ARTIGOS CIENTÍFICOS
A face extralógica do Último Teorema de Fermat: um ensaio sobre a filosofia da prática matemática
The extralogical face of Fermat's Last Theorem: an essay on the philosophy of mathematical practice
La face extralogica del Último Teorema de Fermat: un ensayo sobre la filosofía de la práctica matemática
Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 20, e023078, 2023
Recepção: 08 Maio 2022
Aprovação: 16 Dezembro 2022
Publicado: 01 Janeiro 2023
Resumo: A Filosofia da Matemática durante muito tempo dedicou-se a aspectos ontológicos e epistemológicos para explicar os objetos da Matemática, área do conhecimento que costuma ser, tanto no ambiente escolar como no cotidiano, entendida como um reduto de conceitos universalmente e eternamente verdadeiros, cuja certeza é garantida pela estrutura lógica do sistema formal a partir do qual é construída e representada. Desde o século passado, no entanto, aspectos da prática matemática como a intuição, a criatividade e o recurso a representações que ultrapassam a simbologia normativa são objeto de estudo da Filosofia da Prática Matemática, que compreende a matemática como um produto da ação humana e, dessa forma, dependente de questões sociais, culturais e psicológicas, tanto em âmbito coletivo como particular. A partir de pesquisa bibliográfica apoiada em autores que se dedicam contemporaneamente a essa temática, são apresentadas considerações sobre os aspectos extralógicos no processo individual do matemático britânico Andrew Wiles que culminou na escrita formal e rigorosa da demonstração do Último Teorema de Fermat – importante proposição do estudo de números e equações algébricas – realizada 358 anos após sua formulação, reconhecendo que nenhuma demonstração de teoremas matemáticos e, em especial essa produção estudada, pode ser entendida apenas pela análise restrita da argumentação dedutiva e do formalismo simbólico.
Palavras-chave: Filosofia da Prática Matemática, Demonstrações, Intuição, Criatividade, Último Teorema de Fermat.
Abstract: For a long time, the Philosophy of Mathematics aimed to ontological and epistemological aspects of the objects of Mathematics, such an area of knowledge is usually understood, both at school and in everyday life, as a stronghold of universally and eternally true concepts, whose certainty is granted by the logical structured formalized system which is used to construct and represent it. Since last century, however, aspects of mathematical practice, such as intuition, creativity, and the use of representations going beyond the normative symbology, have been the object of study of the Philosophy of Mathematical Practice, which understands mathematics as a human action product and, therefore, social, cultural, and psychological dependent, both collectively and individually. Based on bibliographical research supported by authors who are contemporarily dedicated to this theme, considerations about the extralogical aspects in the individual process of the British mathematician Andrew Wiles that culminated in the formal and rigorous writing of the demonstration of Fermat's Last Theorem - an important proposition in the study of numbers and algebraic equations - performed 358 years after its formulation, are presented, recognizing that no demonstration of mathematical theorems, and especially not this one, can be understood depending strictly on deductive argumentation and symbolic formalism restricted analysis.
Keywords: Philosophy of Mathematical Practice, Proofs, Intuition, Creativity, Fermat's last theorem.
Resumen: La Filosofia de la Matemática por mucho tiempo se ha dedicado a los aspectos ontológicos y epistemológicos para explicar los objetos de la matemática, área del conocimiento que acostumbra a ser, tanto en el ambiente de la escuela como en lo cotidiano, comprendida como un conjunto de conceptos universalmente y eternamente verdaderos, cuya certeza es garantizada por la estructura logica del sistema formal a partir del cual es construida y representada. Desde el siglo pasado, sin embargo, aspectos de la práctica matemática como la intuición, la creatividad y el recurso de las representaciones que exceden la simbologia normativa son objeto de estudio de la Filosofía de la Práctica Matemática, que comprende las matemáticas como un producto de la acción humana, y de ese modo, dependiente de cuestiones sociales, culturales y antropológicas, tanto del ámbito colectivo como particular. A partir de la búsqueda bibliográfica apoyada en autores que se dedican contemporáneamente a esa temática, son presentadas consideraciones a cerca de los aspectos extralógicos en el proceso individual de lo matemático británico Andrew Wiles que ha culminado en la escritura formal y rigorosa de la demostración del último teorema de Fermat - importante proposición de estudio de números y ecuaciones algebraicas - realizada 358 años después de su formulación, reconociendo que ninguna demonstración de los teoremas matemáticos y, en especial esta producción estudiada, puede ser comprendida solamente por una análisis restringida de la argumentación deductiva y del formalismo simbólico.
