Artigos
MAQUIAGEM E MODA: DISRUPTURAS¹
Makeupand Fashion: disruptions
Maquillaje y moda: discontinuación
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 5, núm. 2, 2021
Recepção: 13 Janeiro 2021
Aprovação: 24 Março 2021
Resumo: Este artigo trata da maquiagem, interpretada como fenômeno do sistema de moda e entabula conexões com a formação oferecida aos profissionais deste sistema. A discussão se iniciou com o sentido da aparência na vida dos sujeitos-moda, destacando a participação da maquiagem na construção imagética pessoal. Delimitada a pertinência do tema ao conceito filosófico da moda,considerou-se a presença da maquiagem e seus desdobramentos na formação do Bacharel em Moda da UDESC. Foramcotejadas as características da maquiagem na composição do sujeito-moda e inúmeras aplicações criativas e educacionais, de caráter experimental e sensível, que se concretizaram por meio de elaborações práticas e teóricas em outros campos formativos. A reflexão desta pesquisa identificou que os saberes presentes na formação em Moda são transversais e complementares aos conhecimentos em torno da maquiagem, assim como apontou usos inventivos e disruptivos da maquiagem.
Palavras-chave: Maquiagem, Moda, Formação acadêmica.
Abstract: The article deals with makeup, interpreted as a phenomenon of the fashion system, opening connections with the training offered to professionals in this system. The discussion started with the sense of appearance in the life of the fashion subjects, highlighting the participation of makeup in the construction of personal imagery. Having delimited the relevance of the theme to the philosophical concept of fashion, the presence of makeup and its consequences in the formation of the bachelor's degree in fashion at UDESC was considered. The characteristics of makeup were compared in the composition of the fashion subject and some creative and educational applications, of an experimental and sensitive character, which were materialized through practical and theoretical elaborations in other training fields. The reflection of this research identified that the knowledge present in the formation in Fashion are transversal and complementary to the knowledge around the makeup, as well as pointed out inventive and disruptive uses of the makeup.
Keywords: Makeup, Fashion, Academic education.
Resumen: El artículo trata sobre el maquillaje, interpretado como un fenómeno del sistema de la moda, y hace conexiones con la formación que se ofrece a los profesionales en este sistema. La discusión se inició con el sentido de aparición en la vida de los sujetos de moda, destacando la participación del maquillaje en la construcción de la imagen personal. Delimitada la relevancia de la temática al concepto filosófico de moda, se consideró la presencia del maquillaje y sus consecuencias en la formación de la licenciatura en moda en la UDESC. Se compararon las características del maquillaje en la composición de la asignatura de moda y algunas aplicaciones creativas y educativas, de carácter experimental y sensible, que se materializaron a través de elaboraciones prácticas y teóricas en otros campos formativos. La reflexión de esta investigación identificó que los conocimientos presentes en la formación en Moda son transversales y complementarios al conocimiento en torno al maquillaje, así como apuntó usos inventivos y disruptivos del maquillaje.
Palabras clave: Maquillaje, Moda, Formación académica.
1 INTRODUÇÃO
Entre as possíveis observações comportamentais dos sujeitos-moda,[4] o hábito de maquiar o rosto[5] tem um lugar de destaque. Tal prática cultural antiga aparece sob novas perspectivas, correlacionada ao sistema de moda e como elemento constituinte de uma sociedade espetacularizada, a partir da ótica de Maffesoli (1996, p.123) sobre a estética social da pós-modernidade.
A maquiagem é considerada como um dos fatores que possibilitam que a identidade, o corpo e o consumo se relacionem em contínua ressignificação. Ela agencia uma forma de ocupação dos espaços e participa das paisagens humanas no território das cidades. Sendo mais do que um produto de consumo, encaixa-se ao que Sant’Anna (2009, p.75) descreve como exercício de moda e, portanto, associada ao fenômeno social total de moda, nos termos de Baudrillard (1995).
Se tais questões vinculadas à maquiagem são instigantes e justificam um artigo acadêmico, em nosso caso, tais práticas sempre associadas ao mundo fashionforam também tangenciadasa partir do campo de formação no ensino superior dos profissionais de moda.
