Dossiê
RENDA DE BILRO E UPCYCLING: UMA PROPOSTA DE INOVAÇÃO
Bobbin lace and upcycling: an innovation proposal
Encaje de bolillos y upcycling: uma propuesta de innovación
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 6, núm. 1, 2022
Recepção: 30 Abril 2021
Aprovação: 25 Novembro 2021
Publicado: 01 Fevereiro 2022
Resumo: Sustentabilidade diz respeito à capacidade de sustentação ou conservação de um processo ou sistema. Em um mundo repleto de mercadorias e em um ambiente saturado de descartes em limites não mais aceitáveis, a demanda por cenários sustentáveis exige mudanças nos padrões de produção e consumo. No Setor de Moda, o desenvolvimento sustentável concerne a um modelo de produção que diminui impactos sociais e ambientais, evitando o formato linear de produção e buscando sua alternativa circular. Alinhado com os preceitos da sustentabilidade e da moda circular, o upcycling pode ser entendido como uma alternativa ecológica que dá novo significado e função a determinado material que seria descartado. O objetivo deste estudo é apresentar alguns pontos-chave e resultados relevantes de pesquisa de campo que buscou percorrer o trajeto de Renda de Bilro em Florianópolis. Trata-se, nesse sentido, de pesquisa aplicada com o desenvolvimento de um projeto de inovação, baseado no Guia de Orientação para o desenvolvimento de Projetos (GODP), na prática projetual do Design de Moda que resultou em uma metodologia adaptada do projeto com abordagem centrada no usuário, por sua vez desenvolvido a partir da vocação e do potencial do artesanato tradicional local, a Renda de Bilro de Florianópolis, no contexto da moda e da sustentabilidade. A partir de consulta à literatura específica acerca da Renda de Bilro, dos aportes teóricos acerca da Sustentabilidade e da prática projetual, aliados à pesquisa de campo, o estudo demonstra a amplitude das atividades do Design e o seu potencial para o uso de ferramenta estratégica voltada ao desenvolvimento sustentável do Município de Florianópolis.
Palavras-chave: Renda de Bilro, Moda, Design, Upcycling.
Abstract: Sustainability refers to the capacity of a process or system to sustain or conserve itself. In a world full of commodities and in an environment saturated with discards in limits no longer acceptable, the demand for sustainable scenarios requires changes in production and consumption patterns. In the Fashion area, sustainable development concerns a production model that reduces social and environmental impacts, avoiding the linear production format and seeking a circular alternative. Aligned with the precepts of sustainability and circular fashion, upcycling can be understood as an ecological alternative that gives new meaning and function to certain material that would be discarded. The purpose of this study is to present some key posts and relevant results of field research that sought to go through the path of bobbin lace in Florianopolis. In this sense, it is an applied research with the development of an innovation project, based on the Guideline for Project Development (GODP), in the projectual practice of Fashion Design that resulted in an adapted methodology of the project with a user-centered approach, in turn developed from the vocation and potential of local traditional crafts, the Bobbin Lace of Florianopolis, in the context of fashion and sustainability. From consultation with specific literature about the bobbin lace, the theoretical contributions about the Sustainability of projectual practice, combined with field research, the study demonstrates the breadth of Design activities and its potential as a strategic tool for sustainable development of the City of Florianopolis.
Keywords: Bobbin Lace, Fashion, Design, Upcycling.
Resumen: La sostenibilidad se refiere a la capacidad de mantener o conservar un proceso o sistema. En un mundo lleno de mercancías y en un entorno saturado de descartes en límites que ya no son aceptables, la demanda de escenarios sostenibles requiere cambios en los patrones de producción y consumo. En el área de Moda, el desarrollo sostenible concierne a un modelo de producción que reduce los impactos sociales y ambientales, evitando el formato de producción lineal y buscando su alternativa circular. Alineado con los preceptos de la sostenibilidad y la moda circular, el upcycling puede entenderse como una alternativa ecológica que le da un nuevo significado y función a cierto material que de otro modo sería descartado. El objetivo de este estudio es presentar algunos puestos llave y resultados relevantes de la investigación de campo que busco describir el camino del encaje de Bolillos en Florianópolis. Se trata, en este sentido, de investigación aplicada con el desarrollo de un proyecto de innovación, basado en la Orientación para el Desarrollo de Proyectos (GODP), en la práctica del diseño de Diseño de Moda que dio como resultado una metodología adaptada del proyecto con un enfoque centrado en el usuario, a su vez desarrollado a partir de la vocación y potencialidad de la artesanía tradicional local, el Encaje de Bolillos de Florianópolis, en el contexto de la moda y la sostenibilidad. Basado en literatura específica sobre el encaje de Bolillos, aportes teóricos sobre la sostenibilidad y de la práctica del diseño, combinados con investigación de campo, el estudio demuestra la amplitud de las actividades del Diseño y su potencial como herramienta estratégica para el desarrollo sostenible del Municipio de Florianópolis.
Palabras clave: Encaje de bolillos, Moda, Diseño, Upcycling.
1 INTRODUÇÃO
O artesanato brasileiro representa fonte de renda e trabalho para muitas comunidades, além de se constituir como relevante representação do contexto histórico, cultural e social de um determinado lugar. A atividade da Renda de Bilro em Florianópolis é considerada uma técnica tradicional porque remonta a um saber-fazer ancestral, tradicionalmente transmitido de forma oral entre as gerações de mulheres de uma mesma família. O artesanato tradicional possui uma história maior do que a das artesãs e da sua comunidade, ao mesmo tempo é impregnado pela singularidade de cada artesã que o produz. O consumo de artesanato é incentivado por diversos setores da economia, por exemplo, envolvendo o turismo e, especialmente a Moda e o Design, considerando que se encontra no artesanato um diferencial simbólico para os produtos e ao mesmo tempo uma possibilidade de inovação social que visa gerar renda para os artesãos por meio da valorização da cultura e identidade local.
