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Turismo rural e agricultura: um estudo de caso em Três Cachoeiras/RS
Turismo rural y agricultura: un estudio de caso en Três Cachoeiras/RS
Rural tourism and agriculture: a case study in Três Cachoeiras/RS
Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural, vol. 15, núm. 31, 2025
Universidad Nacional de Quilmes

Artículos

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural
Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
ISSN: 2250-4001
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 31, 2025

Recepção: 03 Julho 2024

Aprovação: 04 Junho 2025

https://creativecommons.org/licenses/by/2.5/ar/

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumen: Este artículo presenta un análisis de la estructura del turismo rural en el municipio de Três Cachoeiras. El objetivo fue comprender cómo se organizan las actividades de turismo rural en Três Cachoeiras/RS, a partir del análisis del habitus y la trayectoria de las familias involucradas en las actividades que conforman este sector. Desde un punto de vista metodológico, se optó por un enfoque cualitativo, que favoreció el análisis de la perspectiva de los actores involucrados en las actividades turísticas en el área rural del municipio. La información se recopiló mediante trabajo de campo realizado en dos localidades del municipio de Três Cachoeiras. El trabajo de campo incluyó entrevistas semiestructuradas a propietarios de establecimientos turísticos entre septiembre y octubre de 2023. Con base en la información recopilada durante el trabajo de campo, fue posible identificar las trayectorias de vida de las personas involucradas en el turismo rural en el municipio de Três Cachoeiras y comprender las razones por las que las familias eligen el turismo rural. Así, la investigación reveló, por un lado, que el turismo rural en Três Cachoeiras se basa en la agricultura, lo que permite a las familias obtener una segunda fuente de ingresos. Por otro lado, se constató que la jubilación desempeña un papel importante en los ingresos de las familias y en su continuidad en el sector turístico.

Palabras clave: turismo rural, agricultores, agricultura, ruralidades, pluriatividad.

Resumo: O artigo apresenta uma análise da conformação do turismo rural no município de Três Cachoeiras. Teve como objetivo compreender como se organizou a atividade de turismo rural em Três Cachoeiras/RS, a partir da análise do habitus e da trajetória das famílias que se dedicam às atividades que compõem esse setor. Do ponto de vista metodológico, optou-se por uma abordagem qualitativa, que privilegiou a análise da perspectiva dos atores envolvidos com as atividades turísticas, no meio rural do município. A coleta de informações foi efetuada a partir de um trabalho de campo realizado em duas localidades do município de Três Cachoeiras. O trabalho de campo contou com a aplicação de entrevistas semiestruturadas com proprietários de estabelecimentos turísticos no período de setembro a outubro de 2023. A partir das informações coletadas no trabalho de campo foi possível evidenciar as trajetórias de vida das pessoas envolvidas com o turismo rural no município de Três Cachoeiras e entender a razão das famílias optarem pelo turismo rural. Assim, com a pesquisa verificou-se, por um lado, que a base de sustentação para o turismo rural de Três Cachoeiras está centrada na agricultura, de modo que o turismo rural oferece às famílias uma segunda oportunidade de renda. Por outro lado, foi constatado que a aposentadoria tem papel importante na renda das famílias e na permanência das mesmas na atividade turística.

Palavras-chave: turismo rural, agricultores, agricultura, ruralidades, pluriatividade.

Abstract: This article presents an analysis of the structure of rural tourism in the municipality of Três Cachoeiras. The aim was to understand how rural tourism activities were organized in Três Cachoeiras/RS, based on the analysis of the habitus and trajectory of families involved in the activities that make up this sector. From a methodological point of view, a qualitative approach was chosen, which favored the analysis of the perspective of the actors involved in tourism activities in the rural area of ​​the municipality. The information was collected through fieldwork carried out in two locations in the municipality of Três Cachoeiras. The fieldwork included semi-structured interviews with owners of tourist establishments from September to October 2023. Based on the information collected during the fieldwork, it was possible to highlight the life trajectories of people involved in rural tourism in the municipality of Três Cachoeiras and understand the reasons why families choose rural tourism. Thus, the research found, on the one hand, that the basis of support for rural tourism in Três Cachoeiras is centered on agriculture, so that rural tourism offers families a second income opportunity. On the other hand, it was found that retirement plays an important role in the income of families and in their continued involvement in the tourism industry.

Keywords: rural tourism, farmers, agriculture, ruralities, pluriativity.

Introdução

Com o intuito de estudar a atividade turística no meio rural, o presente artigo tem como foco o turismo rural no município de Três Cachoeiras, localizado no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, no sul do Brasil. O turismo possui importante relevância para a área estudada, uma vez que “a principal atração da microrregião é o veraneio, que caracteriza o litoral como foco principal das atividades do estado relativas ao período de férias” (Rio Grande do Sul, 2012, p. 37). Ademais, estudar o segmento do turismo rural voltado para os municípios da encosta da Serra pode contribuir para melhor conhecer a realidade desses, de modo a evidenciar dificuldades e potencialidades relacionadas ao segmento nestas localidades.

Assim, o objetivo do artigo é compreender como se organizou o setor do turismo rural em Três Cachoeiras/RS, a partir da análise do habitus e da trajetória das famílias que se dedicam às atividades que compõem esse setor. Para tanto, buscou-se responder às seguintes questões: a) Quem são as pessoas envolvidas com o turismo rural no município de Três Cachoeiras, quais são suas trajetórias de vida? b) Quais as atividades que conformam o turismo rural no município? e) Por qual razão as famílias optaram pelo turismo rural? f) Qual o papel do turismo rural na conformação da trajetória de vida das pessoas que se dedicam à atividade turística?

