Aberturas Transversais
Planejamento, execução e registro de entrevistas sobre design de moda: pesquisa junto a empresas no Brasil e na Alemanha
Planning, implementation, and record of interviews on fashion design: research with companies in Brazil and Germany
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 3, núm. 1, 2019
Recepção: 29 Maio 2018
Aprovação: 14 Novembro 2018
Resumo: O presente artigo consiste no relato da experiência de abordagem de empresas de moda para desenvolvimento de entrevistas junto a designers e diretores criativos. A pesquisa em questão teve como objetivo a coleta de dados para o desenvolvimento de tese doutoral em cotutela no Brasil e na Alemanha. O contato com as empresas e, principalmente, os desafios obtidos na criação e seleção de estratégias e ferramentas para a pesquisa qualitativa e de cunho antropológico levaram à redação deste artigo. Seu objetivo, portanto, consiste em relatar o ocorrido em prol de servir como referência para futuras investigações qualitativas na área de design, junto a empresas de design de moda.
Palavras-chave: Entrevista, Design de Moda, Teoria Fundamentada nos Dados.
Abstract: This paper reports the experience of approaching fashion companies to develop interviews with designers and creative directors. The objective of this research was to collect data for the development of a doctoral thesis in a joint Ph.D. in Brazil and Germany. The contact with the companies and, predominantly, the challenges faced in the creation and selection of strategies and tools for the qualitative and anthropological research led to the writing of this paper. Its aim, therefore, was to report the occurred in order to serve as a reference for future qualitative investigations with fashion companies in the field of design.
Keywords: Interview, Fashion Design, Grounded Theory.
1 INTRODUÇÃO
A técnica da entrevista corresponde a uma modalidade de coleta de dados geralmente aplicada à pesquisa qualitativa. Nem todas as situações de pesquisa qualitativa são adequadas à investigação por meio de entrevistas. Todavia, entrevistas seriam “fundamentais, quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados” (DUARTE, 2004, p. 215). De modo mais específico, a teoria, abordagem de pesquisa e metodologia intitulada Grounded Theory – traduzida para os idiomas português e espanhol como Teoria Fundamentada nos Dados, TFD – sugere a modalidade de entrevista para coleta de dados em profundidade, apesar de não excluir outras técnicas, tais quais: observação participante, conversações informais, pesquisas documentais, focus groups e formas alternativas de observação (SONEIRA, 2007; GODOI; BANDEIRA-DE-MELLO & CUNHA, 2006).
A teoria tratada – Teoria Fundamentada nos Dados – é, mormente caracterizada pelas seguintes peculiaridades: (1) coleta constante de dados; (2) circularidade entre as etapas de coleta e análise de dados, e (3) negação à formulação de hipóteses anteriormente à coleta de dados. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma metodologia geral para desenvolver teorias que se sustentem (estejam enraizadas) em dados coletados e analisados para este fim – ou seja, que envolve informação sistematicamente coletada e analisada (CORBIN & STRAUSS, 2008). Esse tipo de abordagem metodológica e teórica é usufruído principalmente em casos em que informações preliminares acerca do problema são carentes ou em casos em que se prefere abordar o problema de pesquisa diretamente, de modo a evitar que o pesquisador seja influenciado por considerações de terceiros.
A produção bibliográfica acerca da pesquisa científica qualitativa é substancial e, particularmente acerca da Teoria Fundamentada nos Dados, vem crescendo. Ambas foram altamente auxiliares para a preparação e condução da pesquisa que aqui será relatada. Todavia, considerou-se uma lacuna bibliográfica em relação ao levantamento e à abordagem de atores a serem entrevistados, principalmente quando tais atores responderiam (responderão) sobre práticas de empresas nas quais trabalham. Somado a isso, o campo específico selecionado para a condução da pesquisa – campo empresarial de design de moda – mostrou-se dificultoso durante a etapa de estabelecimento de contatos, em especial no contexto internacional – no qual a pesquisadora, por ser estrangeira, não possuía laços pessoais ou profissionais no campo da pesquisa de design de moda.
