Dossiê

A experiência compartilhada e a pesquisa participante na fotografia de moda

The shared experience and participatory research in fashion photography

Esperienza condivisa e ricerca partecipata nella fotografia di moda

Vanilson Luis de Melo Coimbra 1
Centro Universitário Belas Artes, Brasil

Revista de Ensino em Artes, Moda e Design

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2594-4630

Periodicidade: Bimestral

vol. 6, núm. 1, 2022

modaesociedade@gmail.com

Recepção: 30 Abril 2021

Aprovação: 04 Novembro 2021

Publicado: 28 Janeiro 2022



DOI: https://doi.org/10.5965/25944630612022e1206

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution 4.0 Internacional, que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Resumo: O presente artigo visa descrever um conjunto de encontros fotográficos realizados entre 2013 e 2021, nos formatos presenciais e on-line, sobre narrativas fotográficas de moda. Entende-se que o editorial de moda é uma narrativa fotográfica que codifica um tema de moda e o aproxima do público. Usa-se como metodologia uma investigação de caráter descritivo e exploratório, do tipo bibliográfico, e uma pesquisa participante com base nos estudos de casos. O propósito principal é compreender de que maneira o artista encontra a sua própria singularidade na experiência fotográfica compartilhada. Joan Fontcuberta (2010), Nicolas Bourriaud (2009) e Berger (2017) são alguns dos autores estudados e que possuem interesse na experiência compartilhada como complemento da obra artística. É possível que o artista exponha uma troca transitiva entre si, o fotografado e o espectador e considera-se que não se pode encurtar o diálogo entre o artista e o espectador sem aferir uma infinidade de outras negociações, que ocorrem durante o processo criativo. A experiência fotográfica coletiva com potencial de fazer o espectador participar da narrativa passa pelo binômio da troca.

Palavras-chave: Narrativa Fotográfica, Fotografia de Moda, Editorial de Moda, Pesquisa Participante, Inteligência Coletiva.

Abstract: This article aims to describe a set of photographic meetings performed between 2013 and 2021, in face-to-face and online formats, about fashion photographic narratives. It is understood that the fashion editorial is a photographic narrative that codifies a fashion theme and brings it closer to the public. It uses as methodology a descriptive and exploratory investigation, of the bibliographic type, and a participant research based on case studies. The main purpose is to understand how the artist finds his own singularity in the shared photographic experience. Joan Fontcuberta (2010), Nicolas Bourriaud (2009) and Berger (2017) are some of the authors studied and who are interested in the shared experience as a complement to the artistic work. It is possible that the artist exhibits a transitive exchange between himself, the photographed and the spectator, and it is considered that the dialogue between the artist and the spectator cannot be shortened without measuring an infinity of other negotiations that take place during the creative process. The collective photographic experience with the potential to make the viewer participate in the narrative involves the binomial of exchange.

Keywords: Photographic Narrative, Fashion Photography, Fashion Editorial, Participant Research, Collective Intelligence.

Sommario: Questo articolo si propone di descrivere una serie di incontri fotografici tenuti tra il 2013 e il 2021, in formato presenziale ed online, sulle narrazioni fotografiche di moda. Capisce che l’editoriale di moda è un racconto fotografico che codifica un tema moda e lo avvicina al pubblico. Utilizza come metodologia un’indagine descrittiva ed esplorativa, di tipo bibliografico, e una ricerca partecipata basata su casi studio. Lo scopo principale è capire come l’artista trovi la propria singolaritá nell’esperienza fotografica condivisa. Joan Fontcuberta (2010), Nicolas Bourriaud (2009) e Berger (2017) sono alcuni degli autori studiati e interessati all’esperienza condivisa come complemento al lavoro artistico. È possibile che l’artista esibisca uno scambio transitivo tra sé, il fotografato e lo spettatore, e si ritiene che il dialogo tra l’artista e lo spettatore non possa essere abbreviato senza misurare una moltitudine di altre negoziazioni che avvengono durante il processo creativo. L’esperienza fotografica collettiva con il potenziale di rendere partecipe lo spettatore della narrazione coinvolge il binomio dello scambio.

Parole: Narrazione Fotografica, Fotografia di Moda, Editoriale di Moda, Ricerca Partecipante, Intelligenza Collettiva.

1 Introdução

Um conjunto de encontros fotográficos realizados entre 2013 e 2021 é o escopo do presente artigo. Por meio de imagens, as histórias são contadas e cada fotógrafo tem sua própria maneira de ver: alguns contemplam superficialmente a cena e se perdem na trajetória. Muitas vezes, fotografam para agradar o outro, seja ele cliente, veículo ou seguidor nas redes sociais. A tensão está em avaliar o ponto em que a fotografia se complementa no outro e mantém a própria narrativa.

Observa-se que a fotografia de moda tem se transformado cada vez mais em tecnicista e repetitiva. A ansiedade em agradar o outro vai na contramão da singularidade do fotógrafo.

Ao abrir espaço para as experiências coletivas dos encontros fotográficos e ao vivenciá-las, os fotógrafos têm a oportunidade de se aproximar de outros profissionais e expandir sua forma de ver a cena. O portfólio profissional do participante é modificado e antigas concepções e técnicas vão sendo repensadas; novas técnicas de direção de cena são introduzidas e novos meios de estudar as referências são incorporados.

A motivação para a elaboração do artigo nasce da reflexão sobre como o artista encontra singularidade em um mundo automatizado por imagens. Acredita-se que o estudo possa suscitar uma reflexão sobre a forma de contar histórias por meio da fotografia de moda e do fazer fotográfico, que encontra potencialidade nas relações construídas entre o artista e o espectador. Narrativas fotográficas de moda, inspiradas nas experiências, criam maior entendimento entre as obras e quem as vê, independente das imposições comerciais do mercado.

