ARTIGOS CIENTÍFICOS

Aspectos da Filosofia de Lakatos para a Matemática: reconstrução racional da história da curva normal

Aspects of Lakatos’ Philosophy for Mathematics: rational reconstruction of the history of the normal curve

Aspectos de la filosofía de Lakatos para las matemáticas: reconstrucción racional de la historia de la curva normal

Elaine Caire
Universidade Federal do ABC, Brasil
Virgínia Cardia Cardoso
Universidade Federal do ABC, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 20, e023083, 2023

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 28 Maio 2022

Aprovação: 14 Dezembro 2022

Publicado: 01 Janeiro 2023



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v20id781

Resumo: Neste artigo retomamos a obra de Imre Lakatos aprofundando o estudo em alguns aspectos pouco explorados na Educação Matemática até o momento. Trazemos para a discussão o conceito lakatosiano de reconstrução racional da história e uma contribuição para a Educação Matemática. A reconstrução racional é um enfoque internalista da História da Matemática, porém tem valor heurístico, pois permite que se observe como surgem novos conteúdos matemáticos a partir de um processo racional. No caso da Matemática, tal processo é o Método de Provas e Refutações, descrito em Lakatos (1978). Apresentamos os resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento concluída em 2022 na qual elaboramos um material didático na forma de livro paradidático sobre a Curva Normal, partindo de estudos de obras originais de Abraham de Moivre. Na reconstrução racional empreendida observou-se o processo racional heurístico lakatosiano. O estudo na filosofia lakatosiana contribui para a Educação Matemática na medida em que propicia novos olhares e abre novas possibilidades de compreender e produzir Matemática a partir de uma perspectiva histórica.

Palavras-chave: Curva Normal, História da Matemática; Reconstrução Racional da História; Filosofia da Matemática; Lakatos.

Abstract: In this article we resume the work of Imre Lakatos, deepening the study in some aspects that have been little explored in Mathematics Education so far. We bring to the discussion the Lakatosian concept of Rational Reconstruction of History and a contribution to Mathematics Education. Rational reconstruction is an internalist approach to the History of Mathematics, but it has heuristic value, as it allows the observation of new mathematical contents in a rational process. In the case of Mathematics, such a process is the Method of Proofs and Refutations described in Lakatos (1978). We present the results of a post-doctoral research concluded in 2022, in which we developed a didactic material in the form of a textbook on the Normal Curve, based on studies of original works by Abraham de Moivre. In the Rational Reconstruction undertaken, the Lakatosian heuristic rational process was observed. The study in Lakatosian philosophy contributes to Mathematics Education insofar as it provides new perspectives and opens new possibilities for understanding and producing Mathematics from a historical perspective.

Keywords: Normal Curve, History of Mathematics, Rational Reconstruction of History, Philosophy of Mathematics, Lakatos.

Resumen: En este artículo retomamos la obra de Imre Lakatos profundizando en el estudio de algunos aspectos poco explorados en la Educación Matemática hasta el momento. Traemos a la discusión el concepto lakatosiano de Reconstrucción Racional de la Historia y una contribución a la Educación Matemática. La reconstrucción racional es un enfoque internalista de la Historia de las Matemáticas, pero tiene valor heurístico, ya que permite observar cómo surgen nuevos contenidos matemáticos a partir de un proceso racional. En el caso de las Matemáticas, tal proceso es el Método de Pruebas y Refutaciones descrito en Lakatos (1978). Presentamos los resultados de una investigación posdoctoral finalizada en 2022 en la que desarrollamos material didáctico en forma de libro de texto sobre la Curva Normal, a partir de estudios de obras originales de Abraham de Moivre. En la Reconstrucción Racional emprendida se observó el proceso racional heurístico lakatosiano. El estudio de la filosofía lakatosiana contribuye a la Educación Matemática en la medida en que brinda nuevas perspectivas y abre nuevas posibilidades para comprender y producir matemáticas desde una perspectiva histórica.

Palabras clave: Curva Normal, Historia de las Matemáticas, Reconstrucción Racional de la Historia, Filosofía de las Matemáticas, Lakatos.

INTRODUÇÃO

As ideias de Imre Lakatos (1922 – 1974), filósofo das Ciências e da Matemática, exercem influência na Educação Matemática, sobretudo quando procuramos discutir as fundamentações filosóficas nessa área. Em 2022 comemoramos o centenário de seu nascimento, o que nos oportuniza revistarmos suas obras e pensarmos na potencialidade dessa discussão em nossa área de pesquisa. Recuperamos estudos anteriores na filosofia de Imre Lakatos, focando um aspecto particular e que sustenta suas teorias: a Reconstrução Racional da História da Matemática. Para discutir esse aspecto, apresentamos alguns dos resultados da pesquisa realizada como pós-doutoramento da primeira autora, sob a supervisão da segunda, na Universidade Federal do ABC (SP), entre maio de 2021 e maio de 2022, na qual elaboramos uma possível reconstrução racional da história da Curva Normal. Nesse artigo trazemos essa discussão levantando algumas implicações da Filosofia de Lakatos para a Educação Matemática.

