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BAILARINAS NEGRAS: CORES DO BALÉ E AS TRANSFORMAÇÕES NO VESTUÁRIO

Black Dancers: ballet colorsandthetransformations in clothing

Bailarinas negras: Los colores del ballet y lastransformaciones em la vestimenta

Cheyenne Cordeiro FRAJUCA1
Centro Universitário Moura Lacerda, Campus Ribeirão Preto – SP, Brasil
Marizilda dos Santos MENEZES2
Pós-Graduação em Design – UNESP, Brasil

Revista de Ensino em Artes, Moda e Design

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2594-4630

Periodicidade: Bimestral

vol. 5, núm. 3, Esp., 2021

modaesociedade@gmail.com



DOI: https://doi.org/10.5965/25944630532021267

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution 4.0 Internacional, que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Resumo: O presente estudo de caráter exploratório tem o objetivo de identificar as mazelas raciais deixadas pelo apego às tradições retrógradas no vestuário de balé. Abordando a problemática das cores na vestimenta do balé e as concepções acerca do que é considerado “nude” ou “cor da pele”, a pesquisa se baseia de forma qualitativa em conceitos de representatividade negra, história do balé e elementos do design de moda, a partir de estudos acadêmicos e pesquisa de mercado. Os resultados apresentam a excludente realidade que bailarinas negras vivem dentro do balé, e de que forma as empresas de dança e da área têxtil estão lidando com essas questões atualmente.

Palavras-chave: Balé negro, traje de balé, nude.

Abstract: The present exploratory study aims to identify the racial biases left by the attachment to retrograde traditions in ballet costumes. Addressing the problem of colors in ballet costumes and the conceptions about what is considered “nude” or “flesh toned”, the research is based qualitatively on concepts of black representation, ballet history and elements of fashion design, based on academic studies and market research. The results present the excluding reality that black dancers live inside ballet, and how dance and textile companies are dealing with these issues nowadays.

Keywords: Black ballet, Ballet costume, nude.

Resumen: El presente estudio exploratorio tiene como objetivo identificar los daños raciales que deja el apego a las tradiciones retrógradas en el vestuario del ballet. Abordando la problemática de los colores en los trajes de ballet y las concepciones sobre lo que se considera “nude” o “color de piel”, la investigación se basa de forma cualitativa en conceptos de representación negra, historia del ballet y elementos del diseño de moda, a partir de estudios académicos y de investigación de mercado. Los resultados presentan la realidad excluyente que viven los bailarines negros dentro del ballet, y cómo las compañías de danza y textiles están tratando actualmente estos temas.

Palabras clave: Ballet negro, Traje de ballet, Nude.

1 INTRODUÇÃO

A origem do balé remonta do século XV na Europa, quando a dança começou a ser metrificada e ensinada pela aristocracia, se desenvolvendo como forma de arte até chegar ao século XIX, onde o Movimento Romântico elevou sua concepção. Agregando novas tecnologias e novas temáticas, as apresentações desta fase se baseavam em contos trágicos e sobrenaturais, comuns ao período artístico. As personagens etéreas destas produções colaboraram para a imortalização da imagem da bailarina como conhecemos hoje; uma figura delicada, pura, flutuando na ponta dos pés. Para a caracterização dessas místicas bailarinas, a cor branca e os tecidos diáfanos foram predominantes, harmonizando com a estética europeia de mulheres caucasianas consideradas “ideais”. A escolha do tema da presente pesquisa se origina a partir de um questionamento social ligado à alarmante ausência de diversidade e representação multirracial em seus séculos de existência, acompanhando a trajetória do que mudou desde sua origem até os dias atuais, em especial no contexto europeu; berço do balé, e o norte-americano; onde as grandes mudanças neste sentido começaram a aparecer no século XX.

Com o objetivo de discorrer sobre o racismo estrutural presente em grandes instituições como o balé, o estudo se volta para as cores do vestuário, abordando a origem e a razão da roupa usada para a prática da dança ser como ela é, e porquê a coloração utilizada rejeita a existência de toda uma parcela de profissionais do balé, as bailarinas negras. Inserida no modelo qualitativo, a pesquisa se apoia em procedimentos metodológicos baseados em coleta de dados e revisão bibliográfica especializada nas áreas de teoria e história do balé, figurino e design de moda, conceitos sobre branquitude e racismo institucional.

