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CORPO E ESTÉTICA: IMERSÃO EM UM ROLÊZINHO DO PASSINHO DOS MALOKA NO RECIFE
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 6, núm. 1, 2022
Recepção: 30 Abril 2021
Aprovação: 04 Novembro 2021
Publicado: 14 Janeiro 2022
Resumo: Este trabalho pretende costurar conteúdos resultantes de uma imersão etnográfica nos populares “rolêzinhos” do “Passinho dos Maloka” na rua Tauá, região periférica do bairro de Santo Amaro, na cidade do Recife, Pernambuco, em fevereiro de 2020, bem como o “pós-rolê” nas proximidades do baile, este situado na vizinha cidade de Olinda. Discute-se aqui, para além de evocar o florescimento do fenômeno do “Passinho” e do “bregafunk” em âmbito nacional, a estética, sobretudo o vestir, como dispositivo para construção de identidade, as narrativas corporais sexualizadas através da dança ritmada pelos grupos de sujeitos, racialização, gênero, cultura periférica pernambucana, bem como os temidos finais de “rolês”, nem sempre muito bonançosos a partir do método etnográfico como metodologia de pesquisa.
Palavras-chave: Passinho dos Maloka, Estética, Corporalidade.
Abstract: This work intends to sew content resulting from an ethnographic immersion in the popular “rolezinhos” of the “Passinho dos Maloka” in Rua Tauá, peripheral region of the Santo Amaro neighborhood, in the city of Recife, Pernambuco, in February 2020, as well as the “post -rolê ”in the vicinity of the “baile”, which is located in the neighboring city of Olinda. It is discussed here, in addition to evoking the flowering of the phenomenon of “Passinho” and “bregafunk” at the national level, aesthetics, especially dressing, as a device for identity construction, the sexualized body narratives through the rhythmic dance by the groups of subjects, racialization, gender, peripheral culture in Pernambuco, as well as the dreaded “rolês” finals, which are not always very positive from the ethnopgraphic method as a research methodology.
Keywords: Passinho dos Maloka, Aesthetics, Corporality.
Resumen: Este trabajo busca vincular contenidos resultantes de una inmersión etnográfica en los famosos “rolezinhos” del “Passinho dos Maloka” en la calle Tauá, en la región aledaña al barrio de Santo Amaro en la ciudad de Recife, Pernambuco, en febrero del 2020, pero también los sucesos “post-rolê” en las cercanías de las fiestas ubicadas en el límite entre las ciudades de Recife y Olinda. Además de recordar la aparición del fenómeno conocido como “Passinho” así como el “bregafunk” a nivel nacional, se discuten en este artículo la estética, principalmente en lo relacionado al vestido mientras instrumento de construcción de identidad, narrativas corporales sexualizadas a través de los ritmos creados por grupos de sujetos, discriminación racial, cuestiones de género, la cultura de barrios marginales del estado, así como los temidos finales de los “rolês”, generalmente nada positivos desde el método etnográfico como metodología de investigación.
Palabras clave: Passinho dos Maloka, Estética, Corporalidad.
1 INTRODUÇÃO
Nosso trabalho investiga, com o auxílio da observação participante, do método etnográfico, como ferramenta de pesquisa, a recente expansão e as principais particularidades do fenômeno do “Passinho dos Maloka” na Região Metropolitana do Recife no ano de 2020.[4]
No atual momento do nosso país, assim como no estado de Pernambuco, é perceptível um crescente entusiasmo atribuído ao florescimento de fenômenos musicais subalternos e de artistas que servem de espelho para um grande número de jovens, inclusive LGBTQIA+,[5] a exemplo de Mc Troinha, Shevchenko E Elloco e Victor Moury que exprime vivências LGBTQIA+ pro brega romântico que é, em sua origem, estilo delivrado do brega local. Como consequência, esses sujeitos obtêm um amplo alcance e reconhecimento, especialmente através de plataformas online como Youtube, Facebook, instagram e Tiktok, sendo o fenômeno do “Passinho”, através dos seus populares “rolêzinhos” da dança (os famosos “encontrinhos”) o mais recente e expressivo desses movimentos culturais periféricos contemporâneos, em que a corporalidade dos passos e o “Kit Maloka” (suas vestes e estilo particulares, customizações capilares e corporais) são, verdadeiramente, os elementos chave para a construção das linguagens estéticas exteriorizadas por esses jovens.