A pesquisa apoiou-se do ponto de vista teórico, nos estudos de Pierre Bourdieu, para compreender as trajetórias de vida e, por conseguinte, a conformação do habitus das pessoas envolvidas com o turismo rural em Três Cachoeiras. Para Bourdieu (1998a, p. 191), trajetórias consistem em “um sistema dos traços pertinentes de uma biografia individual ou de um grupo de biografias”. Já o habitus é um princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (Bourdieu, 2008, p. 22).

Para complementar o suporte teórico apresentou-se discussões sobre o rural, a ruralidade e a pluriatividade, conceitos que se relacionam com o turismo rural e que podem ajudar a compreender o contexto estudado. O rural será o local de estudo, portanto, é preciso entender suas definições administrativas e discussões presentes na literatura sobre o tema. Já o conceito de pluriatividade é importante, na medida em que do turismo rural e as atividades que dele derivam consistem em uma forma de diversificar a renda dos estabelecimentos familiares estudados. Por sua vez, a ideia de ruralidade nos apresenta a possibilidade de estabelecer um outro olhar para o campo, que passa pela valorização de outros atributos, como a beleza cênica, a natureza, a qualidade de vida, aspectos que potencializam a atividade turística.

Dito isso, o artigo está dividido em cinco partes, na introdução apresenta-se um panorama do turismo rural. Em seguida apresentam-se os aspectos metodológicos. Seguindo com o referencial teórico, trazendo em uma primeira parte a teoria de trajetória de vida e habitus de Pierre Bourdieu, que dará suporte para compreensão do campo do turismo rural em Três Cachoeiras, sendo complementando com os conceitos de rural, pluriatividade e ruralidade que mostram os movimentos do rural ao longo do tempo passando de um lugar de produção agrícola para um lugar de socialização e com características próprias. Na quarta seção será apresentada a análise dos dados empíricos da pesquisa, de modo a responder o objetivo do artigo. As considerações finais encerram o presente artigo proporcionando um destaque para os principais pontos abordados.

Procedimento Metodológico

Para realização da pesquisa utilizou-se das seguintes ferramentas de coleta de dados: pesquisa documental e trabalho de campo com a aplicação de entrevistas semiestruturadas. Para May (2004) os documentos contribuem para reforçar o entendimento, quando usado outras técnicas de coleta de dados, assim como para comparar as observações encontradas em pesquisas de campo com os documentos já existentes sobre o mesmo assunto. Porém, o autor ressalta que os documentos não são neutros e são registrados conforme os ambientes sociais, políticos e econômicos que fazem parte.

Assim, foram analisados o Plano Municipal de Turismo, o Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, o código de tributação do município, as Leis municipais que criaram a Secretaria de Turismo e o Conselho Municipal de Turismo. Um questionário aplicado pela Emater/RS-Ascar, no ano de 2016, com as famílias que desenvolviam atividades turísticas no meio rural, Folders elaborados e distribuídos pela prefeitura municipal de Três Cachoeiras e as páginas de sites de empreendimentos de turismo rural.

Todavia, conforme mencionado anteriormente, a principal fonte de informações que subsidiou o estudo foi a coleta de dados a partir da realização do trabalho de campo. No período de setembro a outubro de 2023, foram aplicadas as entrevistas semiestruturadas com proprietários de estabelecimentos turísticos rurais no Município de Três Cachoeiras.

Três Cachoeiras é um município do Litoral Norte do Rio Grande do Sul/RS, a 175 km da capital Porto Alegre. Conta com uma população composta por 10.962 habitantes, sendo 2.716 o número de habitantes na parte rural, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2023). Possui 12 localidades, distribuídas em cinco distritos. A pesquisa de campo se concentrou, basicamente, em duas comunidades: Alto do Rio do Terra e Morro Azul, localidades agrícolas e com predominância rural. O distrito de Morro Azul possui uma população residente de 566 pessoas na área rural e 47 pessoas na área urbana. A comunidade de Alto do Rio do Terra está dentro do Distrito Rio do Terra, que possui 449 pessoas na área rural e 41 na área urbana (IBGE, 2023)[1].

A pesquisa englobou toda a parte rural do município de Três Cachoeiras, porém a concentração nas duas localidades se deu devido aos estabelecimentos turísticos que possuíam os critérios para participar da pesquisa estarem presentes nestes locais, além de que os empreendimentos nas duas comunidades foram criados a partir de dois roteiros turísticos, sendo que em outras comunidades não havia atuação de turismo rural. Ressalta-se que o foco do trabalho não foi o estudo dos roteiros e sim dos empreendimentos de turismo rural de Três Cachoeiras e seus atores.

De acordo com o Plano Municipal de Turismo de Três Cachoeiras/RS 2023-2027 (PMTTC), finalizado em dezembro de 2022, a atividade turística no município é recente, possuindo poucos empreendimentos de caráter familiar, necessitando ampliar sua oferta e sua estrutura turística. “Três Cachoeiras recebe visitantes com base principalmente em seus atrativos. Os frequentadores desses atrativos são, em geral, os moradores do próprio município e de sua região de entorno” (Três Cachoeiras, 2022, p. 13).