Palabras clave: Filosofia de la Práctica Matemática, Demonstraciones, Intuición, Creatividad, Último Teorema de Fermat.
INTRODUÇÃO
Cada vez que a matemática é investigada em qualquer uma de suas áreas, surgem, juntamente, as questões filosóficas sobre seus conceitos e aplicações. Nesta perspectiva, os matemáticos mais atentos à sua prática tiveram que lidar e ainda continuam a se deparar com as implicações filosóficas daquilo que têm como objeto de estudo.
De acordo com Ponte et al. (1997), em diversos momentos históricos, os matemáticos enfrentaram questões filosóficas sobre a própria matemática, tal como foi o caso da natureza dos objetos matemáticos, da verdade, da perda da certeza, da invenção através da razão, da experimentação matemática, do conflito entre o realismo e o idealismo[3], da necessidade de fundamentos, da excelência do rigor, da classificação da matemática como ciência própria, da aceitação do uso de computadores para demonstrar teoremas, dentre muitos outros. Mas esses questionamentos não foram resolvidos em sua totalidade e ainda proporcionaram o surgimento de novas questões, expandindo o horizonte da filosofia da matemática.
Recentemente, como explicam Hamami e Morris (2020), os filósofos da matemática têm voltado suas atenções para o campo denominado Filosofia da Prática Matemática, e esta vertente ganha destaque em um contexto propício, pois tem relações com o desenvolvimento da matemática bem como com as estratégias para seu ensino e aprendizagem. Conforme expressam Hamami e Morris (2020), a Filosofia da Prática Matemática teve início por volta de 1950, baseando-se nas concepções de autores tais como Raymond Louis Wilder, George Pólya e, posteriormente, Imre Lakatos.
Mas de que trata, realmente, a Filosofia da Prática Matemática? Hamami e Morris (2020), contam-nos que esse subconjunto da Filosofia da Matemática tem interesse no estudo da matemática como uma prática cultural e social, nos detalhes filosóficos das definições e dos conceitos, e na análise de provas já estabelecidas para determinar seu rigor e sua forma. As pesquisas desta nova área têm sido feitas em conexão com a história da matemática, com a psicologia e com as ciências sociais, vinculando a matemática com outras indagações contemporâneas[4].
Corroborando com a perspectiva defendida por Hamami e Morris (2020), Saiber e Turner (2009) apresentam que a Filosofia da Matemática, nos últimos anos, tem se voltado para o estudo da matemática como uma prática baseada nas experiências humanas. Neste mesmo posicionamento e, buscando outras possibilidades para a matemática, julgamos que o reconhecimento da existência das múltiplas questões além daquelas de interesse da lógica permite explorar um extenso e interessante campo da prática matemática, e, dentre os diferentes aspectos da prática ou atividade matemática, colocamos especialmente a questão da demonstração.
Em matemática existe uma enorme valorização dos processos mentais abstratos que permitem demonstrar os teoremas e a comunidade matemática aproveita grande parte de seu tempo tentando mostrar a validade de proposições, dando ênfase ao formalismo matemático, uma vez que as justificativas devem ser apresentadas de forma lógica, em um encadeamento finito de assertivas, das quais se deriva uma conclusão a partir das hipóteses aceitas.
Segundo Chambadal (1969, p. 67, apud NAGAFUCHI; BATISTA, 2008), uma demonstração matemática nada mais é do que uma “série de relações pelas quais passamos de axiomas, ou de teoremas já estabelecidos, para um teorema dado”.