No percurso investigativo que nos moveu para estabelecer pontes entre o mundo social da contemporaneidade e as práticas de maquiagem, foram identificados, nos campos das artes cênicas e das artes visuais, exemplos de articulação dos saberes teóricos e práticos do maquiar ao campo da educação estética[6]. Tais exemplos compõem um diálogo iniciado entre o desejado e o existente.
Visto que a compreensão das aparências está presente na análise dos hábitos sutis do cotidiano, que ao serem discutidos dentro de sala de aula possibilitam uma aproximação com a sociedade, reconhecemos a maquiagem como elemento vivo e efêmero o qual concentra o impacto da imagem pessoal. Por isso, discutimos a maquiagem na formação acadêmica para formar profissionais criativos e atentos aos movimentos sociais.
2 CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DA MAQUIAGEM
Imersos em uma sociedade pós-moderna, sobremoderna[7], hipermoderna[8] ou contemporânea, entre as nomenclaturas que buscam titular a temporalidade vivida, o fenômeno de moda se faz constante. A moda, nesta dimensão é entendida comoethos, ou seja:
A moda é o ethos consumado da sociedade da sobremodernidade, do tempo do lazer e do desencaixe, da sociedade alimentada e regulada pelo prazer de ver e de ser visto. É isso que justifica ser a imagem o cerne do mito da sociedade atual (SANT’ANNA, 2009, p.97).
Esse ethos vincula-se à permanente produção do novo, que se torna categoria de hierarquização dos significados, conforme a concepção de Baudrillard(1995). Assim, o sistema produtivo de moda é encadeado pelo movimento de lançamento de novas tendências, massificadamente reproduzidasem inúmeras mercadorias postas à compra que, posteriormente,sofrem obsolescência, a fim de que haja a ascensão de uma próxima tendência e novos consumos.Esse ciclo funciona além da reprodução e renovação de mercadorias. É por meio de um jogo de apropriações simbólicas que o fenômeno do consumo ocorre e se espraia além dos seus próprios objetos. Tal dimensão de consumo do novo, além de operar na manutenção do capitalismo, reduz o sujeito social a consumidor, cúmplice da reprodução de privilégios e discriminações por significar a existência social na posse de coisas.
Dentre as estratégias desse sistema, cabe refletir sobre a existência de um capital-aparência-corporal (PAGÈS-DELON,1989, p.170), isto é, a acumulação de elementos que se interligam através de investimentos diários, como as práticas associadas à saúde, à beleza e ao vestir, na busca insaciável da renovação de si mesmo. A maquiagem está inserida nessas práticas, ou seja, além de ser um produto de moda, tanto os cosméticos quanto as diversas atividades que entornam o setor mercadológico referente à maquiagem e beleza, o hábito de maquiar-se confere um investimento que deve ser bem calculado para acumular vantagens em favor do papel social a ser usufruído, e, portanto, é uma prática indispensável ao sujeito-moda.Assim como o não uso sugere uma contrariedade à performance e ao consumo[9].
Vendo por outra ótica, que não seja da sujeição do sujeito-moda para a aparência idealizada, compreendem-se três possibilidades disruptivas do corpo: como lugar de identificação, de comunicação e relação com o mundo – de experiência prazerosa de si.
Na primeira opção, a da identificação, mais flutuante e imprecisa que a identidade, Maffesoliafirma:
Ao mesmo tempo em que se observa a saturação do indivíduo indivisível e uno, há uma emergência da pessoa (persona ou máscara). A pessoa, pois, tem várias máscaras a sua disposição. Ela é, estruturalmente, plural, não mais uma identidade, mas antes, pertencente ao universo das identificações múltiplas (MAFFESOLI, 2008, p.5.).
Logo, a maquiagem pode ser acionada a serviço dos perfis mutantes, de futuro incerto, validado no presente (presenteísmo). As variadas identificações fundam o sujeito pós-moderno como um ser fragmentado que utiliza do consumo de moda para sustentar suas diversas facetas em meio à estetização da vida cotidiana. A intensidade estética é influenciada pelo constante desenvolvimento das práticas virtualizadas e intermediadas por telas que impulsionam o consumo imagético.
