ARTIGOS CIENTÍFICOS

Contributos filosóficos de Nancy Fraser para estudos e pesquisas em Educação Matemática: feminismo, justiça e capitalismo

Nancy Fraser's Philosophical Contributions to studies and research in Mathematics Education: feminism, justice and capitalism

Contribuciones filosóficas de Nancy Fraser a los estudios e investigaciones en Educación Matemática: feminismo, justicia y capitalismo

Flavio Augusto Leite Taveira
Universidade Estadual Paulista , Brasil
Deise Aparecida Peralta
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 20, e023080, 2023

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 04 Março 2022

Aprovação: 14 Dezembro 2022

Publicado: 01 Janeiro 2023



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v20id758

Resumo: Este texto explora algumas discussões presentes nas elaborações teóricas de Nancy Fraser, vislumbrando possibilidades teórico-filosóficas para estudos e pesquisas em Educação Matemática, focalizando três temáticas de grande relevância para a autora: Feminismo, Justiça Social e Capitalismo. Discorremos sobre cada uma destas temáticas, começando com o diagnóstico do embate entre feministas pela igualdade e feministas pela diferença, considerando as injustiças de gênero. A preocupação com as questões de Justiça Social é abordada a partir da necessidade de alinhamento das lutas de redistribuição às lutas de reconhecimento. As críticas de Fraser ao capitalismo são apresentadas via análise da cooptação das pautas por reconhecimento pelas políticas neoliberais. Por fim, apresentamos um quadro de educações matemáticas pela diferença e educações matemáticas pela igualdade, articulando-o à conjugação de redistribuição e reconhecimento nas lutas contra as injustiças sociais no movimento da Educação Matemática.

Palavras-chave: Nancy Fraser, Filosofia da Educação Matemática, Filosofia Política, Injustiças, Redistribuição e Reconhecimento.

Abstract: This text explores some discussions present in Nancy Fraser's theoretical elaborations, envisioning theoretical-philosophical possibilities for studies and research in Mathematics Education, focusing on three themes of great relevance for the author: Feminism, Social Justice and Capitalism. We discuss each of these themes, starting with the diagnosis of the clash between feminists for equality and feminists for difference, considering gender injustices. The concern with Social Justice issues is addressed from the need to align redistribution struggles with recognition struggles. Fraser's critiques of capitalism are presented via an analysis of the co-optation of recognition agendas by neoliberal policies. Finally, we present a framework of mathematics education for difference and mathematics education for equality, linking it to the conjunction of redistribution and recognition in struggles against social injustices in the mathematics education movement.

Keywords: Nancy Fraser, Philosophy of Mathematics Education, Political Philosophy, Injustices, Redistribution and Recognition.

Resumen: Este texto explora algunas discusiones presentes en las elaboraciones teóricas de Nancy Fraser, vislumbrando posibilidades teórico-filosóficas para los estudios e investigaciones en Educación Matemática, centrándose en tres temas de gran relevancia para la autora: Feminismo, Justicia Social y Capitalismo. Discutimos cada uno de estos temas, empezando por el diagnóstico del choque entre las feministas por la igualdad y las feministas por la diferencia, considerando las injusticias de género. La preocupación por los temas de Justicia Social se aborda desde la necesidad de alinear las luchas de redistribución con las de reconocimiento. La crítica de Fraser al capitalismo se presenta a través de un análisis de la cooptación de las agendas de reconocimiento por parte de las políticas neoliberales. Por último, presentamos un marco de educación matemática para la diferencia y educación matemática para la igualdad, vinculándolo a la combinación de redistribución y reconocimiento en las luchas contra las injusticias sociales en el movimiento de Educación Matemática.

Palabras clave: Nancy Fraser, Filosofía de la Educación Matemática, Filosofía Política, Injusticias, Redistribución y Reconocimiento.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste texto objetivamos explorar algumas discussões presentes no pensamento filosófico de Nancy Fraser, vislumbrando possibilidades teórico-filosóficas em Educação Matemática. Com isso, buscamos contribuir para as discussões especialmente em Filosofia da Educação Matemática e com a diversidade de referenciais teóricos que fundamentam pesquisas em Educação Matemática.