Esta definição se encaixa naquela colocada por Hamami e Morris (2020) para uma demonstração formal. Segundo as autoras, as provas formais são dependentes de um sistema formal dedutivo com uma linguagem estruturada, regras de inferência e um conjunto de axiomas. A essência das provas formais é, portanto, o cumprimento de um modelo que é compreendido como aquele que uma prova matemática deve seguir, isto é, a adequação ao padrão ideal de prova.
Surge, assim, a questão: demonstrações que não seguem esse modelo são provas informais ou simplesmente não são provas? Conforme Hamami e Morris (2020), a definição geral de prova formal é insuficiente para dar conta das características de uma demonstração informal, pois, além dos aspectos de uma estrutura lógica, as provas informais possuem componentes semânticos e intuitivos que devem ser interpretados.
Embora os aspectos das provas informais possam ser identificados em provas formais quando estas são devidamente analisadas, eles costumam ser ignorados. A mera descrição de uma prova não condiz, entretanto, com a realidade da prática matemática; falta uma definição que seja mais adequada e abrangente, contemplando aspectos múltiplos da prática matemática.
Nestas circunstâncias relacionadas às provas formais e informais, o elemento do rigor recebe destaque. Burgess (2015, p. 67, apud DE TOFFOLI, 2020) comenta brevemente que “uma prova rigorosa é uma demonstração que contém detalhes suficientes para convencer (por motivos corretos) uma plateia relevante que uma prova formal existe”. Desse modo, uma prova rigorosa para um autor pode ser insuficiente para outro matemático.
Porém é importante ressaltar a distinção feita entre prova formal e prova rigorosa, já que o adjetivo formal se refere apenas ao atendimento de certas normas de escrita e de regras lógicas, enquanto que o rigor depende de fatores que não são matemáticos. Para De Toffoli (2020), essa é uma confusão recorrente e o esclarecimento é necessário.
Além disso, caso uma demonstração matemática ficasse restrita a uma ordenação finita e coerente formada a partir de proposições (hipóteses e outras sentenças demonstradas anteriormente) em uma sequência de argumentação, seria viável considerar que um computador poderia listar todas as combinações possíveis dos axiomas e dos princípios de um determinado sistema axiomático, verificar a consistência lógica de cada encadeamento lógico e, assim, estariam enunciados e provados todos os teoremas.
Por fim, questiona-se quais são os elementos de uma demonstração que estão além do raciocínio analítico puro. Afinal, matemáticos diferentes utilizarão estratégias e estilos de demonstrações díspares, que, nas etapas intermediárias entre a determinação das hipóteses e a finalização da prova, soam como indícios de características intangíveis, percepções não analíticas da matemática, aspectos extralógicos.
Portanto, este artigo tem o intuito de apresentar uma reflexão sobre a perspectiva extralógica da matemática, tomando como um caso exemplar a demonstração do último teorema de Fermat, de autoria do matemático britânico Andrew Wiles. Após o mapeamento da face não tangível da matemática, segue uma breve recordação histórica do problema e finaliza-se comentando alguns elementos extralógicos presentes na referida demonstração.
A FACE EXTRALÓGICA DA MATEMÁTICA
Conforme Ponte et al. (1997), a matemática não está completamente determinada somente por aspectos formais, ela é influenciada por questões subjetivas. Essas questões se encontram na face extralógica[5] da matemática, em que os elementos que a constituem se desviam da perspectiva matemática formal e, em geral, não podem ser explicados.
Além disso, para Ponte et al. (1997), a face não analitica da matemática admite um tipo inacabado de pensamento que visa obter produtos matemáticos inacabados. Os autores alegam que, para George Pólya, mesmo a mais formal das atividades mentais contaria com implicações das intuições e representações mentais ingênuas dos objetos matemáticos. Por exemplo, ao comentar sobre o raciocínio matemático, Pólya (1954) diz que há o raciocínio demonstrativo e o raciocínio plausível. As provas matemáticas estão apoiadas no primeiro, por ser formal, rígido e definitivo. O raciocínio plausível é, diferentemente, fluido e incerto, mas garante que, dentre um universo de suposições, seja selecionada uma hipótese ou uma estratégia de demonstração e não outras, sendo, portanto, o que gera as conjecturas que serão submetidas aos experimentos.