Na segunda opção, há de se considerar que a arte e a moda são dois meios de expressão plástica que colocam em evidência a ambivalência e a complexidade das relações entre a cultura local e a cultura de massa globalizante (ADVERSE, 2019, p.23). Os elementos imbuídos no vestir configuram não somente a individualidade, mas são a comunicação simbólica com o outro externo. Essa linguagem não-verbal funciona associando forma e conteúdo, por meio de elementos mediadores que transformam a matéria num processo imbuído de significações.
Impulsionadas pela cultura e apresentando-se em função de processos contextuais, interativos, tais ações “modificadoras” são responsáveis por gerar conformações diferenciadas no próprio corpo. Entre essas, as mais frequentes são: pintura, mutilações, tatuagens, escarificações, maquiagem, cosméticos, cirurgias estéticas etc. Ao incidirem diretamente sobre o corpo, elas acabam por ressemantizá-lo, ou seja, dotá-lo de novos significados (CASTILHO; MARTINS, 2005, p.4).
Por fim, sobre corporalidade e espacialidade, o corpo no mundo, Marina Machado (2012, p.16) chama atenção para criação de uma “poética pessoal” cotidiana, que vem da pesquisa sobre tudo o que é intrínseco à união forma-conteúdo, agregando as emoções, reflexões e conhecimentos.Apresenta que essa poética pode ser interna e existencial e não apenas voltada para a exposição. Sant’Anna (2009, p.20) afirma que é nessa exposição-enunciação que o indivíduo diz como deseja ser visto e assim também constrói uma autoimagem que o significa para si.
Logo, seja pelo viés mais mercadológico e próprio do sistema de moda que, atrelado ao capitalismo, reduz o sujeito aos consumos operados, seja pela dimensão que o corpo adquire na significação de si, alternando-se entre múltiplas identificações, formas comunicativas e prazeres de si, cabe ao profissional de moda estar atento a todas essas dimensões e ser convocado a refletir sobre as transfigurações que podem ser realizadas no corpo por meio das roupas e, especialmente, por meio da maquiagem.
Mas a formação de moda está explorando as diversas expressividades da aparência? A academia inclui a maquiagem como parte dessa formação? Os conteúdos do curso são transversais ao aprendizado de maquiadores?
Antes de adentrar nessa discussão, cabe apresentar as competências e desafios de quem exerce a profissão de maquilador
2.1 A PROFISSÃO
Há maquiadores operantes em diversas frentes de trabalho, pois sua atuação não se restringe aos salões de beleza. Sem regulamentação e formação regulamentada, a aprendizagem da maquiagem segue um modo simples, quase sempre baseado em modelos, no experimentar, no errar e acertar[10].
Segundo Schneider e Reis (2010, p.7-14), pode-se dividir as frentes de atuação do profissional maquiador em:
1. Maquiagem social, para clientes que vão participar de eventos e procuram se embelezar através deste método;
2. Maquiagem artística: envolve a expressão de um conceito através dos materiais plásticos fornecidos pela maquiagem;
3. Maquiagem para palco, cinema e TV: tem relação com criação de personagens e dá atenção ao efeito de luzes especiais;
4. Necromaquiagem: maquiagem feita em cadáveres para velórios, a fim detornar a aparência mais agradável.
Contudo, não só o maquiador poderia trabalhar em mais de uma dessas áreas: as categorias citadas também possuem subdivisões e aprofundamentos de técnicas que exigem especialização.
Além disso, o desenvolvimento contínuo do mercado da beleza colabora para o surgimento de novas áreas de trabalho, modificando e inovando as possíveis atividades.
O trabalho de maquiador contempla a transformação de outra pessoa por meio de uso de pigmentos, artifícios, como cílios postiços entre outros., Enfim, de composição de novas linhas faciais. Disto resulta a responsabilidade de interferir na identificação de outro sujeito consigo mesmo, com o papel social que exerce e, ainda, com o fim social de sua aparência sob a maquiagem produzida. À vista disso, aprofundar a sensibilidade da área é essencial para formação de maquiadores competentes, atentos às singularidades de cada rosto e respeitosos ao trabalhar com múltiplas personalidades.