Trata-se de um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência (Unesp), e desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação (Gepac) pelo primeiro autor sob a orientação da segunda autora, materializando um exercício de aprofundamento na obra de Fraser.

Nancy Fraser é uma representante das discussões contemporâneas no campo da teoria social, oferecendo fundamentação relevante e paradigmática para conflitos políticos que demandam lutas por reconhecimento das diferenças culturais e redistribuição econômica como remédio para injustiças sociais em um mundo de desigualdades exacerbadas, principalmente nos países do sul global (FRASER, 2022a; 2022b; 2008; 2003; 2002; 2000; 1997).

Em termos sintéticos o projeto filosófico de Fraser afirma que a justiça hoje requer redistribuição e reconhecimento, propondo-se a examinar a relação entre ambas (FRASER, 2008). Considerando esse projeto, este texto convida a pensar sobre os meios pelos quais a privação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e se sustentam concomitantemente, problematizando a justiça como exigência de dilemas políticos que se dedicam a “combater as duas injustiças ao mesmo tempo” (FRASER, 2008, p. 12). Assim, em termos estruturais, o texto apresenta um panorama sobre as perspectivas da autora das três grandes temáticas que ganharam protagonismo ao longo de sua trajetória acadêmica, a saber, o Feminismo, a Justiça e o Capitalismo; seguido de uma seção que apresenta elementos que podem fundamentar estudos e pesquisas em Educação Matemática.

OS TRÊS GRANDES TEMAS DE FRASER

Titular da cátedra Henry A and Louise Loeb de Ciências Políticas e Sociais na New School for Social Research em Nova Iorque, Nancy Fraser é uma renomada filósofa política estadunidense que atrela suas asserções teóricas à uma chamada terceria geração da Teoria Crítica.

Em sua adolescência, Fraser engajou-se na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, agregando, posteriormente, lutas relacionadas ao movimento estudantil, principalmente à segunda onda do feminismo. Segundo Marques (2020), foi a partir do contato com as lutas e mobilizações progressitas que, na década de 1970, Fraser se aproxima da tradição intelectual marxista/neomarxista “em busca de ferramentas teóricas capazes de alimentar e potencializar o enfrentamento prático contra as estruturas de poder e dominação” (MARQUES, 2020, p. 8).

Desde então, o pensamento teórico filosófico de Fraser passa a tematizar: (i) o Feminismo, defendendo o combate às injustiças de gênero e problematizando as perspectivas e movimetnos feministas que priorizavam algumas mulheres em detrimento de outras; (ii) a Justiça[3], propondo que tratemos as injustiças com redistribuição e reconhecimento – e, mais tarde, representação; (iii) o Capitalismo[4], discutindo como esse sistema econômico, capaz de impor mecanismos de regulação, trata-se de um fenômeno que pode ser caracterizado como uma ordem social institucionalizada (FRASER; JAEGGI, 2020).

Feminismo

O debate sobre o Feminismo toma grande parte da obra de Fraser até o momento. A temática feminista é a gênese do fio condutor que levou a autora a problematizar as questões e a forma como tratamos a Justiça em nossos tempos, principalmente, na era pós-globalização (DANTAS, 2018).

Fraser (1997; 2022a) compreende a história recente do pensamento feminista a partir das lutas defendidas pelos movimentos pela igualdade em contraste com as lutas defendidas pelos movimentos pela diferença, principalmente, entre o início da década de 1960 e o final de década de 1990 nos Estados Unidos. Especificamente, nos anos de 1960, predominaram as lutas das feministas pela igualdade que, considerando o foco do debate feminista a diferença entre homens e mulheres propunham a superação da diferença de gênero como principal artifício para a emancipação das mulheres (BRESSIANI, 2020).