O trabalho apresenta a ascendência europeia da fundação do balé, e como este se tornou uma arte esteticamente branca, consequentemente rejeitando ou sub-representando o corpo negro em suas produções Decorrente destes itens, a pesquisa se volta para as conceituações do que é chamado de “nude” ou “cor de pele” no design de moda, e como isso decai no vestuário específico de balé, mantendo as tradições e valorizando tons de pele branco em detrimento de tonalidades mais escuras. Após essa discussão, os resultados demonstram as perspectivas de mudanças, tardias, porém de extrema importância para a valorização de profissionais e implicação da diversidade dentro dos cânones do balé.

2 A ESTÉTICA BRANCA NO BALÉ

A estética geral representada no balé clássico pouco se alterou desde sua criação, o balé é uma forma de dança conhecida pela sua tradição e pela sua origem aristocrática, nas cortes francesas e italianas do século XV. Essas origens se contextualizam em uma sociedade cuja referência de beleza é baseada em arquétipos eurocêntricos, ou seja, na pele branca. Schneider (2013) aponta que no contexto do século XIX, os tons de pele mais escuros eram rejeitados pelas classes dominantes, consideradas símbolos de exposição ao sol em trabalhos braçais, presente nas classes marginalizadas.

Essa estética se manteve enquanto o balé europeu avançava, sendo retratado nas obras de Edgar Degas, culminando uma ideia visual reconhecida até os dias de hoje. “As cenas são imediatamente reconhecidas e simbolizam tudo o que o balé significa – o que é belo, perfeito, imaculado – tudo isso codificado pela pele branca” (PORTAL GELEDÉS, 2020).

No auge do Romantismo, o balé buscava representar a beleza etérea de fadas, princesas e camponesas por meio da dança. O figurino era composto por tecidos esvoaçantes e sapatilhas que elevavam o corpo envolto em tons claros, desde o vestido até a cor da pele, um padrão que se tornou permanente no balé. De acordo com Bourne (2017), os balés do período romântico continham conjuntos de dança chamados de ballet blanc, ou “balé branco”.

Tanto pela sua temática voltada ao sobrenatural, quanto pela personificação da cor branca, relacionada à pureza e feminilidade, estas cenas continham um corpo de baile completo de bailarinas vestindo trajes brancos, e por muito tempo, apenas bailarinas brancas se fizeram presentes nessa visualização. La Sylphide, Giselle, Chopiniana, O Lago dos Cisnes e o Quebra-Nozes são alguns exemplos de balés muito conhecidos que utilizam cenas de ballet blanc. (CERAGIOLI, 2020)

 ‘Ballet blanc’
de Chopiniana, 1930 (Ballet Russe de Monte Carlo)
Figura 1
‘Ballet blanc’ de Chopiniana, 1930 (Ballet Russe de Monte Carlo)
CERAGIOLI, 2020, p. 30

Segundo Friedman (2015), a branquitude e o balé historicamente reforçaram uma construção mútua de superioridade.Branquitude esta que, de acordo com Cardoso (2010), se refere à identidade racial branca, um lugar de privilégios simbólicos e palpáveis que contribuem para uma construção social discriminatória e racista. O balé, que é historicamente percebido como belo e alta arte, foi desenvolvido desde o Renascimento com o corpo branco em seu centro metafórico, tanto em sua estética quanto na trama cultural das histórias contadas no palco. A construção histórica de um corpo de balé branco visto como “ideal”se relaciona com a visão europeia de esculturas gregas e romanas que, segundo estudiosos da dança, é a fonte principal de inspiração para os princípios de “forma humana ideal” e cânone de beleza estética. (BOURNE, 2017)

Ideias de que a pele branca tem alguma superioridade estética foram implantadas na sociedade e são facilmente percebidas em culturas pós-coloniais, onde Bourne (2017) aponta que mulheres procuram branquear ou clarear a pele, para parecerem mais bonitas. O que nos abre um paralelo com alguns hábitos nos bastidores do balé, onde o talco é utilizado como maquiagem corporal, nos casos onde o efeito desejado é a pele extremamente branca. “As bailarinas utilizam talco ou base branca na pele com o objetivo de parecerem figuras etéreas” (SCHNEIDER, 2013, p. 141)

2.1 Estereótipos e a sub-representação dos bailarinos negros

O balése desenvolveu ao longo dos séculos se mantendo como uma arte de elite, predominantemente caucasiana no contexto europeu e norte-americano. Robinson (2018) em seu recente estudo aponta para a estatística estadunidense, onde as mulheres negras ocupam menos de um espaço para cada cinquenta dançarinas nos palcos. A cor da pele fornece um conjunto de privilégios obtidos pela opressão, e muitas vezes invisíveis para os brancos, conferindo benefícios e oportunidades indisponíveis para minorias raciais (WADE; SHARP, 2010).