Em nossas observações, identificamos uma notória conveniência por representatividade e pertencimento desses grupos de jovens na medida em que, paulatinamente, recebem uma maior visibilidade e número de seguidores nas redes sociais, por meio dos passos de dança e da estética singular oportunizadas pelo “Kit Maloka”, do vestir e de outros aspectos de identidade. A partir dessa percepção, somos orientados para uma investigação acerca do surgimento, disseminação e vigor energético deste fidedigno movimento cultural subalterno a partir da imersão etnográfica e suportes bibliográficos. Deste modo, por intermédio de alguns embasamentos teóricos, a exemplo de Soares (2017) em seu amplo trabalho que versa sobre a cultura brega pernambucana e suas mediações socioculturais, Canclini (2006) que nos introduz algumas inquietações sobre nivelamentos culturais, Lipovetsky (2015) e a sua denominada era “Hipermoderna”, ou seja, hipermodernidade e Castilho (2007) que reflexiona acerca de moda, estilos e época, dentre outros levantamentos bibliográficos. Ademais, no transcorrer do documento, estaremos igualmente substanciados pelas fotografias desenvolvidas durante essa imersão que possuem como finalidade sinalizar os aspectos estéticos observados nas dinâmicas que ocorrem dentro dos movimentados encontros do “Passinho” pernambucano e suas mediações socioculturais.
Neste cenário, pretendemos investigar o “Passinho” junto ao grupo “Os Malokas de PX”, durante um dos “rolêzinhos” em Santo Amaro, Recife-PE, o baile da Tauá e ao pós-rolê, já na cidade de Olinda nos escritos que se prolongarão a seguir.
2 O BAILE DA TAUÁ E OS SEUS PERSONAGENS
Antes de realizar os apontamentos da nossa imersão, que notadamente funcionam como sustentáculos para demonstrar características ímpares do “Passinho dos Maloka” no estado de Pernambuco, necessitamos, previamente, realizar uma breve contextualização da gênese do estilo inserido no espectro das culturas subalternas no território nacional. Pois, a gênese da recente cultura do “Passinho” no Brasil remonta uma subdivisão da cultura do funk carioca, do qual este é grandemente influenciado. Segundo Fornaciari (2011), a história do funk pode ser segregada em três fases principais, a primeira, entre as décadas de 70 e 80, em que o movimento estava atrelado às questões raciais, a partir de uma evidente influência da black music e black soul[6] e a terceira fase, a partir da década de 90.
Forniciari (2011) acrescenta que a partir da terceira geração, em que o funk crescentemente se aproximava das classes mais abastadas, ao entoar sua luta por reconhecimento como cultura autêntica e ao se posicionar vigorosamente nas mídias e TV, o fenômeno foi sendo paulatinamente disseminando país afora. Nessa conjuntura, portanto, foi tomando forma algumas de suas variações, a exemplo do “Passinho”, primeiramente a partir de 2004 no Rio de Janeiro, todavia, obtendo maior notoriedade no ano de 2012, através do documentário “A Batalha do Passinho – O filme” de Emílio Domingos, e em São Paulo, por meio do “Passinho do Romano” em 2014 e nas cidades de Belo Horizonte e Recife um pouco mais tarde, a partir de readaptações específicas do estilo por volta do ano de 2017.
Pois, para uma absorção do fenômeno do “Passinho” pernambucano e da cultura do Bregafunk local é necessário não somente relacionar alguns breves conteúdos concernentes à origem do funk carioca, mas também clarificar a dicotomia existente entre “alta cultura” e “baixa cultura” que também é realçada no movimento do “Passinho”, como advertido por Nascimento (2017). Nesse contexto, a autora constata que os generosos esforços de grupos midiáticos em divulgação, que também alcançam as elites brasileiras, em enaltecer o movimento em sua legitimidade não são suficientes para que determinadas camadas sociais possam vir a “validar” tal autenticidade, haja vista que uma grande parcela populacional ainda sustenta a ideia de que tanto o funk quanto o Bregafunk possuem qualidades bastante questionáveis.
