RASTROS NEOLIBERAIS NO CURRÍCULO DE UM CURSO DE DESIGN DE MODA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 4, núm. 1, 2020
Resumo: Este artigo tem por objetivo entender como a governamentalidade neoliberal está presente no Projeto Pedagógico e nas ementas das disciplinas do Curso Superior de Tecnolo- gia em Design de Moda ofertado pelo do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) Campus Erechim. Parte-se de dois pressupostos: a) os currícu- los dos cursos acadêmicos são construídos a partir de determinadas abordagens e perspec- tivas teóricas e acabam por ensinar mais do que os conteúdos pretendidos: eles ensinam o estudante a ser e estar no tempo presente; b) a lógica neoliberal permeia múltiplos espaços socioculturais e se traduz, no currículo do referido curso, na ênfase à autonomia dos sujeitos, no imperativo da inovação, da concorrência e da flexibilização das mentes e do tempo de trabalho. Tais características – tidas como desejáveis nos sujeitos na contemporaneidade – direcionam as ações, as vontades e os desejos de docentes e discentes. É interessante per- ceber como a lógica neoliberal está presente nesses documentos a fim de formar os alunos orientando-os, primariamente, para o mercado.
Palavras-chave: Currículo, Design de Moda, Governamentalidade neoliberal.
Abstract: This article aims to understand how neoliberal governmentality is present in the Pedagogical Project and in the course menus of the Technology in Fashion Design Higher Course offered by the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rio Grande do Sul (IFRS) Campus Erechim. It is based on two assumptions: a) the curricula of academic courses are built from certain theoretical approaches and perspectives and end up teaching more than the intended contents: they teach the student to be and being in the present tense; b) the neoliberal logic permeates multiple sociocultural spaces and translates, in the curricu- lum of the course, the emphasis on the autonomy of the subjects, the imperative of innovation, competition and the flexibility of minds and working time. Such characteristics - considered desirable in contemporary subjects - direct the actions, wishes and desires of teachers and students. It is interesting to see how neoliberal logic is present in these documents in order to train students by orienting them primarily to the market.
Keywords: Curriculum, Fashion Design, Neoliberal Governmentality.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo comprender cómo la gubernamentalidad neolibe- ral está presente en el Proyecto Pedagógico y em los menús del Curso Superior de Tecnología de Diseño de Moda ofrecido por el Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Rio Grande do Sul (IFRS) Campus Erechim. Se basa en dos supuestos: a) los planes de estudio de los cursos académicos se construyen a partir de ciertos enfoques y perspectivas teóricas y terminan enseñando más que los contenidos previstos: enseñan al estudiante a ser y estar en el tiempo presente; b) la lógica neoliberal impregna múltiples espacios socioculturales y traduce, en el currículo del curso, el énfasis en la autonomía, el imperativo de la innovación, la competencia y la flexibilidad de las mentes y el tiempo de trabajo. Dichas características, consideradas deseables en tiempos contemporáneos, dirigen acciones, voluntades y deseos de profesores y estudiantes. Es interesante ver cómo la lógica neoliberal está presente en estos documentos para capacitar a los estudiantes orientándolos principalmente al mercado.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo entender como a governamentalidade neoliberal está presente na matriz curricular do curso superior em Tecnologia em Design de Moda do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Parte-se do pres- suposto defendido por Foucault (2008) de que a governamentalidade neoliberal está presente na sociedade não somente no que tange ao econômico, mas também ao social, direcionando as ações, as vontades e os desejos dos sujeitos na contemporaneidade.
A metodologia da pesquisa foi baseada nas análises feitas por Saraiva (2014), nas quais a autora faz um cruzamento entre as características do neoliberalismo e as orientações das escolas contemporâneas, mostrando os principais pontos de convergência. De maneira semelhante à Saraiva (2014), esta pesquisa, primeiramente, realiza uma revisão sobre os estudos de currículo na contemporaneidade para, então, discutir sobre o neoliberalismo e a educação. Após, são apresentados os Institutos Federais, dando ênfase ao IFRS – Campus Erechim e ao curso de Design de Moda desta instituição, para então, a partir do projeto peda- gógico do curso, analisar as ementas e objetivos das disciplinas buscando por características (e, porque não dizer, traços) da governamentalidade neoliberal. De acordo com Veiga-Neto (2000), tal mentalidade de governo, a partir da segunda metade do século XX, “mostrou-se muito mais confiante nas próprias forças e na racionalidade do mercado, a ponto de não ape- nas querer afastar o Estado de qualquer tipo de ingerência sobre a economia, como, logo em seguida, querer que toda a vida social se subordinasse à lógica do mercado” (s/p).
2 O CURRÍCULO E A FORMAÇÃO DE SUJEITOS ALINHADOS AO TEMPO PRESENTE
Ao assumir um currículo como objeto de análise, percebe-se que ele apresenta e descreve uma série de conhecimentos técnicos específicos, mas que ele, especialmente, tem a pretensão de formar sujeitos a partir das abordagens e perspectivas teóricas que o sustentam. Os currículos dispõem os conhecimentos necessários para uma formação es- pecífica, mas, de acordo com Silva (2010), esses conhecimentos (presentes nas matrizes, nas ementas das disciplinas, nos autores que são escolhidos para serem lidos ao longo das disciplinas, etc.) excluem outros que ali poderiam estar, ou seja, através do currículo há uma determinação do que se deve ou não estudar nas diferentes formações acadêmicas. Nesta perspectiva, não há aqui o objetivo de definir o que é um currículo, e sim de tentar tensionar a ideia tradicional de currículo para, então, entendê-lo como uma ferramenta ampla de forma- ção de sujeitos, e não somente de profissionais.
Silva (2010) aponta que qualquer currículo é, sempre, o “resultado de uma sele- ção” (p.15); desta forma, há sempre uma justificativa de porquê um conhecimento foi privi- legiado em detrimento de outro. Para esse autor, ao invés de olharmos para um currículo e perguntarmos “o que deve ser ensinado?”, precisamos perguntar: “o que esses estudantes
devem se tornar?”. Seguindo a ideia de um currículo que forma mais do que simples profissio- nais, Silva (2010) apresenta o currículo na perspectiva pós-estruturalista, cujo entendimento se encontra atrelado às questões de poder, entendendo que um currículo de nenhuma forma é neutro, puramente científico ou imparcial em suas questões. Nas escolhas curriculares, nos privilégios de conhecimento, há jogos de poder sociais, muitas vezes mais amplos que o pró- prio discurso científico, que orienta as formações curriculares.