De que maneira os artistas encontram sua própria singularidade na experiência fotográfica compartilhada? Faz-se necessário compreender a disposição do artista em compartilhar sua narrativa fotográfica e perceber o quanto da ideia original pode ser potencializado por meio das inteligências coletivas.

A partir da vivência das práticas fotográficas implantadas com os alunos dos cursos livres de Fotografia e Editorial de Moda, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, e dos encontros fotográficos liderados entre 2013 e 2018 é possível observar o processo do artista em busca de sua singularidade, mediante o aparecimento das inteligências coletivas durante o processo criativo.

Para compreender as formas do artista de buscar sua singularidade diante da coletividade faz-se uso do estudo de caso e da pesquisa participativa. O objetivo é criar práticas fotográficas e estudos compartilhados a fim de estabelecer uma consistência entre a experiência do artista e o compartilhamento de ideias durante o processo criativo fotográfico.

Fotógrafos são humanos, inseguros com técnicas e narrativas, seres em constante mutação, mentirosos por opção, que se abnegam de seus dois olhos e passam a enxergar o mundo e as pessoas com um olho só, como ciclopes.

ENCONTROS FOTOGRÁFICOS

O termo experiência é definido como o ato de experimentar e também como uma forma de conhecimento não organizado, não linear. Segundo o Léxico, dicionário da língua portuguesa on-line, o efeito de experimentar é também usado como o significado para sentir, conhecer ou presenciar algo. A prática de uma atividade que proporciona conhecimento ou capacidade para fazer algo (EXPERIÊNCIA, 2018).

Entende-se que a experiência, quando compartilhada, potencializa a vivência e o conhecimento. Em suma, a experiência compartilhada é o conhecimento por meio do coletivo; e a experiência coletiva ocorre quando o aprendizado passa pelo outro, pelas relações e pelo entorno, produzindo um tipo de inteligência potencializada na troca gerada pela pluralidade dos participantes. Para Lévy (2003, p. 28), a inteligência coletiva é “[...] uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. O uso das inteligências coletivas, compartilhadas no fazer fotográfico, reconhece, no outro, as habilidades que, se bem distribuídas, capacitam a narrativa e o aprendizado.

Em 2013, partindo da necessidade de produzir um editorial de moda, este autor é convidado por um grupo de fotógrafos cariocas para uma experiência coletiva de fotografia de moda. Para este tipo de demanda, comumente convida-se um profissional experiente para ministrar um curso de curta duração, com conteúdo teórico e atividades práticas. Observando a necessidade dos participantes, entende-se que o grupo almeja percorrer o caminho oposto, partindo da prática fotográfica compartilhada a necessidades técnicas e de aprimoramento teórico. Posteriormente, o evento é batizado de “encontros fotográficos”. A quididade da proposta é criar possibilidades compartilhadas do fazer fotográfico, seguindo a linha narrativa de editorial de moda, onde se estabelece um tema e abastece-se os participantes com referências, inspirações e possibilidades de concretizar, em imagens, a história sugerida. Os participantes são fotógrafos profissionais e amadores, que enxergam, no exercício compartilhado, possibilidades de conhecimento, relacionamento e aprimoramento da visão fotográfica.

Becker (2010, p. 27) sustenta que, no trabalho artístico, a cooperação e as relações humanas valorizam a continuidade da obra:

Todo trabalho artístico, como toda atividade humana, envolve a atividade conjunta de um grande número de pessoas. Por meio da cooperação deles, a obra de arte que eventualmente vemos ou ouvimos vem a ser e continua a ser. O trabalho sempre mostra sinais dessa cooperação (BECKER, 2010, p. 27).

Tais influências coletivas aprimoram o relacionamento e valorizam as capacidades individuais dos artistas. O exercício busca criar uma sinergia entre os participantes e incentiva que cada um compartilhe aquilo que de mais precioso possui.

Nicolas Bourriaud (2009a), em Estética Relacional, Claire Bishop (2012), com arte participativa, e Grant H. Kester (2004), com arte socialmente engajada, são autores que levantam as questões da participação como complemento da intenção do artista. Em diferentes defesas, os autores apontam para o deslocamento do artista, como único criador da obra, para uma colaboração produtora de situações, que posteriormente tem seu resultado decodificado pelo espectador.

Na prévia do encontro fotográfico, o autor abastece os artistas com informações, imagens de moda, referências de fotógrafos, filmes e elementos artísticos inspiradores, que ajudam a compor a cena. Observa-se uma dificuldade natural entre os presentes de formular uma narrativa pessoal, baseada em sua própria cultura e vivência. Geralmente, muitos participantes estão presos em questões puramente técnicas.

Para Fontcuberta (2010, p. 43), o ato fotográfico começa com o momento decisivo do clique e prossegue com o encantamento; culmina no gozo, traduzível como a consumação da imagem; e, em geral, é seguido por dúvidas e decepção, a crise postpartum que sucede a criação.

ENCONTRO FOTOGRÁFICO: URBANO

Em 2013, tendo o boêmio bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, como cenário e inspiração, modelos são fotografadas se equilibrando entre saltos altos e trilhos. Nem a chuva diminui a experiência. Olhando de relance aquele grupo de fotógrafos, pode-se, levianamente, confundir com alunos de um curso de fotografia, mas a experiência do encontro fotográfico é um descontrole artístico: tem-se a inspiração, o local, a moda, as modelos, e todo o processo é baseado na experiência e na criação conjunta.