Por isso, defende-se o desenvolvimento de ensino que torne o profissional sensível e capaz de considerar as interferências sociais desempenhadas pelo exercício da atividade. Logo, uma formação que vá além da explicação de técnicas, como um bacharelado em moda poderia contemplar.
3. O ENSINO DE MODA TRANSVERSAL AO APRENDIZADO DE MAQUIAGEM
O Bacharelado em Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) é uma referência nacional para a área de formação em moda. Porém, a escolha de seu currículo para o presente estudo deve-se ao fato de a autora Maria Manoela ter sido aluna do bacharelado entre 2016 a 2020 e profissional maquiadora ao longo do curso. Apesar de a temática não ser citada no currículo, nem inserida em sala de aula diretamente como um tópico dos conteúdos estudados, ao longo dos semestrestranspuseram-se os fundamentos das disciplinas à área da maquiagem, daínascendo as inquietações que levaram ao desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso, nestas páginas resumido.
Ao entrar no curso, logo no primeiro semestre,os estudantes têm contato com as disciplinas teóricas, como Sistema de Moda e Sociedade e Moda, cujos objetivos são a compreensão da conjuntura da cadeia de produção e a moda como sistema em nossa sociedade. Outras disciplinas de caráter teórico são propostas, contudo voltadas ao debate das influências externas e internas, as quais fomentam desejos, vontades, impulsos e motivações humanas submetidas às tendências do mercado. Lidam com pesquisas de comportamento do consumidor e as características multifacetadas das mentalidades, marcadas pelo excesso de imagens e de informação que ditam os valores momentâneos. Nos últimos anos, a área de sustentabilidade foi incorporada, e os estudantes são motivados a procurar saídas participativas da lógica reversa, ou seja, movimentos que vão contra o consumo desenfreado. São estratégias que pensam num fluxo de reaproveitamento ou retorno correto de materiais em prol da preservação ambiental.
A partir dessas disciplinas teóricas, a questão da maquiagem foi despertada, fazendo surgir questionamentos: porque, quando, onde e como os sujeitos-moda usam do artifício da maquiagem para atuarem socialmente? Como o campo da cosmética estaria fortemente ligado aos problemas da sustentabilidade e da preservação do meio ambiente?
Num primeiro momento, a conclusão foi de que as técnicas de maquiagem se alteravam conforme as exigências que o sistema de moda propunha e se deveria avançar nas reflexões em torno do assunto, refletindo, inclusive, sobre a sua dimensão sustentável.
As disciplinas do eixo criativo e projetual também ofereceram inquietações e fizeram pensar quanto de criação se pode desenvolver no ato de maquiar, a ponto de propor tendências ou desprezá-las, a fim de evidenciar as personalidades em suas subjetividades.
As atualizações no campo da moda são feitas através de pesquisas de tendências que contam com múltiplas fontes de informações, métodos e ferramentas. O Bacharelado emModa foca no processo criativo e na desenvoltura da autoralidade do criador. Disciplinas como Laboratório de Estilo, Conceito e Tema de Coleção de Moda servem como aprofundamento desses processos para geração de temáticas que darão base às invenções práticas. No Curso de Moda, utilizamos muitos painéis imagéticos para visualização das nossas projeções. Desde a disciplinaLaboratório de Criatividade (1ª fase) começamos a aprender a selecionar, capturar, elaborar imagens e relacioná-las dentro de um painel que servirá de inspiração ao projeto. São chamados de moodboardsaqueles que refletem a atmosfera da proposta.Há um painel conceitual autodescritivo do conceito em imagens, direcionando o público-alvo, ou seja, um painel persona. Podendo ter outros painéis como referentes aos materiais que serão utilizados – as cores postas em um painel cromático nomeadas e identificadas de acordo com seu número pantone, e as tendências em que nos inspiramos –foram unidos em um trendboard. Todos esses painéis podem ser direcionados a variados processos criativos, encaixando-se também para maquiagem.
Uma das principais habilidades a se desenvolver para trabalhar com o mercado de moda é a constante atualização, o que é igualmente válido para o profissional maquiador. A reformulação de seus referenciais de inspiração, as técnicas inovadoras, lançamentos de materiais, estudos no âmbito de paradigmas de gestão, funcionamento das novas mídias, entre outros progressos e fatores de direcionamento social, tornaram o maquiador um profissional mais inovador e prospectivo, principalmente quando oespaço virtual deslanchou a maquiagem como técnica de si para muito além do “certo” e “errado”, ofertando a quem desejar o estado de “prossumidor”[11].