A Curva Normal é um importante conceito matemático que é frequentemente ensinado nas disciplinas de Probabilidade e Estatística em vários cursos superiores. Sua importância é dada pelas aplicações em diferentes áreas científicas, como por exemplo: física, economia, sociologia, biologia e, evidentemente, estatística. A Curva Normal representa a distribuição de erros de medidas de uma grandeza. Nas ciências de observação e experimentais, as mensurações estão sujeitas a erros. Quando realizamos a medição de uma grandeza repetidas vezes constatamos que sempre surge um número elevado de erros, às vezes de fontes não identificáveis. A imperfeição de nossos sentidos, dos instrumentos utilizados, variações de temperatura são, entre outras, fontes de erros. Tal fato explica por que a Curva Normal é tão comumente empregada em estudos científicos: sempre existem erros e eles, geralmente, são “normalmente distribuídos”. Assim, esse conceito é central na Teoria das Probabilidades e está presente na maioria dos programas curriculares desta disciplina.

Entretanto, o ensino da Curva Normal em cursos de graduação é, via de regra, apoiado na apresentação de fórmulas prontas que mostram apenas o produto final de desenvolvimentos matemáticos e que ocultam os longos processos lógicos (no sentido de desenvolvimento de uma dedução a partir de outros resultados preliminares), históricos (no sentido do desenvolvimento histórico da teoria) e epistemológicos (considerando os significados dos conceitos matemáticos). No ensino superior, a Matemática geralmente é apresentada no seu estilo formal: linguagem simbólica formalizada e com o nível de rigor compatível com as versões mais modernas de cada teoria. No caso da Curva Normal o que se encontra em livros-texto de Probabilidade e Estatística é o conceito formalizado, as fórmulas, o gráfico da curva (Figura 1) e exemplos de aplicações. Algumas vezes, a apresentação também traz pequenas notas históricas sobre Gauss – a quem se atribui os primeiros estudos da curva.

 Curva Normal ou Curva Gaussiana
Figura 1
Curva Normal ou Curva Gaussiana
https://pixabay.com/pt/vectors/distribui%C3%A7%C3%A3o-normal-estatisticas-159626/ (Licença Creative Commons) Acesso em 26 mai.2022.

Consideramos que a abordagem formal, tradicional nos livros didáticos das disciplinas de cursos de graduação, não propicia a compreensão do aluno. Uma alternativa a tal abordagem seria uma apresentação que considerasse os aspectos históricos do desenvolvimento matemático, no qual o aluno pudesse compreender as construções existentes dos conceitos atuais. Assim, na pesquisa de pós-doutoramento citada objetivamos compreender a história da Curva Normal e desenvolver um material didático no formato de livro paradidático (CAIRE e CARDOSO, 2022) para o aluno do curso superior.

Tal intenção, na pesquisa realizada, nos levou a refletir sobre as possibilidades de desenvolver a narrativa histórica. E assim, chegamos à Reconstrução Racional da História, proposta por Lakatos em suas obras. Essa ideia lakatosiana nos remeteu ao estudo da filosofia de Lakatos com a intenção de fundamentar não só a pesquisa sobre a História da Curva Normal, como também a apresentação desta história em um material com finalidades didáticas. No presente artigo queremos refletir sobre os aspectos da filosofia lakatosiana que foram explorados por nós na pesquisa de pós-doutoramento.

LAKATOS E A MATEMÁTICA

Imre Lakatos foi um filósofo da Ciências e da Matemática que viveu entre 1922 e 1974. Nasceu na Hungria, mas em 1956 radicou-se na Inglaterra, onde realizou seu doutoramento intitulado “Ensaios na Lógica da Descoberta Matemática” (1961) e escreveu seus ensaios mais conhecidos. Entre 1963 e 1964, Lakatos publicou quatro artigos que relatam uma parte de sua Tese de Doutoramento. Tais artigos foram postumamente reunidos em um livro organizado por Elie Zahar e John Worral, publicado em 1976 na Inglaterra, com o título “Proofs and Refutations: the Logic of Discovery of Mathematics”. Essa obra contém dois capítulos e dois apêndices, sendo que:

O primeiro capítulo vem da tese doutoral de Lakatos e é uma versão modificada do original publicado em quatro partes, no British Journal for the Philosophy of Science. O segundo capítulo e os apêndices 1 e 2 também são partes da tese doutoral, com algumas adaptações dos editores (CARDOSO, 1997, p. 10).

Esse livro foi traduzido para o português e publicado no Brasil – uma das primeiras publicações de fora da Inglaterra – com o título “A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e Refutações” (LAKATOS, 1978) e tornou-se a obra lakatosiana mais conhecida dentre os educadores matemáticos brasileiros. Neste texto nos referiremos a esta obra simplesmente por “Provas e Refutações”.

Outra obra de Lakatos publicada em livro no Brasil é “A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento” (LAKATOS & MUSGRAVE, 1979). Este é o quarto volume das Atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, ocorrido em 1965 em Londres, e contém um importante artigo de sua autoria, muito citado por educadores nas áreas de física e química: “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica” (LAKATOS & MUSGRAVE, 1979, pp. 109 a 243). Os três primeiros volumes das Atas foram organizados somente por Lakatos e publicados entre 1967 e 1968 e não tiveram edições brasileiras.

Outros ensaios seus tiveram publicações póstumas, foram organizados e editados em dois volumes pelos seus colaboradores John Worrall e Gregory Currie. São eles:

· “Matemática, Ciência e Epistemologia” (LAKATOS, 1987). Esse volume é dividido em três partes, sendo que na primeira – intitulada Filosofia da Matemática – temos cinco artigos relacionados a este tema. Um artigo que destacaremos aqui é “Cauchy e o Contínuo: a Importância da Análise Não-Standard para a História e a Filosofia da Matemática” (LAKATOS, 1987, pp. 67 – 90).