Kester, em entrevista a Tom Stott (2014, p. 75), explica: “[...] há uma mudança na direção de experiências participativas baseadas no processo [...]”. Diante da cena sugerida, não existe o professor, o amador ou aquele com a câmera mais potente. O encontro fotográfico iguala o artista. Cada um, com sua vivência, é estimulado a descobrir sua singularidade e a decodificar o modus vivendi da cena sugerida.

Dentre os fotógrafos errantes e nômades urbanos encontram-se experiências distintas. Quando a enfermeira do sistema hospitalar da periferia negocia com a sua chefia a folga do plantão para fotografar moda, não se questiona apenas o interesse pelo assunto e, sim, o afastamento da própria realidade, essencialmente cruel e estressante.

No encontro fotográfico, a experiência possibilita a construção de uma nova realidade por meio da narrativa fotográfica. O evento estimula a prática da errância urbana no bairro de Santa Teresa e o relacionamento com os demais participantes como forma de troca. Caminhar pelas ruas do bairro, além de inspirador, facilita a compreensão do espaço urbano e solidifica a singularidade de cada artista. A mesma cena é montada com a modelo para todos os participantes. Cada um extrai aquilo que lhe convém do encontro fotográfico.

Kester (STOTT, 2014) diz que é possível transformar a consciência dos participantes por meio da colaboração que se dá na práxis compartilhada. Percebe-se que o grupo se fideliza e que a fotografia é um ponto em comum para novas formas de estarem juntos.

ENCONTRO FOTOGRÁFICO: GABRIELA, CRAVO E CANELA

Ainda em 2013, o autor sugere outro encontro fotográfico, desta vez inspirado no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado (1975). O estímulo parte de várias referências, entre elas, o livro homônimo: “Ela riu novamente, mostrando os dentes brancos, limados. Ele estava cansado, já começava a achar que tinha feito uma besteira. Ficara com pena da sertaneja, ia levar um trambolho para casa” (AMADO, 1975, p. 82).

A preparação do evento é feita pelas redes sociais, onde se compartilham informações do contexto que o escritor criou a personagem. Os participantes também são convidados a pesquisar referências de fotógrafos e narrativas fotográficas de moda ligadas ao tema.

São três horas de prática fotográfica que resgata Sônia Braga, Gal Costa e Juliana Paes. Cada participante busca, em sua própria cultura, ferramentas para construir a narrativa e dar vida a sua Gabriela fotográfica. Criar a narrativa fotográfica é semelhante à criação de uma personagem: os questionamentos se estendem à imaginação de compreender quem é esta figura que se está tentando fotografar e qual é seu cotidiano.

O enredo pautado na sensualidade da personagem de Jorge Amado é um convite para que cada artista descubra sua própria maneira de interpretar o tema. Não existe um roteiro linear: a inspiração passeia pela música, literatura e cinema. Observa-se que alguns fotógrafos chegam à cena completamente despreparados e, diante de uma modelo bonita, se perdem na imagem sensualizada e produzem registros repetitivos e clicherias, enquanto outros artistas se reinventam, dominam a caixa preta flusseriana.

O ato repetitivo, clicheria, é referenciado por Batchen (2008, p. 123-124) como um gênero popular, massivamente praticado. São imagens designadas pelo autor como “pouco imaginativas”, “snapshots”. O conflito de clichês apresentado por alguns participantes revela imagens rasas, copiadas ou adaptadas de outros campos da fotografia. Assim como na moda e na arte, este tipo de imagem tem um gosto de comida estragada, passada do ponto.

Dorival Caymmi (1914-2008) descreve em versos e música as particularidades de sua personagem Gabriela. Retrata, sabiamente, a inocência desatinada da protagonista e sinaliza o próprio tom da narrativa iniciada por Jorge Amado (1975). A polissemia e a liberdade do uso de palavras favorecem seu estilo narrativo. Transpor tal liberdade para a fotografia é inspirador, quando se interpreta as características da moça que não se importa em ser assim.

Quando eu vim para esse mundo

Eu não atinava em nada

Hoje eu sou Gabriela Gabriela ê meus camaradas

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Quem me batizou quem me nomeou

Pouco me importou é assim que eu sou

Gabriela sempre Gabriela

Quando eu vim para esse mundo

Eu não atinava em nada

Hoje eu sou Gabriela

Gabriela ê meus camaradas

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Quem me batizou quem me nomeou

Pouco me importou é assim que eu sou

Gabriela sempre Gabriela

Gabriela sempre Gabriela

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Eu sou sempre igual não desejo o mal

Amo o natural etc e tal (CAYMMI, 1975)

Gabriela é uma figura feminina de múltiplas possibilidades fotográficas. Da força retirante à mulher sensual brejeira, traz elementos bem característicos de cor, construção de personagem e narrativa referenciada no cinema, na televisão e na literatura. Cabe ao fotógrafo buscar, nas entrelinhas destas representações, os signos para construir sua própria “Gabriela”.

A cultura e o treino do olhar estão diretamente ligados à vivência do artista e à percepção do momento. Berger (2017, p. 39) diz que uma fotografia, ao registrar o que foi visto, sempre e por sua natureza, se refere ao que não é visto: “O verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível”. O invisível tende a habitar o universo cultural de cada fotógrafo e se funde nos relacionamentos construídos antes e durante o encontro fotográfico.

Busca-se referência na Gabriela de Jorge Amado (1975), de Dorival Caymmi (1975), de Bruno Barreto (2012) e se potencializa na experiência de cada artista com questões como sensualidade e a relação com o feminino. Reflete-se que o artista pode se sentir atraído pelo tema, pelo desejo de fotografá-lo, mas o tom que cada um escolhe para sua narrativa tem uma ligação com o invisível e suas relações.