Um dos principais desafios dos setores de moda e de design na contemporaneidade é desenvolver soluções para questões de alta complexidade, que exigem uma visão abrangente do projeto, envolvendo produtos, serviços e comunicação de forma coordenada e sustentável. Diante do exposto – e com o reconhecimento da relevância do ofício das Rendeiras na cidade de Florianópolis – o objetivo deste estudo é apresentar alguns pontos-chave e resultados relevantes de pesquisa de campo que buscou percorrer o trajeto da Renda de Bilro de Florianópolis em busca de possibilidades de inovação para este artesanato tradicional. Para isto foi desenvolvido um projeto de inovação, baseado no Guia de Orientação para o Desenvolvimento de Projetos (GODP) na prática projetual do Design de Moda (MERINO; VARNIER; MAKARA, 2020), que resultou em uma metodologia adaptada ao projeto com abordagem centrada no usuário, desenvolvida a partir da vocação e do potencial do artesanato tradicional local. O objetivo do projeto foi identificar oportunidades de inovação para o produto artesanal da Renda de Bilro, não apenas sob o aspecto estético dos produtos ou atendendo às necessidades do mercado focado no usuário, mas, principalmente, assinalando oportunidades para o projeto de fabricação em pequena escala, visto que se trata de um trabalho artesanal tradicional e patrimonializado. Assim, o projeto visa a sustentabilidade ambiental, econômica e social focada nas artesãs, valorizando a identidade, preservando a cultura e fomentando a economia local.
O estudo se caracteriza como pesquisa aplicada, com abordagem qualitativa. Quanto ao objetivo, a pesquisa é descritiva e, quanto aos procedimentos técnicos, foram desenvolvidas pesquisa bibliográfica e questionários para aplicar na pesquisa de campo, permitindo identificar necessidades e oportunidades de mercado focadas no usuário, a partir do potencial e vocação do artesanato local. Para desenvolver a abordagem teórica acerca das representações da Renda de Bilro, enquanto artesanato tradicional de Florianópolis, foram utilizadas, os estudos de Soares (1987) e Wendhausen (2015). Para compreender o ofício das rendeiras como Patrimônio Cultural, foram feitas consultas nos sites da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). As dimensões da Sustentabilidade são abordadas com base nas teorias de desenvolvimento Sustentável de Sachs (1993) e na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), além da mobilização de autores sobre economia circular e upcycling Braungart e McDonough (2002). Por fim, o trabalho utiliza-se da percepção de Design de Krucken (2009) e de Manzini (2008) associada à prática projetual de Merino, Varnier e Makara (2020).
Dessarte, o artigo se estrutura do seguinte modo: além desta introdução, na seção 2 compreendemos a Renda de Bilro enquanto artesanato tradicional, patrimônio cultural e atividade sustentável, na seção 3 será abordado o tema da moda circular e upcycling e na seção 4 será apresentado o projeto de inovação seguido das considerações finais.
SUSTENTABILIDADE
Artesanato pode ser considerado como “[...] toda atividade produtiva que resulte em objetos e artefatos acabados, feitos manualmente ou com a utilização de meios tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, qualidade e criatividade” (SEBRAE, 2010, p. 12). O produto final é resultado da manipulação e transformação de matérias-primas em pequena escala e, apesar da semelhança com outros, cada produto é único. A Renda de Bilro (Figura 1) é um tipo de artesanato feito com auxílio de ferramentas: (i) bilros; (ii) fios ou linhas; (iii) piques/desenhos; (iv) almofada; (v) caixote ou cavalete; e (vi) alfinetes. Os bilros são pequenas bobinas de madeira, manejadas aos pares em movimento rotativo, que tecem fios de linha e, deste processo, é construída a Renda. Para isso, além dos bilros e da linha, são utilizados na confecção da renda: o pique, que consiste no gabarito em papelão furado com o formato da renda que será produzida; uma almofada onde o pique é fixado, que geralmente é apoiada em um caixote ou cavalete; e os alfinetes que são utilizados para prender os pontos da Renda conforme o desenho do pique.
Para Soares (1987), a Renda de Bilro é considerada um artesanato tradicional por pertencer a uma comunidade de artesãs, em um trabalho de tradição, que foi transmitido de forma oral através das gerações; e uma arte popular que veio com as famílias açorianas para Ilha de Santa Catarina entre os anos de 1745 e 1748. O artesanato tradicional exprime um valioso patrimônio cultural acumulado por uma comunidade, um dos meios mais importantes de representação da identidade de um povo. É considerado patrimônio o que é reconhecido por um grupo social como referência de sua cultura e de sua história, presente na memória das pessoas do local (LUZ, 2016). Segundo a UNESCO o Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível compreende as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes. Na preservação do patrimônio cultural imaterial, é primordial cuidar dos processos e práticas, valorizando os saberes e conhecimentos das pessoas. No Brasil, o IPHAN é o órgão federal que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Em 2008, o IPHAN realizou o Projeto de Diagnóstico Documental do Patrimônio Cultural Imaterial de Santa Catarina, no relatório final foi apresentado uma lista com 126 atividades culturais que fazem parte das diversidades regionais com influências étnicas definidas. O ofício das Rendeiras figura na lista como atividade vigente e é considerado uma expressão do artesanato catarinense e, em Florianópolis, reúne a maior concentração de rendeiras no Estado de Santa Catarina (IPHAN, 2008). Um dos objetivos do Relatório Técnico citado foi organizar um banco de dados que subsidie ações de inventário e registro do patrimônio imaterial de Santa Catarina. Desde 2019 a Renda de Bilro Tramoia está em processo de reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial de Florianópolis junto ao IPHAN. Com base no que foi exposto, observa-se a importância do artesanato de Renda de Bilro para Florianópolis. Desta forma, na próxima seção vamos compreender os aspectos da sustentabilidade envolvidos na cadeia de valor e de produção da Renda de Bilro.