Já em meados da década de setenta, as lutas das feministas pela igualdade foram confrontadas pelas lutas das feministas pela diferença que rejeitavam a ideia de igualdade de gênero, caracterizando-a como androcêntrica e propondo o reconhecimento da diferença de gênero como principal fator para a emancipação das mulheres. Esse embate dominou as discussões feministas no Estados Unidos até meados da década de 1980, quando feministas que não se sentiam representadas por nenhuma das perspectivas reclamaram espaço nos debates, afirmando que ambas perspectivas deixavam de citar formas de dominação que criavam, alimentavam e justificavam diferenças entre as próprias mulheres (FRASER 2022a; BRESSIANI, 2020).

Assim, segundo Bressiani (2020), Fraser (1997, 2022a) conclui que as então principais correntes do feminismo teriam perdido de vista em suas análises as diferenças existentes entre as próprias mulheres e o que isso significa para qualquer análise feminista, seja com base nas defesas realizadas nas lutas das feministas pela diferença, seja com base nas defesas realizadas nas lutas das feministas pela igualdade. Nesse panorama, entre o final da década de oitenta o início da década de noventa, os debates feministas começaram a tomar como foco as diferenças interseccionais (BRESSIANI, 2020), sendo esse o lugar da perspectiva feminista de Fraser ao defender “nenhum reconhecimento sem redistribuição” (FRASER, 2022a, p. 222).

Assim o sendo, tendo observado algumas injustiças de gênero presente nas perspectivas feministas defendidas tanto pelas feministas pela igualdade, quanto pelas feministas pela diferença, Fraser parece se inquietar com a forma de abordar questões de injustiças, como a questão de gênero tratada nos debates feministas. A autora começa a defender uma perspectiva bidimensional de Justiça que, objetivando alinhar redistribuição e reconhecimento, promete oferecer subsídios mais completos para tratas as questões de Justiça no nosso tempo.

Justiça

As discussões de Fraser sobre Justiça (FRASER, 2008a), ao nosso ver, ocupa um espaço relevante nas publicações da autora que, sobretudo no diagnóstico das injustiças de gênero produzidas pelas lutas unidirecionais das feministas pela igualdade e pela diferença. Todavia, Bressiani e Silva (2021, p. 196, grifo dos autores) reconhecem que “em sentido amplo, toda a obra de Fraser é perpassada pelo problema da justiça”.

Esses mesmos autores ao realizarem uma análise da trajetória do conceito de Justiça empreendido por Fraser em diferentes momentos de seus escritos, afirmam que o seu conceito de Justiça Social “é construído cumulativamente como resposta às questões sociopolíticas prementes em sucessivos momentos da transformação capitalista” (BRESSIANI; SILVA, 2021, p. 195).

Correia (2021) nos oferece uma leitura interessante das bases pelas quais se assentam as dimensões da perspectiva fraseriana de Justiça, envolvendo as dimensões de Redistribuição e Reconhecimento em uma concepção bidimensional de Justiça (CORREIRA, 2021) e, mais tarde, uma concepção tridimensional de Justiça Social, onde Redistribuição, Reconhecimento e Representação se articulam em torno de O quê, Quem e Como (FRASER, 2008b; 2013b), possibilitando maior escopo para o tratamento das questões de injustiça contemporâneas.

Ao afirmar que a “justiça ocupa um lugar especial no panteão das virtudes” (FRASER, 2014, p. 265), Fraser nos alerta sobre como a “globalização está mudando o modo pelo qual discutimos a justiça” (FRASER, 2009, p. 11). É diante desse alerta que as preocupações que perpassam a perspectiva de Justiça de Fraser são apresentadas, buscando dar conta das questões de injustiças ao defender que “a justiça hoje exige tanto redistribuição quanto reconhecimento” (FRASER, 2006, p. 231, grifos da autora). Entretanto, a própria filósofa reconhece que articular tais perspectivas é desafiante já que “os dois tipos de luta estão em tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro” (FRASER, 2006, p. 233). A essa problemática, Fraser chamou de Dilema da Redistribuição-Reconhecimento.