Para Berger (2017, p. 40): “A fotografia é eficaz quando [...] revela tanto o que está ausente quanto o que está presente”. E continua: “O quantum de verdade da foto pode estar em um detalhe, em uma expressão, em uma composição, em uma ambiguidade visual. [...] essa verdade nunca pode ser independente do espectador” (BERGER, 2017, p. 40). A verdade da “Gabriela” que diferencia os vários participantes do encontro fotográfico está no visível e no invisível e vai além da vontade do artista em registrar o tema.

Quando eu vim para esse

mundo

Eu não atinava em nada

Hoje eu sou Gabriela Gabriela ê meus camaradas

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Quem me batizou quem me nomeou

Pouco me importou é assim que eu sou

Gabriela sempre Gabriela

Quando eu vim para esse mundo

Eu não atinava em nada

Hoje eu sou Gabriela

Gabriela ê meus camaradas

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Quem me batizou quem me nomeou

Pouco me importou é assim que eu sou

Gabriela sempre Gabriela

Gabriela sempre Gabriela

Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo sim

Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela

Eu sou sempre igual não desejo o mal

Amo o natural etc e tal (CAYMMI, 1975)

Gabriela é uma figura feminina de múltiplas possibilidades fotográficas. Da força retirante à mulher sensual brejeira, traz elementos bem característicos de cor, construção de personagem e narrativa referenciada no cinema, na televisão e na literatura. Cabe ao fotógrafo buscar, nas entrelinhas destas representações, os signos para construir sua própria “Gabriela”.

A cultura e o treino do olhar estão diretamente ligados à vivência do artista e à percepção do momento. Berger (2017, p. 39) diz que uma fotografia, ao registrar o que foi visto, sempre e por sua natureza, se refere ao que não é visto: “O verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível”. O invisível tende a habitar o universo cultural de cada fotógrafo e se funde nos relacionamentos construídos antes e durante o encontro fotográfico.

Busca-se referência na Gabriela de Jorge Amado (1975), de Dorival Caymmi (1975), de Bruno Barreto (2012) e se potencializa na experiência de cada artista com questões como sensualidade e a relação com o feminino. Reflete-se que o artista pode se sentir atraído pelo tema, pelo desejo de fotografá-lo, mas o tom que cada um escolhe para sua narrativa tem uma ligação com o invisível e suas relações.

Para Berger (2017, p. 40): “A fotografia é eficaz quando [...] revela tanto o que está ausente quanto o que está presente”. E continua: “O quantum de verdade da foto pode estar em um detalhe, em uma expressão, em uma composição, em uma ambiguidade visual. [...] essa verdade nunca pode ser independente do espectador” (BERGER, 2017, p. 40). A verdade da “Gabriela” que diferencia os vários participantes do encontro fotográfico está no visível e no invisível e vai além da vontade do artista em registrar o tema.

ENCONTRO FOTOGRÁFICO: TARANTINO

Em 2014, um galpão abandonado é alugado e sete modelos elegantemente vestidos de preto caminham diante do grupo de fotógrafos para a cena final do encontro fotográfico do dia. Os modelos portam armas cenográficas e se amontoam em frente a uma estilosa moto Harley Davidson. Ao fundo, percebe-se fumaça artificial sob o comando de voz deste autor para o movimento dos modelos.

A cena montada e repetida diversas vezes dava chance aos fotógrafos de escolherem os próprios ângulos, técnicas, cortes, erros e acertos. A inspiração parte do múltiplo talentoso Quentin Tarantino e o moodboard é cinema, rapidez, violência e moda. As referências visuais partem da filmografia do próprio diretor em Cães de Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994), Jackie Brown (1997) e Kill Bill (2003-2004).

Também está inclusa a estética feral do fotógrafo norte-americano Steven Klein, em especial a colaboração editorial de moda desenvolvida para a W Magazine entre os anos de 2003 e 2014. São marcantes a compreensão de luz e a direção de cena desenvolvidas no projeto-filme-manifesto Secret Project Revolution, de 2013. Um videoclipe onde o artista, em conjunto ao diretor criativo ítalo-brasileiro Giovanni Bianco e a cantora pop norte-americana Madonna, compõe uma narrativa visual crítica sobre temas como processo político, igualdade de gênero, racismo e liberdade de expressão.

A construção narrativa de Tarantino não é linear e nem facilmente explicativa. O espectador é convidado a compreender as razões das personagens para cometer atos violentos e a rapidez das cenas e ângulos inusitados trazem o olhar para dentro da cena, em um jogo de foco e desfoque, banhado de sangue e diálogos elaborados, alguns até nonsense. A normalização da morte no discurso tarantinesco aparece também na narrativa de Steven Klein.

Assim como ocorre em outros encontros fotográficos, a montagem da cena começa antes do disparo do obturador. Este autor abastece os participantes com referências de fotografia, moda, atitude e construção de personagem, mas estimulam-se também a criatividade e a rapidez de associação mental para fotografar a cena.

Muito além de objetivos didáticos, os encontros fotográficos elevam o gosto dos participantes pela narrativa editorial fotográfica. A experiência leva a uma elaboração da técnica e à construção de portfólio. Alguns artistas saem da prática com narrativas prontas para serem publicadas nos veículos de moda.

 Encontros fotográficos.
Foto 1
Encontros fotográficos.
Arquivo pessoal, São Paulo, 2013

Encontros fotográficos.
Foto 2
Encontros fotográficos.
Arquivo pessoal, Rio de Janeiro, 2013

Encontros fotográficos.
Foto 3
Encontros fotográficos.
(Arquivo pessoal, Rio de Janeiro, 2013).

Encontros fotográficos.
Foto 4
Encontros fotográficos.
(Arquivo pessoal, Rio de Janeiro, 2013).