2.1 SUSTENTABILIDADE E O ARTESANATO RENDA DE BILRO
Sustentabilidade diz respeito a capacidade de sustentação ou conservação de um processo ou sistema. Para Okada e Berlim (2014) trata-se de um conceito sistêmico que envolve aspectos econômicos, socioculturais e ambientais, e, ademais, que direciona as atividades humanas para atender as suas necessidades e preservar o meio ambiente, o que exige o desenvolvimento produtivo e social dentro dos limites da capacidade do planeta de absorver e se regenerar, minimizando os impactos da ação humana, sem comprometer a satisfação das necessidades das gerações futuras. Sabe-se que o conceito de desenvolvimento, quando relacionado à sustentabilidade, é controverso. Portanto, elegeu-se como embasamento adequado para esta pesquisa os estudos de Sachs (1993), que define cinco dimensões para o desenvolvimento sustentável e os documentos elaborados pela ONU – o relatório Nosso futuro comum, conhecido como relatório Brundtland, e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que oferecem parâmetros de sustentabilidade.
Sachs (1993) aponta que o desenvolvimento de um país ou região deve se basear em suas próprias potencialidades, respondendo à problemática da harmonização dos objetivos sociais e econômicos com uma gestão prudente dos recursos ecológicos, ou seja, a preocupação com os aspectos sociais e ambientais deve estar no mesmo grau que os econômicos. Para o autor, as cinco dimensões da sustentabilidade devem ser consideradas simultaneamente ao planejar o desenvolvimento: a social, que objetiva reduzir as desigualdades, considerando o desenvolvimento em sua multidimensionalidade material e não material; a ambiental ou ecológica, que compreende o uso dos recursos inerentes aos variados ecossistemas compatíveis com sua mínima deterioração, para propósitos socialmente válidos; a cultural, que busca pluralidade de soluções, respeitando as especificidades de cada ecossistema, cultural e local; a econômica, que pressupõe a alocação e gestão eficiente dos recursos e um fluxo regular de investimento, absorvendo os critérios macrossociais e não apenas a lucratividade; e a espacial ou geográfica, que sugere uma relação mais equilibrada entre a configuração rural e urbana, a industrialização descentralizada e o estabelecimento de uma rede de reservas naturais e de biosfera para proteger a biodiversidade.
A proposta de cenários sustentáveis exige mudanças nos padrões de produção e consumo, e está relacionada ao desenvolvimento de atividades no plano cultural que promovam novos critérios e valores, ou seja, que busquem despertar a consciência do consumidor de que qualquer tipo de empreendimento humano precisa ser: ecologicamente correto, economicamente viável, socialmente justo e culturalmente diverso. A transição para sustentabilidade é um processo de longo prazo, multidimensional e complexo, no qual diferentes atores precisam ter objetivos comuns (CAMARGO, 2019). Nesse contexto, representantes dos 193 Estados-membros da ONU, em 2015, adotaram o documento Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, documento já aqui citado, em que reconheceram que a erradicação da pobreza extrema é o maior desafio global e requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável, e, ainda, comprometeram-se a tomar medidas ousadas e transformadoras para promover o desenvolvimento sustentável até 2030. Todos os países e grupos interessados devem atuar em parceria de forma colaborativa para implementar o plano. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram anunciados na Agenda 2030 e demonstram a escala e a ambição na busca por assegurar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas. Os 17 ODS são integrados e indivisíveis, e mesclam as cinco dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social, ambiental, cultural e territorial.
A Agenda 2030 e os 17 ODS representam uma das estratégias de transição, pois, embora sejam de natureza global e universalmente aplicáveis, devem dialogar com as políticas e ações nos âmbitos regional e local em diferentes setores. Nesse sentido, a UNESCO traça interconexões entre os patrimônios vivos e os 17 ODS que a comunidade internacional estabeleceu para 2030. Ciente da importância dos Patrimônios Culturais para a Humanidade, em 2003, a comunidade internacional adotou a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de modo a contemplar toda a herança cultural da humanidade.
Por conta disso, observa-se que a confecção de Renda de Bilro ou Bobina da Eslovênia, conhecida como bobbin lace (na língua inglesa), foi inscrita em 2018 na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial; a atividade é considerada uma habilidade artesanal e expressão criativa. Segundo a UNESCO, a confecção de Renda de Bilro possui funções terapêuticas, além de ser uma atividade ecologicamente limpa e voltada para sustentabilidade. A atividade da Renda de Bilro, da Eslovênia, se relaciona com 4 dos 17 ODS: “3 assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”; “5 alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”; “8 promover o desenvolvimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”; e “12 assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis”.
A UNESCO (2021) considera que o patrimônio cultural intangível, além de ser fonte de diversidade e de cultura, é também uma fonte inestimável de conhecimento comprovado pelo tempo sobre como viver em nosso planeta de forma sustentável e pacífica. Com base no contexto apresentado sobre desenvolvimento sustentável, serão analisadas três dimensões da sustentabilidade na atividade da Renda de Bilro de Florianópolis: a econômica, a social e a ambiental.