Entretanto, vale ressaltar que a visão pós-estruturalista, que orienta as análises desse artigo, não é a única possível. As teorias tradicionais do currículo contemplam a ideia de que um currículo é um campo teórico onde são encontrados saberes que revelam as verda- des de determinada formação acadêmica. Essas teorias, então, preocupam-se com questões organizacionais, metodológicas, avaliativas etc., focando seus esforços em como fazer um currículo, sem grandes questionamentos sociais, educacionais e disciplinares (SILVA, 2010).
Em meio às revoluções sociais da década de 1960, um novo tipo de pensamento educacional e curricular começou a ganhar espaço: as teorias críticas surgem invertendo os fundamentos das teorias tradicionais, colocando em dúvida os arranjos sociais e educa- cionais, relacionando-os e responsabilizando-os pelas grandes desigualdades sistêmicas da educação de massa. O pensamento crítico aproximava os ideais marxistas da atividade edu- cacional, afim de entender como a escola auxiliava na reprodução dos valores dominantes da sociedade. De acordo com tal matriz de pensamento, a escola reproduzia as relações sociais de trabalho, de modo a fomentar e manter a ordem social vigente, e dificultar, principalmente ao aluno (tido como dominado), o acesso à uma educação emancipatória que o libertasse de seu estado subordinado. Já uma outra vertente do pensamento crítico se utilizava do conceito de capital cultural, cuja centralidade do pensamento se encontra na ideia de que a cultura dominante é considerada melhor, e por isso deve ser ensinada e alcançada (SILVA, 2010).
Mantendo esse pensamento histórico que entende o currículo como base dos acontecimentos sociais, em uma perspectiva pós-estruturalista, podemos entendê-lo como a base dos ensinamentos escolares, ou, de acordo com Moreira e Silva Júnior (2016), como “o coração da escola”, afirmando que “por seu intermédio se apresentam aos alunos a visão de mundo que se quer difundir e a ideologia que se pretende inculcar” (p. 48). Ou seja, a partir de uma perspectiva pós-critica, entende-se que, junto com as orientações disciplinares, o cur- rículo carrega ideologias, inclusões, exclusões, significados e representações, ensinando ao aluno muito mais do que o conteúdo propriamente dito explicita.
Muitas pesquisas já foram realizadas dentro dessa perspectiva, as quais tomam o currículo como campo de lutas sociais. Dentre elas, vale ressaltar a pesquisa de Ferreira (2017), que trabalha com algumas diretrizes dos Institutos Federais a fim de perceber como essa instituição governa os sujeitos. Em sua pesquisa, Ferreira (2012) percebe que a orien- tação curricular dos Institutos Federais visa formar sujeitos presentes na lógica de trabalho imaterial, e desta forma, incluídos na lógica neoliberal do pensamento Foucaultiano.
Os cursos técnicos e tecnológicos ofertados pelo IFRS seguem o “Catálogo Na- cional dos Cursos Técnicos” (2014) e o “Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tec-
nologia” (2016), respectivamente. Esses catálogos apresentam informações de orientação para implementação de cursos autorizados a funcionar no território brasileiro. O “Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia” (2016) apresenta oito descritores acerca dos cursos: denominação do curso, eixo tecnológico, perfil profissional de conclusão, infraestrutu- ra mínima requerida, carga-horária mínima, campo de atuação, ocupações CBO1 associadas, possibilidades de prosseguimento de estudos na pós-graduação. Relativamente aos cursos superiores em tecnologia em Design de Moda, as orientações são as seguintes:
· Denominação do curso: Curso Superior em Tecnologia em Design de
Moda;
· Eixo Tecnológico: Produção cultural e design;
· Carga horária mínima: 1600 horas;
· Perfil profissional de conclusão: Cria e desenvolve produtos para a in-
dústria da moda. Analisa e aplica fatores estéticos, simbólicos, ergonômicos, sociocul- turais e produtivos. Realiza pesquisa de moda. Planeja, gerencia e articula coleções de moda com processos de fabricação, matérias-primas e viabilidade técnica e sus- tentável. Elabora protótipos, modelos, croquis, fichas técnicas e portfólios com uso de técnicas diferenciadas de expressão gráfica. Avalia e emite parecer técnico em sua área de formação.
· Infraestrutura mínima requerida: Biblioteca incluindo acervo específico e atualizado; Laboratório de informática com programas e equipamentos compatíveis com as atividades educacionais do curso; Ateliê de criação em design de moda; Labo- ratório de confecção; Laboratório de desenho; Laboratório de modelagem; Tecidoteca.
· Campo de atuação: Ateliês e Confecções; Bureaus de Pesquisa e Cria-
ção em Moda; Escritórios de Design; Indústrias de Moda; Instituições de Ensino, me- diante formação requerida pela legislação vigente.
· Ocupação CBO associadas: 2624-25 - Tecnólogo em design de moda; 2624-25 - Desenhista industrial de produto de moda (designer de moda).
· Possibilidades de prosseguimento de estudos na Pós-Graduação: Pós-
-graduação na área de Artes, entre outras (CATÁLOGO NACIONAL DE CURSOS SU- PERIORES, 2016, p.103).
O perfil profissional descrito no referido Catálogo ressalta que, ao final da forma- ção, o designer de moda deve ser capaz, em primeiro lugar, de criar e desenvolver “produtos para a indústria da moda” – isto é, privilegiando muito mais um caráter industrial/em escala da produção de roupas e não necessariamente o caráter artesanal, coletivo e em pequena escala. Outro aspecto que chama a atenção é a sustentabilidade socioambiental – mostrada como atributo desejável às coleções de moda em função do mercado consumidor (e não ne- cessariamente para a proteção do ambiente e da natureza).