Para a aplicação das entrevistas semiestruturadas foi elaborado um roteiro com perguntas norteadoras que facilitasse a coleta de dados. Para maioria dos entrevistados o convite foi pessoalmente, muitos se mostraram dispostos a participar e contribuir com a pesquisa. Inclusive, quando convidados relembraram de entrevistas que já participaram em outros momentos. Os encontros foram agendados conforme a disponibilidade dos entrevistados. A opção pela aplicação de entrevistas semiestruturadas se deu pelo objetivo de analisar o segmento do turismo rural, a partir do ponto de vista dos entrevistados em relação às suas trajetórias dentro do turismo.

Para Colognese e Melo (1998, p. 143) a entrevista é considerada como um processo de interação social entre o entrevistador e o entrevistado que “tem por objetivo a obtenção de informações por parte do entrevistado”. Como técnica mais utilizada no trabalho de campo, os pesquisadores usam a entrevista para coletar informações e dados subjetivos, que estão relacionados aos diversos valores, crenças e opiniões dos entrevistados (Boni & Quaresma, 2005).

Para a seleção dos entrevistados pensou-se nas pessoas envolvidas diretamente com a atividade e que contribuíram para a conformação do turismo no município. Assim, o grupo de selecionados para este estudo foram os sujeitos que atuam diretamente com as atividades de turismo rural como proprietários de empreendimentos rurais. Conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Resumo dos atores entrevistados

Fonte: Elaborado pela própria autora a partir das entrevistas realizadas (2023).

Para selecionar tais atores foram seguidos os conselhos de Beaud e Weber (2007, p.14), que explicam que “é preciso que seus pesquisados estejam em relação uns com os outros e não escolhidos com base em critérios abstratos”. Assim, foram estabelecidos os seguintes critérios de seleção de entrevistados: 1) os participantes da pesquisa deveriam pertencer ao meio rural do município de Três Cachoeiras; 2) estar desenvolvendo atividades turísticas e, 3) oferecer no mínimo um dos seguintes serviços: hospedagem, gastronomia (café rural ou almoço), contemplação da natureza e trilhas, degustação e venda de produtos. Assim resultou em sete entrevistas com empreendimentos turísticos.

Aportes teóricos para entender a conformação do turismo rural em Três Cachoeiras

Para Bourdieu (2008, p. 22) “o habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (Bourdieu, 2008, p. 22). “O habitus é o produto da experiência biográfica individual, da experiência histórica coletiva e da interação entre essas experiências” (Thiry-Cherques, 2006, p. 34).

Oliveira e Pimentel (2018) interpretam habitus como um modo de pensar, fazer, sentir que interferem na atuação dos atores, determinando como se comportam em determinadas circunstâncias. Esse modo de agir é reflexo de suas histórias individuais e coletivas, portanto, de suas trajetórias, e estão internalizadas de maneira que não percebemos sua existência, sendo uma atitude comportamental natural. “O habitus é a classe e subclasse em que o agente se posiciona, o que é uma predisposição para agir de acordo com o que ele assimilou ao longo de seu processo de aprendizagem” (Pimentel, 2020, p. 6).

O habitus faz com que agimos de determinada forma em uma situação, a partir do modo de perceber as coisas. É uma forma flexível que vai se moldando conforme a incorporação das estruturas sociais ao longo do tempo. São ações impensáveis e inconscientes que se tornam naturais na rotina do meio em que se está. Resultado de uma aprendizagem que se expressa de forma natural, “é adquirido mediante a interação social e, ao mesmo tempo, é o classificador e o organizador desta interação. É condicionante e é condicionador das nossas ações” (Thiry-Cherques, 2006, p. 33). Para o autor, em todos os momentos da vida reestruturamos nossos habitus, regulando os conhecimentos mais novos pelos mais velhos. Temos a liberdade de perceber, agir, pensarmos dentro do limite do campo e do espaço que nele ocupamos.

Na interpretação de Lima (2010) o habitus é uma noção primordial na sociologia de Bourdieu, que trata das percepções, princípios presentes no agente, a partir das estruturas sociais vivenciadas em algum momento, que passam a dar orientação nas suas ações. A autora explica ainda que nessa perspectiva as ações também são influenciadas pelas lutas anteriores que demarcam o espaço de tomadas de posições. As possibilidades disponíveis proporcionam aos agentes a construção de suas próprias percepções, influenciadas pelas percepções já inscritas em seu habitus (Lima, 2010).

Conforme Aquino (2008, p. 19):

O habitus assume o papel de vincular às representações, percepções e visões de mundo às condições e relações objetivas em que estão situados os indivíduos. Deste modo, constata-se que as experiências vivenciadas e internalizadas por um indivíduo e a série de posições ocupadas no itinerário de um ciclo de vida, fundamentam a configuração de trajetórias [...].

Neste sentido, segundo Bourdieu (1998b), a trajetória refere-se a acontecimentos biográficos constituídos por meio da soma de ações realizadas pelo indivíduo ao longo de seu ciclo de vida. As experiências vivenciadas vão conformando a história de vida ao longo do tempo e compondo a trajetória de um indivíduo ou grupo. Para Bourdieu, (2008, p. 81) a trajetória “[...] descreve a série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes”. Ademais, Bourdieu (1998b, p. 189-190) define trajetória como:

Uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um "sujeito" cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. [...]. O sentido dos movimentos que conduzem [o indivíduo] de uma posição a outra (de um posto profissional a outro, de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.) evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado - pelo menos em certo número de estados pertinentes - ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.