Outrossim, já existem pesquisas que versam acerca dos rolêzinhos em bairros periféricos e shoppings no sudeste do país, a exemplo dos estudos de Bueno (2015) por intermédio de análises em bairros da capital paulista, a exemplo de Pirituba, Cohab Taipas, dentre outros, que flertam, de certo modo, com os recortes geográficos periféricos que são abordados em nosso documento, bem como no parque do Ibirapuera, uma espécie de ponto de encontro habitual dos encontrinhos, ou “rolêzinhos”. Ainda, retomando esse contexto no panorama nacional, podemos também brevemente mencionar as descrições dos rolêzinhos em Shoppings Centers que se alastraram pela capital Paulistana no início da década passada conforme é apontado por Severi e Frizzarim (2015) em suas pesquisas acerca dos rolêzinhos paulistanos.
Neste prosseguimento e em consonância com a contextualização prévia do recorte geográfico nacional, o baile da Tauá, do qual nossa pesquisa se ocupa em explanar, chegou até nossa pesquisa de modo espontâneo, ao longo dos diálogos com os componentes do grupo “Os Maloka PX”[7], acontece basicamente sem recursos, a partir de elementos do improviso por volta das dezoito horas e é interrompido quase sempre às vinte e três horas, com direito a after[8] com divulgação por meio do “boca a boca” e exaustivo espalhamento por meio das redes sociais.
Aqui, não há nenhuma grande estrutura de palco ou iluminação, apenas a presença de paredões de som e algumas centenas de garotos e garotas que se encontram ali, através da dança, num “rolêzinho” notadamente modesto (ou talvez, mais raiz do que Nutella?)[9] mas que faz jus a sua fama, dada volumosa presença de jovens provindos de diversos bairros da região em busca de entretenimento numa sexta-feira à noite. Ao que parece, esse talvez seja o ingrediente-chave para o monumental êxito do “rolê”, para além do improviso, o fato de estar nos ambientes públicos e ocupar os espaços da comunidade, a gratuidade e a inexistência de grandes arranjos estruturais, componentes esses que também rememoram o famoso carnaval de rua de Olinda.
Nas ruelas estreitas, a circulação, não raras as vezes, torna-se uma verdadeira batalha, se deslocar foi, na generalidade, uma missão bastante árdua tanto para o pesquisador e mais ainda para o fotógrafo. As impressões primeiras são de que ocorre uma espécie de duelo por exibicionismo corpóreo através da dança, e uma das maiores razões que aguçam tantos jovens a comparecerem, para além dos ingredientes-chave do “rolê” (os paredões ressoando as músicas do momento e os “galerosos” ou “Maloka/Moleke”[10] e as “novinhas”[11] no estilo) é o flerte, o acesso à bebida alcóolica a baixíssimo custo (o famoso, três, ou quatro latões de cerveja por dez reais) e, não menos importante, o acesso, próximo à Agamenon Magalhães, avenida com grande circulação de linhas de ônibus com destino a diversos terminais integrados da Região Metropolitana do Recife.
As condições estéticas, as vestes, os acessórios, as estilizações capilares são, intrinsecamente, o maior sustentáculo externado pelos jovens adeptos ao “Passinho dos Maloka” e que, não diferentemente, também foram contemplados nessa imersão etnográfica. Por intermédio de alguns embasamentos teóricos e das fotografias desenvolvidas nessa imersão pretendemos demonstrar a potência que os aspectos estéticos possuem nas dinâmicas dos movimentados encontros do “Passinho”[12]. Isto posto, as fotografias, vinculadas ao detalhamento do pesquisador servirão como um proveitoso material para que o leitor possa se inteirar acerca das características particulares e, costumeiramente peculiares, exteriorizadas pelos jovens presentes no “rolê” da rua Tauá.
Ortiz (2000) observa que a oposição “homogêneo/heterogêneo” perde importância; é necessário, pois, entender como segmentos mundializados – por exemplo os jovens, os velhos, os gordos, os desencantados – compartilham costumes e gostos convergentes. “O mundo é um mercado diferenciado constituído de camadas afins. Não se trata, pois, de produzir ou vender artefatos para ‘todos’, mas de promovê-los globalmente entre grupos específicos.” Canclini (2006) dialoga com o autor pontuando que este sugere que se abandone o termo homogeneização para se falar de “nivelamento cultural” a fim de “aprender o processo de convergência de hábitos culturais, mas preservando a diferença nos níveis de vida.