3 O NEOLIBERALISMO E A EDUCAÇÃO
1 Classificação Brasileira de Ocupações: “Trata-se de ocupações que o profissional graduado no Curso Superior de tecnologia pode exercer ou tem relação direta com o perfil profissional do egresso, fornecendo perspectivas de inserção profissional” (Catálogo Nacional de Cursos
Superiores de Tecnologia, p. 8, 2016).
Para falar sobre o conceito de neoliberalismo relacionando-o com a educação uti- lizou-se alguns autores como Saraiva (2014), Santaiana (2015), Veiga-Neto (1999), Ferreira (2017) e, além destes, Foucault (2008), na leitura de seu livro “O nascimento da Biopolítica”.
Antes de entender o neoliberalismo e suas formas de governamento, é importante percebermos como o liberalismo funciona e governa os sujeitos na Modernidade. De acordo com Saraiva (2014), o liberalismo é uma racionalidade que marca diferentes práticas sociais. Nas palavras da autora, “ainda que possa aparecer de modo condensado nas formas de go- vernar um Estado, atravessa toda a sociedade e implica em práticas de condução de condu- tas que extrapolam as ações estatais e se desdobram de modo muito mais amplo” (SARAIVA, 2014, p.142).
A governamentalidade liberal naturaliza a liberdade de mercado, e o estado deve trabalhar para manter essa liberdade, agindo no social somente quando necessário. As in- tervenções estatais no social se dão através do que Foucault (2008) chama de biopolíticas, que visam garantir o mínimo de bem-estar social para que se garanta, também, o bem-estar mercadológico.
Saraiva (2014) também nos ajuda a compreender o liberalismo não só como um conjunto de ações, práticas e vontades puramente econômicas, mas também como um siste- ma de pensamento ou, ainda, uma racionalidade que governa a vida social mais ampla dos sujeitos. Ou seja, os sujeitos, pela ação do liberalismo, passam a ser também considerados unidades de negócios, como sujeitos mercadológicos individualizados (supostamente autôno- mos e responsáveis por si mesmos). A ação do Estado em um sistema liberal se dá nas inter- venções que ele faz no social em prol do seguimento (e do pleno desenvolvimento) do livre mercado. Veiga-Neto (1999) complementa explicando que o liberalismo é “delicado e sutil, de modo que para governar mais, é preciso governar menos” (s/p). Desta forma, o liberalismo trata os sujeitos como parceiros do Estado, ao mesmo tempo que são governados pelo Esta- do através de seus deveres, e se autogovernam através de seus direitos.
Nessa perspectiva, para Ferreira (2017), o liberalismo tira do Estado a respon- sabilidade sobre os sujeitos e faz com que os próprios sujeitos sejam responsáveis sobre si, sobrecarregando-os, prometendo uma liberdade medida e estipulada pelo próprio Estado – sujeitos livres para trabalharem disciplinarmente nas fábricas e fazerem com que a economia cresça. No liberalismo, o Estado é visto como uma empresa, e a ele não cabe, necessaria- mente, oferecer serviços, mas torná-los possíveis para que outras empresas os ofereçam (parte-se dessa lógica a ideia de privatizações de empresas estatais e concessões de deter- minados serviços estatais a empresas privadas).
O neoliberalismo evoluiu a partir do liberalismo, e faz com que as lógicas sociais, econômicas, estatais e individuais se alterem de forma a produzir novos sujeitos, e o governa- mento, que no liberalismo era da sociedade, no neoliberalismo passa a ser um governamento do sujeito (VEIGA-NETO, 1999). Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo se apresenta com
16 […] a ideia de que a análise econômica deve encontrar como elemento de
base dessas decifrações, não tanto o indivíduo, não tanto processos ou me- canismos, mas empresas. Uma economia feita de unidades-empresas, uma sociedade feita de unidades-empresas: é isso que é, ao mesmo tempo, o princípio de decifração ligado ao liberalismo e sua programação para a ra- cionalização tanto de uma sociedade como de uma economia (FOUCAULT, 2008, p. 310).
Desta forma, a força de trabalho individual do cidadão passa a ser contratada em forma de empresa; sugere-se, nas mais variadas instâncias da cultura, que cada pessoa física seja também uma pessoa jurídica e possa vender seu trabalho às outras pessoas (físicas ou jurídicas) e, assim, movimentar a economia. Outras mudanças importantes podem ser des- tacadas, como a reconfiguração do sistema de produção que antes tinha seu foco na produ- tividade mercantil, que sugeriria uma sociedade disciplinar, e agora foca na teoria do capital humano, exigindo inovação e criatividade, estimulando a concorrência entre sujeitos e não mais entre empresas (FERREIRA, 2017). Essa ideia de capital humano leva à precarização do trabalho, de forma que empresas e pessoas concorram em um mesmo campo de mercado, tornando as leis trabalhistas precárias ou insuficientes, pois uma vez como indivíduo-empre- sa, esse trabalhador não mais possui vínculo empregatício, mas é considerado um parceiro, um igual.
De forma sucinta, Santaiana (2015, p.72) trata o neoliberalismo como um sistema que pauta o mercado para definir as ações estatais. A educação pública brasileira, estando em poder do Estado, foi (e ainda é) conduzida a partir da lógica do mercado. Logo, o discurso educacional que gira em torno de uma educação progressista que deve modernizar o país e elevá-lo economicamente fará parte da educação pública muito fortemente a partir da década de 1990 (SANTAIANA, 2015, p.72).
Ainda, de acordo com a mesma autora, discursos que apresentam a autonomia in- dividual dos sujeitos, a capacidade de inovação, renovação, participação, trabalho em equipe como sendo características imprescindíveis ao sucesso profissional do cidadão originam-se das políticas neoliberais. A autora mostra que o pensamento (e o desejo) de formar estudan- tes para que eles se insiram no mercado é parte de uma prática econômica – e é parte da lógica neoliberal, que prioriza o econômico sobre o social. No momento em que as instituições escolares pensam no (e priorizam a formação do) sujeito profissional e onde ele trabalhará, há o governamento dos sujeitos na direção de uma lógica neoliberal (SANTAIANA, 2015).