A condução de entrevistas com funcionários de empresas apresentou dificuldade, sobretudo, pela circunstância de submissão de funcionários a regras das empresas de não se manifestarem acerca das práticas no contexto empresarial. Muitos dos funcionários mostraram-se dispostos à realização da entrevistas, mas foram proibidos e ameaçados por seus empregadores, inclusive mencionando cláusulas contratuais que os proíbem de fornecer informações institucionais a terceiros. Os dispostos e possibilitados de conceder entrevistas solicitaram que os dados fossem registrados de forma sigilosa e apresentados indiretamente.
Não obstante, as interpretações e análises conduzidas levaram em conta as condições impostas aos entrevistados, ultrapassaram a ingenuidade de considerar os relatos dos entrevistados plenos em espontaneidade. Ainda, o desenvolvimento de pesquisa de cunho antropológico mostrou-se desafiador, uma vez que, mesmo não concordando com barreiras disciplinares, o lugar de partida da investigação e seu relato não foi a Antropologia, mas o Design.
Este relato tem como objetivo principal descrever a experiência das entrevistas nos contextos da moda nacional e internacional no escopo de uma pesquisa doutoral em Design – enfatizando a agência de designers de moda na Alemanha e no Brasil. Pretendeu-se apresentar as estratégias utilizadas para o estabelecimento de contatos, as ferramentas para organização e registros dos contatos. Sobretudo, foram apresentadas as etapas de análise e interpretação de dados postuladas pela Grounded Theory juntamente com o software MAXQDA – indicado para uso em pesquisas qualitativas. O artigo consiste, portanto, na narrativa acerca do planejamento, condução e análise de entrevistas junto a empresas de moda sobre seus processos, ferramentas e filosofia no que diz respeito aos temas design e pesquisa de tendências de moda.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O Planejamento da pesquisa qualitativa
A pesquisa de doutoramento teve seu primeiro planejamento durante a redação do projeto de pesquisa. Todavia, houve a necessidade de sistematizar a pesquisa aplicada de modo mais direto após a realização da pesquisa bibliográfica sobre o tema da tese. Para sistematizar a condução da pesquisa, visualizá-la de forma geral e delinear estratégias para alcançar os objetivos, construiu-se o desenho da investigação. O desenho adaptou a proposta traçada pela socióloga Nora Mendizábal (2007). Especificamente para o contexto apresentado, o desenho foi composto por definições de: [1] contexto conceitual; [2] propósitos da investigação; [3] questões de pesquisa; [4] método; e [5] critérios de qualidade.
A investigação ambientou-se inicialmente no [1] contexto conceitual de investigações já realizadas. Assim, para delimitar a pesquisa, apurou-se o estado da arte das seguintes áreas temáticas: [1.1] teoria de tendências de moda; [1.2] empresas de pesquisa de tendências de moda (bureaux de style); [1.3] branding e gestão de marca, [1.4] lealdade a marcas e corporações e [1.5] sistemas peritos. A função do contexto foi de iluminar e balizar de forma global os dados a serem coletados em campo de modo a enriquecer conceitos e compreender o panorama da indústria de moda contemporânea nos dois países (Brasil e Alemanha) em suas relações com bureaux de style.
A definição dos [2] propósitos da investigação envolveu escolhas referentes a: [2.1] tema, [2.2] problema, [2.3] propostas práticas e [2.4] propostas teóricas do trabalho. Assim, a pesquisa de doutoramento, delimitou-se ao [2.1] tema bureaux de style e sua percepção por parte de empresas de design de moda nos contextos brasileiro e alemão. Definiu-se como principal [2.2] problema, que despertou o interesse para a pesquisa, a lógica de suplementação de tendências e o frequente lançamento de coleções de moda – que não poderiam ser justificados somente pela teoria do Zeitgeist.
A [2.3] proposição prática do trabalho implicou gerar conhecimento das práticas, conotações e particularidades de legitimados bureaux de style de modo a gerar recomendações e empoderar bureaux de style recentes, independentes e/ou de menor porte. Por sua vez, a [2.4] proposição teórica objetivou enriquecer conceitos da teoria de moda e do conceito de tendência de moda e suas teorias de difusão, relacionando-os com teorias sobre legitimidade, expertise e trabalho imaterial; ampliando a teoria de design de moda.
Com o recorte teórico e prático definidos, puderam-se definir as [3] perguntas de pesquisa. Tais perguntas foram essenciais em outras etapas da pesquisa, principalmente para definir as perguntas do esquema básico tanto para as entrevistas preliminares com professoras de moda, quanto para as entrevistas junto a designers e diretores criativos das empresas. As questões foram:
Qual o principal parâmetro para o lançamento de uma nova coleção demoda?