VIAGENS FOTOGRÁFICAS

Quando o participante do encontro fotográfico busca maior entendimento sobre os múltiplos usos da experiência em seu portfólio, vivencia a contemporaneidade da obra. Assim como a arte contemporânea deixa o museu em busca de um diálogo maior com o espectador, a narrativa fotográfica, quando rompe as paredes invisíveis das páginas de revista, evidencia a liberdade criativa e a fotografia se aproxima da alma genuína da vivência do artista. O fotógrafo-artista contemporâneo experimenta, por meio das relações construídas na coletividade, maior entendimento de sua própria narrativa fotográfica.

Em 2014 e 2015, o autor convida um grupo de fotógrafos para realizar viagens fotográficas, sendo uma delas para Milão, na Itália, e outra para Londres, na Inglaterra. Os fotógrafos vivenciam in situ as práticas de errância e são convidados a usarem tais práticas em suas narrativas fotográficas de moda. O programa inclui visitas técnicas, de museus a agências de modelos. Deriva-se na cidade e inspira-se naquilo que a urbe e o modus vivendi do cidadão local oferecem. O propósito da viagem fotográfica é preparar o fotógrafo para a naturalidade da direção de cena, com base na vivência e nas relações construídas, além de melhorar o portfólio por meio das experiências vivenciadas.

Em meio à monumental Galeria Vittorio Emanuele II, entre a Piazza del Duomo e a Piazza della Scala, a cena habitual é formada por uma infinidade de turistas, munidos de câmeras fotográficas e smartphones de todos os tipos e formatos, que se confundem com o frenesi natural da cidade. Em junho de 1859, os austríacos saíram derrotados de Milão e a prefeitura decidiu redesenhar o cenário do centro e celebrar a vitória. No ano seguinte, por meio de um concurso público, o arquiteto Giuseppe Mengoni (1829-1877) se encarrega de construir um espaço que não fosse apenas um corredor de conexão entre duas importantes praças. A suntuosa galeria, também conhecida como “Il Salotto di Milano”, foi construída entre 1865 e 1887 e é formada por dois arcos perpendiculares, cobertos por uma abóbada de vidro e ferro. Impressiona por sua grandiosidade e beleza.

Este autor, in situ, analisa meticulosamente as condições do espaço público, o movimento e a complexidade técnica. Observa-se a insegurança dos fotógrafos e o incômodo de dividir a cena fotográfica com dezenas de turistas efervescentes. A situação apresentada é caótica, em termos técnicos, de absoluto descontrole criativo, e a impossibilidade de despoluir a cena mais parece didática, no sentido de buscar soluções. É possível adequar a lente da câmera e desfocar o fundo, mas, ainda assim, o fundo estará lá, invadindo a cena, guerreando com o elemento principal do editorial de moda.

A inspiração é fotografar o caos e provocar mais descontrole, como “pipoca na pipoqueira”, convidando o artista a buscar uma alternativa dentro daquilo que lhe foi apresentado. Como defende Bourriaud (2009a, p. 18), as obras “[...] procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista”. O fotógrafo, poeticamente, é convidado a fechar os olhos se quiser enxergar. Sentir a vibração da cidade e seguir sua própria intuição é, também, uma forma de fotografar a cena.

Um casal de modelos é posicionado estrategicamente no meio da galeria, próximo a um grupo de turistas. Não é permitido pedir espaço e, sim, inserir a atmosfera na cena. A modelo, loira, alta, porta um vestido de noiva curto, confeccionado com pedrarias e plumas. O modelo, contrapondo a beleza monárquica da parceira de cena, apresenta-se despojado: veste bermudas em alfaiataria, blazer, gravata borboleta e tênis. A beleza masculina é destacada pelos cabelos longos desalinhados, uma referência visual roqueira. Uma vez que a cena é montada, bastam os primeiros cliques vindo das câmeras profissionais dos fotógrafos para perceber o olhar curioso da massa de turistas. Em poucos minutos do início do editorial de moda é impossível discernir o que é fotógrafo e o que é público, tamanho é o mimetismo do bloco em meio a turistas e transeuntes.

O gran finale da cena é rápido, orquestrado pelo autor, de forma repentina e apoteótica. Por meio de sinais e olhares, subitamente os fotógrafos mudam de lugar e se posicionam atrás dos modelos, que rapidamente giram, ora de frente para os turistas, ora de frente para os fotógrafos. A cena é mesclada entre o movimento dos fotógrafos, dos modelos e do público, e concretiza um tipo de balé fotográfico, onde o público se difunde e se confunde com a cena, ora como plateia, ora como cenário. Poeticamente é possível incluir música na cena e sentir a batuta do maestro Zubin Mehta regendo o ritmo da orquestra da ópera do Teatro alla Scala ao fundo.

Para David Duchemin (2017, p. 46), “não se aprende a enxergar abrindo os olhos, mas a mente”. A cena caótica da massa turística jamais se transformaria em ópera se os fotógrafos não encontrassem, na coletividade e na participação do outro, os elementos necessários para reger a orquestra. Seja no balé ou na ópera, a qualidade está na harmonia dos elementos. O novo olhar se constrói a partir da participação do espectador, que é também coautor da narrativa. Em um sentido fotográfico, torna-se necessário sentir a cena e aprender a enxergar novas abordagens, para exercer a arte na narrativa fotográfica.

O fotógrafo tem uma intenção disfarçada de cumprir a encomenda da pauta. Diante do descontrole, encontra no espectador o tom de harmonia para reger a orquestra. O artista não prevê e nem controla completamente a cena, mas o exercício prático de caos inicial leva-o a entrar em contato com soluções rápidas de adequação. Observa-se na narrativa fotográfica a mobilidade descrita por Umberto Eco (1991, p. 51): “[...] objetos artísticos que trazem em si mesmos como que uma mobilidade, uma capacidade de reproduzir-se caleidoscopicamente aos olhos do fruidor como eternamente novos”.