Estudando os métodos de resolução de problemas, percebemos outra face da Matemática. Sim, a Matemática tem duas faces: ela é a ciência rigorosa de Euclides, mas também é algo mais. A Matemática apresentada da maneira euclidiana parece ser uma ciência sistemática e dedutiva, mas a Matemática em construção se mostra como uma ciência experimental e indutiva. (PÓLYA, 1974, p. vii)
Em concordância, Davis e Hersh (2013) complementam, alegando que os aspectos não analíticos da matemática ocorrem inconscientemente o tempo todo. Porém, salientam que a matemática consciente também se apresenta no campo inconsciente, como quando se faz estimativas. Contudo, em um contraste com a matemática analítica, a face extralógica da matemática é livre de uma simbologia normatizada para representar seus objetos.
A Filosofia da Matemática, em geral, especialmente no início do século XX, pouca importância atribuiu a aspectos não linguísticos da matemática, tais como as representações visuais e os sistemas simbólicos. Dentre os aspectos não linguísticos que fazem parte desses conhecimentos matemáticos, Saiber e Turner (2009) ressaltam fatores como imaginação, a abstração, a ambiguidade, a intuição, a visualização e a representação.
Uma outra característica reconhecida pela face extralógica da matemática é a estética, que seria a sensação ou experiência de beleza intrínseca que portam os objetos matemáticos. Ter-se-ia um encanto pelas propriedades dos objetos e suas relações. Conforme Ponte et al. (1997), Poincaré afirmava que a capacidade de perceber ou enxergar a estética matemática era uma característica inata e independente.
Nesse sentido, tem-se também a intuição matemática. Para Davis e Hersh (2013), a intuição matemática é um conceito vago e abstrato que normalmente está relacionado à falta de rigor, à visualização geométrica ingênua e afirmações meramente plausíveis. A intuição seguiria o caminho de combinar conhecimentos pré-existentes com criatividade e realizar analogias. Porém, Gontijo et al. (2018) ressaltam que para Poincaré, a criatividade não se limitaria a combinar elementos já conhecidos em quaisquer combinações inúteis, mas, sim, naquelas que são úteis. Ao contrário do que acontece com a face lógica da matemática, a face extralógica não pode ser treinada; melhora ou piora conforme o indivíduo interpreta, absorve situações do mundo concreto e essas são interpretadas estocasticamente.
Para ilustrar, no campo da topologia, de acordo com De Toffoli (2020), a intuição se faz essencial para criar imagens mentais em diagramas, porque imaginar as transformações espaciais e manipulações tais como ilustradas em diagramas e operações exige certa intuição, que é observada nas inferências feitas em algumas provas ditas rigorosas na topologia. Mas, nem sempre a intuição é aceita em contextos profissionais, uma vez que, por se tratar de um elemento da face não analítica da matemática, acaba dependendo daqueles que praticam matemática.
Porém, de que modo é possível definir quando a intuição deve ser rejeitada ou aceita? Conforme De Toffoli (2020), a intuição é válida nestes contextos profissionais quando não oferece riscos para os trabalhos, isto é, quando se comporta como um fator adicional e não como base dos estudos. A autora ainda ressalta que existe um critério de aceitabilidade para que uma demonstração se enquadre como prova rigorosa, um conjunto de regras que definem quando um argumento é plausivelmente aceito, mas que esse critério é dependente do grupo social que o utiliza.
Desse modo, se a comunidade matemática de certo lugar estabelecer que a intuição é aceitável em determinado contexto, como ocorre na topologia, para reforçar uma etapa de uma demonstração, pode-se utilizar este elemento extralógico.