Nas disciplinas de comunicação social, há oportunidade de conhecer e exercitar diferentes áreas de atuação do produtor de moda e seus procedimentos criativos e práticos. Destaca-se a presença do maquiador no ambiente de produção de moda, sendo essencial em uma campanha, desfile ou quaisquer outros formatos de divulgação de uma marca ou coleção de moda. Mesmo sem ter uma unidade de estudo específica para a maquiagem, as disciplinas Produção de Moda, Desfile de Formatura e outras afins, dão ensejo para o exercício da maquiagem, como da fotografia para muitos acadêmicos.
Outro eixo de disciplinas que tem forte relação com o aprendizado da maquiagem são as de Desenho, que ocupam a maioria dos semestres[12].Todos os princípios de desenho são aproveitados para o desenvolvimento das habilidades do maquiador, tais como noções espaciais, perspectiva, composição, volumetria, luz e sombra, além do adestramento efirmeza no traço que ajudam na precisão necessária para atividades manuais.
Como as disciplinas de Desenho implicam,também,o aprendizado da pintura, muito contribuem para a desenvoltura de práticas e técnicas, como a reprodução de texturas e estampas, as quais podem vir a ser executadas, tanto no papel, quanto na pele. Segundo Andrade, “O desenho é um jeito de definir transitoriamente, (...) Ele cria, por meio de traços convencionais, os finitos de uma visão, de um momento, de um gesto”(1965, apud. CLARO, 2001, p.101).
Assim, pode-se entender a maquiagem como mais uma maneira de desenhar e pintar. Ela é exercida a partir de materialidades próprias dos cosméticos, dentre outros produtos complementares. É dependente do traço, seja ele realizado pelas mãos, pelos pincéis ou a partir de outras técnicas, como, por exemplo, a tinta no jato de ar[13].
Um exemplo esclarece bem a questão. Trabalhar, tendo como superfície primordial a pele, exige conhecimento de suas cores e subtons. Nem sempre as tonalidades de cosméticos disponíveis no mercado são assertivas e a pigmentação dos produtos pode ser insuficiente para determinadas peles. Todavia, o conhecimento fornecido pela disciplina Estudos Práticos da Cor possibilita que o maquiador não dependa inteiramente dos cosméticos. Os saberes teóricos da cor são amplos, mas, em suma, permitem compreensão de como os matizes se relacionam, sendo necessária a prática para assimilação dessa teoria.Exercitar diferentes técnicas de pintura capacita a montar uma coloração e como se utilizar da luminosidade das cores, relacionando-as. A proposta de desenvolver percepção visual para identificar quais subtons estão presentes, compondo a cor da pele, ajuda a não errar a tonalidade na hora da aplicação da base. Além disso, o conhecimento da cor favorece a pessoa que está sendo maquiada por utilizar composições entre o círculo cromático em relação à pele, cabelo e características particulares, criando um resultado harmonioso. A maquiagem será desenvolvida, conforme as matérias-primas acessíveis, habilidade de misturar bases, corretivos, pigmentos e o que mais for necessário para alcançar a coloração desejada[14].
Para concluir, retornando, a dimensão dos aprendizados disponíveis no Bacharelado em Moda que incrementam a formação do maquiador, é preciso citar as disciplinas que têm como foco o corpo, como as de Modelagem e de Ateliê de Costura. Mesmo que não tenham abordagens antropológicas sobre o corpo e seu papel cultural e histórico na sociedade contemporânea, o exercício de lidar com suas formas ajuda o maquiador a pensar na relação rosto e corpo.
Afinal, além da pele, lidamos com um corpo, uma matéria tridimensional. Isso significa que nada do que projetamos de forma plana irá se manter igual, quando transposto para outra dimensão. Assim sendo, mesmo que a maquiagem seja elaborada em um desenho bidimensional, a transição entre folha e rosto adiciona mais algumas dimensões físicas e sensíveis para o projeto, demonstrando, na prática com o maquiar, o que se dá entre a roupa modelada e costurada,ao ser vestida por um corpo real.