· “A Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica” (LAKATOS, 1993). Esse volume contém cinco ensaios, dentre os quais destacamos aqui “A História das Ciências e suas Reconstruções Racionais” (LAKATOS, 1993, pp. 134 a 215).

Lakatos foi um filósofo que se ocupou dos debates de seu tempo: questões relacionadas ao método científico, critérios de demarcação para identificar se uma teoria é científica ou não, como a ciência se desenvolve, se há ou não uma lógica neste desenvolvimento foram temas nos diversos ensaios que escreveu. Tais preocupações hoje em dia não ocupam mais o centro das atenções da Epistemologia, entretanto, em meados do século XX, eram questões de importantes filósofos da ciência, como: Popper, Kuhn, Feyerabend e Toulmin. Mas não há anacronismo em revisitarmos Lakatos. Muitas de suas ideias, até hoje pouco exploradas, podem trazer contribuições para a reflexão de alguns pontos na Educação Matemática por suscitarem novos olhares.

De início, Lakatos aproximou-se do pensamento de Polya, discutindo o desenvolvimento da Matemática como um processo heurístico, pois tratou da descoberta do conhecimento matemático. Esse processo também é racional, uma vez que tal desenvolvimento pode ser descrito por regras lógicas. Em “Provas e Refutações”, Lakatos (1978) também estava próximo do pensamento de Hegel considerando esse processo heurístico como dialético: temos uma prova (a tese) e refutações (antítese) e daí sairá uma nova prova (síntese) que é, de certa forma, aperfeiçoada com relação à anterior. A cada nova prova um novo ciclo de refutações recomeça. Baseadas em Cardoso (1997), podemos dizer que esta é a tese racionalista de Lakatos que, em suma, diz que a Matemática se desenvolve por um método racional de acordo com regras lógicas, que é chamado pelo autor de Método de Provas e Refutações.

Mais tarde, nos ensaios relacionados às ciências empíricas, Lakatos vai se aproximar do pensamento de Popper, trazendo para a Matemática a tese falibilista. Popper defende a ideia do falseacionismo nas ciências empíricas como um critério de demarcação entre a ciência e a não ciência. Para Popper, todo conhecimento científico deve ser falseável, isto é, deve ser passível de ser falseado por meio de um experimento. Entretanto, para Popper, a Matemática não tem essa característica. Lakatos, adaptando essa ideia popperiana, quer mostrar que a ideia da falseabilidade se estende também para a Matemática Informal – aquela da pesquisa de ponta, que se encontra ainda em desenvolvimento, nas teorias mais recentes. É a Matemática em construção no trabalho dos pesquisadores matemáticos. A Matemática de teorias mais maduras e já completamente formalizadas têm menos possibilidade de ser falseável. Neste sentido, Lakatos afirma diversas vezes que a Matemática formalizada é infértil, enquanto a Matemática informal (a não formalizada, em desenvolvimento) está viva, isto é, são teorias que têm potencial para produzir novos resultados, novos conhecimentos.

Mas o que se pode descobrir numa teoria formalizada? Duas espécies de coisas. Primeiro, pode-se descobrir a solução de problemas que a máquina de Turing devidamente programada poderia resolver em tempo finito (como, por exemplo: certa pretensa prova é ou não uma prova?). Nenhum matemático tem interesse em obedecer ao monótono “método” mecânico preconizado por tais processos decisórios. Segundo, pode-se descobrir soluções para problemas (tais como: será teorema certa fórmula numa teoria não conclusiva) em que só se pode ser orientado pelo “método” do “vislumbre indisciplinado e boa sorte”.

Ora, essa fria alternativa entre o racionalismo da máquina e o irracionalismo da suposição cega não prevalece no caso da matemática viva: uma investigação de matemática não formal ensejará fecunda lógica situacional para matemáticos operosos, lógica situacional que nem é mecânica, nem irracional, mas que não pode ser reconhecida e muito menos estimulada pela filosofia formalista (LAKATOS, 1978, pp. 16-17. Ênfases do autor).

Nos seus escritos sobre Filosofia da Matemática percebemos as linhas gerais de seu pensamento, onde identificamos uma forte crítica à Filosofia Formalista - pensamento predominante entre os matemáticos da época –, a ideia de que a Matemática Informal é falível e se desenvolve por um método racional de Provas e Refutações.

Para Koetsier (1991, apud CARDOSO, 1997) temos duas teses, uma racionalista e outra falibilista:

No método de Provas e Refutações, a TESE FALIBILISTA é: a matemática é falível, não no sentido de Popper, mas no sentido de que um resultado pode sempre estar aberto à correção. É uma falibilidade fraca (no sentido de Koetsier). Os teoremas não são afirmações definitivas, são conjecturas aperfeiçoadas pela prova e pela análise da prova. A prova não garante certeza, ela tem a função de aumentar o conteúdo gerando conceitos (conceito gerado por prova).

A TESE RACIONALISTA é: o conhecimento matemático aumenta seguindo regras racionais- as normas heurísticas - e a sequência: conjectura -> prova -> refutação -> análise da prova -> teorema. Aí aparece a dialética das ideias, que é de certa forma “independente” do matemático (CARDOSO, 1997, p. 101-102).