Esse critério específico para que sejam consideradas válidas determinadas definições, ou demonstrações nesta ou naquela área do conhecimento, é observado por Carvalho nas ideias de Lakatos quando comenta que
A aceitabilidade de uma definição presente em um ‘programa de pesquisa progressivo’ – para usar um jargão lakatosiano – é dada pela comunidade científica que assume um papel semelhante ao de um crítico literário que julga as publicações de determinada matéria. (CARVALHO, 2018, p. 119)
A intuição de que temos tratado até então, e que será explorada com mais detalhes na seção a seguir, é entendida a partir de Calabria (2017), em seu estudo sobre o conceito de intuição em Kant como uma ação humana com três elementos essenciais:
1) um ato de originar imediatamente algo singular (o intuir), isto é, uma operação mental de produzir ou criar algo na intuição;
2) um objeto (o intuído), isto é, um conteúdo representacional imediato e singular.
3) uma representação (a modificação do ânimo à qual o objeto intuído se refere), isto é, um estado mental que possui qualidades particulares: é imediato e singular (CALABRIA, 2017, p. 52)
No âmbito da prática matemática e, em especial, nas demonstrações de um teorema, quais objetos e representações são produzidos a partir do ato que origina algo singular?
O papel da intuição
De acordo com O'Connor e Robertson (2021), Jules Henri Poincaré (1854-1921) foi um notável matemático, físico e filósofo francês. As contribuições de Henri Poincaré passam por estudos sobre diversos tópicos como, geometrias não euclidianas, os sistemas dinâmicos, astronomia, termodinâmica, dentre outros. Além disso, fez importantes reflexões filosóficas dentro da vertente intuicionista que se estabeleceu como uma das tentativas de afirmar quais seriam os fundamentos[6] da matemática.
Conforme expressa Poincaré (1995), os matemáticos podem ser classificados em dois grupos naturalmente distintos: os analistas e os geômetras. Os analistas são aqueles que se debruçam sobre suas questões logicamente. Em posição distinta, necessariamente oposta, os geômetras utilizam a intuição como um ponto de partida. O autor considerava que não era possível se tornar um ou outro, o indivíduo já nasceria assim.
Para o filósofo francês, a intuição poderia se apresentar de três formas: uma intuição desenvolvida pelos sentidos e imaginação; uma que se dá pelo método indutivo nas ciências experimentais e a mais utilizada pelos matemáticos, que denominou de intuição do número puro, ou aritmetização.
Utilizando tal classificação, Poincaré (1995) rotulou alguns matemáticos que foram seus contemporâneos. No conjunto dos analistas se encontrariam, Karl Weierstrass e Sofia Kovalevskaya, por exemplo. Já no grupo de geômetras, incluiu Félix Klein e Sophus Lie[7].
Especialmente no domínio daqueles que preferiam uma visualização mais permissiva, Poincaré (1995) manifesta que, numa análise anacrônica, as obras matemáticas antigas parecem estar repletas de intuição, contrapondo os escritos matemáticos de sua época. Alerta, no entanto, que as demonstrações não ficaram menos intuitivas, mas o rigor, a exigência em torno delas, acabou por se tornar maior.
Esse é um ponto central da discussão sobre a intuição, porque Henri Poincaré (1995) estabelece que a intuição não tem as características necessárias capazes de fornecer o rigor ou a certeza, porém, como declara De Toffoli (2020), ainda assim a intuição tem seu valor quando admitida por profissionais da prática matemática.
Para exemplificar o motivo desse argumento, Poincaré (1995) mostra um caso em que a intuição, sozinha, induz ao erro: funções contínuas que não possuem derivadas. Como exemplo, a função de Weierstrass cuja representação gráfica é vista na Figura 1 é contínua em todo o domínio, mas não possui derivada em nenhum ponto. A ideia intuitiva de função contínua, baseada em aspectos não lógicos da matemática, incorreria em um erro.
Poincaré (1995) sustenta que, por durante muito tempo, os matemáticos utilizaram os objetos matemáticos apenas intuitivamente, ou seja, das imagens que tinham de tais elementos, essas eram apenas aproximações, figuras pouco precisas. Portanto, essa falta de definições fez com que os lógicos buscassem eliminar as incertezas e criar maior estabilidade em matemática. Para ilustrar, a questão dos incomensuráveis[8] foi melhor entendida quando iluminada pelos analistas.