Bourdieu (1996) apud Montagner (2007, p. 14) afirma ainda que:

Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus e reconstitui a série das posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos.

Assim, entende-se aqui que para compreender o papel da atividade turística para os indivíduos que fazem parte do setor, bem como as razões que os conduziram a ingressar e permanecer na atividade, analisar suas trajetórias e o habitus constituído ao longo desse percurso, torna-se um caminho fecundo, com o potencial, inclusive, de permitir a caracterização do setor, a partir da visão daqueles que nele estão envolvidos.

Rural, ruralidade e pluriatividade e suas conexões com a atividade turística no campo

Segundo a definição do IBGE (2017, n. p.) “a situação rural abrange toda a área situada fora dos limites urbanos, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos”. A delimitação baseia-se na definição administrativa de distrito e de perímetro urbano (linha divisória dos espaços juridicamente distintos de um distrito, estabelecida por lei municipal) e é utilizada para classificar os domicílios pesquisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017).

Para Kageyama (2008) a definição de rural passa por um processo de modificação ao longo do tempo, porque a expansão da urbanização redefine seus limites. ”A evolução do conceito de rural reflete a própria evolução do rural, de espaço quase exclusivamente agrícola para um tecido econômico e social diversificado” (Kageyama, 2008, p. 24). A autora complementa dizendo que “as caraterísticas próprias dos territórios rurais vão, numa escala de complexidade, desde os aspectos físicos, como a abundância de superfícies verdes ou naturais, até atitudes e representações simbólicas da ruralidade” (Kageyama, 2008, p. 48).

Ao discutir o conceito de ruralidade, Medeiros (2017, p. 186) destaca que este emerge em um contexto em que ”há uma revalorização da natureza, configura-se uma urbanidade que revaloriza o modo de vida no campo e a produção de alimentos benéficos à saúde, a partir de uma proposta de agricultura orgânica”. Assim, entre tantos aspectos que compõem as interpretações do que vem a ser ruralidade, destaca-se a dimensão que compreende o rural como capaz de proporcionar qualidade de vida para as pessoas. Isto porque, dentre as novas funções assumidas pelo mesmo, um fato importante reconhecido é o de que “o rural passa a ser buscado como ambiente para o lazer e para a fuga dos problemas da vida urbana fazendo com que cresçam os investimentos em condomínios horizontais, chácaras, hoteis-fazenda, spas e coisas do gênero” (Medeiros, 2017, p. 187). Nessa esteira, de valorização de outros atributos do rural, é que ganha potencial, o segmento do turismo.

Segundo Schneider (2009, p. 23) “a pluriatividade refere-se ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura e ao cultivo da terra”, podendo ser desenvolvida dentro ou fora da propriedade e o turismo, mais uma vez, pode se apresentar como uma dessas atividades. A pluriatividade aparece como resistência a política de modernização agrícola e ao questionamento do modelo produtivista apresentado como sendo único e mais eficaz. Assim, vai se desenhando uma nova identidade profissional e social do pequeno produtor, tornando-se alternativa para o futuro da agricultura em locais mais desfavorecidos e para as demais transformações que o campo e a unidade familiar vinham enfrentando (Carneiro, 1998b).

De acordo com Carneiro (1998a), foi nos anos 1970 que teve início no Brasil um movimento de busca por atividades de lazer, como turismo, residências secundárias e até mesmo formas alternativas de vida no campo, por pessoas de origem urbana. Este movimento se intensifica na década de 1990, juntamente com a disseminação de ideias relacionadas à preservação ambiental. Assim, o rural passa a contar com um elevado número de pessoas exercendo atividades não agrícolas, de modo que este espaço passa a não poder ser definido, exclusivamente, pelas atividades agrícolas. Ainda conforme a autora, o processo de transformação do rural e o interesse dos citadinos pelos espaços com contato com a natureza fizeram com que as atividades turísticas fossem modificando o estilo de vida local, assim espaços que eram voltados a agricultura passam a ser usados para recepcionar turistas, tornando a agricultura um complemento para manutenção da família e dos hóspedes ou apenas para garantir o contato do hóspede com o rural.

Neste sentido é possível observar o entrelace das atividades pluriativas e da ruralidade, pois o turismo rural proporciona que as famílias rurais desenvolvam ativadas dentro de suas propriedades que não estejam ligadas diretamente a produção e sim em oferecer serviços que apresentam o seu modo de vida, que transmitem seus conhecimentos a pessoas não habituadas com espaços os espaços rurais e que buscam justamente essas experiências. Assim a discussão abordada nesta seção nos permitirá verificar no caso estudado em que medida essas oportunidades de intercâmbio entre o rural e o urbano acontecem e o quanto a pluriatividade e a ruralidade estão presentes dentro do contexto do município de Três Cachoeiras.

Atores na construção do turismo rural em Três Cachoeiras

Refletindo a teoria apresentada buscou-se responder as perguntas norteadoras apresentadas na introdução do artigo, assim, em um primeiro momento seguirá com a apresentação das pessoas envolvidas com as atividades turísticas em Três Cachoeiras, trazendo suas trajetórias de vida e as atividades que desenvolvem, de modo a compreender qual a razão de optarem pela atividade turística.