As teses falibilista e racionalista de Lakatos são exploradas tanto em reflexões teóricas quanto em propostas de práticas docentes em algumas produções da Educação Matemática. Para sustentar ambas as teses em sua discussão filosófica, Lakatos traz a ideia de reconstrução racional da história da Matemática. Nos deteremos nesse aspecto de sua obra, ainda pouco explorado na Educação Matemática.

RECONSTRUÇÃO RACIONAL DA HISTÓRIA LAKATOSIANA

A História da Matemática não é neutra, tão pouco linear. Conforme a narrativa, percebemos avanços e retrocessos, descontinuidades entre teorias matemáticas e fatores contextuais que possibilitaram ou dificultaram seus desenvolvimentos. Lakatos não deixou explicações minuciosas sobre o que seria uma reconstrução racional da história, nem como construí-la. Mas podemos inferir algumas ideias a partir dos poucos exemplos deixados por ele nos seus artigos sobre Filosofia da Matemática e dos estudiosos de sua obra como Koetsier (1991), por exemplo. A reconstrução racional da história é uma construção na qual são selecionados fatos e narrativas para percebermos uma racionalidade no desenvolvimento teórico e conceitual. Há uma finalidade heurística na qual se pretende explicitar a criação e/ou descoberta de um novo conceito.

A reconstrução racional da história das Ciências e da Matemática é um ponto de vista abordado ao longo das obras de Imre Lakatos (1978, 1987 e 1993) que expõe como as teorias científicas surgem e se desenvolvem a partir delas próprias. Com a ideia da reconstrução racional, Lakatos estabelece uma profunda relação entre a História e a Filosofia de uma ciência. Parafraseando Kant, o autor afirmou: “A filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia, a história da ciência sem a filosofia é cega” (LAKATOS, 1993, p. 134).

A reconstrução racional lakatosiana é uma abordagem internalista, isto é, são considerados os fatores internos para o desenvolvimento de uma teoria. Como fatores internos entendemos os problemas científicos que surgem dos próprios desenvolvimentos daquela ciência: conceitos, conjecturas, provas, exemplos, contraexemplos, etc. Não são considerados os fatores externos: as pessoas, as instituições, a cultura, o contexto social, político ou econômico. Lakatos reconhece a existência e a importância dos fatores externos na história de uma ciência, porém considera que a reconstrução racional da história é a única que traz os aspectos importantes para o cientista: a visão internalista que toma a Filosofia da Ciência como guia e que tem a tarefa de indicar os aspectos mais relevantes e cruciais para o desenvolvimento da ciência. Na reconstrução racional lakatosiana indica-se como os conceitos científicos surgem em decorrência dos resultados dos experimentos que confirmam ou refutam a teoria já estabelecida. Cardoso (1997) afirma que Koetsier (1991) caracteriza a reconstrução racional da história lakatosiana, para os casos da Matemática:

A reconstrução tem, pelo menos, quatro propósitos:

A reconstrução tem, pelo menos, quatro propósitos:

· Pedagógico: ensinar uma metodologia particular da matemática.

· Metodológico: defender uma metodologia particular mostrando que as regras aplicadas numa reconstrução são efetivas ou querer reconhecimento sobre algum trabalho, mostrando que ele estava dentro das regras ou ainda mostrar como matemáticos brilhantes agiram no passado.

· Filosófico: se relaciona à natureza da matemática. Mostra-se que uma visão da natureza da matemática está mais de acordo com a reconstrução racional que outra.

· Histórico: o objetivo é uma descrição da História ou revelar leis de desenvolvimento do conhecimento

(CARDOSO, 1997, p. 25).

Em uma reconstrução racional a ordem dos fatos históricos apresentados não respeita, necessariamente, a ordenação cronológica. As informações relativas ao contexto sociocultural e às pessoas envolvidas são apagadas. Se apresenta uma história na qual uma ideia surge de outra, após um processo de desenvolvimento metódico e racional.

Em “Provas e Refutações” (LAKATOS, 1978) temos dois capítulos nos quais a reconstrução racional da conjectura de Descartes – Euler é apresentada a partir de uma situação didática: um diálogo entre um professor e cinco alunos de uma classe de Matemática. A conjectura de Descartes – Euler diz que em todo poliedro, onde V é o número de vértices, F é o número de faces e A o número de arestas, temos V – A + F = 2. No diálogo ocorrido nas três aulas retratadas, os personagens discutem os passos da demonstração dada por Cauchy. Apresentam uma conjectura inicial e uma prova inicial. Surgem, então, os contraexemplos a esta conjetura, as reformulações de conceitos, a análise crítica da prova, enfim, deste processo dialético entre as ideias matemáticas surge novos conhecimentos. Daí o processo ser heurístico. No diálogo entre o professor e os alunos, os personagens vão apresentando novas ideias e novas objeções para aperfeiçoar a prova e também o conceito de poliedro. Assim, Lakatos mostra os mecanismos do seu Método de Provas e Refutações: estratégia antiexceção, método do ajuste de monstro[3], lemas ocultos, método de incorporação do lema, etc.

Os personagens não representam pessoas – os matemáticos que estudaram o problema, mas sim posicionamentos filosóficos quanto à Matemática: um aluno representa a visão platônica da Matemática, outro representa a visão formalista, etc. Para o autor, somente com a reconstrução racional é possível compreender a força heurística de uma teoria: “Ora, a heurística se interessa pela dialética autônoma da Matemática, e não por sua história, embora ela só possa estudar seu assunto através do estudo da história e da reconstrução racional da história” (LAKATOS, 1978, p. 190). Pode-se afirmar que Lakatos defende que a reconstrução racional da história tem um valor didático, pois por meio dela se pode aprender a heurística de uma teoria matemática, ou seja, aprender a produzir Matemática.

