ARTIGOS CIENTÍFICOS
Diálogos filosóficos em Educação Matemática
Philosophical dialogues in Mathematics Education
Diálogos filosóficos em La Educación Matemática
Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 20, e023084, 2023
Recepção: 11 Fevereiro 2022
Aprovação: 26 Dezembro 2022
Publicado: 01 Janeiro 2023
Resumo: Este trabalho, um ensaio filosófico, explora as potencialidades do uso do debate filosófico e, portanto do método dialógico e dialético, no contexto de uma sala de aula, em particular no que diz respeito à formação dos futuros professores que lecionarão matemática. Para dar cabo desta empreitada criam-se cenas e dramatizações inspiradas no método platônico dos diálogos e, também, seguindo-se as reflexões ricoeurianas, a construção de narrativas em uma trama verossímil. Parte-se de uma afirmação atribuída ao matemático e filósofo Bertrand Russell para, a partir daí, explorar as concepções e crenças dos personagens em relação aos números, à matemática e ao ensino da matemática. A expectativa é que, dentre outras coisas, seja possível evidenciar a base analítica, simbólica, pautada na escrita, da qual o ensino da matemática se nutre e que, por outro lado, contribui para um processo de alienação do trabalho matemático ao se desconsiderar os contextos de produção, distribuição e controle do conhecimento matemático.
Palavras-chave: Diálogos filosóficos, Ricoeur, Platão, Russell, Educação Matemática.
Abstract: This work, a philosophical essay, explores the potential of the use of philosophical debate and, therefore, of the dialogical and dialectical method, in the context of a classroom, particularly with regard to the training of future teachers who will teach mathematics. To complete this endeavor, scenes and dramatizations are created inspired by the Platonic method of dialogues and, also, following Ricoeurian reflections, the construction of narratives in a believable plot. It starts with a statement attributed to the mathematician and philosopher Bertrand Russell to, from there, explore the characters' conceptions and beliefs in relation to numbers, mathematics and the teaching of mathematics. The expectation is that, among other things, it will be possible to highlight the analytical, symbolic basis, based on writing, from which the teaching of mathematics is nourished and which, on the other hand, contributes to a process of alienation of mathematical work by disregarding the contexts of production, distribution and control of mathematical knowledge.
Keywords: Philosophical dialogues, Ricoeur, Platão, Rusell, Mathematics Education.
Resumen: Este trabajo, un ensayo filosófico, explora las potencialidades del uso del debate filosófico y, por tanto, del método dialógico y dialéctico, en el contexto de un aula, particularmente en lo que se refiere a la formación de los futuros docentes que enseñarán matemáticas. Para completar este empeño, se crean escenas y dramatizaciones inspiradas en el método platónico de los diálogos y, también, siguiendo reflexiones ricoeurianas, la construcción de narraciones en una trama verosímil. Se parte de un enunciado atribuido al matemático y filósofo Bertrand Russell para, a partir de ahí, explorar las concepciones y creencias de los personajes en relación a los números, las matemáticas y la enseñanza de las matemáticas. La expectativa es que, entre otras cosas, se pueda resaltar la base analítica, simbólica, basada en la escritura, de la que se nutre la enseñanza de las matemáticas y que, por otra parte, contribuye a un proceso de alienación del trabajo matemático al ignorar los contextos de producción, distribución y control del conocimiento matemático.
Palabras clave: Diálogos filosóficos, Ricoeur, Platão, Rusell, Educación Matemática.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho pode ser mais bem caracterizado como um ensaio filosófico que explora as possibilidades da elaboração de uma história, com aspectos dialógicos e narrativos, centrada na composição de um enredo.intriga (RICOEUR, 2012a), para, nos limites das suas páginas, estimular reflexões ao adentrar e explorar questões referentes aos objetos abstratos da matemática (FREGE, 1983; RUSSELL, 2007; HARDY, 2000; COURANT & ROBBINS, 2000) em contextos educacionais.
Busca-se, em particular, inspiração em debates que emanam da Filosofia da Linguagem (FREGE, 2009; WITTGENSTEIN, 2009, 2017; TARSKI, 2007) da Filosofia (FOUCAULT, 2011; DELEUZE & GUATARRI, 1995, 2000; SCHWARTZ, 2017) e da Filosofia da Educação Matemática (BICUDO & GARNICA, 2011; ERNEST, 2016; BICUDO, 2009). Existem certamente, além dos anteriores, histórias e personagens que antecedem a escrita deste texto e que contribuem para inspirar inúmeras especulações filosóficas (PLATÃO, 1991; ARISTÓTELES, 2011; FREGE, 2009; RUSSELL, 2009; WITTGENSTEIN, 2017) que emergem no texto. Há também, além de todos os já citados, diferentes ideias e debates que circulam entre os pesquisadores que se dedicam, por exemplo, à Filosofia e à História da Educação Matemática. Assim, por exemplo, não se desconhecem alguns trabalhos como os de Vilela e Mendes (2012), Scheller et al. (2020), Garnica e Pinto (2011), Clareto e Rotondo (2011), Miguel, Viela e Moura (2011), Bello e Sanchotene (2018), etc.