Em qual grau designers e empresários de moda utilizam as informações de tendência como base para criar novas coleções? e
Como eles concebem e valoram essa experiência?
Por quais motivos empresas de moda continuam (se continuam) a pagar altos preços pelos relatórios e cadernos de tendências? Qual o real benefício desses produtos/serviços?
Quais características adquire a informação de tendências de moda na indústria e no mercado atualmente, no Brasil e na Alemanha?
Qual a natureza da relação entre as empresas de criação e produção de vestuário (moda) e os bureaux de style?
A seleção do [4] método demandou a delimitação do [4.1] estilo – qualitativa –, da [4.2] tradição – Teoria Fundamentada nos Dados – e do [4.3] perfil do pesquisador – especialista no tema. Não obstante, foram determinadas as [4.4] técnicas. Foram elegidas entrevistas com especialistas em moda e com funcionários da área de criação em empresas de moda e o levantamento documental sobre as empresas entrevistadas e sobre os bureaux de style. As [4.5] análises envolveram gravação, transcrição e/ou descrição e as etapas de codificação (codificações aberta, axial e seletiva) postuladas pela Teoria Fundamentada nos Dados. As [4.6] ferramentas auxiliares foram selecionadas considerando-se os fins de registro documental em texto [software de texto], em imagem [câmera fotográfica e arquivos imagéticos] e em áudio [gravadores]. Para assistir à análise qualitativa em profundidade, utilizou-se o software MAXQDA – amplamente utilizado na instituição sede da pesquisa na Alemanha.
A [4.7] unidade de análise; isto é, os sujeitos da pesquisa; selecionou designers experientes e diretores de criação de empresas que desenvolvem produtos de moda – vestuário e acessórios. Estes foram selecionados por terem poder de tomada de decisões sobre design nas empresas. Portanto, selecionou-se aqueles que estão diretamente envolvidos com a contratação e o uso de relatórios de tendências de moda de bureaux de style. O porte das empresas a serem entrevistadas não foi predefinido, porém foi dada ênfase a empresas de alto renome no contexto mercadológico e publicitário, sugerindo que tais empresas seriam bem-sucedidas no desenvolvimento e comercialização de produtos de moda – já que se optou por uma investigação em profundidade e não em extensão. A fim de gerar contraste, foram selecionadas tanto empresas de moda quanto estilistas independentes, investigando-se como elas adotam (ou não) e adaptam (ou não) as tendências de moda em seus produtos. A [4.8] amostragem, apesar de ter seguido os parâmetros acima descritos, ocorreu sobremaneira oportunisticamente.
Por fim, considerou-se acerca dos [5] critérios para a qualidade da pesquisa. Este tópico considera fatores como: [5.1] credibilidade, [5.2] generalidade, [5.3] segurança, [5.4] confirmabilidade e [5.5] contribuições da investigação. A [5.1] credibilidade foi sustentada pelos registros, descrição precisa, procedimentos de análise e contraste das informações coletadas nas entrevistas com outros dados documentais e, principalmente, pelo controle de revisores do trabalho. A [5.2] generalidade não pôde ser atendida, uma vez que o estudo foi conduzido com empresas específicas, porém é possível replicar a investigação com outras empresas de design de moda. A [5.3] segurança foi permitida pela possibilidade de auditoria dos materiais coletados e analisados. A [5.4] confirmabilidade foi assegurada pela expertise dos entrevistados e pelo aporte da bibliografia e pela atuação de auditoria dos orientadores do trabalho. Por fim, as principais [5.5] contribuições do trabalho foram esclarecer a percepção de empresas de moda sobre bureaux de style e seus serviços, gerando recomendações para outras organizações no campo de moda.
2.2 O preparo e a abordagem para as entrevistas
O desenvolvimento das entrevistas envolveu não apenas a criação de um esquema básico para as mesmas, bem como o estabelecimento de contato com possíveis entrevistados. Por eventualidade, a etapa prática das investigações ocorreu inicialmente na Alemanha, sede exterior do doutoramento. Todavia, a pesquisadora não tinha laços com estilistas e diretores de criação de moda no país. Como estratégia dupla de [a] ambientar-se no contexto de moda alemão para o desenvolvimento do roteiro de entrevistas e [b] criar laços com especialistas que teriam contatos com entrevistados em potencial, recorreu-se a entrevistas exploratórias com professoras de moda. A estratégia mostrou-se próspera em ambos os objetivos. Ainda que apenas uma das três professoras efetivamente mediou o contato para entrevistas, tais contatos eram de empresas de alto renome no cenário mundial – Adidas e Hugo Boss.