Saraiva (2014) apresenta mais algumas características da governamentalidade neoliberal presentes no âmbito social e, dentre elas, vale destacar: a) a ênfase na concor- rência, quando as pessoas, assim como as empresas, focam suas atividades na busca por consumidores, e não mais por processos de trocas de mercadorias, o que torna os sujeitos empresários e gestores de si; b) a ênfase na inovação permanente, pois não bastaria criar novos produtos (os produtos precisariam ser “inovadores” e “tecnológicos”); c) o foco na pro- dução mental e no trabalho imaterial, isto é, na ideia de que a produção material deixa de ser central e a produção mental passa a ocupar o tempo dos trabalhadores, exigindo que o sujeito
não mais tenha seu corpo fixo em uma empresa, cumprindo horários, mas que tenha metas; 17
d) a ideia de cooperação entre cérebros – isto é, muitos cérebros conectados através da rede mundial de computadores, juntos e sem supervisão, criam serviços e fomentam ideias, haven- do com isso uma espécie de borramento da ideia de direitos autorais; e) a ideia do capitalismo cognitivo, quando o consumidor não consome mais um produto, mas uma cadeia de valor e o pertencimento a um mundo que as marcas constroem.
Ademais, a relação da produção mental e do trabalho é bastante interessante quando se toma a ideia de tempo: não há mais tempo fixo para o trabalho e, portanto, o tra- balhador passa boa parte de sua vida, atualmente, conectado ao trabalho. Isso faz com que ele não tenha mais um salário e, sim, uma renda, e que se submeta a condições precárias de trabalho, aceitando se submeter ao menor preço, entrando no jogo da concorrência e acarre- tando a desvalorização do trabalho e do trabalhador e o aumento de lucratividade, empobre- cendo o sujeito.
Essas características que Saraiva (2014) apresenta estão relacionadas com a mu- dança da lógica liberal para a neoliberal. Tais características vão, segundo a referida autora, tomando conta de diferentes âmbitos sociais, inclusive do educacional. O âmbito educacional é importante para o mercado e para o Estado, porque é através da escola, das universidades e das outras instituições de ensino que a lógica neoliberal pode ser transformada em biopo- lítica. Nas escolas, essas características se fazem presentes em modelos pedagógicos que focam no trabalho imaterial, nas críticas contínuas ao modelo disciplinar, na ideia dos alunos como ativos da gestão de sua aprendizagem, na comunicação incentivada, na pedagogia de projetos, na subjetivação do tempo, na educação por competências e na ideia de uma contí- nua aprendizagem (a chamada formação continuada, o “aprender por toda a vida”).
Entendemos, então, o neoliberalismo como uma ação política, biopolítica, social, ou seja, como uma lógica pautada pela premissa do livre mercado, e que o livre mercado necessita de sujeitos profissionais formados nessa mesma matriz de pensamento para inseri- rem-se como mão de obra específica e barata. As instituições profissionalizantes se apresen- tam como fortes aliadas do neoliberalismo, e os Institutos Federais de Educação Ciências e Tecnologia, como formadores profissionalizantes, se pautam nos mercados regionais, através de pesquisas, para criar e dar andamento aos projetos pedagógicos de seus cursos.
4 O INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL – CAMPUS ERECHIM
No site do Ministério da Educação encontra-se uma linha do tempo que ajuda a entendermos a evolução da rede educacional federal de ensino profissionalizante. Tal linha de tempo mostra que os Institutos Federais foram fundados em 2008 pela Lei no 11.892 e estão vinculados à Secretaria de Educação Tecnológica (SETEC) do Ministério da Educação (MEC). Contudo, eles estão ligados à história da educação profissional no Brasil, que se ini- cia em 1909 com a criação das Escolas de Aprendizes e Artífices, que era subordinada ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2018 – SITE).
18 Em 1909, a criação das Escolas de Aprendizes e Artífices marca o início da es-
colarização pública profissionalizante e o então presidente, Nilo Peçanha, cria 19 escolas ao assinar o decreto no 7.566. A partir da promulgação da Constituição Brasileira, em 1937, es- sas escolas criadas em 1909 passam a ser Liceus Industriais, e a Constituição vai tratar, pela primeira vez, do ensino técnico, profissional e industrial. Com a reforma Capanema, em 1941, o ensino profissionalizante passa a ser considerado em nível médio, o ingresso nas escolas profissionalizantes passa a ser através de exames admissionais e os cursos são divididos em dois níveis: o primeiro, básico industrial, artesanal, de aprendizagem e de maestria; e o segundo, curso técnico industrial. Em 1942, os Liceus Industriais passam a ser chamados de Escolas Industriais Técnicas. Após a Segunda Guerra Mundial, o então presidente Getúlio Vargas recebe investimentos estrangeiros e há certo avanço econômico no Brasil, fato que impulsionou o aumento da rede profissionalizante. Esse avanço industrial se seguiu nos anos de presidência de Juscelino Kubitschek, que, em seu governo, focou na formação de profis- sionais orientados para as metas industriais econômicas do país.
Em 1961 há a promulgação da Lei 4.024, que se refere às Diretrizes e Bases da Educação Nacional e, a partir deste momento, o ensino profissional se equipara ao ensino acadêmico. Ainda, na década de 1960, são fundadas as escolas técnicas agrícolas. No final da década de 1970, três escolas técnicas federais, do Paraná, Rio de Janeiro e Minas Gerais, são transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica. Na década de 1990 há grande avanço tecnológico e uma mudança forte nos meios de produção brasileiros, o que torna possível uma nova política de ensino profissionalizante: é instituído o Sistema Nacional de Educação Tecnológica, o Programa de Expansão da Educação Profissional e retoma-se o processo de transformação das Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Edu- cação Tecnológica (CEFET). Nos anos 2000 há a integração do Ensino Médio com o Ensino Técnico, e em 2008 as escolas técnicas federais tornam-se Institutos Federais de Educação, Ciências e Tecnologia.