Nesse cenário, Fraser destaca três pontos importantes (i) “a transição da redistribuição para o reconhecimento está a ocorrer apesar (ou por causa) da aceleração da globalização econômica” (FRASER, 2002, p. 10), ou seja, num histórico em que a noção de justiça ficou atrelado exclusivamente às questões de redistribuição, onde redistribuição poderia ser tomado como sinônimo de Justiça Social (FRASER, 2012; 2014), a questão do reconhecimento, ao invés de se articular com a questão da redistribuição em prol de um melhor diagnóstico das injustiças em nossos tempos, o têm substituído; (ii) as lutas pelo reconhecimento estão hoje a proliferar apesar (ou por causa) do aumento da interação e comunicação transculturais, gerando aquilo que Fraser chama de problema da reificação (FRASER, 2012, p. 14) e, por fim; (iii) “a globalização está a descentrar o enquadramento nacional de uma forma que torna cada vez menos plausível postular o Estado nacional como o único contexto de atuação e a única instância que contém em si e regula a justiça social”, denominado por Fraser de problema do enquadramento desajustado (FRASER, 2002, p. 17).

No desenvolvimento de sua perspectiva de Justiça, Fraser empreende esforços teóricos em termos de formas de combinações práticas de abordagem de injustiças que combinem práticas de redistribuição e reconhecimento que não interfiram uma na outra (FRASER, 2006). Assim, para Fraser (2009), ao lado da dimensão econômica representada pela redistribuição e ao lado da dimensão cultural representada pelo reconhecimento, a dimensão política “fornece o palco em que as lutas por redistribuição e reconhecimento são conduzidas” (FRASER, 2009, p. 19).

Nesse intento, preocupada com as questões de pertencimento e procedimento, a dimensão política da justiça diz respeito às questões de representação, tendo que “a representação diz respeito aos procedimentos que estruturam os processos públicos de contestação” (FRASER, 2009, p. 20).

Capitalismo

Migrando nossas atenções agora para as discussões de Fraser sobre o Capitalismo, nesta seção, mobilizaremos algumas considerações da autora especificamente sobre o Neoliberalismo (FRASER; JAEGGI, 2020).

Fraser e Jaeggi (2020) nos conclamam a refletir sobre o Capitalismo nos dias atuais como uma necessidade imperativa a qualquer projeto filosófico herdeiro da Teoria Crítica, pontuando alguns elementos: conceitualização e historicizaçãodo capitalismo, críticas contundentes à sua trajetória, argumentaçãoque possibilite uma contestação não mais enquanto forma de organização social, mas enquanto “ordem social institucionalizada, mas também como ordem social histórica, que se altera com o tempo e cujas características significativas mudam à medida que as coisas evoluem ao longo da história”[5] (p. 79).

Fraser (2020) analisa que um dos pilares que sustentam os efeitos nefastos do capitalismo em sociedades desiguais é Neoliberalismo que, segundo a filósofa, vai se configurando de acordo com os cenários que quer dominar. Uma dessas configurações, denominada por Nancy Fraser de Neoliberalismo Progressista, predominante nos Estados Unidos da América antes da eleição desastrosa de Donald Trump, tem se alastrado pela América Latina.

Este tipo de Neoliberalismo surge, segundo Fraser, (2020), de maneira muito peculiar a partir de

uma aliança real e poderosa de dois companheiros improváveis: por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e ativistas pelos direitos LGBTQ+); por outro lado, os setores mais dinâmicos, de ponta, “simbólicos” e financeiros da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood) (FRASER, 2020, p. 37)

Segundo a autora, o que manteve essa união improvável foi, justamente, uma combinação de dimensões de lutas por distribuição e de lutas por reconhecimento, onde um “bloco progressista-liberal combinou um programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática” (FRASER, 2020, p. 38).