Segundo Canclini (1993), o artesanato conserva uma relação complexa entre sua origem e seu destino por ser um fenômeno econômico e estético que não é capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, porém é inserido no capitalismo como mercadoria. Para entender a Sustentabilidade econômica da atividade Renda de Bilro é importante conhecer sua história no contexto da cidade de Florianópolis. No princípio, quando chegou em Florianópolis, a produção da Renda de Bilro restringia-se às peças de utilidades domésticas, como toalhas de bandeja e de mesa, porta copos, cortinas e colchas. Já em meados do século XX, com o desenvolvimento crescente da cidade e, principalmente, do turismo, a Renda de Bilro passou a integrar o comércio local, aumentando sua produção e simplificando desenhos para adequar os preços.
Já no final do século XX, as rendeiras observaram seu trabalho perder força para os produtos industrializados, frutos da globalização, com valores muito mais acessíveis. Porém, de acordo com Projeto de Diagnóstico Documental do Patrimônio Cultural Imaterial de Santa Catarina, desenvolvido pelo IPHAN (2008), o ofício das Rendeiras é cultura vigente que concentra em Florianópolis o maior número de artesãs de Santa Catarina. Em março de 2011 foi instalado, no Centro Cultural Bento Silvério, o Centro de Referência da Renda de Bilro em Florianópolis, sob responsabilidade da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FCFFC), visando criar um espaço para valorização do artesanato (WENDHAUSEN, 2015). Existem, espalhados em Florianópolis, pontos de venda, dos quais podemos citar o Armazém da Renda no Mercado Público, a Casa da Renda em Santo Antônio de Lisboa, o Casarão das Rendeiras do Sambaqui, o Centro Cultural Bento Silvério e, na Avenida das Rendeiras na Lagoa da Conceição, ainda se encontram algumas lojas. Além desses pontos de venda, as rendeiras também recebem encomendas de forma independente e escoam sua produção em feiras, eventos, hotéis e em suas redes sociais.
Sobre os aspectos da sustentabilidade social, a Renda de Bilro é relevante no contexto da cidade de Florianópolis pelo seu valor histórico e cultural, mas, principalmente, pelas figuras das Rendeiras, que preservam a influência cultural dos primeiros imigrantes da Ilha de Santa Catarina e perpetuam o ofício de rendar. As rendeiras de Florianópolis têm histórias muito semelhantes de um passado recente composto pela vida simples e sacrificada, o trabalho iniciado ainda na infância, os modos de fazer o artesanato, as brincadeiras idílicas e as experiências acumuladas. Todos esses testemunhos remetem a “um lugar que não existe mais” e que só se perpetua nas memórias de quem os relata, representantes que são de toda uma geração de mulheres e homens. Assim, a conotação dos fatos traz consigo importantes aspectos sobre esse saber fazer tradicional do lugar e revelam um contexto sociopolítico e cultural no qual se inseriam à época (FIGUEIREDO, 2015). Vale ressaltar que existem programas abertos à comunidade, como oficinas e encontros dos grupos de rendeiras, que visam à transmissão dos saberes e à preservação da Renda de Bilro na sua forma simbólica, como irradiadora da cultura de Florianópolis.
Quanto à esfera ambiental do desenvolvimento sustentável, a produção da Renda de Bilro é uma atividade ecologicamente limpa e que assegura padrões de produção e de consumo sustentáveis, visto que a produção é artesanal e em pequena escala. A atividade está interconectada com a natureza, uma vez que envolve extração de matéria-prima para produção dos seus artefatos e ferramentas. O material utilizado é o mesmo desde a sua origem, os bilros são feitos de madeira, a linha de algodão (ainda é a mais utilizada), antigamente era fiada em rocas pelas próprias artesãs e atualmente é industrializada. Além dos bilros e da linha, são utilizados para confecção da renda o pique, que consiste no gabarito em papelão furado com o formado da renda que será produzida, que é fixado em almofada cilíndrica, comumente recheadas com capim de colchão ou a palha de bananeira. Outro elemento utilizado em grande quantidade são os alfinetes, também industrializados, que prendem o pique na almofada ao mesmo tempo em que sustenta, ponto a ponto, a linha que vai sendo rendada (MATSUSAKI, 2016).
A partir disso, percebe-se que a inovação voltada para a sustentabilidade requer um alto grau de participação social (MANZINI, 2008). Para promover a concepção de soluções sustentáveis, é necessário desenvolver uma visão sistêmica e integrar competências de diversos atores. O designer assume o papel de facilitador, ou agente ativador, de inovações colaborativas, promovendo interações na sociedade (KRUCKEN, 2009). Sob essa perspectiva, a próxima seção irá abordar habilidades e competências do design de moda para promover novos critérios para desenvolvimento de produtos baseados na economia circular.
3 MODA CIRCULAR E UPCYCLING
Compreende-se a Moda inter-relacionada diretamente com o Design, ambos de abrangência social expressiva nas sociedades contemporâneas, conjugando atividades criativas, transgressoras e disseminadoras que envolvem padrões simbólicos de desejo e de consumo. Para Okada e Berlim (2014), é preciso mudar o modo como se faz moda e transitar em contextos sociais incomuns, apoiar-se em valores culturais e em experiências práticas que estimulem o envolvimento e o cuidado ao, mesmo tempo em que melhorem a vida das pessoas. O sistema da Moda se encontra em processo de transição, de uma moda convencional, fundamentada no efêmero e no desuso sistemático (LIPOVETSKY, 1989), para uma moda sustentável, com base nas relações humanas, na qualidade de vida e na preservação do meio ambiente (CAMARGO, 2019). Porém essa transição rumo à sustentabilidade acontecerá por meio de um processo de aprendizagem social largamente difuso, atingindo todas as dimensões do sistema sociotécnico (física, econômica, institucional, ética, estética e cultural), sendo precedida de muitas descontinuidades locais até atingir uma escala global (MANZINI, 2008). Essa realidade exige de produtores e designers do século XXI uma nova postura na concepção dos artefatos e dos produtos e serviço, fazendo com que ampliemos o foco da nossa atividade do projeto em função de um mundo repleto de mercadorias e de um ambiente saturado de descartes em limites não mais aceitáveis (KRUCKEN, 2009).