De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso de Tecnologia em Design de Moda (IFRS, 2016), o Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande Sul foi criado juntamente com a Lei 11.892. Esta instituição, inicialmente, integrou o Centro Fede- ral de Educação Tecnológica de Bento Gonçalves, a Escola Técnica Federal de Canoas e a Escola Técnica Federal de Sertão. No decorrer do processo de federalização integrou-se ao IFRS as escolas técnicas dos municípios de Porto Alegre, Rio Grande, Farroupilha, Feliz e Ibirubá. Além dessas, foram instituídos novos campi em Erechim, Caxias do Sul, Osório e Restinga. Atualmente, o IFRS conta com 17 campi, tendo sua reitoria na cidade de Bento Gonçalves (RS).
O campus Erechim inicia sua trajetória acadêmica com a implantação da Escola Técnica Federal do Alto Uruguai, em 2007, por meio da doação de um terreno da prefeitura municipal de Erechim à rede federal de educação. As atividades administrativas se iniciaram em 2008 e, a partir de 2009, há a nomeação de professores e acontece o primeiro processo seletivo para ingresso discente. As atividades letivas começam em 2010 e o Campus Erechim oferta, na ocasião, quatro cursos técnicos subsequentes ao Ensino Médio: Agroindústria, Me- cânica, Vendas e Vestuário. Atualmente, o campus conta com cinco áreas de conhecimento
RASTROS NEOLIBERAIS NO CURRÍCULO DE UM CURSO DE DESIGN DE MODA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL
(Mecânica, Informática, Alimentos, Gestão e Moda) e com onze cursos: Técnico concomitante ao Ensino Médio em Informática e em Produção de Moda; Técnico em Alimentos, Finanças, Logística, Mecânica e Modelagem do Vestuário; Superior de Tecnologia em Marketing e em Design de Moda e bacharelados em Engenharia de Alimentos e Engenharia Mecânica.
5 O PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA DO IFRS
O CST em Design de Moda do IFRS – Campus Erechim iniciou no ano de 2013 e seu objetivo, de acordo com o projeto pedagógico, é
formar profissionais qualificados na área da Moda, com competências e habilidades para elaborar e gerenciar projetos com soluções ino- vadoras para a indústria do vestuário, fundamentados na cultura do design, considerando fatores estéticos, simbólicos, culturais, ergonô- micos, tecnológicos e produtivos, pautando-se em uma postura ética e de responsabilidade social (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, 2017, p.18).
Por meio da análise do excerto, depreende-se que os profissionais formados por este curso devem entender o mercado de moda no qual serão inseridos, e devem pensar so- bre esse mercado de forma a melhorá-lo principalmente com base na inovação e na socieda- de consumidora. Há ênfase no aprendizado orientado por “competências e habilidades”, bem como na “inovação”, na busca das metodologias do design para a “solução de problemas” e no desenvolvimento de “projetos com soluções inovadoras” – o que, como vimos, são carac- terísticas distintivas da lógica neoliberal.
Para que os objetivos do curso sejam alcançados, ele conta com diferentes disci- plinas orientadas para a profissionalização, formação básica e específica. O curso tem 2061 horas divididas em seis semestres e 37 disciplinas. Cada semestre apresenta disciplinas vol- tadas para ação prática, teórica e estratégica da área de moda e vestuário (ver Tabela 1):
Tabela 1 Matriz curricular do Curso Superior de Tecnologia em Design de Moda.
Semes- tre Nº Componente curricular C.H. Teó- rica C.H. Prática Horas Aula Pré- requisitos 1 1 História da Moda I 28 5 40 2 Desenho 1 10 56 80 3 Laboratório de Pesquisa e Criação 10 23 40 4 Modelagem I 10 56 80 5 Fundamentos do Design 20 13 40 6 Materiais e Processos Têxteis I 33 33 80 7 Leitura e Produção Textual 33 0 40 Importar tabla
Carga horária total do semestre 400 2 8 História da Moda II 28 5 40 História da Moda I 9 Desenho II 10 56 80 Desenho I 10 Desenvolvimento de Coleção I 30 36 80 Laboratório de Pesquisa e Cria- ção e Fundamentos do Design 11 Modelagem II 0 66 80 Modelagem II 12 Materiais e Processos Têxteis II 30 16 40 Materiais e Processos Têxteis I 13 Metodologia Científica 23 10 40 Leitura e Produção Textual 14 Informática Aplicada à Moda 16 17 40 Carga horária total do semestre 400 3 15 História da Moda III 28 5 40 História da Moda II 16 Desenho III 7 26 40 Desenho II 17 Desenvolvimento de Coleção II 30 36 80 Desenvolvimento de Coleção I 18 Modelagem III 0 66 80 Modelagem II 19 Planejamento de Encaixe, Risco e Corte 10 23 40 20 Empreendedorismo 25 8 40 Leitura e Produção Textual 21 Gestão do Design 23 10 40 22 Semiótica 23 10 40 Carga horária total do semestre 400 4 23 Sociologia da Moda 28 5 40 História da Moda III 24 Desenho IV 6 60 80 Informática Aplicada à Moda e Desenho III 25 Desenvolvimento de Coleção III 30 36 80 Desenvolvimento de Coleção II 26 Modelagem IV 0 33 40 Modelagem III 27 Costura I 10 56 80 28 Marketing e Pesquisa de Mercado 25 8 40 Empreendedorismo 29 Gestão Ambiental e Ecodesign 20 13 40 Importar tabla
RASTROS NEOLIBERAIS NO CURRÍCULO DE UM CURSO DE DESIGN DE MODA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL
Carga horária total do semestre 400 5 30 Operacionalização da Produção 20 46 80 Costura I 31 Costura II 0 66 80 Costura I 32 Modelagem V 0 66 80 Informática Aplicada à Moda Modelagem IV 33 Projeto Interdisciplinar 0 120 120 * 34 Produção de Moda 23 10 40 Desenvolvimento de Coleção III Carga horária total do semestre 400 35 Trabalho de Conclusão de Curso 0 264 320 Projeto Interdisciplinar 36 Optativa I** 40 37 Ética e Sociedade 33 0 40 Carga horária total do semestre 400 Importar tabla
Fonte: Adaptado pelas autoras a partir do Projeto Pedagógico do Curso (2017) disponível em: https://ifrs.edu.br/erechim/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Projeto-Pedag%C3%B3gico-do-
-Curso-de-Tecnologia-em-Design-de-Moda.pdf.