Segundo Marques (2020), Nancy Fraser entende que o neoliberalismo seria, então, “um projeto econômico que pode se acoplar com diferentes projetos de reconhecimento, e que de fato o acoplamento mais bem-sucedido foi o progressismo liberal, combinando um programa econômico expropriador [...] com uma política liberal meritocrática de reconhecimento” (MARQUES, 2020, p. 18).

Uma ilustração interessante para esse projeto defendido pelo neoliberalismo pode ser, ao nosso ver, a expressão de marcas e empresas multinacionais que competem no Brasil, durante o mês de Junho, mês do orgulho LGBTT+[6]. Observamos diversas marcas que pintam seus logotipos com as cores do arco-íris, promovendo propagandas direcionadas à comunidade LGBTT+ com a intencionalidade de cativar consumidores que se identificam com o apoio às lutas dessa comunidade. Todavia, há um uso de discurso pró-diversidades como forma de convencer a opinião pública, atualmente engajada em lutas de reconhecimento, a consumirem seus produtos e/ou serviços.

Após revisitar parte das discussões de Fraser, presente em escritos traduzidos para a língua portuguesa, que dizem respeitos às questões do debate Feminista ao qual a filósofa está envolvida, a perspectiva de Justiça Social empreendida por ela, bem como sua concepção de Capitalismo nos tempos atuais, voltamos atenções para discussões em Educação Matemática e como tais discussões podem oferecer elementos a estudos e investigações na área.

VISLUMBRANDO CONTRIBUTOS FILOSÓFICOS À EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Ao visitarmos pontos relevantes das asserções teóricas elaboradas e desenvolvidas por Nancy Fraser ao longo de sua trajetória acadêmica, cremos ser possível tomar alguns elementos presentes em tais asserções que nos possibilitem compreender e problematizar práticas e ações que ocorrem/são produzidas/reproduzidas em nossa área, a Educação Matemática.

Inspirados por Nancy Fraser nos propomos a pensar uma concepção de Justiça que busque dar conta de diagnosticar as principais fontes de injustiças do nosso tempo, atentando ao pano de fundo capitalista em que se passam nossas relações sociais, incluindo aquelas que dão origem à produção e à difusão de conhecimento em Educação Matemática.

Nesse sentido, defendemos, sobretudo, que é possível expandir o quadro teórico elaborado por Nancy Fraser sobre o embate entre as feministas estadunidenses, entendendo que as lutas que empreendemos em nossa casa são tocadas pelas questões de raça, etnia, gênero e sexualidade e tantos outros marcadores sociais[7]. Isto posto, tendo as principais fontes de injustiça relacionadas a tais fatores na perspectiva bidimensional de Justiça de Fraser, nossas lutas necessitam ser abordadas e enquadradas, considerando elementos tanto a partir das questões relativas à economia política [Redistribuição], quanto à cultura [Reconhecimento].

Inspirados no referencial fraseriano e no texto de Silva e Miarka (2017)[8], chamamos educações matemáticas pela diferença àquelas perspectivas de Educação Matemática que se ancoram no prestígio presente na valorização das diferenças de pessoas e culturas, que compartilham entre si um conhecimento denominado Matemática. Podemos tomar como exemplo dessa corrente, esforços de educações matemáticas que se pautam e têm se pautado em temas relacionados aos mais diversos marcadores sociais que diferenciam os seres humanos, muitas vezes fundamentadas em referenciais que admitem na Cultura o núcleo de suas preocupações com os aspectos formativos aos quais a Matemática se presta.

Já por educações matemática pela igualdade, chamamos àquelas perspectivas de Educação Matemática que se ancoram no prestígio do que nos iguala enquanto seres humanos participantes de uma realidade social, e que compartilham entre si um conhecimento denominado Matemática. Alguns exemplos desta corrente são esforços de educações matemáticas que denunciam, por exemplo, o quanto o sistema ao qual estamos rendidos a fazemos parte – o sistema Capitalista – têm moldado, controlado e coagido os aspectos formativos aos quais a Matemática se presta. Nesse caso, tais educações matemáticas se fundamentam em referenciais que herdam do marxismo – ou (neo)marxismo – as críticas ao Capitalismo e à produção de conhecimento num cenário capitalista globalizado e que não deixam de lado a histórica luta de classes.