Cabe dizer, no entanto, que este texto foi originalmente pensado para os estudantes do curso de graduação que pretendem lecionar matemática na educação básica; estudantes que ainda não estão familiarizados com muitos dos debates realizados nos últimos vinte anos de pesquisas em Filosofia da Educação Matemática ¾ um desconhecimento que, possivelmente, se deve ao modo como o ensino de matemática na Educação Básica e os processos formativos nos cursos de graduação (Pedagogia e licenciatura em Matemática), apesar da sua diversidade, se constituem como espaços de controle e subjetivação (FOUCAULT, 2004, 2011) com tendência a reprodução de discursos e práticas (BOURDIEU & PASSERON, 1992) -. Não há, portanto, nada essencialmente novo neste texto.
Pretende-se fazer emergir no decorrer deste texto questões referentes às práticas discursivas e a construção de subjetividades (BELLO, 2011; LONGO, 2011) e, transversalmente, alguns modos de ver e conceber a matemática e o seu ensino (FIORENTINI, 2009; LINS, 2004), além de, também, explorar aspectos socioculturais provenientes da perspectiva Etnomatemática (ASCHER & ASCHER, 1997; D’AMBROSIO, 1990, 1993, 2011; FANTINATO & FREITAS, 2018). Trata-se, portanto, de um esforço de entrelaçamento de temas e problemas a partir de um ponto de vista filosófico que se aproxima ainda da História da Educação Matemática. Entrelaçamentos que buscam inspirações na História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, etc. e que, de muitos modos, tenta evitar os limites impostos pelas gaiolas epistemológicas (D’AMBROSIO, 2016).
REFERÊNCIAL TEÓRICO
O principal referencial teórico para a construção deste trabalho se apoia na produção do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) que, dentre outras coisas, indica como a historiografia e a escrita literária se entrelaçam e mutuamente se alimentam e, também, como o discurso ideológico emerge das possíveis interpretações do texto (RICOEUR, 2012a, 2012b, 2012c; 1990).
Não obstante, buscam-se elementos teóricos compatíveis sobre as possibilidades literárias aplicadas à historiografia em Veyne (1982), White (2014), Carr (2016), Lima (2016) e Rüssen (2016). Buscou-se ainda, no campo da filosofia (FOUCAULT, 2011; DELEUZE & GUATARRI, 1995, 2000) e da educação matemática (BICUDO & GARNICA, 2011; D’AMBROSIO, 1990, 1993, 2011), assim como da filosofia da linguagem (FREGE, 2009; WITTGENSTEIN, 2009, 2017; TARSKI, 2007), e da semiótica (DUVAL, 2009, 2013; FLORES, 2006) elementos teóricos capazes de fornecer subsídios para o debate.
METODOLOGIA
A metodologia deste ensaio inspira-se no método Socrático-platônico (CABRAL, 2022; TERESA DE AZEVEDO, 2003; PLATÃO, 1991), em sua dialética e em seu jogo de perguntas e respostas. Cria-se uma encenação dramática a partir da construção de diálogos em que discursos fazem fluir e prosperar, mesmo diante da contradição, o pensamento acerca da matemática e do seu ensino.
Estabelece-se um jogo de perguntas e respostas na tentativa de levar os personagens a questionarem algumas de suas crenças e certezas, para, em seguida, produzir indagações e construir hipóteses. Tenta-se, a partir dos diálogos, conduzir os personagens ¾ estudantes e professor ¾ a revisitar crenças e certezas pré-estabelecidas de modo a ampliar e/ou modificar os horizontes teóricos e conceituais existentes.
A partir de uma experimentação literária histórica e ficcional (BOOTH, 1980; RICOEUR, 2013, 2012a, 2012b, 2012c) faz-se a construção do texto.
A aula em cena
- “A matemática é a única ciência exata em que nunca se sabe do que se está a falar nem se aquilo que se diz é verdadeiro” - afirma o professor, iniciando sua aula -, e esta frase, caros alunos, é atribuída à Bertrand Russell (1872-1970). - Parece-me coerente assumirmos a existência de diferentes saberes; os professores em uma sala de aula, em uma aula de matemática, possuem certos saberes que fazem parte de um repertório não necessariamente sistematizado, fruto das experiências em sala de aula. Por outro lado, temos saberes matemáticos apreendidos como parte de um processo de formação e profissionalização, um saber especializado.
- Sim - responde uma estudante -. E, neste caso, existem coisas que fazemos em nossas aulas, quando vamos ensinar matemática, que aprendemos sem ter realmente aprendido... é algo inconscientemente.
- De certo modo, sim - o professor responde. - São coisas que em geral nascem das práticas, das experiências reais, concretas, objetivas, em uma sala de aula e, por isso mesmo, muitas vezes não são verbalizadas. Não são instruções que podem ser lidas em um manual, em um texto. É um tipo de conhecimento adquirido no chão da escola, ao longo da sua trajetória de vida.
- Mas isso - outro estudante comenta -, eu acho, talvez, não tenha muita importância para nosso trabalho em sala de aula, não é?! Basta ensinar a matemática da melhor forma possível, qualquer que seja a escola. Quero dizer, se eu vou imitar um professor do qual eu gostei, e com quem aprendi muita matemática, isso é bom, não é?!