Nos capítulos citados, o autor faz uma distinção bem clara da reconstrução racional da história (o diálogo entre o professor e os alunos), da “verdadeira história” apresentada nas 250 notas de rodapé (na edição brasileira de 1978). “A verdadeira história aparecerá nas notas de pé da página, a maioria das quais, portanto, deve ser tomada como parte orgânica deste trabalho...” (LAKATOS, 1978, p.18). Em sua “verdadeira história”, Lakatos apresenta os fatos históricos descritos tal qual são retratados na historiografia tradicional da Matemática. As notas informam nomes e datas referentes às personalidades históricas, obras escritas e/ou publicadas, estudos feitos por este ou aquele matemático.

Quanto à distinção entre “história verdadeira” e “reconstrução racional”, observamos dois aspectos importantes. O primeiro é que Lakatos explicita a crença em uma história completa, definitivamente verdadeira, o que revela a influência da tradição positivista. No caso, a “verdadeira história” serve de guia para a reconstrução racional. Entretanto, poderíamos entender que a “verdadeira história” é também uma reconstrução racional, mas com a presença dos cientistas, as instituições de pesquisa e suas publicações. Ainda assim, temos uma história internalista, pois para Lakatos os fatores externos atrapalham a compreensão do desenvolvimento científico.

Um segundo aspecto a observar seria: a reconstrução racional é única? Caso não seja única, como escolher entre duas ou mais possibilidades de reconstrução racional? Lakatos discute esse aspecto e conclui que a história é uma ciência na qual se pode aplicar a Metodologia de Programas Científicos:

Portanto, as teorias históricas devem ser reconstruções racionais da história. Suas teorias fazem parte de “programas de pesquisa de história” que podem ser considerados progressivos ou regressivos, colocados em competição com programas rivais. Vence aquele que pode ser considerado o mais progressivo do momento. Assim, a escolha entre as reconstruções racionais segue os mesmos princípios metodológicos do Programa de Pesquisa Científica (CARDOSO, 1997, p. 28).

Lakatos (1978, pp. 166 a 184) traz uma segunda reconstrução racional ao discutir, no Apêndice 1 do mesmo livro, a história da Convergência Uniforme de Cauchy. Neste caso, Lakatos não apela a personagens fictícios que personificam tendências filosóficas. Traz já diretamente nomes, fatos e datas referentes às personalidades históricas, mas remontados de modo a acompanharmos um desenvolvimento histórico que foca o processo lógico da descoberta como um novo estudo de caso do Método de Provas e Refutações. Ou seja, o que diferencia a reconstrução racional da “verdadeira história” não é o apelo a personagens fictícios, mas sim a narrativa que explicita o método heurístico para a Matemática.

Nos ensaios sobre os Programas de Pesquisa Científica a reconstrução racional tem o papel de mostrar qual programa de pesquisa, dentre os existentes em uma área científica, tem o maior poder heurístico e que explica de modo mais compreensivo os fatos já conhecidos. A reconstrução racional indica a teoria dominante e como a ciência avança nesta. Além disso, justifica tal avanço, mostrando como um conceito é gerado a partir da crítica aos conceitos já existentes.

Em 1966 Lakatos escreveu (mas não publicou) um texto examinando dois programas concorrentes para o Cálculo Diferencial: um é o da Análise Não Standard, de Abrahan Robinson[4], e o outro é o de Weierstrass[5]. Nesse texto ele traz uma nova versão da reconstrução racional para o conceito de Convergência Uniforme de Cauchy, reformulando a versão já apresentada no Apêndice 1 de “Provas e Refutações”. Tal texto é intitulado “Cauchy e o Contínuo: a importância da análise não standard para a filosofia da Matemática” (LAKATOS, 1987, pp. 67 a 90) e foi publicado somente em 1978, por seus editores John Worrall e Gregory Currie.

Em “A História das Ciências e suas Reconstruções Racionais” (LAKATOS, 1993, pp.134 a 215), artigo publicado pela primeira vez em 1971, Lakatos analisa quatro programas de pesquisa historiográfica – o indutivismo, o convencionalismo, o falseacionismo metodológico e a metodologia dos programas de pesquisa científica – sob a perspectiva das reconstruções racionais da história. Neste, o autor explicou de que modo a História da Ciência e a Filosofia da Ciência podem aprender uma com a outra.

Em suma, pode-se considerar que a reconstrução racional da história é uma abordagem para a história da ciência na qual os fatos são selecionados e ordenados de modo a explicitar o progresso científico a partir dos problemas internos da própria ciência. Lakatos lançou mão das reconstruções racionais nos seus ensaios sobre Filosofia da Matemática e Filosofia das Ciências Empíricas para esclarecer e exemplificar os mecanismos metodológicos dos desenvolvimentos científicos.