Braungart e McDonough são os autores da principal obra de referência em projetos de desenvolvimento sustentável, Cradle to Cradle, lançado em 2002 – tradução livre: “Do berço ao berço” – que faz referência ao formato circular de produção em que um produto, em vez de ser descartado ao final da sua vida útil, retorna como matéria-prima da cadeia produtiva, seja através da reciclagem, do upcycling ou do downcycling. Os autores explicam que o conceito Cradle to Cradle vai além de regras governamentais de reciclagem, eles defendem que seja pensado o que será feito desse produto após seu ciclo de uso, seja ele um utensílio doméstico, um piso, um móvel ou uma roupa (SALGUEIRO; LIMA, 2021, p. 195). Na área da Moda, o desenvolvimento sustentável corresponde a um modelo de produção que diminui impactos sociais e ambientais, evitando o formato linear de produção caracterizado pelo ciclo extração de matérias-primas – fabricação – distribuição – uso – descarte. Tal modelo busca o formato circular de produção, considerando, desde as fases iniciais do projeto, estratégias para o fim de vida do produto que visam devolver os materiais com segurança de volta ao ambiente ou a um sistema de produção em circuito fechado. Em outras palavras, a peça descartada poderá, assim, retornar ao ciclo como matéria prima (SALGUEIRO; LIMA, 2021, p. 191).
Alinhado com os preceitos da sustentabilidade e da moda circular, o upcycling pode ser entendido como uma alternativa ecológica para dar novos significado e função a determinado material que seria descartado, transformando algo que está no final de sua vida útil em algo novo e de maior valor sem passar por nenhum dos processos físicos ou químicos característicos da reciclagem (VIALLI, 2013 apud PINHEIRO et al. 2018). Diferente da reciclagem – processo que gera um material de mesmo valor do original que lhe deu origem, como o vidro e o alumínio – e do downcycling – que reaproveita materiais descartados gerando um material com menor qualidade ou menor valor agregado, a exemplo do papel – o upcycling é o processo em que o reaproveitamento do material descartado gera outro material de maior qualidade ou maior valor agregado (BRAUNGART; MCDONOUGH, 2014 apud SALGUEIRO; LIMA, 2021, p. 192).
O objetivo do upcycling é evitar o desperdício de materiais potencialmente úteis, fazendo uso dos já existentes, o que reduz o consumo de novas matérias-primas durante a criação de novos produtos (BRAUNGART; MCDONOUGH, 2014 apud SALGUEIRO; LIMA, 2021) e proporciona outro destino ao material que antes iria para o lixo, processo característico principal da economia circular. Especificamente na Moda, o upcycling consiste na utilização de peças antigas ou de resíduos de produção que seriam descartados e fazer deles matéria-prima para novas roupas e acessórios, impedindo a geração de lixo e dispensando a necessidade de novas matérias-primas poluentes (SALGUEIRO; LIMA, 2021, p. 193).
Nicolini (2017) lembra ainda que a produção de peças e acessórios a partir do upcycling está diretamente ligada às manualidades que, de alguma forma, “ promovem e difundem a produção cuidadosa, delicada e ética de uma peça feita ou acabada pelas mãos de alguém” (NICOLINI, 2017, p. 166 apud SALGUEIRO; LIMA, 2021, p. 193). Para Salgueiro e Lima (2021), o contexto social, econômico e cultural em que o upcycling se insere vem provocando, na área da Moda, construções de significados e ressignificações por diversos sujeitos e grupos que são afetados por esse objeto.
É cada vez mais imperativa a necessidade de mudança de estilos de vida e dos modelos produtivos para reduzir o impacto ambiental e, para isso, é necessária uma transformação dada sobretudo na esfera social (KRUCKEN, 2009). É o comportamento do consumidor que vai moldar a demanda por produtos e serviços sustentáveis e esse consumidor passa, então, a entender ética e sustentabilidade em produtos e serviços como requisitos inegociáveis. A visão estratégica da sustentabilidade considera sistemas de produtos e serviços que envolvem desde os modos de produção e de distribuição até modos de consumo e de descarte e reuso, selecionando aqueles que possibilitam às pessoas viver melhor e consumindo menos recursos ambientais (KRUCKEN, 2009). O Design encontra o tema da transição em direção à sustentabilidade de modo potencialmente fértil e assume a complexa tarefa de mediar produção e consumo, tradição e inovação, qualidades locais e relações globais. Na próxima seção será apresentado o Projeto de inovação desenvolvido a partir da identificação da vocação e potencial das rendeiras de Bilro de Florianópolis.
4 PROJETO DE INOVAÇÃO PARA A RENDA DE BILRO DE FLORIANÓPOLIS
Considerando como ponto de partida o reconhecimento da relevância do ofício das Rendeiras para a cidade de Florianópolis, o objetivo deste projeto é identificar oportunidades de inovação para o produto artesanal da Renda de Bilro, não apenas sob o aspecto estético dos produtos e o projeto das necessidades do mercado focado no usuário, mas principalmente o projeto de viabilidade visando a sustentabilidade ambiental, econômica e social focada nas artesãs, valorizando a identidade, preservando a cultura e fomentando a economia local. Passamos, a seguir, à metodologia projetual do design.