- Talvez - o professor responde. ¾ Nem todos são como você e nem todos aprenderão como você aprendeu.
- Isso é um fato ¾ concorda o aluno.
- Logo - afirma uma estudante -, nem todos devem gostar do mesmo tipo de aula e do mesmo tipo de professor que você. Não é?!
- Nem tudo o que fazemos é da ordem do consciente ¾ atesta o professor.
- Nossos pensamentos, nossas ações e falas - outro estudante comenta - podem interferir ou influenciar no modo como os estudantes veem a matemática e aprendem a matemática? É isso?
- “Crer é inferir de uma parte da natureza uma outra parte que não está dada” - diz o professor - “E inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tampouco estão dadas na natureza”[2], nos disse certa vez um filósofo.
- Ora, acreditamos em nossas falas e em nossas ações, elas se presentificam para nós e para os outros, tornam-se públicas ¾ reflete um dos alunos. - Influenciamos outras pessoas com nossas práticas e discursos que nascem das nossas crenças.
- Inventamos a partir de algo pré-existente e com base em nossas crenças e experiências - diz outro estudante.
- Eu, na verdade - outra aluna se pronuncia -, detesto matemática e nunca fui muito bom nesta disciplina. Provavelmente meus alunos irão perceber o quanto não gosto dessa coisa. Concordo com você, acho que reproduzimos muitas coisas sem ter consciência e podemos amedrontar nossos alunos.
- Independente de gostar ou não - diz um dos alunos -, nós, como professores, temos que saber muito sobre o conteúdo que iremos ensinar!
- Talvez - o professor responde. - Nossas ações e falas realmente produzem efeitos sobre os nossos alunos. Subjetivações.
- Obviamente parece-me coerente assumir que o professor deve saber coisas que os seus estudantes não sabem - diz um estudante -, neste caso, a matemática a ser ensinada demanda uma matemática maior, não ensinada.
- Poderíamos falar em matemáticas, no plural? - o professor pergunta.
- Existe apenas uma matemática e ela é universal - um dos alunos responde.
- Matemáticas, no plural. Não sei bem que outras matemáticas podem existir - diz uma das estudantes.
- A matemática dos matemáticos e a matemática dos livros didáticos - diz o professor -, é o que alguns consideram “A” matemática. Temos matemáticas para os arquitetos, para os construtores de jangadas lá do Amazonas...e não estou convicto de que a matemática das costureiras de uma cooperativa no interior da Bahia ou a matemática dos trabalhadores rurais que plantam café no interior de Minas Gerais seja igual a nossa matemática escolar. A matemática dos romanos do século I a. C, a matemática dos pintores renascentistas italianos, e assim por diante.
- Bobagem! - exclama um dos alunos. - É sempre a mesma matemática em toda a parte! O pensamento matemático é o mesmo; ele é traduzido de uma linguagem para outra e a essência se mantém! Seria absurdo dizer que “2+2” não é igual a 4 para outra cultura... duas pedras mais duas pedras é sempre igual a quatro pedras.
- Ser matemático ou professor de matemática é um dom, uma vocação ¾ afirma outro estudante.
- Talvez - o professor responde. - Não sei se concordo. Vejo muito mais como uma profissão. Um conhecimento especializado. Algo que aprendi neste mundo, nas escolas, na universidade. Existem linguagens e pensamentos, pressupomos que existe uma relação entre estas coisas, e, de uma cultura para outra, pode não ser possível a tradução.
- Nem todos nascem para a matemática ou para ser professor! - afirma o aluno.
- A matemática sistematizada, adaptada e depois repassada para vocês na nas escolas - diz o professor -, é fruto de um processo de produção que tem sua própria história e se insere dentro de uma estrutura de mundo. Existem limites políticos, econômicos, sociais e culturais que influenciam na seleção dos saberes elegíveis para o ensino. Não é?
- Sim! - concorda uma aluna. - Hoje são as novas tecnologias de comunicação e informação, as mídias digitais em rede.
- Os contextos específicos de uso da linguagem matemática e das práticas matemáticas só podem ser devidamente estudados e compreendidos se situados no mundo da ação humana, no mundo real, na experiência prática e concreta em um dado contexto socio-histórico, nos limites de uma linguagem - o professor comenta.
- O saber matemático - um estudante se pronuncia - e o seu ensino se encerram dentro de limites socioculturais e históricos concretos que impõem limites que certamente nos escapam; não controlamos o mundo à nossa volta. É preciso indisciplinar-se, revolucionar a política das fronteiras do saber!
- Mas é a nossa matemática - outro estudante fala. - É essa a matemática que todos têm que aprender nas escolas! A matemática para se viver nesse mundo de hoje, agora, independente do contexto social.
- A matemática - um dos alunos dispara a falar - está em tudo! A matemática está em toda a parte, desde sempre! Padrões! Sem ela não vivemos! Dia e noite, as oscilações das marés. Tudo depende da matemática. As plantas e o seu crescimento. Estas coisas independem da minha vontade. No entanto, a função que descreve o crescimento ou o decrescimento está aí para nos provar que a matemática está ali na natureza, oculta.