Os dançarinos negros foram historicamente excluídos e permanecem gravemente sub-representados nesta indústria, através do controle de imagens, discriminação, marginalização e rejeição. A partir do período clássico, algumas temáticas começaram a encenar narrativas não-ocidentais, porém a partir do ponto de vista eurocêntrico e estereotipado. Desde então, bailarinas negras no contexto europeu e norte-americano são escolhidas para papéis com estereótipos raciais, papéis particularmente exóticos como a “dançarina árabe” de O Quebra-Nozes. A dança também chamada de “Café”, é considerada inclusive, erótica, em algumas versões, onde a dançarina move seu copo de maneira sensual em torno do dançarino masculino, vestindo trajes orientais com a barriga a mostra, detalhe bastante incomum em figurinos de balé (ROBINSON, 2018).

Alguns outros exemplos de personagens estereotipadas reservadas para as dançarinas não-caucasianas é podem ser vistos em balés como “La Bayadère”, em uma dançarina indiana e em “Esmeralda” no papel de uma cigana. Muito raramente, papéis de protagonistas inocentes e delicadas são dados a bailarinas negras, o mesmo acontece com bailarinos masculinos, muitas vezes escalados para papéis agressivos, ou papéis onde a caracterização os esconde por completo, como o Rei Rato de O Quebra-Nozes ou o lobo de A Bela Adormecida (THE GUARDIAN, 2012).

Dança “Café” Árabe de O
Quebra-Nozes das companhias Atlanta Ballet e EnglishNational Ballet respectivamente
Figura 2
Dança “Café” Árabe de O Quebra-Nozes das companhias Atlanta Ballet e EnglishNational Ballet respectivamente
Desenvolvido pelas autoras[3]

Outra face desta problemática é a apresentação de bailarinos e bailarinas brancas caracterizados vulgarmente para papéis de personagens chineses ou espanhóis por exemplo, mistificando povos não-caucasianos, como se o corpo branco fosse algo neutro, universal, capaz de performar tudo que está “fora” de sua classificação. Cardoso (2010) explica este pensamento, onde a branquitudenão é uma identidade marcada, o branco não se encaixa em grupos raciais, como muitas vezes são caracterizadas as minorias étnicas. Ou seja, o branco é o neutro, um “padrão normativo único”

De acordo com Bourne (2017), esses padrões de elenco normalizam a exclusão dos bailarinos negros dos papéis mais celebrados e visíveis no balé, exemplos que contribuem para a invisibilidade do corpo negro nos palcos, e para o fato de que muitas gerações de bailarinos não progridem no balé devido às ideologias eurocêntricas que ainda estão ativas na sociedade em geral, bem como nas principais empresas de dança. Para Viana (2006) a segregação de grupos não-brancos promove a alienação, uma ferramenta eficaz de racismo.

Bourne (2017) afirma que analisar a ideia de brancura no balé é importante para determinar se as ideologias eurocêntricas ainda contribuem para decisões atuais dos diretores artísticos, ao auditar dançarinos negros no balé tradicional de repertório. É uma forma de destacar os efeitos do racismo institucional na profissãonos dias de hoje, em um contexto europeu e norte-americano. Essas percepções eurocêntricas dentro do balé reproduziram e perpetuaram uma ideia de superioridade que contribuiu para a lenta progressão de bailarinos negros, em decorrência de uma construção histórica que associa o conceito de beleza, pureza e arte refinada, à uma estética prioritariamente branca.

O bailarino da companhia britânica Royal Ballet, Carlos Acosta, aponta que, mesmo quando uma bailarina negra é escolhida como membro da companhia, os organizadores nem sempre a escalam adequadamente. Segundo ele, ainda existe essa retrógrada mentalidade, principalmente com os diretores, de que a bailarina negra no meio de um bando de cisnes brancos de alguma forma alteraria a harmonia(THE GUARDIAN, 2012). Viana (2006) cita a autora Lélia Gonzalez quando aponta que no racismo, a primeira coisa que se percebe é a naturalização: ideias pré-concebidas não são questionadas, e sim facilmente assimiladas como naturais. Como achar natural que haja, nas palavras da autora, o “lugar do negro”, e que este lugar seja o inferiorizado.

