que “a academia foi criada para ser uma escola superior, enquanto que o liceu era ‘a escola do povo’”. (CUNHA, 1979, p. 16). De acordo com o autor, dentro da própria Academia do Rio de Janeiro, os alunos eram divididos entre o grupo dos artistas, dedicados às belas artes, e o grupo dos artífices, que se voltavam às chamadas artes mecânicas.

Vale dizer que, nesse período, as artes haviam passado por um processo de dessacralização e laicização, vinculações à igreja típicas de uma “arte colonial”, e já eram influenciadas pela industrialização e as chamadas “artes úteis” e pelo fazer artístico francês da modernidade, fomentando a criação de academias de arte e escolas de Belas Artes pelo Brasil. Na cidade de Salvador, “em 1877, foi fundada a Academia de Belas Artes, pelo artista espanhol Miguel Navarro y Cãnizares, após demitir-se do Liceu de Artes e Ofícios, onde havia sido professor.” (LEAL,1996, p. 111).

Outra figura de relevância nesse contexto das artes e dos ofícios, especialmente para o Liceu, foi Manuel Querino, um dos incentivadores do ensino das artes e da educação para o alunado operário na Bahia nessa época. Intelectual negro de ideais abolicionistas, formado em Desenho pela Escola de Belas Artes, foi ex-aluno e também professor de desenho industrial do próprio Liceu, vinculando-se, assim, à conjuntura histórica do seu surgimento. Querino defendia o ensino do desenho e da arte para que “o povo de classes humildes, como os técnicos, pudessem ter acesso a esse saber” (TRINCHÃO, 2008, p. 247). Nos primeiros anos de funcionamento do Liceu, com suas disciplinas como desenho, música, gramática e filosofia, e as oficinas práticas de escultura, pintura, encadernação e marcenaria, registros e relatórios do período Imperial, analisados por Cunha (1979), apontam certa insatisfação governamental com o ensino profissional provido pela instituição, o que, segundo o autor, “aponta[m] para a dificuldade de se manter oficinas para o ensino de ofícios fora do ambiente e das relações vigentes na produção.” (CUNHA, 1979, p. 36). Já no período da República, as oficinas foram gradativamente se voltando cada vez mais ao ensino profissionalizante, acompanhando investidas públicas da educação brasileira nesse sentido. Criaram-se, em todo o país, Escolas de Aprendizes Artífices (em Salvador, foi criada em 1910), em um empenho do desenvolvimento que ultrapassava os “ofícios” e inclinava-se a um perfil de cursos “técnicos-profissionalizantes”. Tais esforços representavam empecilhos aos incentivos empregados no Liceu até então, expressos pelo contraste de objetivos entre oficinas e cursos técnicos. Ainda assim, foi organizado um novo programa de ensino voltado à capacitação técnica para o Liceu em 1914, tornando-se a maior instituição do Estado em número de matrículas (LEAL, 1996, p. 174).

Outras transformações no Liceu ocorreram a partir dos anos 1920, seguindo as mudanças educacionais que ocorriam no Brasil e na Bahia, desta vez com as reformas operadas por Anísio Teixeira. Ampliaram-se e reorganizaram-se, mais uma vez, as oficinas do Liceu, aproximando-as das práticas fabris. Oficinas diversas, voltadas à qualificação de mão-de-obra, funcionaram bem até a década de 1940, quando o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) foi criado, o que, segundo Leal (1996) ocasionou certo enfraquecimento das artes e ofícios em favor do ensino voltado especificamente às práticas industriais. Dentre as atividades desse período, de 1920 a 1940, estão a fundação de um curso de mecânica prática e uma oficina de mecânica e oficinas de fundição, marcenaria, carpintaria, serraria, empalhamento e polimento. Entre as décadas de 1930 e 1940, a instituição oferecia também o curso primário elementar, desenho industrial e geométrico.