4.1 METODOLOGIA PROJETUAL DO DESIGN
A abordagem projetual do design visa beneficiar simultaneamente produtores e consumidores, isso significa planejar ações que valorizem conjuntamente os recursos locais e o capital social, em uma perspectiva duradoura e sustentável em longo prazo. A metodologia aplicada no desenvolvimento do projeto foi uma adaptação do GODP aplicado à prática projetual no Design de Moda (MERINO; VARNIER; MAKARA, 2020). O GODP, conforme mostra a Figura 2, é uma metodologia cíclica com abordagem centrada no usuário, dividida em 8 Etapas, compreendidas em três grandes momentos: Momento Inspiração (Etapa -1: oportunidade; Etapa 0: prospecção; Etapa 1: levantamento de dados), Momento Ideação (Etapa 2: organização e análise dos dados; Etapa 3: criação e geração de alternativas), Momento Implementação (Etapa 4: execução; Etapa 5: viabilização; Etapa 6: verificação final).
A aplicação do GODP à prática projetual do Design de Moda pode auxiliar os designers na compreensão das reais necessidades dos usuários, reconhecendo suas capacidades e limitações, fazendo com que os projetos sejam mais efetivos (MERINO; VARNIER; MAKARA, 2020). Ademais, o objetivo do método, além de considerar o usuário como o ponto de partida, é garantir uma sistemática planejada, o que permite o levantamento, a organização e a análise consciente dos dados, fornecendo informações relevantes para o projeto e, assim, favorecendo a direção criativa e mercadológica no desenvolvimento do produto. No decorrer das etapas foram aplicadas o uso de ferramentas de Baxter (2000). Essa organização favorece o desenvolvimento do projeto, visto que possibilita extrair e converter os dados obtidos em requisitos de projeto (MERINO; VARNIER; MAKARA, 2020).
As adaptações foram feitas, principalmente, no que se refere a viabilização, pois, trata diretamente das dimensões da sustentabilidade econômica e social da produção artesanal da Renda de Bilro. Foi incluída uma etapa de pré-viabilização na primeira etapa do projeto na fase levantamento de dados e, na terceira etapa, de implementação, as fases de viabilização e execução foram invertidas, de modo que a viabilização se tornou a primeira etapa da terceira fase, dado que se trata de um trabalho manual que requer tempo para produção.
Além da viabilidade econômico-produtiva para todos os envolvidos na produção, tornou-se evidente no decorrer do projeto a necessidade de contribuir para tornar visível à sociedade a história por trás do produto, estimular o reconhecimento das qualidades e dos valores relacionados com um produto local e a sua importância para a comunidade de artesãs. Para Krucken (2009), contar essa “história” significa comunicar elementos culturais e sociais correspondentes ao produto, possibilitando ao consumidor avaliá-lo e apreciá-lo devidamente e desenvolver uma imagem favorável do território em que o produto se origina. Essa visibilidade pode contribuir para a proteção do patrimônio cultural e a diversidade das culturas, sendo, desse modo, um fator de preservação da herança cultural. Contribui também para a adoção e a valorização de práticas sustentáveis na produção, na comercialização e mesmo no consumo. Na próxima subseção serão descritas as etapas do projeto adaptado ao produto artesanal, serão apresentados os resultados do desenvolvimento do projeto até a fase de ideação, com os dados levantados em pesquisa analisados e convertidos em oportunidades de mercado e requisitos de projeto.
5 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A primeira fase, chamada de Inspiração, é composta por três etapas – oportunidade, prospecção e levantamento de dados. Na etapa oportunidade (-1), foi feita uma pesquisa inicial de macrotendências voltadas para o setor têxtil e de confecção desenvolvidos pela Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), o Programa de Desenvolvimento Industrial Catarinense 2022 - Rotas Estratégicas Setoriais que, entre as macrotendências, apresentou a Sustentabilidade e a apropriação de valores intangíveis como principais tendências de inovação para o setor. Também foi consultado o observatório FIESC, que apresenta os indicativos setoriais da indústria de Santa Catarina e destacou a herança cultural e moda, materiais avançados e os negócios em rede como as principais tendências tecnológicas e de mercado para o setor têxtil, confecção, couro e calçados.
Com a pesquisa inicial concluída, e identificadas as macrotendências para o setor, iniciou-se a etapa de prospecção (0), com o desenvolvimento de um projeto informacional. Todas as definições do projeto partiram da escolha do produto, focado nos valores intangíveis e na sustentabilidade social, econômica e ambiental do trabalho artesanal desenvolvido nas comunidades locais: a Renda de Bilro de Florianópolis. Posteriormente, em conversa com funcionária da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FCFFC) sobre a produção e demanda das Rendeiras da Lagoa da Conceição, ficou definido um grupo de seis rendeiras para desenvolvimento inicial de pilotos para viabilização de encomendas. Nesta etapa foi verificado a disponibilidade e custo da mão de obra das artesãs, além do entendimento da dinâmica encomenda/custo/prazo/pagamento. Importante destacar que foi necessário a autora redesenhar os piques para desenvolvimento das amostras, visto que o acervo de piques do Centro Cultural Bento Silvério, é em grande maioria fotocópias de peças prontas que reproduzem irregularidades e deformações ao serem colocadas na máquina fotocopiadora. Ainda nessa fase foi realizada pesquisa de matéria-prima no mercado local e a disponibilidade de opções ecologicamente sustentáveis. Importante mencionar que não foram encontradas no mercado local opções de linhas ecologicamente sustentáveis para a Renda de Bilro, desta forma foi utilizada linha 100% algodão mercerizado disponível no mercado de aviamentos. Foram produzidos 6 modelos de rendas, um modelo por rendeira, as encomendas levaram em média 2 semanas para ficarem prontas - metade do tempo planejado – e, desta forma, foi possível calcular o consumo de matéria por modelo. Todo o processo de encomenda foi coordenado pela funcionária da FCFFC, que informou ao final do trabalho, ter percebido um sentimento de satisfação e realização das rendeiras pelo interesse e valorização do seu trabalho.