- Será mesmo assim? - o professor questiona a turma.
- A matemática tem algo de divino, não é?! - afirma outro estudante. - Como diz aquela frase famosa, “a matemática é a linguagem com que Deus escreveu o universo”.
- Galileu - diz o professor -, atribui-se a Galileu esta fala. Isso é comprovado? Ou é como uma espécie de crença compartilhada? A matemática é uma entidade onipresente e onisciente? A matemática é como um Deus ou a linguagem de Deus?
- Todo modelo matemático é apenas isso, um modelo - afirma um aluno. - A matemática apresenta um modelo do mundo. Uma descrição imperfeita da realidade a partir de uma linguagem não natural que é, como sabemos, limitada.
- Só sei que é assim - diz um dos estudantes - desde que me lembro, na escola, e agora na faculdade... é assim! E não é verdade que a matemática está em tudo? E os objetos da matemática, por exemplo, eles não existem verdadeiramente em nosso mundo, não é?!
- Você disse algo - fala o professor. - Você disse, “desde que me lembro”, não é? E disse na escola e na faculdade, estou certo? Os professores de matemática quando disparam a falar sobre o poder da matemática, dizem que é produto da mente humana ou que é algo transcendental que existe em um além-mundo?
- Eu acredito que a matemática - afirma um dos estudantes -, assim como tudo que o homem produz, é apenas isso, ou seja, o produto do nosso trabalho. Não faz sentido supor que a matemática exista independente do homem.
- E você acredita - outro aluno rebate - que o número PI, que aparece em qualquer circunferência, em qualquer lugar, em qualquer tempo histórico, é invenção do ser humano?
- Bom - o professor comenta -, se as pessoas compartilham uma mesma métrica, um mesmo sistema simbólico, uma mesma linguagem, e, dessa ideia compartilhada, chegam ao mesmo resultado dentro de um jogo com regras bem definidas, isso me parece bom. Mas isso é um indicativo de que existe algo além do pensamento humano? Conseguiríamos encontrar PI com outra linguagem, outros símbolos, outras métricas, em outro jogo, com outras regras?
- Voltemos ao início - diz um dos alunos. - Vamos aceitar que todos nós somos o produto de ideias, discursos e crenças que nos antecedem e englobam, mas, também, que somos produtores destas coisas; com sorte criaremos algo novo. Somos seres do nosso tempo, históricos, afetados por tradições e por visões de mundo (cultura). No entanto, afetamos tanto quanto somos afetados. Aprendemos um conjunto de conhecimentos herdados de um passado longínquo, ás vezes próximo, alguns deles estão organizados, sistematizados e hierarquizados, mas não todos. O conhecimento escolar, por exemplo. E, certamente, na escola e na universidade, as marcas da produção desse conhecimento foram apagadas, esquecidas, postas de lado. Não é?
- Faz sentido - afirma outro estudante. - Eu nunca parei para pensar na organização dos conteúdos de matemática nos livros didáticos, ou na elaboração do currículo, apenas estudei e segui o fluxo dos acontecimentos.
- Na matemática - diz outro estudante - está tudo pronto, de fato. Está no livro! Uma definição, um teorema, uma demonstração, um exemplo, e alguns exercícios. Não sabemos de onde vem, sua motivação, sua necessidade.
- O que é o número um? - o professor interrompe o diálogo com uma pergunta.
- Isto é “um” - diz uma estudante, levantando um dos dedos da mão.
- Um dedo para o alto? Isso não me parece o número um - diz um estudante.
- O “um” é uma unidade - dispara outro aluno -, simboliza um objeto, uma única coisa de uma coleção de objetos.
- O que é a unidade? - o professor questiona. - Quando você diz “uma maçã”, e aponta para uma maçã sobre a mesa, você está realmente fazendo e dizendo?
- A unidade é uma espécie propriedade compartilhada por diferentes grupos? - indaga um estudante.
- Como assim? Explique-me - fala o professor.
- Uma característica comum - responde o aluno -, a quantidade que caracteriza um conjunto. Uma maçã, uma caneta, um caderno; não importa o conjunto, nem os objetos. Abstraímos uma propriedade.
- Mesmo que vocês sejam influenciados - o professor volta a falar - pelas ideias matemáticas dos matemáticos e, nesse caso, mesmo que se sintam inclinados a repetirem que “um número é algo que caracteriza certas coleções, a saber, aquelas que têm aquele número” como nos fala Russell em seu livro “Introdução a filosofia da matemática”[3], ainda assim persistirá a dúvida. Não é?! E qual a ideia subjacente? Ainda sabemos pouco sobre a natureza dos números. A ideia do número, a numeridade do número, o que quer que seja isso, nos escapa.
- Devemos falar para os alunos do ensino fundamental - diz um dos estudantes -, que dados dois conjuntos, neste caso os números naturais, existe uma correspondência um a um de objetos; para cada um dos objetos de um dos conjuntos existe apenas um objeto correspondente do outro. Isso não seria suficiente?
- Talvez sim - o professor responde. - O que você acha?