Até esse período, encontram-se indícios de pouca presença de atividades relacionadas à confecção de peças e adereços vestimentares no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Na pesquisa de Leal (1996), a especialidade de “Corte e Costura” aparece como uma oficina criada nas primeiras décadas do Liceu, entre 1889 e 1890, para os públicos feminino e masculino, tendo como mestra Venturoza Maria da Conceição, a partir de 1895. A oficina, no entanto, é indicada como tendo “duração efêmera” (p. 297). Outro indício encontrado por Leal é um registro no Jornal de Notícias, de 27 de outubro de 1894, de uma das exposições que eram realizadas pelo Liceu com os trabalhos confeccionados, onde foram expostos camisas, trabalhos em costura, tapeçarias, têxteis, tecidos, bordados e calçados, além de móveis, jarros, pinturas e licores. Havia, ainda, disciplinas como “Prendas Domésticas”, ministrada por Mariana Olímpia dos Santos Silva, e “Desenho de Ornatos”, ministrada por Etelvina Rosa Soares, registradas em um relatório do Liceu de 1895.

Mais à frente, entre os anos de 1922 e 1923, a atividade de Corte e Costura aparece no curso primário diurno voltado para meninas – após nova orientação do Liceu, que dividiu os cursos em primário e secundário, mudanças que, segundo Leal (1996, p. 181), “ficaram mantidas até 1968, quando o Liceu foi atingido pelo grande incêndio.” Por volta de 1935, com a intensificação do direcionamento da educação no país ao ensino profissional, o curso voltado ao público feminino, nesse sentido, era o de “prendas e trabalhos de agulha” (p. 187). A autora argumenta que, com a criação do sistema S na década de 1940 (no qual se vinculava o SENAI, citado acima), o Liceu passa por um esvaziamento que leva à suspensão das aulas para o sexo feminino, muitas delas associadas às disciplinas voltadas aos trabalhos vestimentares e de costuras.

Desse momento até o episódio do incêndio em 1968, que destruiu parte significativa do patrimônio do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia – inclusive os registros históricos das atividades –, o modelo tradicional de ensino e a vocação às “artes e ofícios” da instituição se confrontou com uma nova realidade socioeconômica e produtiva capitalista, cada vez mais voltada às necessidades de operadores técnicos e a modelos pedagógicos menos rígidos e renovados. Leal (1996) argumenta que o enfraquecimento do Liceu, inclusive em incentivos governamentais, foi um dos fatores que culminou no episódio do incêndio de 1968. Após esse episódio, projetos de restauro surgiram e foram engavetados e a luta por sua sobrevivência vinha do sustento provido por poucos associados e da venda dos móveis de excelente reputação confeccionados no âmbito do Liceu, oriundos de atividades relacionadas ao ofício com madeira (como marcenaria, carpintaria, serralheria, entalhe e polimento). Foi estabelecido um convênio com a Secretaria de Educação e Cultura (SEC), quando foi adotado o ensino de 1º grau na instituição, mas que, com isso, tirava a autonomia do Liceu e o incentivo a seu propósito primeiro da promoção de oficinas.

Em 1988, foi assinado um Protocolo de Entendimentos por 11 entidades públicas e privadas, a fim de proporcionar apoios e retomada de perspectivas. A instituição privada Fundação Odebrecht promoveu incentivos para a recuperação institucional e física do Liceu, sendo as obras de restauração da primeira etapa iniciadas em 1993 e concluídas em 1995. Dentre as atividades de ensino e capacitação ocorridas nesse período, estavam as oficinas de Móveis e Madeira, de Manutenção de Hidrómetros e de Manutenção e Recuperação Predial, além da criação da oficina de Vídeo, inaugurando uma direção mais contemporânea pela qual outras oficinas viriam a ser criadas nos anos 2000. O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia se colocava, nesse momento, como um “programa educacional voltado para jovens de 14 a 16 anos, engajados no sistema formal de ensino em escolas públicas ou privadas” (LEAL, 1996, p. 268), que passaram a desenvolver habilidades profissionalizantes e atividades artísticas e de produção cultural, por meio de oficinas. As atividades da instituição foram encerradas em 2007.