Ao instaurarmos as observações com referência à estética dos sujeitos se faz necessário ponderar o conceito de “nivelamento cultural” acima proposto para que possamos estar aptos para interpretar as linguagens visuais que são desenvolvidas por esses jovens como agentes de “assemelhação”[13]. Pois então, o “estar na moda”, a partir dessa visão, não é estático e esses nivelamentos possibilitam, paulatinamente, um campo bastante rentável para o surgimento e multiplicação de outros nivelamentos e nuances visuais, frutificadas por meio da indústria do consumo e da moda. No baile da Tauá isto é notável em diversos aspectos estéticos que são compartilhados pelos jovens, como podemos notar na imagem abaixo: as camisas de times, os acessórios, as estilizações capilares e afins.
Nas imagens podemos notar que as customizações capilares funcionam como um fator de extrema diferenciação, constituindo vigorosamente o “Kit Maloka”, podendo ser comparado em nível de importância com as roupas e os acessórios de ostentação como os cordões de prata, os relógios grandes e chamativos e as joias que são, essencialmente, artifícios de ornamentação (aqui, sempre é importante falar sobre os valores e procedência, ou seja, quanto mais custoso, melhor). No “rolêzinho” da Tauá as camisas de time são corriqueiras para os meninos, as meninas usam blusinhas e shorts curtos, top-cropped, os chinelos unissex, cabelos diferenciados, cigarros e latinha de cerveja na mão, as marcas seaway (essa já famosa no estado) e a predileta entre todas: a Cyclone.[14]
Nessa continuidade, acerca do consumo e dos nivelamentos culturais, Lipovetsky (2015) versa sobre uma era “Hipermoderna” (Pós-modernidade), do consumo a partir da lógica da moda, de uma sociedade relacionada aos extremos, sendo esses extremos as emoções, as sensações, de uma chamada “era da estética e da arte” em que o consumo está em constante sintonia com a lógica da moda, uma “era da sedução e valorização do futuro”. Tal conceito, portanto, finda por nos afastar do presente, típico da pós-modernidade que, aqui é o que o autor chama de era “Hipermoderna”, um tempo mais íntimo ao presente, ao instantâneo e, concomitantemente, sendo capaz de desenvolver inúmeras trocas, ao passo que traz consigo, também, alusões provenientes do passado.
Os argumentos propostos pelo autor são interessantes para serem relacionados em diferentes camadas das sociedades, com diferentes espaços geográficos, inclusive nesta conjuntura. Como pode ser observado nas fotografias e na imagem abaixo, existe uma relação íntima de consumo e desejo pela marca Cyclone, adorada, idolatrada e desejada ao máximo nas periferias de Pernambuco, bem como para além do estado. Essa marca em específico, assim como algumas outras, operam como agentes propulsores de sedução de consumo para esses jovens pela lógica da moda, por meio da lógica da moda local, da identificação com outros indivíduos de suas comunidades que servem de espelho para esses grupos de sujeitos.
Cada uma das épocas históricas, cada uma das culturas e sociedades existentes instalam valores em sua forma de vestir e decorar seus corpos [...] os modos de combinar corpo e moda são documentos visuais, textos que falam de uma determinada maneira de ser e parecer, de valores de uma época. (CASTILHO, 2007 p. 14).
A partir do subsídio teórico ofertado por Castilho (2007), podemos refletir acerca da existência de uma determinada “idolatria” pela marca Cyclone, especialmente nas periferias da Região Metropolitana do Recife, há décadas, é interessante realizar uma análise um pouco mais minuciosa na imagem do jovem de costas com o nome e a logomarca da marca impressa na camiseta. Numa visualização mais desatenta não é possível perceber, mas numa segunda observação, somos capazes de constatar o nível de “veneração” alcançado: o logo da marca estampado na camiseta está igualmente replicado na estilização capilar realizada pelo sujeito fotografado[15], ou seja, nesse sentido, entende-se que, caso não possa estar usando a marca o tempo inteiro, tê-la marcada no corpo de algum modo não parece má ideia. Em outras palavras o uso dessas marcas (Cyclone, Seaway, Kenner) possuem, essencialmente, valor de ”assemelhação”, da necessidade de obter este objeto de desejo em específico, em outras palavras, o uso dessas marcas caracteriza uma espécie de “porta de entrada” no universo dos ”Maloka”, como eles costumam exaustivamente se autorreferenciar
Desta maneira, e como observado nas imagens acima, o corpo no baile da Tauá, associado a todos os elementos estéticos mencionados são componentes típicos e elementares para a exteriorização das suas práticas culturais singulares. A estética e o corpo são, com efeito, os denominados “dispositivos para construção de identidade e pertencimento”, pertencimento esse aos espaços urbanos, à comunicação, tanto verbal quanto corpórea, em que todos esses ingredientes, correlacionados, são eficazes para proporcionar um ambiente bastante fértil para operar as trocas simbólicas desse fenômeno da cultura pop periférica, como uma cultura subalterna efetivamente legítima.