Isto posto, entendendo que ambas educações matemática apresentam contribuições importantes e necessárias para o debate contemporâneo da Educação Matemática, principalmente no Brasil, que as educações matemáticas pela diferença não busquem ser uma alternativa ou substituir as históricas lutas empreendidas pelas educações matemáticas pela igualdade, como assim o fez o debate feminista estadunidense a partir do fim da década de 1960, mas que, assim como os movimentos feministas interseccionais e a perspectiva bidimensional de justiça de Nancy Fraser, se comprometam com a defesa de “nenhum reconhecimento sem redistribuição” (FRASER, 2022a, p. 222) tal como vislumbramos para o movimento da Educação Matemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em termos de considerações finais, afirmamos que o exercício teórico empreendido da escrita deste artigo nos possibilitou uma extensão da compreensão de parte da vasta obra elaborada e em desenvolvimento por Nancy Fraser. Ao revisitar três temas de importância em sua trajetória, pudemos perceber como a autora conecta suas asserções, preocupações e perspectivas teóricas, características tanto de sua atuação como militante quanto de sua atuação acadêmica.

A Educação Matemática enquanto movimento endereçado à Justiça Social pode descontruir e/ou descontinuar ações que acabam, muitas vezes, produzindo e/ou legitimando situações de injustiça. Nesse sentido, processos formativos pela Matemática que contemplem questões políticas, econômicas e culturais, perpassando a necessidade de atuar em favor da erradicação das injustiças no âmbito das educações matemática, se inscrevem como potenciais emancipatórios em sociedades capitalistas desiguais. Nesse contexto, a Educação Matemática pode representar um importante celeiro de expectativas de protesto e insurgência política, alinhando frentes de luta e ações político-pedagógicas capazes de sustentar a manutenção de esperanças.

O exercício de refletir sobre questões teóricas de referenciais filosóficos para fundamentar nossos estudos e nossas pesquisas em Educação Matemática, se faz para nós, sobretudo, ato de resistência.

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Notas

[3] Nancy Fraser nos convida a alterar a perspectiva unidimensional de Justiça alimentada pelas forças progressistas, propondo uma perspectiva bidimensional que mais tarde, ao agregar a dimensão da Representação, se tridimensionaliza.
[4] A partir do diagnóstico das injustiças produzidas no âmbito do Feminismo, Fraser expande seus referenciais e discussões para a direção de compreender o pano de fundo dessas relações de injustiças: as relações capitalistas.
[5] As autoras defendem que é possível compreender o capitalismo em quatro fases diferentes: (1) a primeira, conhecida como fase inicial do capitalismo é denominada Mercantil, “dominante por cerca de duzentos anos, mais ou menos do século XVI ao XVIII” (FRASER, JAEGGI, 2020, p. 91); (2) A segunda é denominada Capitalismo Liberal a partir do século XIX; (3) A terceira fase, denominada de Capitalismo administrado pelo Estado vigora a partir do século XX e, por fim; (4) A quarta e atual é denominada de Capitalismo Financeirizado ou Capitalismo Neoliberal.
[6] Mês escolhido em função da Revolta de Stonewall, em junho de 1969.
[7] Tomamos o termo marcadores sociais como alusão ao que Fraser denomina comunidades bivalentes (FRASER; 2006, 2022a), como exemplo de gênero e raça, onde as injustiças ligadas a estes dois marcadores necessitam ser abordadas/tratadas/dimensionadas tanto de redistribuição quanto de reconhecimento.
[8] Especialmente quando Silva e Miarka (2017) entendem que a Educação Matemática com iniciais maiúsculas é formada a partir da junção das mais diversas educações matemáticas com iniciais minúsculas.

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