4 O PROTAGONISMO DA ARTE E DA CULTURA NO LICEU CONTEMPORÂNEO

No percurso investigativo que delineamos, identificamos alguns profissionais que atuaram no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, sobretudo nas décadas de 1990 e 2000, período de grande efervescência e intensa produção da instituição. De acordo com os relatos colhidos, podemos verificar o protagonismo do Liceu na formação de jovens soteropolitanos nesse período, o importante papel da arte no processo formativo e o escasso incentivo às habilidades relacionadas a práticas vestimentares.

Com a pesquisa ocorrendo em meio à pandemia por covid-19, por conta do isolamento social optamos pelo questionário enquanto instrumento de coleta de dados, por entender que esta ferramenta permite a otimização do tempo, a obtenção de respostas rápidas e exatas. Formulamos cerca de 12 perguntas abertas, priorizando a resposta de forma espontânea e enviamos para quatro fontes selecionadas, deixando-as à vontade para responder por escrito ou por áudio, através do WhatsApp. Obtivemos retorno quase imediato de três profissionais e um deles não retornou. Na sequência, conseguimos o contato de uma profissional que atuou no Liceu e escreveu uma dissertação sobre o mesmo (fonte bibliográfica fundamental, utilizada neste trabalho), com a qual estabelecemos contato através de conversa virtual. Nesse caso, seguimos mais ou menos as perguntas já elaboradas no questionário e adicionamos outras questões que surgiram a partir das próprias falas da entrevistada, operacionalizando uma entrevista semiestruturada. Desse modo, em termos metodológicos, mesclamos dois instrumentos de coleta de dados.

Os profissionais consultados foram os professores Paulo Henrique de Alcântara, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que atuou no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia entre 1999 e 2007; Danilo Scaldaferri, do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que trabalhou na Instituição entre 1999 e 2003; Maria das Graças de Andrade Leal, do departamento de História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), cuja passagem pelo Liceu se deu entre 1988 e 2007, principalmente como coordenadora de alguns núcleos artísticos; e Edvard Passos, arquiteto e diretor teatral, atualmente mestre e doutorando em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que esteve no Liceu entre 2004 e o início de 2007. As fontes consultadas atuaram na coordenação de oficinas de teatro; fotografia e audiovisual; na coordenação do Centro de Arte e Tecnologia Educacional; design gráfico e design de produto, respectivamente, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. A partir dos relatos, obtidos nas respostas ao questionário e conversa virtual, compreendemos que neste período, entre a década de 1990 e 2000, o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia cumpria um importante papel na formação dos jovens soteropolitanos.

Em entrevista (informação verbal), Maria das Graças Leal (2021) trouxe outras informações a respeito da última década de funcionamento do Liceu. No período do restauro promovido pela Odebrecht (de 1988 a 1995), Leal observa que os ofícios eram ensinados aos moldes propostos por essa empresa. Após essa fase, o grupo gestor que assumiu o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia prosseguiu com um modelo pedagógico nas frentes produtiva, na qual se destacava a já renomada vertente de marcenaria da instituição, e educacional, pela qual se ofereciam aulas voltadas a cultura e memória e oficinas artísticas. Nesse contexto, Leal percebe que as ações e oficinas ligadas às artes passaram, pouco a pouco, a se fortalecer frente a outras ações educativas; a fonte relata que a ação de educação patrimonial “Conhecendo a cidade, descobrindo o olhar”, projeto de pesquisa que levava os alunos a pontos da cidade de Salvador, vinculando história e fotografia, aos poucos foi dotada de um caráter mais prático, se transformando na Oficina de Fotografia do Liceu. Na virada para os anos 2000, o público-alvo das oficinas oferecidas eram adolescentes da rede pública de ensino, entre 14 e 17 anos, como relata Paulo Henrique de Alcântara (2021). “Tinha que estar matriculado, ser adolescente, tinha acompanhamento pedagógico, das notas; e existiam duas educadoras que cuidavam desse apoio para que eles seguissem bem na escola.” A respeito da vocação educativa da instituição, Alcântara complementa sua observação: “o Liceu era uma ONG e era uma instituição de ensino e não poderia descuidar disso”. O forte do Liceu nos anos 2000, portanto, eram as oficinas, oferecidas em várias áreas, tais como: Teatro, Dança, Música, Fotografia, Audiovisual, Técnica do Espetáculo, Design Gráfico, Design de Produto, Mobilização Cultural, Restauração de Azulejos e Produção de Móveis, reunindo nomes como Marilza Oliveira, Sérgio Souto, Danilo Scaldaferri, Paulo Henrique Alcântara, Ney Wendel, Adelice Souza, Paulo Pereira, Elaine Cardin, entre outros.