Aqui, há um outro fato curioso que precisa ser mencionado quando falamos que o corpo sensualizado é o corpo que chama mais atenção. Para as garotas na rua Tauá, notoriamente, esse recurso é melhor executado a partir dos passos ritmados com ênfase nas nádegas[16], com o rebolado característico e as “sarradas”, que também fazem parte das coreografias masculinas. Entretanto, aqui, há uma explícita percepção acerca das questões de gênero: enquanto o destaque dos passos proporcionados pelas garotas é obtido através da atenção para os movimentos do bumbum, nas performances masculinas esse destaque raramente é observado ou ofertado.
Chamou a atenção de nossa pesquisa, que não somente gênero, mas também racialização foram, de fato, questões peculiares a serem observadas. Além desse fator, o corpo geográfico periférico também aparece como diferencial, especialmente, quanto aos desforços policiais e “higienização urbana e cultural”, empregados, não somente para o corpo geográfico e para os jovens (em sua maioria negros), reunidos na Tauá, como também para com inúmeros “encontrinhos” do “Passinho” do Bregafunk na Região Metropolitana do Recife (vide bairros periféricos de Olinda e Recife, bem como bairros ainda mais afastados da cidade de Recife como o Curado e Totó, assim como as cidades de Paulista e Jaboatão dos Guararapes, relativamente próximas, mas que também integram a região metropolitana do Recife).
3 O PÓS-ROLÊ NAS MEDIAÇÕES DO SHOPPING TACARUNA
Consequentemente e utilizando como suporte o que já foi apresentado sobre a percepção construída acerca do baile da Tauá, temos, portanto, o pós-rolê, ou after hour, como um fechamento das imersões que concernem essa longa noite (no sentido de que, conforme relatos, não há horário para acabar) de imersões etnográficas. A pesquisa, para além de demonstrar a rotina de ensaios, realizar entrevistas e fornecer uma maior aproximação dos jovens do grupo “Os Maloka PX”, também tenciona desenvolver essas descrições, tanto do famosíssimo baile da Tauá, bem como do pós- rolê, em que este não constava nos planos iniciais do pesquisador, mas que foram situações interessantes para compreensão e discussão de alguns argumentos acerca do “Passinho” associado ao brega local em outros recortes geográficos da Região Metropolitana do Recife.
O processo de ida para o after hour[17] se deu a pé, através de algumas ruelas da comunidade de Santo Amaro. Esta ida, em pequenos grupos, que hora ou outra se configuraram em multidões na medida em que os pequenos grupos se aproximavam foi realizada quase que integralmente a pé, mas com um grande número de pessoas se locomovendo de moto ou bicicletas (em ritmo lento), inclusive por Abravanel, nosso guia naquela noite e frequentador assíduo do baile, bem como do pós-rolê.[18]
Durante a saída da rua Tauá, que já estava praticamente vazia devido à interrupção do “rolêzinho” através da ação policial devido às leis que tratam acerca de ruídos que possam vir a perturbar o sossego e o bem-estar da população (quando saímos da praça, onde há o grande foco e das ruas colaterais à essa, havia pequenos grupos de pessoas sentadas pela praça e pelas calçadas socializando, mas já não podia ser percebido qualquer resquício sonoro do Bregafunk). Ademais, nos foi solicitado pelos “guias” do “Os Maloka PX”, bem como de outros jovens que estavam no evento, que a câmera fotográfica fosse guardada durante o percurso (essa já se encontrava praticamente descarregada, bem como nossos aparelhos telefônicos, considerando que o pós-rolê não constava nos esboços dos planejamentos iniciais para a realização dessa imersão etnográfica).