- Nos livros didáticos - um estudante comenta - são dados exemplos de grupos de objetos, coisas diferentes de diferentes coleções. Os alunos contam as quantidades e escrevem os números. Eles começam com a contagem, as quantidades e a representação disso.
- Isso me lembra as palavras de G. H. Hardy - diz o professor. - Ele escreve em seu livro o seguinte: “A certeza da matemática, diz Whitehead, depende da sua absoluta generalidade abstrata. Quando afirmamos que 2 + 3 = 5, estamos afirmando uma relação entre três grupos de coisas, e essas coisas não são maçãs, nem moedas, nem coisas de uma ou outra espécie particular, mas apenas coisas, qualquer coisa. O significado do enunciado é totalmente independente das individualidades dos membros dos grupos”. O que vocês acham, isso lhes parece familiar?!
- Sim! - fala um dos alunos. - Esse é o princípio da nossa matemática!
- Quando estamos ensinando a matemática escolar não é necessário especificar o contexto em nenhum caso possível? - o professor questiona. - Aprendemos a matemática na escola apenas com abstrações e generalizações fora de contexto? Courant e Robbins, por exemplo, afirmam que “o que pontos, retas, números efetivamente são não pode e não precisa ser discutido na Ciência Matemática. O que importa e o que corresponde a fatos verificáveis é a estrutura e as relações entre objetos”[4]. O que acham? Gostaria de lembra a todos das leituras recomendadas: Frege, Tarski, Gödel, Russell, Wittgenstein e, ainda, D’Ambrosio e todos os textos da Etnomatemática.
- A matemática - um dos estudantes fala - organiza tudo em uma estrutura hierárquica ou talvez desvende a estrutura do mundo. O fato é que precisamos apenas de alguns termos não definidos e alguns axiomas, uns termos definidos e algumas regras de inferência. As propriedades, as relações entre os objetos, a estrutura irá surgir. Importa-nos saber como os objetos se relacionam dentro desse sistema.
- Parece coerente - afirma outro estudante. - Não precisamos saber o que é um número, precisamos saber como operar os números dentro do sistema. Não é?!
- Vocês reproduzem suas interpretações sobre o que ouviram durante sua formação - diz o professor. - E, claro, é isso mesmo. Não estão errados. O que vocês me mostram, no entanto, quando pergunto sobre o número um é uma espécie de saber escolar e um desconhecimento; exibem um dedo ou um traço, um risco, uma marca, e estas coisas, como podem perceber, não são o número um. Não é difícil perceber que estas coisas são diferentes entre si, o dedo para o alto e o traço, não é?! O que me mostram são representações simbólicas do número um; diferentes representações. Representações que, de algum modo, para nós, adquirem um sentido bem restrito, a saber, designam um objeto que denominamos “o número um”. Dentro desta lógica, não seria muito diferente se me mostrassem o os algarismos romanos, ou os símbolos babilônicos ou, ainda, os egípcios, bastando, é claro, conhecer suas regras operatórias, suas bases de contagem, não é?!
- Sim! São diferentes! E, sim, são apenas representações - afirma um dos alunos.
- Por outro lado - o professor fala -, parece coerente dizer que as representações simbólicas estão associadas a um código linguístico, a uma linguagem situada em um espaço e em certo tempo e, claro, neste caso, fazem parte de uma sociedade, de um grupo cultural, de uma história. Toda representação tem sua história própria e adquire algum significado dentro de um contexto histórico específico. Os sentidos emergem dos contextos em que são usados, não é?! Mas, também, as representações seguem alguns padrões cognitivos que dependem de outros fatores, como nos fala, por exemplo, o filósofo e psicólogo Raymond Duval[5].
- Sim! - responde um aluno. - Então, talvez, o contexto de uso dos símbolos interfira na interpretação que se faz dele e, neste caso, dificulta a compreensão do significado. É isso?!
- E o que isso significa? - indaga um estudante. - São representações, e cada um com sua regra, com sua base de contagem, e seu uso específico. Mas isso não cria uma dificuldade? Quero dizer... se cada um tiver a sua própria simbólica... isso não é um problema?!
- A linguagem, as regras, as representações - o professor fala - não estão, de algum modo, condicionados a certos acordos que nós, seres humanos, estabelecemos para que possamos compreender uns aos outros em certas situações. Não é?! Quando dizemos que a língua inglesa é a linguagem universal no campo acadêmico, o que isso quer dizer?! Todos falam e escrevem em inglês? Todos pensam a partir desta linguagem? Claro que não! Existe uma convenção para produção de artigos e textos acadêmicos, não é?!
- Então - um estudante fala -, os símbolos são iguais, mas são diferentes dependendo do uso? Dependem de um contexto sociocultural e histórico? E, ao mesmo tempo, acreditamos que independem de qualquer contexto, pois estamos dentro desse sistema de convenções? É isso?!