É importante destacar que os empreendimentos turísticos nas duas comunidades (Morro Azul e Alto do Rio do Terra) foram criados a partir de dois roteiros. No Alto do Rio do Terra, foi a Rota Caminho dos Vales e das Águas[2] que contribuiu com a iniciativa e proporcionou alguns cursos voltados à atividade turística. Já em Morro Azul, o roteiro criado na comunidade a partir de um grupo de pessoas envolvidas com o Clube local, que deu início ao movimento do turismo rural, chamando-se de Vale do Paraíso[3]. “Os trabalhos relacionados a esse roteiro iniciaram-se no ano de 2003, organizados, inicialmente, pela diretoria do Clube Vera Cruz que buscou apoio técnico da Emater e da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) para realizar um diagnóstico turístico nas propriedades” (Colodzeiski, 2007, p. 71).

Observou-se a importância da rota e do roteiro para a construção do turismo rural no município e região. A Rota Caminho dos Vales e das Águas trouxe aos municípios da região uma forma de pensarem e trabalharem em conjunto, usando o potencial natural local para beneficiar todo o Litoral Norte, além de dar início à estrutura política do turismo nos municípios. No caso de Três Cachoeiras, foi nesse período que foi criado o Departamento de Turismo e o Conselho Municipal. Já o Roteiro Vale do Paraíso, iniciado antes da rota, ofereceu visibilidade para o município e para a comunidade, consolidando o turismo rural na cidade. Além de reforçar a presença de capitais como o cultural, o social, o econômico e o simbólico nas famílias participantes, fazendo com que hoje ocorra uma independência nas atividades turísticas.

Os empreendimentos turísticos estudados totalizaram sete propriedades, dirigidas, principalmente, por pessoas aposentadas, tendo a figura mulher à frente das atividades. As estruturas físicas utilizadas no início foram as já existentes nas propriedades com algumas adaptações, como apresentado por um dos entrevistados: “Desde o começo, quando foi implantado o turismo, a gente recebia os turistas como está aqui. A gente não investiu, porque precisa de um turismo potente, precisa de muito investimento, e a gente tem pouca grana para investir” (Entrevistado 07 set. 2023). Porém, é possível observar em outra fala aqueles que possuíam maior recurso, conseguindo adquirir algo para iniciar no turismo e ao longo dos anos realizando reformas, ampliações e até aquisição de novos espaços.

Começou na casa da [T.L.]. A gente comprou..., reformamos a casa. A casa foi restaurada para a atividade. E daí colocamos na internet e as pessoas começaram a procurar casas pequenas. Foi quando iniciamos a construção da cabana. E, com a procura por quartos com banheiro privativo, construímos as suítes (Entrevistada 16, set. 2023).

Nos relatos é possível observar o capital econômico diferenciado entre os empreendedores. Nem todos possuem recursos financeiros suficientes para investir na atividade, o que mostra a dificuldade que enfrentaram no início da atividade. “Teve, teve um pouco [dificuldade] porque a maioria não tinha estrutura para iniciar. Aí eles diziam para gente, a turma que vinha ensinar para gente da Ulbra, que começasse como estava” (Entrevistada 03, set. 2023). Em outro relato observa-se o uso de recursos provenientes da agricultura para investir no turismo, o que mostra a presença da agricultura como pilar de sustentação para a atividade turística.

A gente foi fazendo meio por conta. Não teve assim uma coisa: a terraplanagem foi com recurso próprio, as madeiras, os gastos, tudo com recurso próprio que a gente ia tirando da atividade banana, das ‘economiazinhas’ de um lado para investir no outro (Entrevistada 05, set. 2023).

Ao longo das entrevistas a agricultura vai aparecendo como atividade principal nas propriedades e como forma de sustento das famílias. No relatado a seguir é possível observar isso na fala de uma das entrevistadas: “... a banana é uma coisa que ela produz o ano inteiro.... Então, a banana, a gente vende para fazer dinheiro mesmo” (Entrevistada 03, set. 2023). A entrevistada mostra que a renda principal da família provém da comercialização da banana, é a agricultura que garante o sustento da família e o turismo vem como uma complementação de renda. Em outro momento é possível ver a questão da aposentadoria como fonte de renda de outro participante, além da continuação da atividade agrícola.

Como me aposentei, meu esposo também é aposentado, nós decidimos entregar as lavouras — dizer assim, são mais de 10 hectares de bananeiras, entregamos para os filhos, para eles administrarem. E nós vivemos assim, só do aposento, do nosso dia a dia, planta umas verdurinhas, o produto básico, para não precisar comprar (Entrevistada 05, set. 2023).

A agricultura está muito presente, sendo a base de sustentação das propriedades. “E, quanto aos participantes, ninguém deixou do trabalho da agricultura para fazer turismo, faziam os dois, lado a lado” (Entrevistada 06, set. 2023). Dos sete estabelecimentos, dois possuem proprietários não aposentados e um que não tem sua atividade principal ligada à agricultura. Mesmo os aposentados continuam com a atividade agrícola, comercializando alguns produtos, usando para consumo próprio e para oferecer aos turistas quando preparam algum alimento.