Apesar de estarmos com pessoas que eram conhecidas no “rolê” essa advertência foi oportuna no sentido de que, o baile, bem como o pós-rolê, é frequentado por jovens de diversos corpos urbanos da Região Metropolitana, o horário já se aproximava da meia noite e os grupos de pessoas que se deslocavam pelas imediações do córrego próximo ao Shopping Tacaruna poderia se fundir vigorosamente. No mais, o processo de ida se deu de forma bastante calma, os jovens brincavam, paravam no meio do caminho para dançar nas calçadas, e as caixas de som, as famosas JBL, (grande fenômeno na região e que também funcionam como recurso de diferenciação e ostentação, ou seja, quanto mais pujante o som da caixinha, mais em evidência estará o seu controlador) continuavam entoando as músicas que encorajaram a andança ritmada pelos corpos alcoolizados por cerca de vinte minutos de caminhada.
As impressões inaugurais é que no pós-rolê os corpos estavam ainda mais sexualizados do que na Tauá, assim como, os espaços mais amplos possibilitavam aglomerações um pouco mais espaçadas, o que facilitou eficazmente a circulação. Nos arredores do córrego (de um lado e do outro) alguns bares permitiam que a dança proporcionasse, em seu interior, uma troca de olhares, suores, salivas, bem como o “capital erótico” mencionado por Soares (2017) acerca das festas brega em Pernambuco. Perceptível também que grande parte das pessoas que estavam no “rolê” anterior também seguiram para o pós-rolê, como pode ser escutado diversas vezes pelo pesquisador “o rolê do córrego é pros fortes e não tem hora pra acabar”. A dança sensualizada, a paquera, o brega romântico, o Bregafunk e os domínios territoriais, o pós-rolê abarcava todos os elementos substanciais do “capital erótico”.
Dando continuidade às impressões introdutórias do pesquisador ao adentrar na rua principal que era demarcada pela divisão do córrego, com alguma ou outra passarela entre seu curso, podemos dialogar com o que Goffman (1988), chama de “identidade social” de determinadas cidades e locais ao redor do mundo. O autor nos reporta que, tradicionalmente Paris está associada ao termo “cidade da luz”, assim como Nova Iorque à expressão “Big Apple”, que se trata de aspectos das cidades que podem fornecer esses atributos taxativos que estarão muito provavelmente nos cartões postais e no imaginário de outras pessoas. Neste seguimento, podemos pensar o nosso país pelas belas imagens das paisagens naturais da nossa costa litorânea, especialmente do Rio de Janeiro, do Nordeste e seus pontos turísticos, mas também por nossas gigantescas favelas e o descaso com a infraestrutura urbana, especialmente nos bairros mais pobres das cidades.
É valioso associar esses conteúdos que Goffman (1998) nos fornece, pois, no corpo urbano tanto da Tauá, como das ruelas do entorno do córrego do pós-rolê foi notória a precariedade com a infraestrutura urbana dessas regiões periféricas, espaços urbanos esses que possibilitaram perigos para o pesquisador e o fotógrafo e, ainda mais para os jovens que se apertavam pelas ruelas e transitavam pelo córrego, cuja barreira de proteção já se encontrava nitidamente deteriorada. Como reportado acima, a câmera fotográfica descarregando não permitiu quase nenhum registro do pós-rolê que, todavia, dentre os poucos registros fotográficos, a imagem abaixo ilustra os componentes do grupo “Os Maloka PX” e alguns outros “parceiros” nas ruas do córrego, em que o pesquisador e o fotógrafo permaneceram até cerca de duas horas da madrugada.
Na cultura noturna do brega, a identidade cafuçu também é acionada pelos homens frequentadores. Muito embora, assim como a questão da periguete, o cafuçu não seja algo deliberadamente evidenciado. Trata-se de uma conveniência acionada em momentos específicos, sobretudo nos jogos de poder do flerte. Na verdade, há uma micropolítica na paquera: estamos diante de um embate de forças, de convencimento e conquista. “Ficar” com alguém na noite significa, antes de tudo, convencer alguém. (SOARES, 2017, p. 108-109).