6 O NEOLIBERALISMO NOSSO DE CADA DISCIPLINA
Analisa-se, a seguir, o Projeto Pedagógico (PPC) do referido Curso Superior de Tec- nologia em Design de Moda a partir do entendimento já expresso acerca do neoliberalismo e de seus múltiplos atravessamentos (ou rastros) na Educação. Busca-se focar a análise em diversos pontos do PCC: a justificativa; a proposta político-pedagógica; os objetivos; o perfil do curso e do egresso; nos princípios filosóficos e pedagógicos; na matriz curricular do curso; e nas ementas e objetivos das disciplinas. A análise voltará o olhar para as características já citadas anteriormente: para a autonomia máxima dos sujeitos, para o discurso da inovação, do trabalho em equipe, da gestão de si, do cumprimento de metas etc.
Como apresentado anteriormente, a lógica neoliberal consiste em se pautar no mer- cado, e em diferentes ações estatais. Na justificativa da implementação do curso, há um excerto pertinente à perspectiva neoliberal:
[...] em função da complexidade das inovações, as oportunidades são maio- res para aqueles que estão preparados para as novas necessidades do mun- do do trabalho e para atuar em igualdade de condições e, esse preparo pas- sa, necessariamente, pela educação, base para o conhecimento, pelo saber e pelo aprimoramento humano. O mercado nacional do vestuário passa por uma crescente valorização de produtos com qualidade, sugerindo que o cam-
po da moda/confecção/vestuário está em franco processo de consolidação,
mas para que isso ocorra de forma orientada será necessária a formação de profissionais qualificados, capazes de atualizar os processos produtivos e administrativos, visando ao aumento da produtividade, melhoria da qualidade e redução de custos das indústrias e empresas de confecção, tornando-as mais competitivas dentro de um mercado globalizado (PROJETO PEDAGÓ- GICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 15, 2017).
Este trecho, retirado da apresentação do PPC, deixa evidente que a sociedade está mudando, e que as mudanças do perfil profissional precisam estar em consonância com a atuação dos cursos profissionalizantes. Pode-se, ainda, destacar o pensamento de Ferreira (2017) sobre a intensificação da concorrência, quando afirma que “o exercício da concorrên- cia está intrinsecamente ligado com a invenção contínua, com a inovação, o que acelera o ciclo do consumo. A concorrência nesta racionalidade se estabelece pela criação constante de novos desejos” (p. 39).
Outro excerto interessante de se destacar também está na justificativa para a im- plementação do curso:
Torna-se importante salientar que esse curso está voltado à nova concepção de educação profissional, especialmente a de nível tecnológico, que requer muito mais que a formação técnica específica para um determinado fazer, ela requer o conhecimento científico, a construção do saber tecnológico, a compreensão global do processo produtivo, o domínio operacional de uma determinada técnica de trabalho e a mobilização dos valores necessários à tomada de decisões profissionais e ao monitoramento dos seus próprios desempenhos profissionais (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPE- RIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 16, 2017).
Chama a atenção, no referido excerto, a ideia de que o aluno do curso de Design de Moda seja capaz de fazer o “monitoramento dos [seus] próprios desempenhos profissio- nais” – ou seja, que ele desenvolva a habilidade de auto-gestão e de autoavaliação para, en- tão, aperfeiçoar-se na gestão de si mesmo. Saraiva (2014) explica que o “neoliberalismo bus- ca tornar cada um empresário de si, gerindo sua vida como se fosse uma empresa” (p. 14); além disso, Veiga-Neto (2000) afirma que esse sujeito – o empresário de si – é o sujeito ideal para o neoliberalismo, porque ele se torna (supostamente) livre e competente para o consumo e a concorrência, podendo ser responsabilizado pelas suas ações, sucessos e fracassos.
Após a análise da justificativa para a implementação do curso, os objetivos, tanto geral quanto alguns objetivos específicos, denotam “rastros” de neoliberalismo, principalmen- te no que concerne o gerenciamento de projetos, capacidades inovadoras, trabalho em equi- pe e gestão de si. O objetivo geral do curso é o que segue:
Formar profissionais qualificados na área da Moda, com competências e ha- bilidades para elaborar e gerenciar projetos com soluções inovadoras para a indústria do vestuário, fundamentados na cultura do design, considerando fa- tores estéticos, simbólicos, culturais, ergonômicos, tecnológicos e produtivos, pautando-se em uma postura ética e de responsabilidade social (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, 2017, p. 16).
Já os objetivos específicos que se destacam na perspectiva do governamento
neoliberal são:
· Otimizar, durante a formação do profissional, o de- senvolvimento das características indispensáveis para a atuação em equipes multidisciplinares;
· Desenvolver a capacidade empreendedora do profis- sional, visando seu aperfeiçoamento contínuo, bem como a produção de novos conhecimentos e tecnologias, fomentando novas práticas profissionais em design de moda; (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 19, 2017).
Em relação ao gerenciamento de projetos – outra habilidade dos profissionais di- tos “qualificados” na área da Moda –, Saraiva (2014) explica que se trata de uma característi- ca do trabalho imaterial, que é uma modalidade de trabalho que vem se tornando hegemônica na lógica neoliberal. Essa ideia de trabalho imaterial também é responsável pela atuação de sujeitos no trabalho em equipe. Além disso, Veiga-Neto (2000) explica que, na contempora- neidade, “cresce a demanda por sujeitos cuja competência mais exigida é saber atuar em tarefas cooperativas” (s/p) – e, ao lermos os objetivos específicos do Curso, percebe-se que essa é uma característica presente ali. No segundo objetivo específico, aparece novamen- te a ideia de sujeitos empreendedores, mostrando que o curso, além de profissionalizante, também é atravessado pelas ações biopolíticas, que, de acordo com Saraiva (2014), buscam produzir esse tipo de sujeito.
No capítulo “Perfil do curso”, há um excerto interessante para pensar a ideia de
sociedade de aprendizagem:
Dessa forma, destaca-se, na formação do Tecnólogo em Design de Moda, a necessidade de permanente aprofundamento e atualização com relação às produções científico-tecnológicas da sua área de atuação, bem como a reflexão sobre o contexto socioeconômico em que está inserido o profissional (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 20, 2017).