3 A ROUPA “COR DE PELE”

A problemática então decai no vestuário, para além dos belos vestidos no palco, a base do traje de uma bailarina é composta por meia-calça, sapatilha e collant. Tradicionalmente, estes itens possuem uma coloração rosa clara, muito próxima ao tom da pele branca. Segundo Vakani (2014), os profissionais de balé indicam que a meia-calça de cor rosa é usada para melhor visualização da musculatura das pernas, outros associam a cor com o tom que melhor se adequa à pele, simulando uma nudez contida. Pele esta branca,predominante no balé. A cor rosa, porém, não de adequa em nada aos tons de pele negra.

Estas meia-calças de cores claras como rosa e pêssego são frequentemente chamadas de “cor de pele”, o que reforça um conceito de neutralidade da brancura, a pele negra não é representada no tom genérico de “cor de pele” e nem no mais recente termo “nude” (WADE; SHARP, 2010). A tendência de moda ficou popular com roupas e sapatos em tons de bege ou champagne por volta da década de 2010, trazendo como conceito, o pouco contraste entre a cor da peça e a cor da pele de sua portadora. A linguagem de blogs denominou estas peças como “nudes” ou “cor de pele”,mesmo em exemplos onde uma mulher negra a veste, e seu tom de pele é claramente diferente da roupa vestida.

Na indústria da moda, os produtos vendidos como “nude” referem-se à uma cor específica, que só se aplica ao tom de pele de pessoas brancas, o que de acordo com Vakani (2014), exclui descaradamente pessoas de tons de pele diferentes daquele idealizado. Wade e Sharp (2010) afirmam que isso evidencia a ideia de o branco é o neutro; a pele branca é chamada apenas de pele, enquanto a pele de pessoas não brancas sempre tem um termo adicional, como pele escura, pele negra.

A consequência desse pensamento limitado é que por muito tempo, mesmo após a tendência de roupas supostamente “cor de pele”, a população negra ainda não encontrava produtos pensados para seus variados tons de pele. Descasos deste tipo refletem certas perspectivas que invisibilizam pessoas negras e ignoram suas especificidades. (VIANA, 2010).

Na indústria do balé isso se torna um agravante, já que essas peças de vestuário fazem parte do equipamento de trabalho das bailarinas. Robinson (2018) destaca que há um padrão de rejeição das mulheres negras no balé ao tentar encontrar meias-calça, collants e sapatilhas que combinem com seu tom de pele.

Por muitos anos essas mulheres precisaram pintar seu próprio equipamento de trabalho para que ficasse adequado à cor de sua pele, passando maquiagem em suas sapatilhas e meias, porque o traje fornecido era implicitamente branco. Mão de obra e recursos estes, gastos em uma atividade na qual bailarinas brancas nunca precisaram se preocupar, já que sua cor de pele é a considerada “neutra”.

Bailarina
pintando sapatilha de ponta
Figura 3
Bailarina pintando sapatilha de ponta
New York Times, 2018

4 PROSPECTOS DE MUDANÇA

No contexto estadunidense do século XX, os horizontes do balé se ampliaram com a chegada de George Balanchine, o célebre coreógrafo fundou na década de 1940 o New York City Ballet, e integrou aos ensinamentos acadêmicos, elementos da dança contemporânea. De acordo com Bourne (2017), Balanchine mudou o conceito de balé americano do corpo do dançarino ideal a partir de sua imagem original exclusivamente europeia, para ele, o maior exemplo era a dançarina Josephine Barker. Balanchine procurava a flexibilidade e desenvoltura presente nas danças negras, com movimentos mais orgânicos e maleáveis, segundo Robinson (2018), Betty Nichols foi a musa do coreógrafo nas turnês europeias, sendo a primeira bailarina negra na Escola de Balé Americana, em 1943.