Outra estratégia para contatos a partir de nativos (alemães) foi a oferta da disciplina Designtheoretisches Kolloquium, colóquio de teoria de design. Para a disciplina, os alunos das fases finais do Curso de Design Industrial da Bergische Universität Wuppertal [Alemanha] desenvolveram estudos sobre a gestão de design em empresas de design de moda. Tal investigação foi guiada por um roteiro de entrevistas desenvolvido pela pesquisadora, no qual continham as questões-base para a entrevista. Surpreendentemente, o contato com empresas de moda também se mostrou desafiador para diversos alunos. Alguns deles tiveram maior êxito no que diz respeito à notoriedade da empresa entrevistada. De um total de oito alunos e suas respectivas análises, foram selecionadas quatro empresas para conduzir novamente a análise das entrevistas – registradas em áudio e em texto: Tom Tailor, Hessnatur, Fond of Bags e Dorothee Schumacher. Um dos alunos ainda facilitou o contato com mais duas empresas, possibilitando a conversa com designers das empresas Windsor e Tommy Hilfiger.
A professora orientadora na Alemanha – Profa. Dra. Brigitte Wolf - mediou os contatos com dois estilistas locais, uma de modo direto (Ilse Stammberger) e outro de modo indireto (Stephan Schneider). Além disso, por meio do contato frequente com empresas via e-mail, preenchimento de formulários e contatos telefônicos, a amostragem europeia totalizou 12 entrevistas, incluindo as empresas Seidensticker e Mustang. De modo a organizar as diferentes frentes de busca por entrevistados e registrar as tentativas e os aceites e rejeites para a entrevista, criou-se uma planilha no serviço de disco virtual Google Drive, nos moldes da apresentada a seguir (Quadro 1).
Empresa | Benvenuto | Hessnatur |
Sede | Hamm (Westfália) | Butzbach |
Ano de fundação | 1934 | 1976 |
País de origem | Alemanha | Alemanha |
Endereço | Heessener Str. 22-28 D-59065 | Marie-Curie-Str. 7 35510 |
Telefone | 49 (0) 2381 686 01 | 49 (0) 6033 991 7120 |
[ocultado para privacidade] | [ocultado para privacidade] | |
Registro de contato | por telefone em 07.12.2015 diversos e-mails | por e-mail em 07.10.2015 por e-mail em 11.11.2015 |
Feedback | positivo – entrevista agendada e-mails para remarcar sem retorno | Positivo |
Entrevista | a remarcar [postergado] | 21.03.2016 [estudante do curso DT4] |
Com base na amostra oportunística dos entrevistados na Alemanha, criou-se outra planilha com a organização geral dos tipos de empresas entrevistados no país europeu. Tal documento serviu como diretriz para manter análoga a amostra no segundo campo do estudo, Brasil, possibilitando identificar possíveis semelhanças – como no caso da agência de estilistas autorais de moda em ambos os países. O orientador brasileiro – Prof. Dr. Luiz Salomão Ribas Gomez – também facilitou o contato com empresas locais. Com base no tipo de produto e no posicionamento das empresas de moda entrevistadas na Alemanha, foram criadas as seguintes tipologias: [1] jovem/esportivo; [2] estilistas independentes; [3] tradicionais (camisaria); [4] fast-fashion; [5] jeans; [6] acessórios; [7] premium; e [8] especialidade local. A última tipologia atendeu o segmento de moda praia no Brasil e moda sustentável na Alemanha.
No total, foram levantadas e contatadas 70 empresas no contexto merca dológico alemão. No Brasil foram 74 empresas. Em ambos os casos foram realizadas 12 entrevistas. Surpreendentemente, as empresas de design de moda mostraram-se expressivamente fechadas a investigadores em ambos os contextos, mas mais perceptivelmente no cenário alemão – que foi o que determinou o número de entrevistas a serem realizadas no Brasil, já que as entrevistas foram realizadas primeiramente na Alemanha. Além do expressivo número deliberado de rejeites, bem como as justificativas fornecidas, muitos dos pedidos foram ignorados, mesmo com insistentes contatos telefônicos. Um resumo dos resultados dos contatos pode ser observado no Quadro 2.