Para além das oficinas, em 2006, temos uma inflexão diferenciada, que mostra que vinculações educativas socioculturais ainda viriam a ser promovidas pelo Liceu, conforme relata Edvard Passos (2021):

(...) devido ao grande sucesso das oficinas, surgiu o projeto Escola de Tempo Integral, cuja proposta era levar a tecnologia de ensino do Liceu até doze escolas públicas. Por isso, naquele ano, o Liceu cresceu muito em equipe de coordenação e professores, que foram treinados e enviados agrupados em cinco ou seis integrantes para cada escola pública contemplada. Praticamente embaixadas do Liceu dentro das escolas públicas. O plano de curso das oficinas era apresentado e discutido com a direção de cada escola. Fazia-se um diagnóstico, procurava-se compreender a demanda de cada lugar e responder com a formatação da equipe mais adequada.

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia promovia também exposições e palestras, sobretudo sobre sexualidade e prevenção de drogas, além de cursos temáticos sobre mercado de trabalho e profissões. “Tinha um entorno que educava os jovens sobre esses temas. Mas a prioridade é que eles exercitassem artisticamente e que gerassem um resultado”, observa Paulo Henrique de Alcântara (2021).

Um desses resultados práticos ainda era representado pelos móveis confeccionados pelo Liceu, e todo ano era produzido o concorrido Salão de Design. No que se refere à existência de oficinas de corte e costura e/ou modelagem, no entanto, podemos constatar que durante esse período não há indícios da oferta destas modalidades. Os depoimentos obtidos revelam de modo inequívoco que não havia uma preocupação com o segmento vestimentar. “Não me lembro dessas oficinas... As atividades do Liceu eram divididas em mais de um prédio (espaço); na sede do Pelourinho, onde eu trabalhava, não tinha corte e costura, nem modelagem (...)”, corrobora Danilo Scaldaferri (2021). O mais próximo que ocorria, em alguns momentos, era a oficina de Técnica do Espetáculo, como recorda Paulo Henrique de Alcântara: “é que se passavam noções de auxiliar de camarim”, ou seja, eram repassadas instruções sobre como cuidar de uma peça de roupa, manter limpo e bem guardado o guarda-roupa de um espetáculo e auxiliar a vestir e despir os atores.

Tal ausência de oficinas de corte e costura e modelagem nesse período é pressentida desde os poucos indícios identificados nos primórdios do Liceu, e a falta do ensino do desenho em suas últimas versões pedagógicas contrasta com a maior presença dessa atividade nas primeiras décadas do surgimento da instituição, como já assinalamos no item anterior deste artigo.

As atividades do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia foram encerradas no ano de 2007, após problemas fiscais e administrativos com a gestão de então. Ainda assim, os relatos dos entrevistados que trabalharam na instituição revelam unanimidade no tocante à importância da formação dos jovens da cidade de Salvador, principalmente através da arte, carro-chefe dos últimos anos:

O Liceu esteve em atuação por mais de um século, em cada época funcionava a partir de metodologias e objetivos muito diferentes, no curto período em que trabalhei por lá, me encantava bastante o investimento em processos artísticos muito ricos e profundos e a excelência atingida com as peças de teatro, espetáculos de dança, exposições de fotografia, filmes e vídeos. (SCALDAFERRI, 2021).