Saraiva (2014) entende que a “ênfase em uma educação por competências e as noções de aprendizagem por toda vida e sociedade de aprendizagem” (p. 153) vêm se tornan- do essencial para a sociedade neoliberal. Na educação, a sociedade de aprendizagem toma o lugar da sociedade do ensino, ou seja, a escola não mais ensina algo para a vida, mas, sim,
o sujeito deve aprender um ofício para o trabalho e, para manter-se empregado, o sujeito ne- cessita de constante aprendizado (FERREIRA, 2017). Ainda de acordo com Ferreira (2017),
as tendências dizem que devemos ser aprendizes ao longo da vida e é isso que fará – e em muito já faz – essa sociedade funcionar. Um sujeito que aprende a aprender e que nunca finaliza sua aprendizagem é capaz de se reconfigurar de acordo com as tendências do mercado e assim se mantém competitivo e útil à manutenção da governamentalidade neoliberal (p. 35).
Além do imperativo da contínua aprendizagem e da educação continuada, no que
se refere ao perfil do egresso, o projeto pedagógico afirma que o egresso deverá ter habilida-
24 des e competências específicas. Dessas, destacam-se as seguintes:
· Criatividade para propor soluções inovadoras: idealizar propostas cria- tivas para determinadas demandas de consumo, de forma contextualiza- da com os aspectos sociais, culturais e econômicos de onde se insere o público consumidor;
· Compreensão inter e multidisciplinar: aplicar conhecimentos interdisci- plinares durante o processo de desenvolvimento de projetos de produtos de moda, bem como atuar em equipes multidisciplinares, interagindo com áreas afins;
· Capacidade empreendedora: adotar postura de constante aperfeiçoa- mento profissional e produção de novos conhecimentos, assumindo o compromisso com o desenvolvimento da indústria de confecção do ves- tuário e da área da moda em especial, considerando princípios éticos e de responsabilidade social (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SU- PERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 20 e 21, 2017).
Ferreira (2017) explica que a produção de inovação, na contemporaneidade, substitui a ideia da produção em série, presente na lógica liberal. A produção da inovação pauta-se no pensamento não só de produtos com novas habilidades e novas tecnologias, mas também na produção de soluções inovadoras para os consumidores (SARAIVA, 2014). Os aspectos criativos dos sujeitos, que geram as inovações, não submetem os corpos à um local específico, mas tornam as mentes flexíveis, e possibilitam que os sujeitos cooperem entre si não somente dentro da escola, ou empresa, mas sim em qualquer lugar que estejam (SAIRAIVA, 2014).
Mais adiante, no mesmo excerto, a capacidade de “atuar em equipes multidisci- plinares” incentiva, novamente, os sujeitos à comunicação, ratificando o que Saraiva (2014) chama de “cooperação entre cérebros”. Além disso, há forte relação com o capitalismo cog- nitivo, na medida em que se entende que, no momento da atuação em equipe, o profissional estará elaborando algum trabalho imaterial ou gerenciando projetos. Por fim, cabe ressaltar que, novamente, a capacidade empreendedora aparece como central na lógica neoliberal, orientando o sujeito-empresa a pautar suas atitudes como o mercado exige, se auto-gerindo, gerando renda para a sociedade cada vez mais carente de empregos (FERREIRA, 2017). O empreendedorismo também tem forte relação com a ideia de inovação, solução de problemas e gestão de projetos, na medida em que, segundo Dornelas (2014), ele fomenta o pensamen- to de novas oportunidades de negócios pautando nas necessidades do mercado.
Algumas disciplinas do currículo do CST em Design de Moda são apresentadas a seguir, pois entende-se que aspectos das diretrizes curriculares nacionais e dos projetos pe- dagógicos dos cursos são colocados em prática a partir das matrizes curriculares dos cursos.
Analisando algumas disciplinas
Voltando nossa atenção às disciplinas, ementas e objetivos que o Projeto Pedagó- gico do Curso (PPC) apresenta, podemos começar pela disciplina “Laboratório de Pesquisa e Criação”, cuja ementa apresenta conteúdos como “Técnicas de criatividade” e “Criatividade e processos de criação aplicados ao design de moda”. Seu objetivo é “desenvolver a capa- cidade criativa por meio da utilização de técnicas de criatividade, associadas à pesquisa de
materiais alternativos que possam ser utilizados na área da moda” (PROJETO PEDAGÓGI- 25
CO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, 2017 p. 31). Esses
conteúdos e o objetivo de formação da disciplina apresentam relação com a forma de trabalho imaterial apresentada por Saraiva (2014), cuja centralidade está nas atividades intelectuais e linguísticas do sujeito.
Indo mais adiante na matriz curricular do curso, a disciplina de “Empreendedoris- mo”, que é ofertada no terceiro semestre, apresenta como objetivo:
Desenvolver a capacidade empreendedora, dando ênfase às especificidades do mercado de moda, apresentando técnicas de identificação e aproveita- mento de oportunidades, na aquisição e gerenciamento de recursos neces- sários ao negócio de moda, estimulando a criatividade e a aprendizagem pró-ativa [sic] (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TEC- NOLOGIA EM DESIGN DE MODA, p. 43, 2017).
É importante salientar que esta disciplina apresenta conteúdos voltados ao pro- cesso empreendedor, às características empreendedoras e à formulação de uma empresa fictícia. Garcia (2001) mostra que, mesmo havendo uma multiplicidade de sujeitos, estes são conduzidos a atuar em uma ética de autonomia e liberdade, e essas características estão bastante presentes nas pedagogias escolares atuais. Do objetivo da disciplina, vale destacar a “aprendizagem pró-ativa” como sendo uma representação da autonomia do sujeito perante os conteúdos da disciplina, dando ênfase ao aluno como ativo no processo de aprendizagem, deixando o professor em segundo plano.