As atividades no rural apresentam características diferentes para esse espaço, não sendo desenvolvidas apenas atividades vinculadas à produção agrícola, nota-se a presença do turismo rural, da prestação de serviço, da agroindustrialização artesanal e da renda proveniente da aposentadoria, observa-se a presença da pluriatividade “... os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a dedicar-se ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura” (Schneider, 2009, p. 27). Esse processo de diversificação de atividades pode garantir a reprodução material da família e aumentar a importância na estrutura social.

[...] Essa renda eu também reparto, de igual para igual. Se deu R$ 500? Reparto! Se estamos em cinco? R$ 100 para cada um. ... Às vezes dizem: “Ah, tu como dona?”. Não! Sou dona, mas não é só o benefício para mim. Vocês [filhos] que me ajudaram a limpar, a lavar uma xícara, a podar uma grama, vocês também precisam. Então é repartido (Entrevistada 05, set. 2023).

Seguindo com a pesquisa, chegou o momento de entender o que incentivou as famílias a buscarem uma nova atividade, pois se verificou que a maioria dos empreendimentos é formada por membros aposentados e que possuem idade igual ou superior a 57 anos. Talvez a fala de Alcântara (2016, p. 337) aponte um dos motivos: “continuar a trabalhar na velhice ultrapassa a necessidade do sustento ou de ter uma remuneração; além disso, o sentido maior é permanecer ator social, resistindo ao lugar da plateia”.

Quando perguntados sobre quais os motivos que levaram os entrevistados a desenvolverem as atividades de turismo, são encontradas respostas diversas. É possível observar a questão econômica presente nas falas, porém, em algumas, destacam-se as questões sociais e culturais, conforme, exposto por Tulik e Teles (2017, p. 64) quando dizem que “a busca por emprego e renda persiste, porém, calcada na sustentabilidade e nos valores socioculturais”. Os valores sociais e culturais também estão presentes no turismo, como parece ser no caso das atividades em Três Cachoeiras.

Acho que a vantagem maior, financeira também, mas a maior parte é socializar. Festa, festa, gosto de fazer festa. Receber bem, cantar, canto italiano, as cantigas da minha vó. A gente encena. É isso aí que a gente faz. Simples, mas é com vontade, com festa (Entrevistado 06, set 2023).

Na maioria dos empreendimentos pesquisados, o turismo proporcionou aproveitar a produção da propriedade não apenas para o consumo próprio, mas também para ofertá-la aos turistas em almoços, cafés ou quando transformada em geleias, doces, embutidos e compotas. O saber-fazer se associou ao receber as pessoas na propriedade e à comercialização dos produtos pela família. Agregar valor com a transformação do alimento torna-se um diferencial na venda em relação aos outros que produzem o mesmo alimento, além de preservar o patrimônio cultural existente nas receitas de família. Guimarães e Gehlen (2015) mostram que a manipulação desses alimentos com o uso de receitas passadas entre as gerações, feitas artesanalmente, sem seguir uma padronização, cultiva o patrimônio cultural das famílias.

A perda de muita coisa dos produtos que a gente colhia. Todo mundo tinha um pouco do mesmo, todo mundo tinha e ninguém vendia para ninguém. E aí perdia muito. Só a família que usava, a quantia que usava e o resto ia para os animais. Perdia muito alimento, muita coisa boa que podia ser usada para fazer almoço, fazer café, para as pessoas levarem, fazer embutidos, fazer as conservas, as geleias, coisas assim, né! E daí, quando vem o turista, se a gente tem essas coisas, as geleias, as chimias, os doces, coisas assim, elas se mantêm por mais tempo e aí eles vêm e levam (Entrevistada 03, set. 2023).

A circulação de mais pessoas no ambiente rural consegue proporcionar esse movimento de venda a pessoas diferentes do habitual, ampliando o mercado, movimentando o capital econômico e ampliando o aproveitamento dos alimentos excedentes que antes seriam descartados. Schneider e Fialho (2000) falam do mercado de consumo local como uma potencialidade do turismo rural, para gerar oportunidade de venda dos produtos agrícolas e como alternativa para complementar a renda das famílias. “Trouxe a questão financeira. Ajudou muito, porque a venda direta para [consumidores], sem ter atravessador, no caso. Vender direto faz diferença” (Entrevistado 12, out. 2023). “Também o interesse por aumentar um pouco a renda da família, que só com a banana na época não era tranquilo, então o turismo também aparece com essa forma de complemento de renda” (Entrevistado 02, set. 2023).

Necessidade de abranger mais as pessoas, um lugar muito pequeno, então motivou bastante até para aumentar a renda familiar com o café rural. As pessoas animavam a vender os produtos, a cachaça, a farinha de milho, no moinho de pedras, banana, de tudo (Entrevistada 06, set. 2023).

O turismo rural consegue trazer outras formas de renda para as famílias, além das existentes, na medida em que possibilita novos espaços de comercialização e oferta de novos produtos não necessariamente vindos da agricultura e da pecuária. Isso pode ocorrer por meio da venda de um produto processado artesanalmente, de uma refeição preparada para os turistas, do aluguel de uma cabana, de uma visita à propriedade, de diferentes formas, motivando outras atividades no espaço rural e uma diversificação na renda das famílias. Souza, Klein, Teixeira e Rodrigues (2011) colocam o turismo rural como uma modalidade que reconfigura o espaço rural, como uma atividade não agrícola que possibilita aproveitar a propriedade rural de uma forma melhor e que proporciona ao agricultor agregar valor aos produtos e serviços gerados nela.