Enfim, ao revisar a grade curricular do bacharelado da UDESC e a experiência de estudante do curso, encontram-se disciplinas em torno da aparência, do corpo, das tendências de moda, artes e criatividade. E mesmo que a maquiagem possa ter sido aperfeiçoada no exercício da profissão pelos aportes trazidos das disciplinas citadas, o conteúdo “maquiagem” não está inserido em nenhum momento da formação acadêmica.
Qual a razão disso, tendo em vista que o universo da moda é um mundo de faces coloridas e transfiguradas? Que o fenômeno da moda exige sujeitos apegados a sua aparência corporal, buscando alterá-la continuadamente para se manterem validados socialmente dentro da sociedade de moda? Seria o caso de falta de valorização da maquiagem como dimensão do sistema de moda? Deve-se a redução do campo da moda ao vestuário?
Tudo nos aponta que todas as questões são válidas e indicam uma percepção superficial de tudo que engloba o sujeito contemporâneo e sua relação com a aparência. Contudo, num curso superior, destinado à formação de profissionais críticos e criativos não englobar a dimensão do corpo maquiado em suas ementas é um indício da limitação de sua autocrítica.
4. A MAQUIAGEM EXPLORADA NO CAMPO EDUCATIVO
Se o Bacharelado em Moda evidencia laços estreitos com a maquiagem a despeito de não abordá-la diretamente, algumas pesquisas no campo artístico e educacional têm se dedicado a incorporá-la em suas inquietações.
O professor Jesus Vivas, no campo dasArtes Cênicas, elaborou, em 2004, a dissertação “A maquiagem no processo de construção do personagem”, enfrentando a carência bibliográfica em torno do tema. O autor também encarou a superficialidade equívoca que a maioria das produções teatrais concebem à maquiagem.
Por isso, em seu trabalho, há um levantamento, sem perspectiva histórica, das máscaras gregas teatrais. Ele propõe a ideia de que a maquiagem seria uma remodelação, para temporalidade veloz da atualidade, das máscaras rígidas do passado para as maleáveis produzidas por cosméticos e, como em outras épocas, responsáveis por traduzir as características físicas e psicológicas marcantesdos personagens.
Essa lente de interpretação do mundo teatral se complementa com a observação de Cidreira(2005) sobre as aparências pós-modernas, onde o corpo de cada sujeito se torna espaço de teatralização do texto que ele expõe aos seus pares. A maquiagem, assim como a máscara, amplia o leque de expressões dos indivíduos, sendo um atributo flexível e dinâmico.
Jesus Vivas colaborou para o desenvolvimento da área e inspirou outros tantos trabalhos, como a monografia efetuada em 2011 por Gustavo Xavier “O ensino da narrativa por meio da maquiagem”. Um trabalho de prática escolar que busca atender as necessidades dos alunos perante a realidade vivenciada. Discute a autonomia e liberdade do sujeito no espaço educacional e no teatro, através da prática do maquiar.
Essas pesquisas citadas ampliaram a abordagem do tema, principalmente por extrapolar os limites teóricos, apresentando experiências práticas. Ambos reconhecem a artisticidade presente no maquiar e defendem a interferência da maquiagem na criação estética conceitual de espetáculos. Além de servir de apoio à transformação do ator em personagem, as práticas relatam autodescobertas, partindo do estudo facial.
Por instigar a intimidade com seu próprio corpo, oferece compreensão de suas faces, ossatura, musculatura e geometria da superfície do rosto. A aplicação de técnicas também envolve experimentação de cores, estudo de referências temporais e a desenvoltura da atividade em coerência com os elementos teatrais de cenário, figurino, sonoplastia e iluminação.
Como artista visual, Tourão (2019, p.16) preparou um projeto fotográfico, cujo objeto de estudo são registros de maquiagens feitas pelo autor. Ele faz sua própria crítica processual, buscando analisar as decisões artísticas que levaram ao conjunto da foto e pintura facial. Sua pesquisa também propõe uma ação pedagógica efetuada com duas sessões abertas de filmes para discussão sobre a maquiagem cinematográfica.