A proposta lakatosiana também tem críticos:

Teun Koetsier em seu Lakatos’ Philosophyof Mathematics - A Historical Approach, Amsterdam, 1991, faz uma análise crítica das teses falibilista e racionalista de Lakatos com a intenção de modificar a Metodologia de Programas de Pesquisa, para obter uma metodologia melhor adaptada à Matemática. Ele propõe a Metodologia das Tradições de Pesquisa em Matemática. Para construi-la, Koetsier também usa as reconstruções racionais da história ¾ do Teorema de Pitágoras, dos Trabalhos de Arquimedes, da Convergência Uniforme de Cauchy, do teorema de Schwarz para derivadas parciais. Ele critica as reconstruções de Lakatos mostrando que são contrafactuais e que a história do Teorema de Euler e da Convergência Uniforme de Cauchy não foram dramáticas como parecem ser em Provas e Refutações (CARDOSO, 1997, p. 90).

Propomos refletir sobre a reconstrução racional como uma forma de estudar um conceito ou teoria matemáticos a partir de uma abordagem histórica para aprender Matemática e, quiçá, produzir Matemática. Entendemos que essa pode ser uma das contribuições da sua Filosofia da Matemática à Educação Matemática. Seguimos com o estudo desenvolvido sobre a Curva Normal.

UMA POSSÍVEL RECONSTRUÇÃO RACIONAL DA HISTÓRIA DA CURVA NORMAL

Quando se decide avaliar um determinado fenômeno, a escolha das variáveis é efetuada sob determinada proposta científica. Quanto mais homogêneo for o conjunto de eventos escolhido para avaliação, com maior probabilidade a Curva Normal será um bom ajuste dos dados. Segundo o economista americano Julian Simon (1968), a Curva Normal não aparece espontaneamente em variáveis naturais, mas é criada pelo cientista controlando-se variáveis. Tais variáveis podem fazer com que a distribuição original não se pareça com a normal. O aparecimento da distribuição normal indica que foi permitida a atuação da maioria dentre as mais importantes variáveis, enquanto outras tiveram pequena influência. Se há uma medição discrepante, então o pesquisador tem duas possibilidades: ou a trata como fato isolado ou verifica a causa que originou o fato dispersivo.

No estudo sobre a Curva Normal desenvolvido no estágio de pós-doutoramento, elaboramos um livro paradidático para o Ensino Superior, no qual se apresenta o desenvolvimento matemático dentro de uma reconstrução racional da história. Nesse empreendimento foram aplicadas ideias desenvolvidas por Lakatos (1978) no seu Método de Provas e Refutações como, por exemplo, as estratégias “impedimento de monstros” e “rejeição a contraexemplos”, que afrontam a construção da Curva Normal, e a “incorporação de lemas”, que garantiria a conjectura de construção da Curva Normal.

De início, baseando-se unicamente nos estudos de Moivre, rompemos com entendimentos anteriores em relação à origem do conceito, com a apresentação dos estudos de Moivre que antecederam os estudos de Gauss e Laplace. Em um segundo momento, rompemos com a própria construção da curva, investigando e trazendo alguns conceitos e temas matemáticos necessários numa reconstrução de todos os possíveis passos, rumo a uma compreensão mais didática e completa do conceito.

Os primeiros matemáticos que estudaram a distribuição normal a consideravam apenas como uma aproximação conveniente para a distribuição binomial, que constitui um modelo probabilístico resultante do binômio de Isaac Newton. No início do século XIX, a Curva Normal apareceu nos trabalhos de Pierre Simon Laplace e de Carl Friedrich Gauss. Com isso, a distribuição normal tornou-se amplamente aceita como base em muitos trabalhos estatísticos, principalmente em astronomia.

Uma fonte de pesquisa importante para nossa reconstrução da história da Curva Normal foi o matemático Karl Pearson (1924). Ele identificou a importância de Abraham de Moivre no desenvolvimento dos conceitos que originaram a Curva Normal, mudando a história comumente conhecida. Até então, a descoberta[6] da Curva Normal era atribuída a Gauss, no século XIX. Assim, a versão de Pearson nos permitiu desenvolver o material didático no qual apresentamos essa história.

Moivre, matemático francês do século XVIII, publicou a obra “MiscellaneaAnalytica” em 1730 tratando de probabilidades. Três anos mais tarde, Moivre escreveu e publicou um suplemento desta obra: “Approximatio ad Summam Terminorum Binomii (a+b)n. in Seriem expansi”[7], datado de 12 de novembro de 1733. Tal suplemento foi anexado a alguns exemplares de “Miscellanea Analytica”, mas não a todos, pois havia exemplares já distribuídos. Pearson deu créditos a Abraham de Moivre a ser o primeiro a desenvolver a Curva Normal, pois nestas obras ele encontrou um estudo simplificado da Lei dos Grandes Números e o resultado hoje conhecido por Fórmula de Stirling, essenciais ao desenvolvimento da Curva Normal.

No Livro V de Miscellanea Analytica, Moivre se dedica ao estudo do binômio com potência infinita, trazendo o seguinte problema: em um jogo temos dois jogadores com a mesma probabilidade de ganhar qualquer uma das n jogadas. Qual seria a probabilidade de se obter sucesso em n 2 vezes, quando é muito grande? A solução desse problema passa pelo resultado dado por Jakob Bernoulli[8] em Ars Conjectandi. Moivre conhecia o resultado de Bernoulli e, de acordo com Walker (1959), afirmou em Approximatio:

A solução de problemas envolvendo jogos de azar muitas vezes exige o estudo de binômios com potências muito elevadas, o que além de ser bastante laborioso apresenta grande dificuldade que poucas pessoas assumiram esta tarefa ao lado de Jakob e Nicolas Bernoulli, dois grandes matemáticos. Eu sei que ninguém tentou isso e que eles tiveram grande habilidade e louvor devido seu trabalho. Eles fizeram uma aproximação para determinação de limites amplos dentro do que a soma dos termos estava contida. Este método foi brevemente descrito em “Miscellanea Analytica” (1730). Agora adicionei alguns pensamentos numa ordem mais clara de entendimento (WALKER, 1959, p. 567).