O simples fato de abertura de espaço na arte para o protagonismo dos estudantes era também por si só revolucionário. Repetia-se constantemente um mantra poderoso com os estudantes: Eu estou aqui! Eu estou aqui! O Liceu contava com uma equipe pedagógica muito engajada e apaixonada pelo projeto. Muitos estudantes ingressaram depois em escolas de artes, em especial na Escola de Teatro da UFBA. A grande maioria nem sequer se imaginava cursando uma universidade. O Liceu injetava coragem e descortinava novos horizontes e eles agarravam as oportunidades. (PASSOS, 2021).

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia infelizmente acabou. Eu não sei como isso foi possível, uma instituição de mais de 130 anos... Acho que a ONG mais longeva do Brasil! Aliava tradição (porque final do século passado, início do século XX, recebia jovens para capacitá-los para o mundo do trabalho, e foi se consolidando durante anos e anos, vários jovens tinham essa formação técnica que os habilitavam (...) Com a guinada a partir dos anos 2000, era uma crença que a arte educa, que a arte desenvolve potenciais importantíssimos: sensibilidade, o relacionamento com o grupo, desenvolvimento cognitivo, intelectual, curiosidade em relação ao mundo, o autocuidado, tudo que a arte proporciona para um jovem em formação... Os jovens tinham um amparo em torno de bolsas, amparo psicológico, esses jovens experimentaram a arte (...) O Liceu se tornou uma Escola de Arte. E isso foi interrompido. E isso implodiu, isso acabou. Mas tem uma memória, gerou resultados. (ALCÂNTARA, 2021).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se no seu início o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia tinha como missão principal atender as demandas de sobrevivência e formação de artífices e operários, cumprindo um importante papel na sociedade soteropolitana, podemos dizer que nos seus últimos anos, especialmente entre a década de 1990 e 2000, o Liceu atua muito mais no sentido de promover uma formação cidadã através das artes. O estímulo aos ofícios tradicionais passou a se dar pela manutenção apenas das oficinas de móveis e de restauração de azulejos, e o foco passou a ser as oficinas e operações artísticas, como teatro e audiovisual, e socioculturais.

Nesse percurso, podemos observar que, de certo modo, conservaram-se os objetivos primordiais do Liceu, tendo em vista a preocupação com a inserção social de classes menos favorecidas, através da educação e profissionalização qualificadas. Desde a sua fundação, alguns princípios foram mantidos e outros ampliados, como o espírito e o desejo de promover uma educação popular, seja pela perpetuação de ideais abolicionistas na inserção de jovens socialmente desfavorecidos no pensamento das artes e no mercado de trabalho, seja como “meio adequado e eficaz não só para formar técnicos que pudessem acompanhar a marcha do pretendido progresso” (LEAL, 1996, p.121), como também, após a sua retomada em 1988, formar cidadãos críticos e protagonistas das suas escolhas. Embora circunscrito num outro contexto social, o acolhimento de jovens do ensino médio da rede pública de educação nos anos mais recentes corrobora e requalifica a preocupação do Liceu com uma camada social menos favorecida economicamente.

De 1872 até 2007, o Liceu exerceu um papel extremamente importante na consolidação e reconhecimento de artistas e técnicos capacitados na sociedade soteropolitana. Formou profissionais e estimulou artistas a aprimorarem seus talentos, bem como iniciou jovens nas artes e nos ofícios, despertando-os para novas atuações de forma qualificada. Aliando arte e artesanato (o aprendizado de um fazer técnico), o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia favoreceu um diálogo profícuo entre essas duas esferas, acreditando, assim como Mario de Andrade, no artesanato como imprescindível para que exista um artista verdadeiro: “Artista que não seja ao mesmo tempo artesão (...), que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, não que não possa ser artista (...), não pode fazer obras de arte dignas deste nome” (ANDRADE, 1938, p.3). O diálogo entre a arte e o ofício é ainda reiterado por Ariano Suassuna (2013, p.135), quando diz: “É como se as regras do ofício constituíssem a necessidade da Arte e a parte da imaginação criadora sua liberdade.”