Viagens fotográficas.
Foto 5
Viagens fotográficas.
(Arquivo pessoal, Milão, 2014).

Voltando ao exemplo da cena orquestrada na Galeria Vittorio Emanuele II, observa-se que o editorial de moda dos noivos se potencializa enquanto obra em movimento. Uma nova narrativa se constrói a cada instante, seja pelo olhar dos artistas, seja pelo movimento sem controle da cena. O descontrole do momento torna-se a beleza que dá o tom da narrativa fotográfica.

Katia Canton (2009, p. 37) diz que: “No momento em que se perde a confiança no excesso de imagens que varre o mundo, contar histórias se transforma em um jeito de se aproximar do outro e, na troca entre ambos, de gerar sentido em si e nesse outro”. Com isso, a fotografia calcada na experiência e no escambo das relações compartilhadas aproxima o artista de sua obra.

A MELÁNGE WOLFENSON

Por meio de encontros virtuais realizados com o fotógrafo de moda Bob Wolfenson, entre junho e julho de 2021, investiga-se o quanto da narrativa fotográfica, encomendada por um veículo ou cliente, permite-se à influência da experiência compartilhada durante o processo criativo de um editorial de moda.

Os encontros se enquadram em um tipo de pesquisa participante que, segundo Thiollent (1986, p. 7 apud CARVALHO; DUARTE; MENEZES; SOUZA, 2019, p. 46), “[...] valoriza não somente a participação direta dos sujeitos (numa clara oposição aos métodos mais objetivos e científicos em seu modo mais tradicional), mas privilegia aquilo que eles produzem em seus discursos”. Dessa forma, os encontros fundamentam-se no diálogo cultural e no fazer compartilhado, o que credibiliza as ideias investigadas no artigo.

Segundo Wolfenson (2021), no final dos anos 1990, o artista se reunia com o editor e definia as referências, que eram comunicadas à equipe. E, depois dos anos 2000, com a valorização de outros profissionais no set fotográfico, o moodboard dissipa a função de orientação e, por vezes, se confunde, visto que coleta várias ideias e algumas delas não dialogam entre si. O artista ainda confessa que sempre busca uma forma de fazer o editorial a sua maneira. Seu método trabalha com elementos da realidade e promove descontrole, mesmo quando fotografa em estúdio, para que haja ruído, algo insólito, que saia daquela mesmice da modelo em fundo branco, parada, mostrando a roupa.

Para o artista, além do peso da responsabilidade de entregar a encomenda, a cena está em seu radar. O fotógrafo-artista cava a sua liberdade narrativa, mesmo diante da pressão de uma encomenda. O processo criativo se torna mais complexo diante do compartilhamento de ideias no set fotográfico. E isso também inclui o processo de pós-edição, visto que tanto o diretor criativo quanto o stylist opinam bastante no decorrer do trabalho, que, por vezes, é muito pessoal para o artista. O fotógrafo enxerga o processo desde a inspiração até a edição das imagens. É válido compreender o quanto a equipe enxerga a mesma linha criativa e se a interferência na relação é algo agregador ao processo ou se conflitua com o objetivo inicial do trabalho.

Para Wolfenson (2021), até o final da década de 1990, o processo criativo de uma pauta editorial era autocrático. O fotógrafo, enquanto autoridade no set fotográfico, mantinha o poder de decisão mais ditatorial: “era isso e acabou”. A contemporaneidade convida a uma mescla de relações que se misturam no fazer fotográfico. Se, por um lado, o profissional recebe boas ideias nascidas do compartilhamento de propostas, por outro lado, o conjunto de várias opiniões exige do artista uma inteligência seletiva em compreender o quanto do processo criativo tende a se dissipar do projeto inicial.

O fato é que, segundo Wolfenson (2021), a imagem cria uma série de interpretações. O fotógrafo vê uma cena, fotografa, joga para o mundo e a obra diz “tchau”. Ela não é mais sua e o espectador interpreta-a como quiser. Obviamente, o nexo que o artista estabelece é um, mas o espectador cria seu próprio nexo ao realizar a leitura da fotografia. A ressonância, mesmo que na contramão do que originalmente foi pensado pelo artista, faz com que a imagem ganhe um sentido maior. Assim como Marcel Duchamp (1975, p. 74) defende: “O ato criador toma outro aspecto quando o espectador experimenta o fenômeno da transmutação; [...] o papel do público é o de determinar qual o peso da obra de arte na balança estética”.

Convidar a cidade a participar da cena fotográfica também é uma maneira de compartilhar ideias. Quando o artista integra o movimento da cidade, organicamente e intuitivamente, experimenta a fruição da encomenda com o instante. O espírito errante de Bob Wolfenson é perceptível em vários de seus trabalhos. Para ele, o fotógrafo precisa se conectar com o local e criar cadência na narrativa fotográfica.

Se, por um lado, o errante se perde na cidade, é na errância que a narrativa encontra seu próprio movimento. Nicolas Bourriaud (2011, p. 97) alerta que o errante não demora a esbarrar, como inseto na vidraça, nesses territórios em que o espaço público (partilhado) se reduz mais e mais a cada dia que passa. É válido compreender que Wolfenson, em 1996, quando revolucionou a revista Playboy com um ensaio da atriz Maitê Proença na Itália, não esbarrou na Sicília mas, sim, viveu naquela vila italiana, mesmo que por um breve momento. Experimentou o espaço público, compartilhou a cultura local e construiu sua própria narrativa do lugar com as 24 páginas do editorial realizado.