Outro motivo visível nos depoimentos é o de querer receber pessoas, acolhê-las, oferecer espaços tranquilos em meio à natureza, proporcionar um espaço para permanência do turista. Carneiro (1998a) diz que encontramos esse movimento dos “citadinos” em busca do contato com a natureza e com a vida no campo. E a autora faz uma crítica sobre a transformação do espaço “em mais um bem de consumo” (Carneiro, 1998a, p. 57). Contudo, na percepção dos entrevistados, não se verificou o entendimento do espaço como um bem de consumo e sim como um espaço de acolhimento e troca.

O motivo um pouco foi poder acolher a pessoa que vem de fora e gostaria de ficar um dia a mais, não chegar e logo ir embora. De poder desfrutar mais desse canto dos passarinhos, desse cantar das águas nas pedras (Entrevistada 05, set. 2023).

Observou-se a preservação da história da família como um motivo para iniciar a atividade de turismo, juntamente com a vontade de criar relações sociais. Para Santos (2008), esse é um dos papéis do turismo, proporcionar essa articulação com a cultura e a identidade das famílias. A identidade está presente no modo de vida dos indivíduos, que é transmitido ao turista quando recepcionado. “Uma forma de preservar a história da família, continuar construindo história, preservando uma antiga história, trazendo junto aquela antiga história e essa vontade sempre de aproximar pessoas” (Entrevistado 02, set. 2023). “Daí a gente resolveu abrir para mostrar para eles [turistas] como era o funcionamento de 50 anos atrás, 60 anos atrás. É tudo a mesma coisa, como meus avós fizeram, isso é o mais interessante. Tudo original ainda” (Entrevistado 07, set. 2023).

Outro ponto a se considerar é a questão da idade avançada de muitos dos proprietários dos empreendimentos, como já trazido em relatos anteriores. Desta forma, pode-se observar a manutenção da atividade laboral após a aposentadoria como forma de permanecerem ativos, autônomos e saudáveis. “Para servir como terapia, para trabalhar com gente e para agregar valores. Valores pessoais e financeiros. Gosto de estar com gente” (Entrevistada 16, set. 2023). A fala retrata a atividade como algo terapêutico e mostra o prazer de estar em contato com as pessoas. Traz também a questão do capital social que envolve as relações dos empreendedores aposentados com os turistas, mantendo-os ativos.

Os dados do Censo 2022 do IBGE apontam que idosos com 65 anos ou mais constituem 10,9% da população brasileira (Gomes & Britto, 2023). No estado do Rio Grande do Sul, 14,1% das pessoas possuem 65 anos ou mais, sendo o estado com a maior proporção de idosos (Agência Brasil, 2023). Nesse contexto, o processo de envelhecimento de forma saudável, com independência e autonomia, torna-se um desafio para o Estado. As atividades de turismo rural no município pareceram contribuir para que os mais velhos tenham outra atividade, além das que sempre realizaram, pois muitos disseram continuar com a atividade agropecuária. Portanto, o turismo também pode ser observado como uma atividade integradora e responsável por manter esses idosos ativos.

Configurada legalmente pela Constituição de 1988 e pelas Leis 8.212 e 8.213, de 1999, no Brasil a aposentadoria rural diferencia-se da urbana. Na aposentadoria rural o produtor se enquadra como segurado especial, contribuindo para seguridade conforme a comercialização de seus produtos, diferente da contribuição urbana que é sobre os rendimentos recebidos. O piso do benefício da aposentadoria se igualou ao urbano sendo o salário mínimo o recebido. Outra diferenciação é com a idade para conseguir o benefício que é 60/55 para homens/mulheres no rural e 65/60 homens/mulheres no urbano. Além da questão do tempo mínimo de contribuição que no rural apresenta-se de forma diferente com apresentação de comprovações como contrato de parceria ou arrendamento, notas de venda da produção rural ou declaração expedida pelo sindicato rural e homologada pelo INSS (Schwarzer, 2000).

Assim a aposentadoria rural tem um grande significado para a unidade familiar e para a mulher rural. Em períodos de sazonalidade da agricultura ela garante uma renda perene às famílias. Segundo Brumer (2004), o acesso à aposentadoria rural proporcionou muitas mudanças nas famílias rurais: tornou-se uma renda mensal e regular, diferente da renda proveniente da produção agropecuária, que, em alguns casos, não garante essa regularidade. Dentre as mudanças, a autora cita: a) tendo sucessor, os aposentados tendem a transferir a renda e a produção proveniente do trabalho na propriedade a eles, tornando esses sucessores independentes e permanentes no campo, e b) não havendo sucessores, os aposentados normalmente diminuem a produção, em muitos casos restringindo ao consumo próprio e a pequenas comercializações, ou se desfazem da propriedade e iniciam uma nova vida em áreas urbanas. Brumer (2002) ainda comenta sobre o benefício da aposentadoria para a mulher rural, como a garantia da sua reprodução e da sua família, pois, segundo a autora, alguns homens não atuam deste modo, como valor simbólico pela conquista das mulheres à previdência social rural e como entendimento de que são responsáveis por essa conquista, aumentando sua consciência sobre seus direitos.