- Talvez. Acho que estamos nos aprofundando no debate - o professor fala. - A matemática simbólica, suas operações, suas regas, aparentemente dependem e independem simultaneamente do contexto, mas, neste caso, quando é que dependem e quando independem? Poderíamos pensar em pelo menos três grandes situações: (i) a prática pedagógica, em sala de aula, no ensino da matemática, (ii) a prática do matemático que produz matemática e pesquisa matemática, e (iii) o conhecimento prático ou teórico das pessoas que usam o que nós identificamos como sendo matemático, mesmo que estas pessoas não reconheçam como tal. E, além disso, o que significa o tal contexto, o que é isso?
- Os estudantes e os professores podem ser entendidos como seres que agem e reagem - o professor fala -, e, como tal, o fazem em um dado cenário, em um local, em uma sociedade, em um bairro. Ambos os grupos, professores e alunos, trabalham para produzirem algo e, também, consumirem coisas que não produzem. Trabalham para produzir a própria aprendizagem e também o seu conhecimento, por exemplo, neste caso, o conhecimento matemático. Poderíamos dizer que os professores de matemática, mesmo os que são matemáticos, participam de uma produção da qual pouco sabem a respeito; são profissionais especializados; alguns deles pouco sabem sobre as regras e o funcionamento da estrutura social e cultural da qual pertencem, a estruturação social está intimamente ligada ao campo simbólico e a um conjunto de convenções; muitos não compreendem como a organização e a distribuição do conhecimento ocorre dentro dessa estrutura de mundo e, claro, menos ainda sobre o controle que se exerce sobre o que é produzido e distribuído. São, em todos os casos, apenas trabalhadores que fazem algo e estão alheios à totalidade da realidade. Poderíamos dizer, então, que se trata de um trabalho alienado? Não é?! Tornamo-nos alheios à totalidade do processo de produção, organização e distribuição do conhecimento matemático e, nesse sentido, abandonamos qualquer pretensão de conhecer mais do que aquilo que nos dizem que devemos saber e fazer (sobre a matemática e o seu ensino). Não parece importar quem decide, nós apenas fazemos. O proprietário do cursinho, o dono da escola, o diretor da escola, o governo do Estado, o governo Federal, A Base Nacional Curricular Comum, a OCDE, a ONU, e sei lá mais quem... Ensinamos regras, fórmulas, operações e reproduzimos um modo de se ensinar e de se aprender a matemática. Não ultrapassamos a máquina institucional e oficial de produzir corpos, mentes e hábitos. O mundo da matemática por si mesmo, por ele próprio, isso é tudo. Não é?!
- Meu Deus! - diz um aluno. - Nunca pensei sobre isso. Não é um pouco de exagero?! E, se for verdade, não é assim que as coisas são?! Não acho que eu seja um fantoche sem capacidade de decidir minha vida.
- Ora, não é preciso ser um fantoche para ser influenciado ¾ o professor fala. - Seja na leitura psicanalítica, na filosofia ou na sociologia, percebemos que estamos sempre propensos a aderir a alguma ideia que não nos pertence totalmente, a algum discurso que não produzimos. Talvez o conceito de ideologia possa ser usado aqui, neste caso. E, vamos pensar sobre o mundo. As coisas realmente são assim como parecem ser? Sempre foram assim como nos dizem ser? Quem decidiu que é assim que tem que ser o funcionamento dos corpos e das mentes no processo de escolarização? Será mesmo que não existe outro modo de ser? E, afinal, por que aceitamos tão passivamente esta coisa que nos dizem ser a nossa realidade social e cultural? Estamos imobilizados? Aceitamos que existe algo e não nos perguntamos nada sobre este algo que nos dizem existir, não nos importa saber, apenas observamos como as coisas reagem umas em relação às outras, e isto nos basta. É isso?
- Toda linguagem - um dos alunos da pedagogia fala -, vocês devem saber, faz parte de uma estrutura social, cultural, política, econômica e, claro, em seus limites históricos, cria os sentidos e impõe os seus significados. Não é isso professor? Estamos cegos dentro dessa estrutura de mundo!
- É o que parece - reponde o professor. - Os sentidos, as significações, as compreensões, são possíveis apenas dentro de certas condições, dentro de certos limites. Não somos seres passivos, é certo, mas também, tão pouco, incondicionalmente reativos. Alguns podem dizer, estão autorizados a dizer e, claro, outros não estão autorizados a dizer. Recomendo que depois leiam os textos de Foucault, “a ordem do discurso”, do Bourdieu, “o poder do simbólico”, e também de Bello, “Jogos de linguagem, práticas discursivas e produção de verdade”[6]. E, se pensarmos bem, afinal, nem todos possuem diplomas, títulos, ou cargos que permitam falar ou ensinar alguma coisa, mas, os que possuem, necessariamente passaram por uma espécie de linha de produção de subjetividades, por um processo de produção de sentidos e construção de visões de mundo, produções de verdades. O que julgamos aceitável ou verdadeiro talvez não dependa apenas de nós, ou, realmente, de fatos da realidade, e sim, provavelmente, da cultura que nos devora, nos determina e condiciona. Talvez! Estamos habituados a viver dentro de limites, e não nos damos conta disso. D’Ambrosio falava das gaiolas epistemológicas... estamos presos em gaiolas que nos dizem como é o conhecimento e como devemos conhecer.
- E o número um? O que tudo isso tem a ver com ele? - indaga um estudante.