Quanto ao vazio no que se refere às manualidades vocacionadas para as artes da costura e da modelagem, e mesmo do desenho em época mais recente, apostamos que será preenchido por uma outra Instituição na cidade de Salvador: o Instituto Feminino da Bahia, que surge em 1923, inicialmente como Casa de São Vicente, pioneiro na preservação da memória feminina, e atual sede do Museu do Traje e do Têxtil. Mas esse é outro capítulo dessa história das artes e ofícios na Soterópolis.8

REFERÊNCIAS

ALCÂNTARA, Paulo Henrique de. Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Questionário respondido e enviado a Renata Pitombo Cidreira. Salvador, 30 de julho de 2021.

ANDRADE, Mario de. O artista e o artesão. Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, 1938.

CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios manufatureiros em arsenais, asilos e liceus. Revista Fórum Educacional. Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 3-47, jul./set. 1979.

LICEU de Artes e Ofícios da Bahia. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org. br/instituicao17451/liceu-de-artes-e-oficios-da-bahia. Acesso em: 08 de abril de 2022. Verbete da Enciclopédia.

LEAL, Maria das Graças de Andrade. A arte de ter um ofício (1872-1996): Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Salvador: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 1996, 402p.

LEAL, Maria das Graças de Andrade. Informação verbal concedida a Renata Pitombo Cidreira e Renata Costa Leahy, via plataforma de videoconferência Jitsi. Salvador, 26 de agosto de 2021.

PASSOS, Edvard. Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Questionário respondido e enviado a Renata Costa Leahy. Salvador, 12 de abril de 2021.

REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices na Bahia do século XIX. Salvador: EDUFBA, 2012.

SCALDAFERRI, Danilo. Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Questionário respondido e enviado a Renata Pitombo Cidreira. Salvador, 04 de abril de 2021.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética [recurso eletrônico]. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

TRINCHÃO, Gláucia Maria Costa. O desenho como objeto de ensino: História de uma disciplina a partir dos livros didáticos luso-brasileiros oitocentistas. Tese (doutorado em educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo RS, 2008.

Notas

3 Refere-se principalmente ao ensino mútuo. Fruto de ideais liberais, o ensino mútuo foi criado na França em 1815, oriundo de um grupo de filantropos que propunha outra frente àquela até então voltada a Universidades: visava a educação primária das chamadas “classes inferiores”, apostando na instrução como meio para conter a desordem social. (TRINCHÃO, 2008).
4 “A escola da Prússia propunha o ‘ensino dos conhecimentos indispensáveis em indústria e commercio ao jovem que não se destina a frequentar as Universidades’.” (TRINCHÃO, 2008, p. 212).
5 “A vocação do Liceu de São Paulo, por exemplo, foi a de transformar-se de primitiva escola-oficina para oficina-escola e, logo no início do século, para indústria-escola e, finalmente, para verdadeira indústria. O Liceu do Rio de Janeiro, por sua vez, cumpriu o papel de Academia de Belas Artes, destinada às classes populares, sem pretensões de desenvolver as artes úteis, o que caracterizaria a sua existência.” (LEAL, 1996, p. 107)
6 Assim denominado, ainda na década de 1870, por decreto de D. Pedro II (CUNHA, 1979).
7 Antigo solar dos Condes da Ponte (CUNHA, 1979), o Solar Saldanha foi construído pelo coronel Antônio da Silva Pimentel a partir de 1699. Foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1938 (LEAL, 1996).
8 Artigo revisado por Ricardo de Araujo Soares, Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador, Doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: ricosoares@ gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1939147801213755.

Autor notes

1 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), pós-doutorados em Sociologia (Paris V – Sorbonne, França) e em Comunicação e Artes (UBI – Covilhã, Portugal). Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
2 Doutora em Cultura e Sociedade (UFBA) e em Civilisations Romanes (Paris X – Nanterre, França). Professora da União Metropolitana de Educação e Cultura (Unime – Anhanguera).
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