Nas entrevistas com alguns dos aposentados, como já exposto acima, foi possível observar a situação citada em relação ao cultivo para subsistência e à transferência da propriedade para administração dos filhos após a aposentadoria. Também foi possível observar o costume de acolher e receber as pessoas, algo que já fazia parte da trajetória dos entrevistados, se intensificou com o turismo rural. O que antes era o acolhimento de amigos e parentes passou a ser transmitido para outras pessoas desconhecidas. Nesse sentido, a cultura foi se mantendo e se transformando ao longo do contato com as pessoas, servindo de fonte para uma diversificação de atividades no meio rural, aumento da renda familiar e um envelhecer com maior qualidade de vida.

Eu lembro que a [C.B.] tinha muito esse sentido humano de aproximação das pessoas, de acolher pessoas. O móvel principal sempre foi a mesa. Com a mesa, sempre se acolhia todo mundo, independentemente de quem fosse, na hora que chegasse, para ouvir, para contar história, para partilhar, sempre nesse sentido profundo e humano (Entrevistado 02, set. 2023).

Mesmo observando que a agricultura e a aposentadoria ainda são a principal fonte de renda, à frente do turismo rural em Três Cachoeiras, é possível notar a importância da atividade para aqueles que a desenvolvem, para a comunidade e a região, conforme observado em muitas falas inseridas ao longo do texto que vem mostrando os movimentos sociais, econômicos, culturais e simbólicos que estão presentes nas atividades turísticas do município e que vão conformando o campo do turismo rural e trazendo outras manifestações dentro do meio rural.

Considerações Finais

Após uma reflexão sobre a conformação do setor dedicado ao turismo rural no município de Três Cachoeiras, a partir da trajetória das famílias que desenvolvem a atividade foi possível elencar algumas considerações possíveis de serem traçadas como resultado da pesquisa como:

O roteiro e a rota existentes no município contribuíram para organizar inicialmente o campo do turismo rural. A rota trouxe o começo de uma organização política para o município: foi quando começaram a pensar no Conselho Municipal e no departamento que depois virou Secretaria de Turismo. Já o roteiro foi uma organização informal de um grupo de famílias que iniciou as atividades turísticas no município. Isso ocorreu quando o grupo decidiu buscar auxílio externo para orientar o início das atividades.

Ao caracterizar as famílias envolvidas, foi possível observar que a agricultura faz parte da trajetória dos entrevistados, conformando seu habitus, de modo que está presente em todos os empreendimentos, dando sustentação à atividade turística. A agropecuária não deixou de ser realizada, mesmo pelos que já estão aposentados, sendo que os produtos cultivados na propriedade continuam sendo usados para consumo próprio, para oferecerem aos turistas ou para pequenas comercializações. A realização das atividades turísticas, juntamente com as atividades agropecuárias, vem ao encontro do que os autores Elesbão e Souza (2013) colocam, quando se referem que a atividade de turismo se desenvolve como alternativa ou complemento às atividades do campo, trazendo novos rendimentos para a agricultura familiar. Essa é uma característica do turismo rural do interior de Três Cachoeiras, sempre desenvolvido com outra atividade que traz rendimento para a família — no caso, a agricultura — e sendo tratado como uma segunda opção e como complemento de renda. Essa observação contraria o que Carneiro (1998a) traz quando relata a experiência da atividade de turismo rural sendo mais importante que a agricultura. Porém deve-se observar que o relato da autora ocorre em outra região e em outro contexto, diferenciando-se do que ocorre no município em estudo.

Outro fator importante apresentado nas análises é referente à idade dos envolvidos com os empreendimentos. A maioria é formada por pessoas aposentadas, apenas dois estabelecimentos são formados por pessoas que ainda não estão aposentadas. Esse fator também contribui para que a atividade seja considerada uma segunda opção de renda, pois são pessoas que já possuem uma renda fixa para sobrevivência e podem realizar a atividade que querem e gostam, não se preocupando em fazê-la de forma tão profissional. A atividade de turismo também contribui para o envelhecimento saudável e ativo das pessoas, como apresentado por Alcântara (2016, p. 337) em seu texto: “Continuar a trabalhar na velhice ultrapassa a necessidade do sustento ou de ter uma remuneração; além disso, o sentido maior é permanecer ator social, resistindo ao lugar da plateia”. Além da movimentação do capital social após a aposentadoria, o capital econômico também é representativo quando se fala na questão dos aposentados, pois neste contexto é um rendimento a mais que entra no núcleo familiar e que traz maior autonomia à família.

Observa-se também que o capital econômico que os participantes possuíam foi um fator importante quando iniciaram as atividades turísticas. Como observado nas falas os que possuíam um maior volume de recursos financeiros conseguiram investir mais na atividade, alguns optaram por iniciar sem muito investimento na propriedade e outros tiraram os rendimentos da agricultura para colocar no turismo rural.

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Notas

[1] Dados pesquisados em Sidra.ibge e fornecidos por Solange Murta Barros, mestranda do Programa de Pós graduação em Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento.
[2] A Rota Caminho dos Vales e das Águas foi lançada em outubro de 2018 e conta com a participação de nove municípios do Litoral Norte, tendo como objetivo o fomento da prática do turismo como instrumento de desenvolvimento social, humano e econômico da região (Rocha, 2018).
[3] Informações sobre o Roteiro Vale do Paraíso em Pereira (2005), Colodzeiski (2007) e Pugen (2016).


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