- Tudo! Nada! - responde o professor. - Se pensarmos na ideia de unidade, e, por exemplo, na ideia de algo indivisível, algo como uma pedra maciça e inquebrável, talvez estejamos usando uma linguagem matemática próxima a dos babilônios de seis mil anos atrás, as pedrinhas, os tokens; mas se pensarmos em unidades divisíveis, divisões que em dado momento sejam interrompidas, permitindo-se comparações, talvez estejamos mais próximos dos pitagóricos de antes dos incomensuráveis; no entanto, se pensarmos em uma unidade que pode ser indefinidamente partida, talvez estejamos, neste caso, mais próximos da matemática de Leibniz e Newton, próximos do seu Cálculo diferencial e integral. Que unidade é esta que vocês imaginam? Não sei! Por exemplo, na geometria de Euclides, nos “Elementos”[7], ele define o que vem a ser um ponto geométrico; ele nos diz que “Ponto é o, que não tem partes, ou, o que não tem grandeza alguma”. E o que isso significa, para nós, nos dias de hoje? Como ele pensava aquela unidade do espaço, o ponto? E, talvez muito mais relevante para nós, é perguntar o que teria levado Euclides a enunciar tal coisa em seu texto. Como os gregos dos tempos de Euclides pensavam a ideia de ponto? É possível que alguns dos antigos utilizassem pontos com partes, pontos passiveis de decomposição? Não tenho respostas imediatas. Contudo, isso parece evidenciar um conflito, uma escolha e um procedimento. A possibilidade de ideias contraditórias e, portanto, de conflito, pode ter levado Euclides a ter que afirmar categoricamente, ou seja, definir, o que para ele é um ponto e, nesse caso, ele foi levado a fazer uma escolha no exato momento em que elaborou o seu texto e, esta escolha, percebam, determina um procedimento, um modo de agir, uma forma de lidar com os objetos matemáticos.
- Ora, um é um! Ponto é ponto! Não é?! - um dos estudantes fala. - E no curso de matemática aprendemos a associar pontos da reta com números. Isso independe da cultura e da sociedade, é pura lógica! Se somos alienados por fazer isso e não apresentarmos uma definição de número, então, que sejamos todos alienados. Esta matemática está funcionando!
- Sim e não, depende - responde o professor. ¾ Esta matemática está funcionando em que sentido? Funcionando para quem? Afinal, os índices de reprovação e evasão escolar continuam altos, talvez piores do que em anos anteriores, não é?! O curso de Cálculo diferencial e integral ainda é o grande monstro do curso, seguido, talvez, pela análise matemática... recomendo que leiam o texto do Romulo Lins, “Matemática, Monstros, Significado e Educação Matemática”[8]... e pensem neste monstro de estimação que é, também, um monstro assustador... e, sobre as correspondências, fazemos corresponder objetos da geometria que não sabemos exatamente o que são com os números, que não sabemos dizer o que são. Somos como crianças que observam dois imãs que se aproximam ou repelem, mas não sabemos dizer o que são os ímãs ou como funcionam, apenas descrevemos a interação entre eles; Seria isso? É isso que fazemos?! Apenas aceitamos a existência de algo que não sabemos o que é e escolhemos arbitrariamente uma representação simbólica para ele, é isso?! Isso é, realmente, incrível, não é?! Criamos mundos a partir da nossa crença na existência de objetos que não sabemos o que são e que, exatamente por isso, aceitamos suas representações e as relações entre as representações no plano simbólico. Nós, seres humanos, criamos estas coisas. Nós criamos as convenções, as regras e as representações. Não é?!
- Palavras que não necessitam de definição ¾ um dos estudantes fala - termos indefinidos, não é? Os pontos e os números. Os matemáticos convencionaram que estas coisas não precisam de definição. Contudo, é realmente estranho pensar que Euclides definiu, ou disse, ou apresentou uma característica do ponto geométrico.
- E, na nossa teoria matemática, nos axiomas de Peano, por exemplo, aqueles que tratam dos números naturais? - indaga o professor. - Será que lá teremos uma definição, uma apresentação, ou uma exibição dessa coisa, o número um? O que acham?!
Neste instante os alunos do curso de Pedagogia ficaram um tanto desconfortáveis, pois, praticamente nenhum deles tinha este conhecimento. No quadro, com poucas linhas, o professor apresenta algumas ideias básicas; na verdade, ele escreve o seguinte: “1 pertence ao conjunto dos Naturais”, “Todo número natural . possui um sucessor s(.)”, “1 não é sucessor de nenhum número natural”. E complementa o que foi escrito falando para os alunos que s(.) é uma função (injetiva) que associa cada número natural “n” do domínio a um único número “s(n)” no contradomínio.
- Se é um axioma - disse um aluno da Pedagogia -, e de acordo com isso que escreveu e tudo que falamos até agora, então nós continuamos sem saber sobre o que estamos falando! Não é?! Apenas temos uma espécie de lei que nos orienta... permanecemos na mesma situação! Apenas aceitamos esta regra e, a partir dela, desenvolvemos o restante da teoria, não é isso?!