Alemanha | Brasil | |||
Entrevistas realizadas | 12 | 12 | ||
Aceites para entrevista | 12 | 16 | ||
Rejeites para entrevista | 26 | 49 | ||
Contatos sem retorno | 32 | 9 | ||
Total de empresas contatadas | 70 | 74 |
A justificativa mais frequente para a indisponibilidade da participação era a falta de tempo. Em dois casos específicos, porém, fez-se o contato direto com uma designer de moda e uma gerente de produção – as quais, imagina-se, teriam disponibilidade de tempo. Todavia, em ambos os casos as funcionárias foram obrigadas a não participar da pesquisa. No caso específico da designer de moda, a decisão do setor de supervisão ocorreu após a realização da entrevista e manteve-se mesmo após frequentes esclarecimentos sobre os objetivos da pesquisa (compreender práticas generalizadas na indústria de moda e não na empresa em questão) e com a apresentação do roteiro geral da entrevista para apreciação. Neste caso, em respeito e para a segurança da designer, a entrevista concedida não foi analisada. No caso da gerente de produção, o diretor da empresa alertou-a sobre o fato de o contrato de serviço incluir uma cláusula específica que proíbe impreterivelmente os funcionários de fornecer conteúdo ou qualquer informação sobre a empresa a terceiros.
O desenvolvimento do esquema básico para entrevista se iniciou com a definição de etapas e temas da entrevista. Em um primeiro momento, foram geradas diversas questões para a interlocução – aproximadamente 100. Com o auxílio dos professores orientadores, apenas 28 foram selecionadas para compor o roteiro geral das entrevistas. Como a amostra foi variada, as entrevistas eram antecedidas por uma etapa de preparo que alterava o roteiro de entrevista para cada empresa. A base para a alteração do esquema foi – além da pesquisa documental, conduzida acerca da empresa e do criativo anteriormente às entrevistas – claramente, o decorrer da conversa com o entrevistado.
Por exemplo, frequentemente os entrevistados anteciparam assuntos referentes a questões subsequentes e, para dinamizar a entrevista, alterou-se a ordem inicial do roteiro. Em outros casos, o tempo de trabalho e a posição do funcionário na empresa influenciava como ele apresentava sua prática. Comumente, servidores mais antigos e em cargos de comando tendem a proferir discurso legitimador da empresa.
2.3 As Entrevistas: condução, registro e análises
As entrevistas estenderam-se por períodos variados de tempo, uma vez que se caracterizaram como semiestruturadas. Inicialmente, seguiram as questões básicas do roteiro, principiando com perguntas acerca da experiência do funcionário na empresa, suas principais atribuições e outros aspectos institucionais complementares à pesquisa documental. Tais dados foram necessários não apenas para a condução das entrevistas – de modo a compreender o escopo de atuação do entrevistado e, portanto, indagar apenas questões relevantes à sua atuação – mas também para a análise e a interpretação dos resultados. O decorrer da entrevista correspondeu às seguintes temáticas: [a] sobre o funcionário; [b] orientação da empresa a tendências de moda; [c] relatórios de tendências; [d] desenvolvimento de produto; e [e] sobre a empresa.
As entrevistas aconteceram em maioria por contato telefônico via Skype. Em tais ocasiões, foram eleitos dois modos de registro para evitar a perda de gravação, em virtude de defeito de algum dos dispositivos. Registrou-se o áudio das entrevistas diretamente do aplicativo Skype, por meio de um programa instalado no computador e, igualmente, por meio de um gravador de áudio externo (smartphone). Portanto, em geral, as entrevistas foram iniciadas pelo telefonema aos entrevistados. Elas seguiram a ordem de cumprimentos, agradecimentos, apresentação dos objetivos e etapas da entrevistas e colocação das questões em si. Também, já ao início, a permissão de registro foi requerida oralmente pelos entrevistados, e todos eles concordaram com a gravação para os fins únicos de pesquisa acadêmica.