A última etapa da fase de Ideação consiste no levantamento de dados (1). Para tal, o primeiro passo é definir os blocos de referência: produto, usuário e contexto. Sobre o produto, realizamos pesquisas de ponto de venda, levantamento de produtos ofertados e valores e, quanto ao usuário, foi aplicado um questionário para identificar o perfil e fazer o mapeamento de expectativas e necessidades dos potenciais clientes. No que se refere ao contexto, foram pesquisados os lugares onde o produto está inserido: desde sua origem, o território local onde é produzido, os canais de venda e ocasiões de uso.
A cadeia de valor constitui um sistema econômico que se organiza em torno de um produto comercial, conectando diferentes atividades necessárias para conceber e distribuir um produto ou serviço ao consumidor final. A coordenação dessas atividades, envolvendo as diferentes fases de produção, distribuição e descarte após o uso, é extremamente importante para garantir a qualidade e a quantidade correta do produto final (KRUCKEN, 2009). Uma das adaptações no GODP foi incluir na etapa de levantamentos de dados a viabilização para avaliar os piques (gabaritos das Rendas) disponíveis e as possibilidades de distribuição de desenvolvimento das peças piloto entre as Rendeiras, levantamento da disponibilidade e cálculo da mão de obra, consumo de linha/matéria prima, testes de uso e de costura.
A segunda fase do GODP, chamada de Ideação, é composta por duas etapas: organização e análise dos dados (2) e criação/geração de alternativas (3). O designer precisa ter a habilidade visionária de imaginar cenários e traduzi-los em visões desejáveis de produtos e serviços que se caracterizem pela relação com o território, o local onde é produzido, e com a sua comunidade. Os dados levantados em questionário foram analisados utilizando-se as ferramentas de Baxter para organização e tomadas de decisões. A oportunidade identificada no mercado, através de 174 respostas ao questionário, é a venda on-line da Renda de Bilro por meio de e-commerce e, então, foi elaborado o quadro 1, que relaciona as necessidades dos clientes, por ordem de prioridade, com os requisitos de produto e indicação de possíveis soluções e as respectivas possibilidades de inovação. Com a organização dos dados em forma de quadro, o foco do projeto é voltado para a necessidades dos clientes em ordem de prioridade, e, nesse caso, mostra que o consumidor quer um produto usável funcional, mas também confirma a tendência de que o consumidor está consciente e busca por produtos e serviços sustentáveis. Confirma-se o interesse por produtos e serviços que visam ética, a responsabilidade social, destaca-se o interesse dos entrevistados em conhecer a história por trás do artesanato, a cadeia de produção e as comunidades de artesãs que produzem as Rendas de Bilro de Florianópolis, além da disposição em adquirir produtos que fomentam a economia local e colaboram com comunidades tradicionais, pois compreendem o valor simbólico do produto artesanal.
O Quadro 1 apresenta os requisitos que o produto deve apresentar para atender às necessidades dos clientes e, nele, fica evidente o interesse do cliente em conhecer a procedência do produto, principalmente no que se refere às dimensões socioculturais, ambientais e econômicas: produção ética e valores intangíveis relacionados à produção do artesanato tradicional e o fomento à economia local. O Design pode contribuir direcionando o desenvolvimento de novos produtos, mas, principalmente, organizando uma rede justa, inclusiva e colaborativa de artesãs. Com base no quadro de necessidade dos clientes e requisitos que o produto deve apresentar para atender essas necessidades, foi identificada a seguinte oportunidade de inovação: aplicar a Renda de Bilro em peças de brechó ou de descarte, aplicando os conceitos da moda circular, aliando produção e consumo sustentável, recuperando peças com algum defeito e, assim, fazendo um upcycling de peças, ressignificando peças e artesanato tradicional ao mesmo tempo. A Figura 3 apresenta as etapas da transformação de um vestido que estava rasgado, para o qual foi desenvolvida e aplicada uma Renda de Bilro, o que ressignificou a peça, e o vestido que seria descartado se tornou matéria prima para uma nova peça.
Com os dados levantados e analisados, inicia-se a criação/geração de alternativas (3), segunda e última etapa da fase de Ideação do projeto. O primeiro passo é, com base nos dados coletados, desenvolver os moodboards[5] de cliente/ lifestyle[6] e produto, novamente ferramenta de Baxter (2000), que vai servir como direção criativa e mercadológica desde o desenvolvimento do produto até a estratégia de comunicação. O projeto de inovação desenvolvido para esta pesquisa, foi concluído com a apresentação do moodboard clientelifestyle.
O uso das Ferramentas de Baxter (2000), possibilitou extrair e converter dados obtidos na etapa de levantamento dados, organizar os dados de forma consciente, dando segurança para tomada de decisões e fornecendo informações que vão alimentando as etapas seguintes. Dando seguimento às etapas do projeto, com o moodboard de cliente e lifestyle é feito um briefing[7] dos produtos para orientar a geração de alternativas com o desenvolvimento de esboços de produtos para ser confeccionados.