Ainda no terceiro semestre, a disciplina de “Gestão do Design” se apresenta com o objetivo de “compreender conceitos associados à gestão do design, bem como suas con- tribuições nas estratégias das empresas de moda” (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE MODA, 2017, p.43). Alguns dos conteúdos
da disciplina são os seguintes: “Modelos de gestão” e “Contribuições da gestão do design na estratégia da empresa de moda”. Tanto no objetivo da disciplina quanto nos conteúdos abor- dados pela ementa, há a prática da educação na gestão de si e na aplicação de diferentes formas de gestão empresarial, sustentando a ideia de “cérebros flexíveis” desenvolvida por Saraiva (2014). A referida autora mostra que o mercado não estaria mais interessado em corpos dóceis, mas em cérebros flexíveis, corpos que “já não priorizam a obediência a regu- lamentos, mas são geridos pelo próprio sujeito” (SARAIVA, 2014, p.148).
A próxima disciplina a ser considerada é “Marketing e Pesquisa de Mercado”, cujo objetivo é “conhecer os processos de marketing no que tange ao mercado de moda, compreendendo a elaboração de pesquisas de mercado com foco nos segmentos de moda” (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM DESIGN DE
MODA, 2017, p. 48). Dos conteúdos que a ementa apresenta, destaca-se dois que são inte- ressantes de serem analisados: “Ambiente de marketing: macroambiente e microambiente voltados ao mercado da moda” e “Elaboração de Pesquisa de Mercado.” Os autores Phillip Kotler e Kevin L. Keller iniciaram os estudos do Marketing e o elucidaram em um livro, que eles chamam de “A Bíblia do Marketing”, intitulado Administração de Marketing (2006). Ao dis- correr sobre os ambientes de marketing e sobre pesquisa de mercado, os autores deixam cla-
26 ro que esse tipo de pesquisa deve ser constante na vida das empresas e dos pesquisadores;
RASTROS NEOLIBERAIS NO CURRÍCULO DE UM CURSO DE DESIGN DE MODA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO 0
SUL
segundo eles, “toda empresa deve organizar e manter um fluxo contínuo de informações para seus gerentes de marketing” (KOTLER; KELLER, 2006, p.71). Ao abordar tais conteúdos, a disciplina em questão volta-se totalmente para o mercado e para a necessidade constante de pesquisa dos hábitos dos consumidores de moda. Acerca da suposta necessidade de os sujeitos, na contemporaneidade, continuamente aprenderem, Santaiana (2015) afirma que “os limites cederam espaço para o ilimitado, onde nunca se está formado o suficiente, onde é preciso aprender continuamente, os corpos dóceis e localizáveis espacialmente cederam espaço para a flexibilidade e fluidez. Tais características formam um caminho propício para as conduções de práticas intersetoriais, como discutirei oportunamente” (SANTAIANA, 2015,
p. 97). Ela acrescenta: “é a moeda corrente contemporânea, pois o modo de vida neoliberal exige isto dos sujeitos: uma constante atualização e renovação de seu modo de vida, seu trabalho e sua formação” (SANTAIANA, 2015, p. 97). Assim, entende-se que a disciplina em questão, ao abordar conteúdos que ratificam a pesquisa e a atualização constantes, está im- buída da lógica neoliberal.
Para finalizar, chamamos a atenção para a disciplina de “Projeto Interdisciplinar”,
que se conecta às teorias neoliberais quando propõe, em seu objetivo:
Desenvolver a capacidade de aplicação dos conhecimentos adquiridos du- rante o curso de forma a integrar os conteúdos trabalhados nos demais com- ponentes curriculares, despertando uma postura ética e de responsabilidade social pautada na valorização das relações étnico-raciais e dos aspectos ar- tísticos, culturais e de sustentabilidade no desenvolvimento do produto de moda (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLO- GIA EM DESIGN DE MODA, 2017, p. 52).
Nesta disciplina, os professores atuam como orientadores dos projetos de cole- ção que os alunos desenvolvem ao longo do semestre. As tarefas são divididas em etapas e cada aluno as realiza da forma como acredita ser mais eficaz, seguindo as metodologias de desenvolvimento de coleção que lhe são passadas. Esta disciplina muito se aproxima das pedagogias de projeto que, de acordo com Saraiva (2014, p. 151), são desenvolvidas “por equipes de trabalho, privilegia[ndo] temáticas ligadas aos interesses dos alunos, coloca[ndo] como tarefa principal do professor a orientação do trabalho dos grupos e delega[ndo] a eles a responsabilidade de planejar e executar o projeto”.
Nesta disciplina há a preocupação em formar um sujeito proativo, apto a solucio- nar problemas inerentes ao Design de Moda, além de flexíveis e comunicativos. Os alunos se utilizam de laboratórios de informática, laboratórios de desenho, laboratórios de modelagem, laboratórios de costura e laboratórios de produção de moda, não fixando seus corpos em um único ambiente que tem por objetivo discipliná-los.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se, por um lado, para a maioria dos estudantes é importante aprender a posicio- nar-se no mercado de trabalho contemporâneo, por outro lado, as muitas características que o mercado exige do trabalhador faz com que várias pessoas ainda não consigam ter uma
profissão.
De acordo com Saraiva (2014, p. 151), “embora se modifiquem as estratégias, a
governamentalidade neoliberal continua utilizando-se da educação como uma ação biopo- lítica para (con)formar os indivíduos”. Ainda estamos formando indivíduos para o mercado, contudo, exigindo deles diferentes características, agora mais focadas na comunicação, na proatividade, na flexibilidade dos corpos e mentes, e na capacidade de inovação e empreen- dedorismo.
Como dito anteriormente, fica claro que todos os cursos que se propõem a formar profissionais seguem, de alguma forma, a lógica neoliberal. Entretanto, entender tal fato e suas implicações pode auxiliar os professores e os profissionais acadêmicos a agirem com maior consciência de suas atividades letivas. O conhecimento da contemporaneidade, das lógicas de organização sociocultural e, sobretudo, o aperfeiçoamento do professor descons- trói a ação mecanizada. Assim, se a ação pedagógica “está implicada na produção e na fa- bricação de seres humanos exercendo uma forma de governo” (GARCIA, 2001, p. 34), isso quer dizer que todo o conteúdo apresentado pelo professor, a forma como ele o apresenta, os autores que utiliza, a seleção dos materiais, o local onde ele ensina, dentre outros fatores, convergem para a formação de um certo tipo de sujeito. Resta perguntar: quais sujeitos estamos querendo formar?
Referências
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