O referido resultado é hoje conhecido como Teorema de Bernoulli, ou Lei dos Grandes Números, e descreve a estabilidade ou invariabilidade de uma variável aleatória a longo prazo. Ao realizarmos experiências sucessivas e continuadas podemos adquirir a certeza de reprodução de acontecimentos futuros e podemos determinar seu grau de probabilidade. Repetindo indefinidamente o número de experimentos, a probabilidade de um acontecimento se aproxima, intuitivamente, da certeza, ou seja, quanto maior o número de observações de que possamos dispor, mais provável será o valor que delas tiramos. Um número infinito de observações nos daria a certeza. Assim, a Lei dos Grandes Números, afirma que, numa série imensa de experimentos, a frequência relativa de um evento se aproxima cada vez mais da sua probabilidade.

O tratamento dado a esse resultado por Moivre em Approximatio é, de acordo com Pearson (1924), diferente e mais simplificado que o dado por Bernoulli. Para Pearson, Moivre deu uma aplicação mais convincente à Lei dos Grandes Números. Numa análise do Corolário 10 de Approximatio, Pearson verificou que a precisão de um processo de amostragem é dada pelo inverso do desvio padrão; assim, quanto menor a variabilidade em torno da média das possíveis amostras, maior a precisão, o que aumenta também com o tamanho da amostra. Alguns matemáticos entendem que a demonstração de Bernoulli é precisa, embora de difícil entendimento. Outros, como Pearson, entendem que Moivre aplicou a definição de desvio padrão (embora não tenha usado esse nome) o que possibilitou a demonstração da Lei dos Grandes Números de forma mais direta e precisa.

Moivre usou os resultados de Bernoulli para desenvolver uma aproximação normal à distribuição binomial utilizando o que foi chamado, mais tarde, de Fórmula de Stirling. James Stirling foi um matemático escocês (1692 – 1770). A chamada Fórmula de Stirling é, no entendimento de Pearson (1924), uma correção de um resultado já dado por Moivre. Um resultado importante na Teoria das probabilidades é o cálculo de n!, para n muito grande, tendendo a infinito. De acordo com Pearson, no suplemento citado Moivre indica que o cálculo seria dado por n ! = B . n . e - n . n n , sendo B uma constante dada por:

1 n B = 1 1 1 2 + 1 3 6 0 1 1 2 6 0 + 1 1 6 8 0 . . . que resulta: 1n B = 0 , 3 9 9 2 2 3 5 ou B = 2 , 5 0 7 4 .

Esse resultado foi corrigido por Stirling já em correspondências trocadas com Moivre, encontrando como resultado de B = 2 π = 2 , 5 0 6 6 2 8 , aproximadamente. Para Pearson, o fato de Stirling mostrar que o valor correto da constante seria 2 π não lhe dá a autoria do resultado. Apesar disso, o cálculo de n! é hoje em dia conhecido como Fórmula de Stirling:

n ! 2 π n . ( n / e ) n

O próprio Moivre, em um segundo suplemento auxiliar para seu livro Miscellanea Analytica, descreveu James Stirling como um amigo que muito lhe ensinou e que lhe trouxe um diferente processo para encontrar o valor de B como a raiz quadrada da circunferência de raio unitário encontrando um valor de 2,506628 .

Ao seguirmos as indicações de Pearson (1924) para o estudo histórico da Curva Normal, pudemos reconstruir essa história partir da visão lakatosiana dada em “Provas e Refutações” (LAKATOS, 1978). Interpretamos algumas das propostas de Moivre e dos matemáticos que se seguiram, corrigindo seus resultados e ampliando suas aplicações em áreas diferentes, de acordo com as estratégias lakatosianas do ajuste de monstros, rejeição de contraexemplos e incorporação de lemas. Nesse desenvolvimento histórico, podemos observar trabalhos matemáticos submetidos a uma análise crítica rigorosa, visando o desenvolvimento de resultados mais confiáveis e o aumento de conteúdo matemático da teoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao abordarmos a história da Curva Normal pelo viés lakatosiano, observamos os propósitos apontados por Koetsier (1991) na da reconstrução racional da história:

· Ao desenvolvermos essa abordagem histórica em um livro paradidático para o ensino superior, quisemos fugir da apresentação formalizada, comum nos livros-texto do ensino superior, mostrando a construção histórica de um conceito matemático, com os avanços e retrocessos que surgiam nas obras dos matemáticos da época. Ao explicitarmos o pensamento dos matemáticos, o propósito pedagógico de ensinar uma metodologia particular da Matemática pode ser alcançado mais facilmente.

· O propósito histórico da reconstrução racional é, segundo Koetsier (1991), revelar o desenvolvimento do conhecimento em descrições históricas. Assim, elaboramos uma narrativa que mostra resultados sendo desenvolvidos de problemas apresentados pelos seus autores e as reformulações decorrentes das análises críticas destes.

· Da mesma forma, alcançamos o propósito metodológico, reconhecendo a importância dos trabalhos de Moivre para a Teoria das Probabilidades, em especial para o resultado da Curva Normal.