Nesse ponto, é de fundamental importância fazer uma distinção entre a abstração e a imaginação. Conforme Saiber e Turner (2009), uma definição clássica, do período medieval, estabelece a imaginação como a produção de imagens de um produto mental que já não existe mais. Ela se encaixaria entre a percepção e o senso racional (abstração).
Para esclarecer, considerando o conjunto dos números reais, é razoável imaginar os números naturais associados à contagem. Não é possível, entretanto, imaginar o número real , apesar de sua existência na abstração.
Por outro lado, a representação visual, aliada da intuição, é útil quando se considera o estudo de campos vetoriais, por exemplo. Sua definição dada pela matemática – e de difícil visualização – é a seguinte: Um campo vetorial é uma função que associa a cada um vetor . A Figura 2 apresenta uma imagem que ilustra o campo magnético, em que a disposição das limalhas de ferro fornece uma percepção mais acessível da definição de campo vetorial.
Estes exemplos evidenciam a afirmação de Henri Poincaré (1995) ao dizer que, se a matemática fosse baseada exclusivamente na lógica, ela não avançaria. É preciso de intuição para se obter novas trilhas. Evidencia-se a importância do equilíbrio e que ambas as faces da matemática são indispensáveis: “a intuição deve conservar seu papel como complemento, quase que se poderia dizer como contrapeso ou como antídoto da lógica”. (POINCARÉ, 1995, p. 20)
De acordo com Poincaré (1995), mesmo que indiretamente, os analistas também acabam por incluir a intuição em sua prática matemática, uma vez que é através dela que se faz analogias e se busca referências em casos passados consumados favoravelmente para enfrentar novos problemas. Poincaré (1995) aponta que os matemáticos são influenciados, primariamente, pela intuição do número puro.
Porém, Poincaré (1995, p. 25) deixa explícito que a matemática não pode se sustentar somente na intuição, é preciso que ela tenha bases sólidas, pois “a maioria de nós, se quisesse ver de longe unicamente pela intuição pura, iria sentir-se logo acometido pela vertigem”.
Ainda que a distinção entre analistas e geômetras fique bem demarcada, Poincaré (1995) destaca que alguns matemáticos não se encaixam em nenhum dos conjuntos. Fazem parte de um seleto grupo que é capaz de elevar a questão do rigor em suas demonstrações, guiado por uma análise lógica, que objetiva ser livre de contradições, mas que também se permite utilizar da intuição quando for necessário.
Nota-se, assim, que os aspectos extralógicos da matemática desempenham um papel fundamental na prática matemática. Para De Toffoli (2020), quando os especialistas da área desejam facilitar seu trabalho, recorrem ao uso de atalhos mentais, intuições, sustentados por argumentações, para encontrar caminhos menos trabalhosos. Embora tais atalhos possam, talvez, guiar os matemáticos para uma trajetória de contradições ou de erros, os aspectos cognitivos são indispensáveis para o avanço da matemática.
Utilizar a intuição seria equivalente a estar diante da entrada de um labirinto e refletir sobre os possíveis caminhos a se tomar, buscando antecipar certas etapas, considerando suas referências e estratégias já conhecidas, de modo a prever a saída.
Enfim, no âmbito da discussão sobre intuição, De Toffoli (2020) explica ser possível formalizar uma prova que dependa exclusivamente da intuição, mas que seria muito difícil, porque como explicam Hamami e Morris (2020), a intuição depende de fatores que estão além da matemática e que dependem de tradução e interpretação, é neste momento em que fica difícil realizar esse processo. Nem todo elemento da intuição pode ser transformado em um objeto matemático.
Ademais, tem-se ainda a criatividade, outro elemento que se encontra na face não analítica da matemática. Conforme apresentam Gontijo et al. (2018), o processo de criação em matemática ultrapassa a perspectiva mecânica, sendo diretamente influenciado pela forma inconsciente que atua a criatividade.
O papel da criatividade
Segundo Gontijo et al. (2018), na comunidade matemática, a obra de Henri Poincaré é anunciada como sendo a precursora do desenvolvimento dos estudos da criatividade em matemática. Os autores destacam que o matemático, no início do século XX, já reconhecia essa importância das etapas mentais das quais a criação matemática proliferava.