Entende-se que não basta captar a cidade, mas, sim, vivenciá-la, para se criar o movimento da narrativa. Se compartilhar vem de partilhar, entende-se que a troca é recíproca.

A cidade vivenciada pela errância do artista torna-se viva e dinâmica por meio de sua obra. A inteligência coletiva é transmitida por toda parte e coloca em movimento o pensamento da sociedade.

Pensamos, é claro, com ideias, línguas, tecnologias cognitivas recebidas de uma comunidade. Mas a inteligência culturalmente constituída não é mais fixa ou programada como a do cupinzeiro ou a da colmeia. Por meio de transmissão, invenção e esquecimento, o patrimônio comum passa pela responsabilidade de cada um (LÉVY, 2003, p. 31).

Em consonância ao pensamento de Lévy (2003, p. 31), o compartilhamento do conhecimento difunde mais conhecimento. Observar a cidade, as pessoas, a cultura, completa o artista no momento da inspiração e também do fazer fotográfico. É de se pensar que a inteligência coletiva habita no set fotográfico e o mesmo traz a rua, a cultura e a vivência do artista.

Quando o autor questiona Wolfenson (2021) sobre a escolha técnica de uma imagem da modelo com o fundo desfocado, o artista retorna a sua memória fotográfica ao bairro onde nasceu – Bom Retiro, região central e essencialmente comercial de São Paulo. Na frente de seu apartamento de infância e início da adolescência, seu horizonte é interrompido por uma paisagem de prédios e fios elétricos. Destaca a memória do transformador, estrategicamente posicionado à altura da janela de seu quarto. Relembra que a própria palavra “transformador” tem um simbolismo: transforma a dor e alimenta esta vontade de querer ver além do horizonte.

No texto escrito para o lançamento de seu website, em 2010, o fotógrafo nomeia o transformador como o objeto que se interpõe, entre si e o assunto da foto, o objeto de seu interesse. Faz da experiência compartilhada um estilo, quando traz para a cena fotográfica a simbiose com a cidade. Percebe-se que a cena se confunde com a cidade quando se dificulta, por meio de técnica fotográfica, a separação do elemento principal (a modelo) com o fundo (a cidade).

Nas palavras do fotógrafo (WOLFENSON, 2021), a imagem da modelo “se amassa” com o entorno. É intencional o recurso de amassamento: mais do que um estilo, é um retorno à origem amassada do bairro do Bom Retiro. Arrisca-se, ainda, a refletir que exista neste estilo o desejo latente de conquista e errância. Novamente, Nicolas Bourriaud (2011, p. 114) endossa tal prática: “O artista tornou-se o protótipo do viajante contemporâneo, o Homo viator, cuja passagem através dos signos e formatos remete a uma experiência contemporânea da mobilidade, do deslocamento, da travessia”. Wolfenson leva consigo suas origens e motivações e faz de sua própria travessia o seu estilo. Diz não ser algo feito deliberadamente: é o seu jeito de ver as coisas.

Nicolas Bourriaud (2011, p. 54-55) chama de radicante o sujeito nômade que coleta signos dentro da paisagem cultural. A montagem da narrativa parte da vivência do artista, de sua origem, e o transforma em locatário, habitante de estruturas existentes. “Os artistas radicantes seriam, portanto, “inventores de percursos”, nômades que, amealhando signos, constituiriam novas “paisagens culturais”” (BOURRIAUD, 2009, p. 34 apud FABBRINI, 2016, p. 5).

O fotógrafo-artista contemporâneo é inspirado pelos elementos da coletividade – que se fundem ao seu próprio repertório –, com seu modo de olhar, com o talento, com a modelo que está fotografando, com os desejos dos que estão em volta. Na fotografia de moda, os envolvidos estão realizando o seu ego – não no sentido pejorativo da palavra, mas no sentido do seu “eu”: o cabeleireiro e o maquiador estão se expressando, o stylist está se expressando, a revista, o fotógrafo, a modelo. Há vários desejos pairando sobre o set fotográfico, que vão se acondicionando um ao outro e se realizando. Não em sua totalidade, mas é a partir dessa mélange, essa mistura de todos os desejos, que se configura a imagem final. Fontcuberta (2014), em seu manifesto pós-fotográfico, sustenta que, na experiência da arte, as práticas de criação habituam-se à desapropriação. Uma referência clara de que compartilhar é melhor do que possuir.

No texto de apresentação da exposição Fashion Stories, Wolfenson (2016) diz que não acredita em fotografias de moda sem uma encomenda por trás. É na tensão entre as injunções do pedido e as realizações das ideias de todos os envolvidos que a magia acontece. A magia encontra terreno fértil no controle e também no descontrole, defende o artista. O controle está na encomenda, na pauta e na escolha da locação, da equipe, dos modelos; e o descontrole transita no entorno dos mesmos elementos. A magia ocorre em ambas as esferas e cabe ao artista encontrar sabedoria para enxergar onde a coletividade potencializa o momento.

Buscar a singularidade do artista na narrativa fotográfica da vivência, da experiência e da coletividade é um aprendizado contínuo. O artista, inspirado pelo entorno, usa o controle da encomenda e o descontrole da coletividade para costurar a sua própria colcha de retalhos de referências e inspirações. Assim como o Parangolé da obra de Hélio Oiticica (VALENTIN, 2020, p. 68) precisa do movimento dos passistas da Mangueira para existir como obra de arte, o fotógrafo-artista contemporâneo necessita dominar a técnica, saber usar o controle e compreender que o descontrole é aliado. O instante fotográfico é controle, mas também se materializa no oposto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível notar que os fotógrafos, habitualmente condicionados a seguir uma encomenda ou pauta com temas específicos, quando desafiados a criar de forma compartilhada sentem-se ameaçados em sua singularidade. Constatou-se que, para alguns artistas, a proposta pareceu intimidadora.