· Koetsier (1991) ainda aponta um propósito filosófico para a reconstrução racional, que em nosso estudo foi alcançado de forma articulada com os outros propósitos: estudar os conceitos matemáticos em uma abordagem histórica, permite ao aluno perceber que a Matemática nasce de problemas, e se desenvolve a partir de resultados que são reformulados e corrigidos, em um processo muito próximo ao descrito por Lakatos (1978) em Provas e Refutações. Mesmo que a abordagem histórica só considere os aspectos internos dessa teoria, há possibilidade do estudante compreender a natureza da Matemática quando ela ainda está em desenvolvimento, permitindo uma melhor compreensão da Matemática.

Conhecemos a Curva Normal também pelos nomes Curva de Gauss ou Gaussiana, pelo fato dela ter ganhado notoriedade com as aplicações feitas por Gauss à astronomia em trabalhos publicados em 1809 e 1816. Laplace contribuiu para que Gauss tivesse esse reconhecimento, citando-o em uma obra sua, sobre probabilidades, publicada em 1812. Nos livros-texto sobre probabilidades é ainda muito raro o reconhecimento a Moivre. Nesse trabalho, a história da Curva Normal foi sendo revelada na tentativa de trazer uma compreensão mais profunda, apresentando-se uma origem, uma utilização do conceito em outras áreas, o porquê estudá-la e a demonstração de sua fórmula tão complexa. Quanto à origem da Curva Normal, compreendemos que, efetivamente, Moivre antecedeu Gauss e Laplace na descoberta da Curva Normal, conforme deduzimos no suplemento Approximatio, de 1733.

A reconstrução racional histórica desenvolvida não é única, o que nos permite levantar novos dados e empreender novos estudos históricos com a finalidade de desenhar uma reconstrução racional mais completa. Apesar de abordar somente os fatores históricos internos da teoria e desconsiderar os fatores externos possíveis, que poderiam enriquecer essa história, a reconstrução racional nos permitiu um mergulho nos conceitos matemáticos envolvidos, desvelando suas relações. O estudo histórico empreendido a partir de uma abordagem lakatosiana possibilitou compreendermos com mais profundidade os conceitos matemáticos envolvidos na Teoria das Probabilidades ao seguirmos os passos dados pelos matemáticos do passado.

Quando se avalia uma história ou origem de um determinado conceito matemático, tentando refazer o raciocínio do matemático, analisando sua fundamentação e como alcançou suas conclusões, a compreensão sobre o tema é ampliada, propiciando ao estudante uma visão menos mecanizada, mais científica e mais didática. A história dos conceitos matemáticos permite que o estudante amplie seu conhecimento, verificando as várias ligações e entrelaçamentos com outros temas matemáticos, enxergando a Matemática como um corpo de conhecimentos articulados, representativo à evolução das Ciências e constitutivo da formação do indivíduo. Assim, podemos afirmar que a reconstrução racional da história é uma contribuição da Filosofia da Matemática lakatosiana para a Educação Matemática.

REFERÊNCIAS

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CAIRE.E. A história da origem da curva normal. 2013. 109p. Mestrado (Mestrado em Educação Matemática). Unesp Rio Claro. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/91024. Acesso em 20 Mai. 2022.

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CAIRE, E.; CARDOSO, V.C. Desmistificando a curva normal: um recorte histórico. Santo André: UFABC, 2022. Disponível em: https://graduacao.ufabc.edu.br/licmat/images/Livro-%20Desmistificando%20a%20curva%20normal.pdf. Acesso em 27 mai.2022.

CARDOSO, V.C. As teses falibilista e racionalista de Lakatos e a Educação Matemática. 182 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1997.

CARVALHO, H. Um Estudo de provas e refutações de Imre Lakatos. 156 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2018.

KOETSIER, T. Lakatos' Philosophy of the Mathematics: A Historical Approach. Studies in the History and Philosophy of the Mathematics, London: Elsevier Science Publishers, 1991, v.3.

LAKATOS, I. A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e Refutações. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1978. 212p.

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LAKATOS, I. La Metodología de los Programas de Investigación Científica. Madrid: Alianza Universidad, 1993.

LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix/ EDUSP, 1979.

MOIVRE, A. Miscellanea Analytica. Londres: J. Thonson e J. Watts, 1730.

MOIVRE, de A. The Doctrine of Chances or a Method of Calculing the Probabilities of Events in Play. 2ª ed. Paris: A Millar, 1738.

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Notas

[3] Para Lakatos (1978), “monstro” seria um contraexemplo que refuta uma definição matemática ou prova já estabelecidas.
[4] Matemático norte-americano (1918- 1974).
[5] Karl Wilhelm Theodor Weierstrass, matemático alemão (1815 – 1897).
[6] Usamos o termo descoberta ao invés de criação ou construção para seguir o raciocínio de Lakatos. Para esse autor novos conceitos são descobertos em análises críticas de provas e de conceitos anteriores, pois já figuram (ainda que não explicitamente) em lemas ocultos.
[7] Indicaremos essa publicação simplesmente por Approximatio daqui para frente, neste texto.
[8] Jakob Bernoulli foi um notável matemático suíço, que viveu entre 1655 e 1705. Sua obra Ars Conjectandi (publicado postumamente em 1713, por seu sobrinho Nicholas Bernoulli) traz resultados importantíssimos para a teoria das probabilidades, tais como: permutações, combinações, os chamados números de Bernoulli e a Lei dos Grandes Números.

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