De modo a ambientar os entrevistados e minimizar suas eventuais dúvidas, foram fornecidos breves esclarecimentos – cerca de duas frases – sobre cada tópico da entrevista [a–d]. Em nível de exemplo, o tópico que investigou o uso de relatório de tendências [b] teve a seguinte explicação:
Com o advento da pesquisa prospectiva de tendências de moda, tendências foram desenvolvidas como direcionamento para produtos e planejadas com ampla antecipação. Tal procedimento designou a coordenação entre oferta e demanda na cadeia produtiva da indústria da moda.
Todas as questões foram formuladas e apresentadas da forma mais aberta possível e foram revisadas por orientadores e consultores, de modo a evitar o direcionamento da resposta.
Nos casos em que novas questões foram elaboradas no decorrer da entrevista, portanto sem planejamento e revisão, cuidou-se para formulá-las de modo abrangente e neutro semelhantemente. Também como estratégia para uma maior “neutralidade” da entrevista, buscou-se deixar claro aos entrevistados que a pesquisa não tinha o objetivo de avaliar nem a eles e nem às empresas para as quais trabalham. Não obstante, alguns temas possivelmente mais “tabu” e que poderiam levar a respostas premeditadas foram aprofundados com questões secundárias e terciárias e com pedidos de exemplos.
2.3.1 A análise das entrevistas
As entrevistas foram transcritas nas línguas originais (alemão, inglês ou português) e foram adicionadas no software MAXQDA para os procedimentos de análise, juntamente com os registros das pesquisas documentais. O software possibilita, além disso, o upload de arquivos em formato de áudio, imagem e vídeo. Entretanto, usufruíram-se, mais fartamente, dos recursos de base textual. O software é indicado pela bibliografia acerca da Teoria Fundamentada dos Dados, assim como o software Altas.ti, como ferramenta auxiliar na tarefa de análise de dados (CHERNOBILSKY, 2007). É importante frisar que os softwares por si só não desempenham a análise e interpretação dos dados. Há ferramentas mecânicas que identificam semelhança ou diferenças e que buscam palavras repetidas em trechos da redação. Todavia, computadores são incapazes de criação conceitual, eles são incapazes de analisar os dados no lugar do pesquisador (Ibid., p.243).
Elegeu-se o software MAXQDA após o teste das versões gratuitas de ambas as opções (MAXQDA e Altas.ti) e pela familiaridade de colegas do grupo de pesquisa na Alemanha com o mesmo. Um dos pontos positivos do software escolhido consistiu na possibilidade de acúmulo e organização de grande quantidade de dados, já que, ao final da pesquisa em ambos os contexto, apenas a etapa de entrevista gerou mais de 24 documentos de transcrição. Além disso, outros aspectos de caráter prático relacionados ao uso de softwares foram: [1] a recuperação de trechos de diferentes documentos etiquetados com um mesmo código; [2] a facilidade de criar anotações, fazer grifos e gerar comentários, inclusive em imagens; [3] gerar relatórios parciais e finais; e [4] organizar aspectos da análise em quadros e gráficos.
A análise e a interpretação dos dados envolveram as etapas de codificação propostas para a Teoria Fundamentada nos Dados: codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva. A primeira etapa consiste na codificação aberta e implica a geração de categorias e códigos de informação iniciais sobre o fenômeno em estudo. Durante essa etapa, os dados são analisados sem uma orientação clara, mas exaustivamente, num procedimento denominado microanálise. Nesse momento, o investigar opera uma fratura nos dados primários, criando conceitos. Isso tanto reduz a carga de dados com que o pesquisar trabalhará, quanto auxilia na articulação dos dados por meio de uma linguagem específica para abordar o fenômeno.
No caso específico da pesquisa de doutoramento, os dados foram analisados em codificação aberta, inicialmente fora do software MAXQDA, com a leitura e releitura exaustiva das entrevistas realizadas no contexto europeu. A codificação aberta resultou em conceitos-chave, a partir dos quais foram geradas polaridades como unidades de codificação. Por exemplo, para o conceito carga de trabalho foram elencados os polos tendências aumentam a produtividade e tendências diminuem a produtividade. Já com os conceitos provenientes das polaridades, executou-se a codificação aberta no software MAXQDA, associando trechos das entrevistas aos conceitos-polo e a outros conceitos gerados por conveniência. Isto é, trechos relevantes da entrevista que não puderam ser associados a conceitos preexistentes. No total, foram gerados 56 códigos.