A falta de representatividade motivou a abertura de projetos independentes para treinamento de dançarinos multirraciais, e para valorização desses profissionais. Um dos mais importantes é o Dance TheatreofHarlem, fundado 1968 após o assassinato de Martin Luther King. Arthur Mitchel foi o coreógrafo responsável, e influenciou a fundação de outros projetos posteriores.O Dance TheatreofHarlem transgrediu a regra de trezentos anos, ao vestir seus bailarinos no palco com meia-calças e sapatilhas na cor de suas peles, e não rosa-claro. Esta característica se tornou permanente nas produções da companhia, mas ainda é uma exceção entre as empresas de balé atuais (PORTAL GELEDÉS, 2020).

Bourne (2017) afirma que essas representações são fundamentais para a motivação de novos profissionais, as crianças negras passam a ter modelos que as representem, que as aspirem como inspiração, ocupando espaços antes vistos como exclusivos da alta arte e elite. Segundo Robinson (2018), a norte-americana MistyCopeland tornou-se a primeira bailarina principal negra no American Ballet Theatre e atualmente é um dos nomes mais influentes de toda a indústria. Mas apesar de seu sucesso como uma bailarina negra de alto nível, as mulheres negras continuam gravemente sub-representadas nas companhias de balé americanas. Em sua pesquisa quantitativa baseada em companhias de balé norte-americanas, Robinson (2018) obtém dados de que menos de 5% das bailarinas em grandes companhias nos Estados Unidos são mulheres negras. Em algumas empresas, elas estão totalmente ausentes.

MistyCopeland
Figura 4
MistyCopeland
NYC Dance Project

4.1 Mudanças no Vestuário

As sapatilhas de ponta são um importante reflexo dos códigos de vestimenta presentes no balé. Introduzidas por volta de 1820, expandiram a técnica das bailarinas e criou no palco uma ilusão de leveza, como se a figura feminina pudesse flutuar enquanto dança (SCHNEIDER, 2013). A sapatilha, assim como a meia-calça, segue o padrão de cor clara, no intuito de alongar a figura feminina e manter uma linha visual vertical, tão importante no balé.

Foi preciso séculos de mudanças sociais para que tanto as companhias de dança quanto designers da área atuassem em mudanças pensadas para as bailarinas negras, só então em 2017, surge uma paleta de cores mais ampla para sapatilhas de ponta em algumas empresas como a norte-americana Gaynor Minden e posteriormente, a britânica Freedof London[4](ROBINSON, 2018).

Embora o balé exista há séculos, faz poucos anos que começaram a ser fabricadas sapatilhas em tons de marrom e bronze para bailarinas negras. Um detalhe que mostra a pouca diversidade racial existente nessa disciplina artística. (EL PAÍS, 2019)

Além das reivindicações feitas pelas bailarinas negras integrantes das companhias de balé, outro fator que pode ter influenciado as empresas de vestuário de dança a lançarem produtos com uma maior amplitude de cores é uma coleção da grife francesa Louboutin[5]. Desde 2013, a marca afirma que o conceito de nude e cor de pele não é um tom, mas um espectro de cores que se aproximam da cor de pele humana, desde o ‘porcelana’ até o marrom mais escuro. Em 2016 então a marca lança uma coleção de sapatilhas, a campanha inspirada no balé mostra modelos vestindo tutus e collants, com uma grande variedade de cores, cada tom de pele vestido com seus respectivos nudes. (PORTAL GELEDÉS, 2016)

Após isso, a partir de 2017, mais marcas de sapatilhas de ponta começaram a fabricar seus produtos em outros tons além do rosa tradicional de balé. A bailarina brasileira Ingrid Silva, integrante do Dance TheatreofHarlem alegou a sensação de dever cumprido e revolução com a chegada de suas primeiras sapatilhas de cor adequada a sua pele. Após onze anos tingindo-as manualmente, a bailarina afirma a importância da diversidade e do avanço dentro do mundo do balé. (EL PAÍS, 2019)

Coleção de
nudes da Louboutin
Figura 5
Coleção de nudes da Louboutin
Portal Geledés, 2016

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como principal objetivo abordar a questão das cores dentro da vestimenta do balé, e como elas se tornaram um fator de exclusão para profissionais negras dentro da indústria da dança. Analisando a estética do balé desde sua origem, é possível perceber uma supremacia de tons claros tanto nas peças de roupa quanto na pele das bailarinas. As pesquisas relacionadas ao conceito de nude demonstraram que as peças de vestuário caracterizadas como ‘cor de pele’ são em sua maioria, peças de cores claras referentes apenas ao tom de pele caucasiano.