No contexto do flerte, do convencimento, do “ficar” com alguém, segundo Soares (2017) propõe a partir de suas análises nos ambientes de festas bregas, ocorre um pouco diferente em questões terminológicas nas dinâmicas do “Passinho” do Bregafunk, sendo o termo “cafuçu”[19], um pouco mais ultrapassado e associado à ascensão do brega, especialmente nos primeiros anos da década 2000 e início da segunda década desse século. Nesse caso, foi nítido para a pesquisa que os mecanismos de “ativação” de um certo modo “Maloka” não eram bem delineados, na verdade, funcionavam de maneira sutil, ou a partir de um ou outro empenho maior na sensualidade e exibicionismo corpóreo no melhor estilo “Maloka” para fins de flerte. Com efeito, o termo e a postura do “Maloka” são identificados e recebidos sem muito desembaraço pelos jovens não somente do rolê da rua Tauá e do pós-rolê, mas do “Passinho” local e dos frequentadores dos “rolêzinhos” de maneira global.
Nessa conjuntura, ainda retomando o “link” possibilitado sobre as atribuições terminológicas de “cafuçus” para o adeptos ao brega, e “Maloka” para os adeptos ao Bregafunk, também foi cognoscível (com bastante entusiasmo por parte do pesquisador) que, nas ruelas, muitos bares e casas de show improvisadas (garagens, barzinhos, dentre outros espaços de improviso) ainda entoavam músicas do brega local, das mais antigas às atuais e, igualmente do brega romântico, do brega de dançar junto, do corpo colado ao outro. Apesar disso, dada às circunstâncias e a faixa etária predominantemente jovem, nos arredores o Bregafunk era o personagem principal da noite, o mais influente e ilustre personagem da madrugada, na medida que compartilhava uma harmoniosa “competição” com o brega melodioso nos bares e nas caixinhas de som.
As linguagens estéticas do pós rolê são semelhantes às observadas no baile da Tauá: cabelos extremamente estilizados ou, como muito dos jovens costumam denominar “cabelinho cortado na régua”[20], a ornamentação a partir de colares, pulseiras e relógios ostentação e as camisas de times de futebol e das “marcas-desejo” da região. Como no “rolê” anterior, as tatuagens também significam status e dispositivo de ostentação e diferenciação, já as garotas faziam uso de um visual um pouco mais sexy (no córrego foi interessante perceber que a faixa-etária se misturou um pouco, haja vista a presença de alguns locais que entoavam músicas do brega ao estilo “das antigas”). Nesse sentido, menores de idade ou jovens de no máximo “vinte e poucos anos” compunham a grande maioria dos frequentadores da Tauá, já no rolê do córrego foi reparado este intervalo de idades mais heterogêneo, o que foi refletido igualmente nos aspectos estéticos, em particular das garotas.
A foto acima da customização capilar em tom de loiro platinado exemplifica com maestria conceitos já copiosamente abordados anteriormente, que para adeptos do “Passinho” do Bregafunk as estilizações capilares são tão quão, e não raros os casos, mais importantes que as roupas quando utilizadas como artifício de distinção, identidade e, claramente, de atração de olhares das “novinhas” nos “rolês”. As “novinhas”, por sinal, não poupam esforços para atrair olhares na madrugada adentro, os shorts curtos, top-croppeds, transparências, decotes profundos, somados a um ou outro aspecto de “Maloka” a partir do uso dos chinelos da marca Kenner, casacos da Cyclone,[21] ou algum outro elemento mais masculinizado, o que talvez possamos designar como um hibridismo estético que transita graciosamente entre as esferas “Maloka” e “Periguete”.
A periguete não costuma ser bem-vista pelo público feminino e muitas vezes nem mesmo com o masculino. Taxada de vulgar, ocupa um espaço de identidade invisível, uma vez que reforça um deslocamento de um certo caráter moral e de um habitus socialmente inscrito. Trata-se de uma expressão bastante usada de forma cômica, em tom de brincadeira. (SOARES, 2017, p. 106).