- Se pensarmos na linguagem natural - o professor fala - , e se pensarmos seriamente sobre as palavras que usamos, perceberemos que elas podem assumir diferentes sentidos em diferentes frases, dependendo das circunstâncias, não é?! É quase uma espécie de jogo, uma brincadeira, o que fazemos com uma determinada palavra quando a empregamos em uma frase qualquer; é o que um sujeito chamado Wittgenstein chamaria de jogos de linguagem; os usos e os jogos de linguagem que realizamos, inclusive em uma aula de matemática. E isto, no plano da enunciação, da fala. Ainda precisamos pensar sobre a escrita, as representações.
- Mas isso se aplica à matemática? ¾ um aluno da licenciatura questiona. ¾ Todas as pessoas, em todos os lugares, compartilham a mesma compreensão sobre as palavras que usamos na matemática, nas aulas de matemática, não é?!
- Talvez - o professor responde -, eu diria que é improvável, mas possível. O que dizer sobre o numero um, por exemplo? Todas as pessoas, em todas as nações, em todas as culturas, em todos os tempos, foram ou são capazes de dizer seguramente o que é o número um? E sobre o ponto? O ponto geométrico? O que é o ponto? E, se pensarmos bem, em cada cultura, em cada sociedade, em cada momento histórico, como disse anteriormente, podem emergir outros sentidos, não é?!
Silêncio. Pausa. Pensamentos.
- Todo mundo sabe ¾ um dos alunos fala ¾ o que é uma equação do segundo grau, ou o teorema de Pitágoras. Todo mundo sabe o que é “1 + 1”. Não tenho dúvidas!
- Talvez - o professor insiste na incerteza que, neste momento, é o que potencializa o debate e a reflexão. – Todo mundo é muita gente, não é?! Eu diria que um grande número de pessoas escolarizadas dentro de uma estrutura que se apoia nessa linguagem matemática, e adota algumas convenções e acordos implícitos para o uso desta linguagem, é capaz de compreender uma parte do que se diz. E o que dizer, por exemplo, dos povos nômades que vivem dispersos no continente africano? O que dizer dos povos nativos, dos indígenas, que vivem no interior da floresta amazônica?
- Só não saberá esta linguagem - o estudante volta a falar. - Eles não fazem parte da nossa sociedade, tem seus costumes, não frequentam nossas escolas, pois, se estiver na nossa escola, em qualquer uma, ele saberá, não é?! Todas as escolas usam a mesma linguagem matemática.
- Mesmo que isso seja verdade - o professor fala - , e não afirmo que seja a verdade absoluta, afinal, existem grupos de pessoas em nossa sociedade que não tem acesso às escolas, e existem outras culturas que usam outras matemáticas, outras linguagens... bom... mesmo em nossa cultura matemática, talvez não esteja claro para todas as pessoas que “1+1” não esteja operando na base binária, não é?! Teríamos neste caso outro resultado, algo diferente do que se poderia esperar na base dez. Assim, falta ainda um contexto discursivo. Falta delimitar o seu jogo e as suas regras.
Silêncio. O aluno acena com a cabeça. A turma parece concordar.
- Vamos nos deter sobre os símbolos, as representações simbólicas - o professor reinicia sua fala. ¾ Como os objetos matemáticos se comportam e se relacionam a partir das suas representações? Falaremos do logicismo e do positivismo lógico, da filosofia analítica, e avançaremos até o segundo Wittgenstein e seus jogos de linguagem. Iremos nos concentrar, por hora, nesta primeira etapa do curso, sobre estas questões relacionadas à linguagem matemática; vamos pensar mais intensamente sobre os objetos abstratos dos quais nada sabemos. Vamos analisar e pensar as regras que recaem sobre as “palavras” que designam certos objetos, sobre seus símbolos. Muito bom! Ficaremos por aqui, em nossa primeira aula, e espero que em no nosso próximo encontro possamos aprofundar esta perspectiva e falar mais sobre a filosofia da matemática, as representações e a escrita em uma aula de matemática, e sobre a filosofia da Educação Matemática.
REFLEXÕES FINAIS
Tentou-se, a partir dos diálogos, indicar que os objetos da matemática existem em função da sua construção no campo da linguagem, entendidos como sistemas proposicionais linguísticos em dados contextos socioculturais e em momentos históricos determinados; além disso, buscou-se evidenciar que a atividade matemática está condicionada a certas regras não enunciadas de produção/reprodução, e que, como parte essencial de uma estrutura social e cultural profissionalizante, conduz os trabalhadores à um processo de alienação no que diz respeito à distribuição e controle deste mesmo conhecimento. Além disso, sugere que ainda hoje a matemática escolar e acadêmica apoia-se eminentemente no sentido da visão e se ancora em uma base analítica, e, portanto, simbólica, em especial no que tange ao seu ensino; daí a ênfase no uso das diferentes representações semióticas em matemática. E, por fim, sugere que no caso da aprendizagem, a recepção da informação efetuada pelos estudantes depende do uso da linguagem e, também, neste caso, das leituras e interpretações socialmente, culturalmente e historicamente determinadas por estes sujeitos em seus cenários específicos.
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Notas
Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/28 (pdf)