A terceira e última fase de Implementação é dividida em três etapas: viabilização (4), execução (5) e verificação final (6). A primeira etapa da fase de implementação adaptada para o artesanato da Renda de Bilro é a viabilização dos produtos. Com os desenhos aprovados para desenvolvimento, é preciso avaliar a existência e a qualidade dos piques escolhidos e fazer os testes com as matérias primas, verificar as possibilidades de distribuição de produção entre as artesãs. A rede de Rendeiras já existe e é composta, na sua grande maioria, por senhoras da terceira idade organizadas entre os bairros. A Renda de Bilro é um trabalho que leva bastante tempo para ser feito e não pode ser exigida produção por hora, essa não é a finalidade do projeto, ao contrário, é respeitar o tempo, valorizar o artesanato, organizar e distribuir a demanda de trabalho de forma justa e ética entre as artesãs.
A segunda etapa da fase de Implementação para a Renda de Bilro é a execução (5). Existem as líderes, que distribuem trabalhos por encomendas – por meio do telefone celular elas se comunicam e, entre a vizinhança, entregam os trabalhos. Esta etapa compreende a produção das peças que serão utilizadas para fotos e para cálculo de mão de obra, consumo de linha/matéria prima, testes de uso e de costura. A execução é a fase que apresenta o maior desafio do projeto: formar uma rede de artesãs, pois não existe um banco de dados ou cadastro de artesãs dispostas a trabalhar sob encomenda. É possível organizar as demandas e distribuir encomendas entre os diversos núcleos e, com o amadurecimento do projeto, é possível desenvolver produtos de acordo com o potencial de cada grupo/núcleo. A verificação final é o último passo bem como a preparação para o início de um novo ciclo de desenvolvimento de produto. Com as peças-piloto em mãos, pode-se estudar a estratégia de comunicação e o preço final do produto.
O desafio do projeto foi conciliar as necessidades do consumidor em termos de qualidade, custos e acesso com os aspectos que caracterizam a produção artesanal, sem que ocorra a perda dos valores culturais envolvidos em sua produção. A proposta de cenários sustentáveis corresponde a mudanças de “estilo de vida” e está diretamente relacionada ao desenvolvimento de atividades no plano cultural que promovam novos critérios e valores, ou seja, ações que tendem a mudar comportamentos. Esse nível de interferência só pode emergir de dinâmicas complexas de inovações socioculturais nas quais os designers têm um papel importante, pois esses cenários devem fornecer inovações que atendam a critérios de qualidade que sejam ao mesmo tempo sustentáveis para o ambiente, socialmente aceitáveis e culturalmente atraentes para as pessoas (OKADA; BERLIM, 2014). Para projetar soluções para a dimensão ambiental, centrada na redução do impacto ambiental de materiais e processos, aventa-se a possibilidade de buscar matérias-primas ecossustentáveis e, sob esse aspecto, a atividade da Renda de Bilro apresenta potencial de produção e consumo sustentável por se tratar de produção em pequena escala geralmente com linha de algodão. Porém, evoluindo o entendimento da sustentabilidade ambiental em direção ao ciclo de vida do produto passou-se a considerar todas as etapas de produção, distribuição, consumo, ciclo de vida e descarte do produto, para reduzir o impacto ambiental ao longo dessas fases. Foi aí que se pensou na moda circular como proposta de inovação: dispor um serviço de ateliê de costura e upcycling de peças de descarte e brechó, com aplicação das Rendas de Bilro.
Ainda que o projeto não tenha encerrado o ciclo até a etapa de verificação final (6), conclui-se que o objetivo do projeto de inovação foi alcançado, originando uma metodologia adaptada, com abordagem centrada no usuário, desenvolvida a partir da vocação e potencial do artesanato tradicional local, a Renda de Bilro de Florianópolis. O GODP, aplicado à prática projetual do Design de moda, auxilia os designers na compreensão das reais necessidades dos usuários que começam a entender o conceito de sustentabilidade e despertar para um consumo consciente exigindo, ou pelo menos almejando, produtos e serviços que sejam resultado de uma cadeia ecologicamente correta, economicamente viável, socialmente justa e culturalmente diversa. Ressalta-se que os usuários são beneficiados com a pesquisa ao encontrar produtos adequados às suas necessidades e, assim, reafirma-se a importância e relevância da Moda e do Design para a sociedade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Design e Moda são campos relacionados às transformações sociais. Entretanto, é necessário compreender e questionar os mecanismos que alimentam a dinâmica da Moda, a efemeridade e obsolescência, o impacto ambiental e o ciclo de vida dos produtos, sua função cultural para identidade individual e social, visto que é necessário fortalecer a diversidade de padrões existentes para transformar as perspectivas sociais. Este estudo apresentou o desenvolvimento de um projeto para identificar oportunidades de inovação nas possíveis áreas de interferência do design de moda no campo do artesanato tradicional da Renda de Bilro de Florianópolis para estimular produção e consumo sustentáveis. Na Moda, cada vez mais a Sustentabilidade está sendo considerada como sinônimo de qualidade percebida, que compreende a ética e responsabilidade social, na cadeia de produção, combinada a ecoeficiência na gestão de matérias primas e processos.
Diante do exposto, neste artigo, ao identificar oportunidades de inovação, surgem novas questões que é importante serem aprofundadas em novos estudos: no que se refere à dimensão social quantas Rendeiras ativas existem em Florianópolis? Qual o perfil das Rendeiras de Florianópolis? Existe interesse por parte das Rendeiras de produzir novos modelos de Rendas de Bilro? Onde é possível encontrar os desenhos das rendas, os piques? É possível criar novos desenhos e propostas de produtos? Como ou quem pode desenhar novos piques? Ao colocar luz na valorização dos recursos locais pela análise de valor na cadeia produtiva, a pesquisa contribui para que melhor se entenda a complexidade existente no âmbito da atividade artesanal e o potencial do Design como ferramenta estratégica para desenvolver a vocação cultural, turística, folclórica e cultural da renda de Bilro para o desenvolvimento sustentável do Município de Florianópolis.
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Notas
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