Fazendo a ligação entre essas duas problemáticas, vemos que o tom de pele negro foi dissimuladamente ignorado pelas empresas de vestuário e companhias de balé no contexto europeu e norte-americano, que por mais de séculos mantiveram tradições retrógradas e excludentes em relação à vestimenta utilizada na prática desta dança clássica

Levando em conta que se trata de uma arte secular, com seus trajes tradicionais derivados do século XIX, é impressionante entrever que só há alguns anos as empresas começaram a considerar a cor de pele das bailarinas negras na confecção dos trajes de balé. Um passo importante, dado à custa de muito clamor, e ainda parte de um longo caminho para que as bailarinas negras possam ocupar cada vez mais papéis de destaque e consagração na arte do balé, sem serem prejudicadas pela cor de sua pele.

REFERÊNCIAS

BOURNE, S.M. Black British Ballet: Race, Representation and Aesthetics. London: University of Roehampton, 2017.

CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista. Revista latinoamericana de ciencias sociales, niñez y juventud. juv. 2010, vol.8, n.1, p.607-630. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1692715X2010000100028&lng=en&nrm=is. Acesso em 10 ago. 2021

CERAGIOLI, E.M. The Ballet Blancs. Washington:Tacoma City Ballet Library, 2020.

FINALMENTE alguém sacou que para ser ‘nude’ um sapato deve variar de acordo com o tom de pele. Portal Geledés, 11 abr. 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/finalmente-alguem-sacou-que-para-ser-nude-um-sapato-deve-variar-de-acordo-com-o-tom-de-pele/. Acesso em 13 abr. 2020

FRIEDMAN, Sharon. Post-Aparthied Dance: manybodies, manyvoices, manystories. Cambridge: Cambridge Scholars Publisher, 2015.

GOLDHILL, Olivia.; MARSH, Sarah. Where are theblack ballet dancers?.The Guardian, London, 04 set. 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 de jan. 2021

MARTÍNEZ, H.L. A alegria da bailarina Ingrid Silva ao receber as primeiras sapatilhas da cor de sua pele. El País, 04 nov. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/04/cultura/1572860654_696874.html. Acesso em: 15 de ago. 2020

ROBINSON, S. Black Swans: Black female ballet dancers and the management of emotional and aesthetic labor. California: UC Santa Barbara, 2018.

SCHNEIDER, Thaissa. Moda e ballet clássico: um estudo sobre figurinos. Moda Palavra. v.6, n.11, jan. 2013. Disponível em: . Acesso em 11 jan. 2020

SEHRA, R.K. Como as bailarinas não brancas estão mudando a paleta de cores da dança. Portal Geledés, 03 mar. 2020. Disponível em: Acesso em: 12 de abr. 2020

VAKANI, S.J. Redefining Nude. University of Texas at Austin, 2014.

VIANA, E.E.P. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez 1970 – 1990. Dissertação (Mestrado) – IFCS/UFRJ/ Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Rio de Janeiro, 2006.

VIANA, Elizabeth. Lélia Gonzalez e outras mulheres: Pensamento feminista negro, antirracismo e antissexismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 1, n. 1, p. 52-63, jun. 2010. ISSN 2177-2770. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2021.

WADE, L.; SHARP, G. Flesh-Toned. Sage Journals, 2010.

Notas

[1] Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Design na FAAC - UNESP. Docente no curso de Moda do Centro Universitário Moura Lacerda, Campus Ribeirão Preto – SP/ lattes: 6951677763240447/ ORCID:0000-0002-5794-0031/e-mail: cheyennecfrajuca@gmail.com
[2] Docente do Programa de Pós-Graduação em Design – UNESP. Doutora e Mestre pela USP. Coordenadora do LEMODe – Laboratório de Estudos de Meios e Objeto de Design/lattes:4760173147289270 /ORCID: 0000-0003-4242-0698/e-mail: marizilda.menezes@unesp.br
[3] Fontes:artsatl.org e dancetabs.com respectivamente
[4] No Brasil, marcas como a “Só Dança” e “Evidence Ballet” comercializam sapatilhas com variação de cores de pele. Outras marcas bastante conhecidas e comercializadas como a Capezio e a Millenium não oferecem variação de cor.
[5] Presente em 32 países, incluindo o Brasil.
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