Ao analisar a experiência dos encontros fotográficos, buscou-se respostas para a hipótese formulada. Investigou-se a disposição do artista em compartilhar sua narrativa fotográfica e perceber o quanto da ideia original pode ser potencializado por meio das inteligências coletivas. Para que seja possível uma troca é necessária a predisposição do artista em compartilhar sua obra. A abertura da narrativa ao outro, mais do que um desprendimento por parte do artista, se dá no desejo e na coragem de deixar o que está dentro sair. A permissão é a premissa da escolha por fazer parte da troca e de criar o teor de transitividade.

Foi possível e necessário compreender que não se pode encurtar o diálogo entre o artista e o espectador sem aferir uma infinidade de outras negociações, que ocorrem durante o processo criativo. Além da responsabilidade da entrega da encomenda, o artista negocia com o seu próprio reflexo, a forma como ele enxerga a sua narrativa. Paradoxalmente, é preciso encontrar o tom da narrativa com outros profissionais criativos antes de pleitear uma interação com o espectador.

A narrativa fotográfica com potencial compartilhado é fundamentada na reciprocidade e tem como cerne o “estar junto”. A elaboração coletiva do sentido passa pelo binômio da troca, onde alguém mostra algo a alguém, que lhe devolve a sua maneira, como defendido por Nicolas Bourriaud (2009a) em Estética Relacional.

Visto que uma das potencialidades da imagem é seu sentimento de ligação, a relação de troca evoluiu com o ingresso destas outras negociações presentes na inteligência coletiva. Com isso, observou-se que a experiência passou a ser uma miríade de possibilidades, ao incluir os outros profissionais e a própria cidade como coautoria da narrativa fotográfica. Deduziu-se que, com o surgimento das inteligências coletivas, o fotógrafo precisa encontrar novos meios de manter sua singularidade e seu potencial comunicativo. A potencialidade da narrativa fotográfica passa pelos encontros e também pelos desencontros, tendo no espectador o conforto da narrativa.

Ao se perguntar “De que maneira os artistas encontraram a sua própria singularidade na experiência fotográfica compartilhada?”, foi possível notar que os profissionais de fotografia são resistentes à temática de como as práticas artísticas podem encontrar um terreno fértil em novas abordagens e experimentações.

Se, por um lado, os fotógrafos de moda mais experientes reclamam pela autoria de suas obras quando se veem diante da necessidade do “criar compartilhado”, por outro, os fotógrafos mais novos se perdem em suas narrativas, quando presos a encomendas e regras técnicas de fotografia.

A metodologia mostrou que uma narrativa fotográfica de moda, amparada pela sensibilidade coletiva, tornou-se um convite ao espectador, de coautoria da obra. O artista que experimentou essa abertura mostrou-se mais criativo e permissivo em complementar a sua obra com o ensejo da participação de outros profissionais e do próprio espectador.

A disponibilidade do fotógrafo Bob Wolfenson (2021) permitiu que os aspectos teóricos levantados no artigo se reverberassem nos aspectos práticos. Os encontros com o artista perscrutaram o objeto de estudo e esclareceram a hipótese levantada.

Além da naturalidade da percepção de como o artista lida com o tema proposto, o exercício prático objetivado durante os encontros fotográficos assume que o olhar é ensinado e, também, aprendido. Nesta abordagem, é possível observar que o desenvolvimento do olhar singular do participante passa pela dimensão do outro, do intercâmbio social, da interferência do meio, bem como das situações de aprendizagem que se efetivam durante o fazer fotográfico prático.

Seguindo a linha de pensamento de Bakhtin (1986), quando diz que os signos não apenas refletem a realidade, mas a refratam, acredita-se que os encontros fotográficos refratem a realidade do participante, quando sugerem que é possível encontrar a singularidade do artista na experiência compartilhada. Etimologicamente, refração é a mudança da direção de uma onda de um meio para outro meio. Originário do latim Refractio, significa quebra, mudança de onda.

Durante o processo, inspirado no coletivo, permitiu-se que o olhar do artista fosse refratado, encontrando no compartilhamento de ideias uma forma de fazer a direção de cena fluir. Se, antes, acreditava-se que o fotógrafo de moda era o único maestro capaz de reger a orquestra durante uma narrativa fotográfica de moda, com os conceitos relacionais aplicados à prática foi possível perceber que os conflitos de poder dentro do set fotográfico potencializam a narrativa. A questão não era mais como interpretar a encomenda e, sim, o quanto da pauta, tema, estaria no outro[2].

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. 196 p.

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BATCHEN, Geoffrey. Snapshots: Art history and the ethnographic turn. Photographies. Londres, v. 1, n. 2, p. 121-142, set. 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1080/17540760802284398. Acesso em: 5 ago. 2021.

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BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009b. 110 p.

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CANTON, Katia. Narrativas Enviesadas. 1 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 57 p.

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Notas

2 Clarice Dall’Agnol, Bacharel em Direito pela PUC-RS e Licenciada em Letras e Literatura pela PUC-SP; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2601802416711078; e-mail: clariceddallagnol@gmail.com

Autor notes

1 Centro Universitário Belas Artes mestrando em Arquitetura, Urbanismo e Design. Centro Universitário Belas Artes Professor e idealizador do Curso Livre Básico Digital de Fotografia desde 2020. Centro Universitário Belas Artes Professor e idealizador do Curso Livre de Fotografia e Editorial de Moda desde 2016. Encontros Fotográficos Práticos Idealizador desde 2019. Editoria Gemeco Itália – de 2013 a 2018,– editoria e colaboração de moda. Office Im – desde 2005 – Proprietário, internacional manager.
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