Criando um caminho imagético de memorial reflexivo a partir de suas criações, aproxima a maquiagem das artes visuais e sintetiza que “o nosso comportamento diante de nossas identidades é uma parte de nossa existência que está escrita há muito tempo e continua sendo escrita todos os dias.” (TOURÃO, 2019, p.188).
Das oficinas descritas nos textos, cuja temática envolve maquiagem, distingue-se uma oportunidade de educação estética, pela facilidade contida na técnica da maquiagem doméstica que está em proximidade com o cotidiano popular. Quando as experiências envolvem a automaquiagem, um espaço de intimidade é desperto em volta do autoconhecimento, tanto físico quanto psicológico.
Outro trabalho instigante é de Lilian Nunes. Fruto da intervenção na cidade que envolve a paisagem humana e seus espaços relacionais, o processo de se maquiar é relativo à performatização, que deve ser destacada quando em aparições públicas, inseridas na qualidade física do território citadino, segundo a pesquisadora. Isso porque os modos de vida estetizados são fenômenos provocados pela ocupação criativa do cenário em que o sujeito vivencia suas experiências. O projeto “Corpo Poético” (NUNES, 2007, p.1429) articula conceitos e ações referentes a formas renovadas de apropriação e atribuição de sentido à experiência urbana cotidiana, um projeto de práticas estéticas coletivas, configuradas no âmbito da arte pública e centrada na maquiagem.
Dos projetos artísticos às pesquisas acadêmicas no campo da arte sobre a maquiagem, fica o convite de unir, ou ao menos aproximar, a formação de um profissional voltado para o mercado de moda da maquiagem, para além da técnica e mais próxima de suas potências de identificação, comunicação e prazer de si.
É nessa experiência da contemporaneidade que a maquiagem se destaca como agência de sustentação e viabilização das diversas facetas urbanas, pela brevidade da técnica e múltiplas possibilidades de reinvenção do rosto.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se conectar a maquiagem à moda, amplia-se a discussão sobre a construção da aparência como exteriorização do que somos,o que se considera um vai e vem, visto que a constituição interna do sujeito contemporâneo é produzida pela assimilação e apropriação das questões externas de ambiente, tempo, espaço, cultura etc. Assim, refletiu-se sobre questões subjetivas tanto de ordem individual-psicológica da estudante maquiadora,quanto coletivo-social dos cursos superiores e suas disciplinas, numa sociedade de moda e sujeitos-moda.
Como participantes de um sistema de moda, sendo consumidores passivos ou ativos e críticos, de todo modo, ainda consumidores amarrados ao capital, logo a aparência de muitos modos será adquirida, montada e formulada para ressoar nas relações e nos lugares ocupados, seja na habitação física ou na aparição por meio virtual.
O olhar crítico para a maquiagem percebe a importância desse elemento na construção significativa do todo que é a aparência. Principalmente porque a maquiagem se concentra no rosto, posicionamento primário de comunicação, o qual superficialmente sintetiza a condição do ser. A partir dessa elucidação, sugere-se que o trabalho com maquiagem adquira devida profundidade e responsabilidade.
Questionar o porquê de a maquiagem não estar presente na formação de Moda, propõe a constante reorganização da academia frente aos movimentos do próprio sistema de moda. No sentido de atualizar as discussões, é considerável captar a relevância dos costumes, pois estes somam movimentos culturais, entre comportamentos e tendências de moda que se refletem com significância nos estudos sobre a contemporaneidade.
Nos pontos de vista apresentados, as habilidades entre moda e maquiagem são complementares e, a partir da reflexão de um tema sobre o outro, os saberes de ambos são complexificados. Enfim, os estudos em torno do maquiar possuem capacidade de se ramificar em infinitas microrrealidades e de alcançar diálogo com outros cursos das áreas humanas, das artes e da educação[15].
Intentou-se interromper um seguimento normal e repetitivo de um processo de alijar a maquiagem dos estudos em moda, apesar de estar tão presente nos fazeres dos profissionais de moda, como nas implicações de uma aparência corporal que identifica, comunica e prazerosamente se reconhece como única. Enfim, a aproximação entre maquiagem e moda foi disruptiva, suspendendo o convencional para abrir espaço para o questionamento.
REFERÊNCIAS
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Notas