A etapa seguinte de codificação consistiu na codificação axial e implicou a reorganização dos dados. Em tal momento, examinaram-se as relações entre categorias e conceitos. Uma vez que a codificação aberta quebra os dados em conceitos e categorias, a codificação axial junta os dados em novas formas e cria conexões entre eles, gerando categorias e subcategorias. O processo de estabelecimento de relações recria padrões semelhantes a um holograma, no qual as partes e o todo se constroem reciprocamente. O agrupamento de categorias acontece como modo de análise, já que, para a organização e hierarquia de categorias, integrações emergem e conexões tornam-se explícitas.
Para a codificação axial dos dados das entrevistas foram selecionados, dentre os 56 códigos totais, aqueles considerados qualitativamente e quantitativamente mais relevantes para explicação do conceito. O aspecto qualitativo enfocou os conceitos mais profundos e explicativos. Já, a seleção quantitativa selecionou os códigos com maior número de segmentos codificados: o maior número de entradas. Para a análise do contexto alemão de pesquisa foram selecionados 11 conceitos, os quais tiveram ao menos 25 entradas. Já no contexto brasileiro de pesquisa, os 10 códigos com mais de 40 entradas foram importados para a extensão MAXMaps, a qual assiste visualmente a etapa de codificação axial.
Na extensão MAXMaps, o pesquisador é habilitado a selecionar códigos e recolher as distintas entradas – imagéticas ou textuais – associadas a este código e a seus subcódigos. Cada entrada foi sumarizada em palavras ou fragmentos de texto, com o objetivo de reduzir a complexidade dos dados. Posteriormente, as entradas foram organizadas em grupos de informação e hierarquicamente. Um exemplo do resultado parcial de tal procedimento pode ser visualizado na Figura 1 a qual apresenta o mapa mental desenvolvido para o conceito other sources of information (outras fontes de informação). O conceito reuniu todas as diferentes fontes de informação de tendências de moda referidas pelos entrevistados em grupos específicos. Ainda, auxiliar para o procedimento é a possibilidade de combinar a abordagem qualitativa com a quantitativa, com recursos gráficos que alteram as dimensões de subconceitos e subcategorias. Por exemplo, a referência às artes e às mídias tradicionais (exposições, livros, filmes, etc.) foi mais expres-siva que às feiras de matéria-prima. Portanto, a diferença da frequência das menções pôde ser visualmente expressa na versão parcial do mapa, facilitando subsequentes análises e interpretações (Fig. 1).
Por sua vez, a codificação seletiva envolveu a integração das categorias que foram desenvolvidas a partir do framework teórico inicial. Durante tal momento, examinaram-se, novamente, as diversas categorias (códigos ou conceitos-chave), inquirindo sobre suas coerências e incoerências em relação ao tema geral, a força da fundamentação empírica e a estabilidade de relações da categoria com o problema e com outros códigos. Essa etapa de codificação é semelhante à codificação axial, todavia alcançou um nível mais abstrato de explicação do fenômeno, uma vez que a desenvolveu. Isto implica que as demais etapas de codificação desembocam na integração final da teoria em função de uma categoria central – ou algumas categorias centrais que, combinadas, melhor explicam o fenômeno.
2.3.2 Delimitação e validação dos resultados da pesquisa
Corbin & Strauss (2008) sustentam que a categoria nuclear deve ser como o “sol”, estabelecendo sistematicamente relações com os seus planetas. Na pesquisa para o doutoramento, foram selecionadas categorias centrais e outras orbitais a elas. De modo geral, o tema da tese – percepção de bureaux de style por parte de designers de moda e gerentes de produtos de moda – foi mais bem explicado haja vista a relação com a categoria security (segurança) e com a categoria use of trend reports (uso de relatórios de tendências). Sendo assim, a delimitação da teoria seguiu para a avaliação de hipóte-se, por meio de comparações constantes e ligações entre os conceitos. Considerou-se que ambas as categorias eram centrais para o problema em questão. Uma delas, use of trend reports, possibilitou o detalhamento aplicado dos diferentes tipos de uso de relatórios de tendência, dando ênfase a como os atores usufruem dos serviços, fornecendo uma abordagem mais descritiva do fenômeno. A outra, security, ofereceu uma abordagem mais explicativa e teórica ao problema – ultrapassando o utilitarismo e evidenciando o porquê da conduta reproduzida.