Curioso recordar uma jovem avistada em uma das calçadas dançando sensualmente com um top-cropped transparente e fitas pretas cobrindo o bico dos seios. “Estou vestida assim porque eu quero, e não é porque estou com o bico dos peitos quase que pra fora que estou disponível pra quem quiser chegar, dançar, beijar, tocar, não dou ousadia à nóia,[22] danço com minhas amigas, se alguém me interessar essa pessoa saberá, mas eu mesma não dou enxerimento pra maloqueiro que quer pagar de doido, estou um pouquinho acima do peso mas é assim que é bom”, disse ela enquanto dançava freneticamente com um copo de cerveja cujo modus operandi imperava um “balança, balança, mas não cai”. É considerável relacionar essas questões estéticas e do descomedimento quanto à sensualidade, tanto para assuntos correlatos à temas feministas, bem como ao termo body-positive,[23] em grande evidência nos últimos anos, especialmente em 2020.
Em suma, é relevante citar que o fluxo de entrada e saída de pessoas pelas ruas e bares e de paredões e caixas de som foi constante, tanto pelo tempo que passamos no pós-rolê (cerca de duas horas), quanto pelo que nos foi comunicado pelos jovens que “trocamos ideias”. O pós-rolê dura até o amanhecer, (e aparentemente ainda havia bastante “fôlego” pelos bares e corpos que transitavam pelas ruas do córrego), apesar disso, o pesquisador, juntamente ao fotógrafo, deixaram o local de Uber por volta das duas horas da manhã (importante citar que o transporte foi gentilmente solicitado através do celular de Abravanel, considerando que nossos aparelhos telefônicos haviam descarregado). Por fim, e em definitivo, o pós-rolê[24] no córrego foi bastante cansativo, dada às exigências físicas do “rolê” anterior, em contrapartida, podemos considerá-lo como uma imersão curiosamente diferente do baile da Tauá e, felizmente, complementá-la.
CONCLUSÃO
Com o propósito de conclusão, utilizando como sustentáculo os escritos acima, é conveniente evocar as experiências de Ventura (1994) em seu livro “Cidades Partidas”,[25] todavia sem grandes prolongamentos, até mesmo porque o estudo não tem por finalidade se aprofundar nesse mérito. Nas experiências relatadas no livro, o autor é enfático ao expor sua opinião de que nenhuma operação de força fará sentido se a expulsão da minoria delinquente não se fizer acompanhar de uma ação de cidadania que incorpore socialmente a massa de excluídos. Para ele, a solução está em distribuir justiça social para muitos e repressão para poucos. O perigo aqui é prosseguir destinando a uns o que é devido a outros.
As experiências de Ventura (1994) em seu livro no Rio de Janeiro, podem ser transportadas para o atual cenário relativo aos temas que circundam a “periferia-centro” na Região Metropolitana do Recife há décadas e para essa experiência vivenciada pelo pesquisador no ano de 2020. Algumas questões ainda se comunicam bastante com o que foi posto pelo autor na obra dos anos noventa, entretanto outras têm sofrido algumas mudanças, bem como amparado no que é brilhantemente demonstrado por Villaça (2012) em seus escritos acerca da “popalização” da cultura periférica. Em suma, vivemos em décadas diferentes, realidades desiguais e, sobretudo, temos aqui espaços geográficos e personagens distintos, no entanto, alguns aspectos das questões que exploram o corpo social periférico, gênero, racialização e higienização cultural ainda dialogam excepcionalmente bem entre si, embora outras já não possuam mais as mesmas especificidades.
É interessante considerar e debater com esses tópicos para um melhor entendimento das demandas da ocupação dos espaços, do estar inserido nos mesmos, das “agendas” do pertencimento e do pertencer, bem como de uma certa seletividade ainda fortemente existente no tocante à força policial nos espaços periféricos ou centrais onde ocorrem os “rolêzinhos”. Urge, por conseguinte, uma sensação de que esses espaços são verdadeiramente razão de orgulho e felicidade para os jovens da rua Tauá e do pós-rolê, mesmo que em meio à tantas adversidades oportunizadas pelas desigualdades sociais e o modo nem sempre muito bonançoso em que o “rolê” é encerrado. Entretanto, na dança e no deleitamento do se “enfeitar” com suas características estéticas, o “Kit Maloka”, esses personagens notadamente adquirem ainda mais fôlego para resistir e agregar ao “rolê” e ao fenômeno do “Passinho”[26].
REFERÊNCIAS
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Notas
http://lattes.cnpq.br/7164428104501210; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3491-2940;