Os canais abertos em práticas como as aqui apresentadas possibilitam repensar as materialidades e materializações de um meio profundamente ligado a práticas que decorrem da efemeridade, da sazonalidade em proposições que entendem que a inovação pode ser resultado do confronto realizado a partir novas abordagens que desafiam ideias cristalizadas, de autoria e descartabilidade, e trazem em valores como perenidade, ética, diálogo e co-autoria a possibilidade de criar um terreno fértil para a construção de um Design de Moda possível em um futuro próximo em que as proposições disruptivas são sobretudo propositivas e positivas.
Porque não é um trabalho solitário, abro espaço nessas considerações finais para agradecer à equipe do LabModAR, à Eloize Navalon, Adriana Martinez e Fernanda Quilici Mola pelos desafios propostos e resolvidos em diálogo.
É apropriado lembrar que toda a análise teve embasamento em extratos empíricos das realidades dos entrevistados, analisados sob a luz de uma pesquisadora que não é imune ou neutra ao campo, mas que trouxe consigo um conjunto de práticas e teorias que não apenas motivaram a realização desta pesquisa, mas também influenciaram sua análise e sua interpretação. Assim, a Teoria Fundamentada nos Dados considera que a teoria não emerge simplesmente dos dados, mas do intercâmbio do pesquisador com esses dados.
De modo a validar, portanto, tais análises e interpretações, foram selecionadas três especialistas neutras à pesquisa para a ratificação dos resultados investigativos. Para tal, inicialmente foram levantadas três tipologias de especialistas: [a] professoras universitárias de moda; [b] jornalistas de moda; e [c] pesquisadores de tendências de moda. De modo semelhante na abordagem de designers para entrevistas, foram listados os nomes e o contato dos possíveis especialistas. Ao fim, selecionou-se uma especialista de cada tipologia, as quais responderam, via telefonema por Skype, a uma série de questões em entrevista semiestruturada.
As questões foram desenvolvidas, evidentemente, a partir dos resultados da tese de doutoramento. A primeira etapa envolveu questões mais abertas relacionadas ao conceito explicativo (security) e ao universo conceitual da tese (bureaux de style). A segunda etapa visou a retificar as diferentes modalidades de uso de relatórios de pesquisa de tendências (conceito descritivo/aplicado: use of trend reports), e, portanto, compilou perguntas mais direcionadas. Após as questões, cada especialista discursou livremente sobre os tópicos gerais da pesquisa. Em totalidade, os resultados foram confirmados, e a pesquisa foi corroborada.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve o intuito de relatar a experiência da etapa empírica da pesquisa desenvolvida para doutoramento em Design na modalidade cotutela junto às Universidade Federal de Santa Catarina e Bergische Universität Wuppertal. Sendo assim, propôs-se a narrar o preparo, desenvolvimento e interpretação de entrevistas junto a estilistas e diretores criativos de empresas de moda no Brasil e na Alemanha. De modo geral, a pesquisa doutoral buscou investigar as fricções entre o potencial e o realizado no tocante à agência de criativos da área de moda, considerando-se a prática da criação do produto de moda e o lidar com relatórios de tendências dos renomados bureaux de style.
As páginas previamente apresentadas narram o processo de desenvolvimento das entrevistas junto a empresas de moda. Essas páginas narram uma experiência que foi muito satisfatória, apesar de ter sido frustrante em determinados momentos. Tratou-se de uma experiência antropológica conduzida por uma acadêmica em design. Sendo assim, o findar da experiência doutoral me chamou para a importância de escrever essas páginas, uma vez que elas me teriam sido muito úteis no iniciar dessa trajetória de pesquisa. Com esse relato, entrego aos leitores as pegadas de uma experiência e das estratégias desenvolvidas a partir dela. Espero que, assim, sintam-se estimulados a embarcar nesta trajetória a qual a pesquisadora que vos escreve também pretende continuar a trilhar.
Referências
BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo & CUNHA, Rodrigo. Grounded Theory. In: GODOI, Christiane Kleinübing; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo; SILVA, AB da. Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. v.2. São Paulo: Saraiva, 2006. Cap. 8, p. 241 –266.
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Autor notes