Este interesse pela criatividade na matemática impactou prontamente as fases iniciais de sua carreira e, conforme mencionam Gontijo et al. (2018), Poincaré ficara intrigado com as questões do inconsciente quando estudava um tema da Análise Complexa.
A partir dessa motivação, Poincaré se empenhou em mostrar que um tipo especial de função de variável complexa não existia, mas falhava em sua tarefa constantemente. Até que teve uma ideia quando trabalhava, num dia de insônia. Foi quando percebeu a importância dos elementos que se expressam no inconsciente.
Entusiasmado e curioso sobre essa temática, no ano de 1902, Poincaré publicou um questionário no periódico francês L'EnseignementMathématique para consultar a opinião de membros dos círculos acadêmicos com o propósito de desvendar, revelar, como se dava a prática matemática e quais fatores eram determinantes na atividade profissional de seus colegas matemáticos.
Tratando-se de um matemático reconhecidamente notável, rapidamente as ideias de Poincaré se espalharam, e acabaram por influenciar o francês Jacques Hadamard. Gontijo et al. (2018) explicam que Hadamard voltou então sua pesquisa para o estudo da psicologia da invenção na matemática.
Da mesma forma que Henri Poincaré, Hadamard procurou estabelecer vínculos com seus contemporâneos para compreender a experiência matemática de sua época. Gontijo et al. (2018) ainda relatam que Hadamard realizou alguns testes com matemáticos, incluindo a própria experiência, para explicar como os processos mentais estariam ligados às questões matemáticas.
Conforme estabelecem Gontijo et al. (2018), para Hadamard haveria quatro estágios da invenção matemática: Preparação – é preciso que se tenha o mínimo de conhecimento de um campo para que a criatividade seja possível, para que se tenha um olhar perspicaz; Incubação – seria o momento em que o subconsciente trabalharia por si; Iluminação – as resoluções aparecem nessa etapa como uma ideia vaga, uma intuição de que aquilo dará certo; Verificação – agora que já se tem um caminho inicial, é o momento de formalizar o pensamento, seguir as regras do rigor matemático.
As concepções mais atuais consideram novas categorias e atividades que se conectam à criatividade. Gontijo et al. (2018) comentam que os avanços na área mostram que as habilidades criativas e o fazer matemático estão ainda relacionados com outros elementos além dos cognitivos, tais como aspectos emocionais e motivacionais.
Também a mais recente psicologia da criação em matemática admite que existe um pensamento dedicado ao fazer um único caminho, enquanto que outro se diz pautado por um pensamento não algorítmico que visa permitir mais caminhos para se resolver um problema (GONTIJO et al., 2018).
Há também uma perspectiva recente que, como mencionam os autores, destaca o fato de que a criatividade ocorre em duas etapas da experiência matemática, uma durante o processo de se praticar a matemática e outra quando um problema matemático está resolvido. Quando ainda se está praticando a matemática, tem-se uma etapa de florescimento de múltiplos pontos de vista, de combinações de formas e pensamentos estratégicos inovadores. Quando obtido o resultado, utilizando-se a estratégia de resolução de problemas de Pólya (1974), é possível revisitar o problema, rever as hipóteses e ser criativo, em conformidade com os momentos de incubação, de iluminação e verificação, de Hadamard.
Nesse contexto, Gontijo et al. (2018) também mostram as contribuições da polonesa Małgorzata Makiewicz, professora de Matemática, da Universidade de Szczecin, que sugere uma conexão entre a aplicação da criatividade em matemática e as atividades de construção, de modernização e complementação do sistema de conhecimentos por meio da percepção de padrões, regularidade, sensibilidade, formulação de hipóteses, elaboração de justificativas e originalidade. Segundo Makiewicz, as figuras, as descobertas, a intuição e a demonstração são componentes válidas da criatividade.
Num panorama universal, Gontijo et al. (2018) debatem que na década de 2010, diversos países realizaram pesquisas sobre a educação matemática e elas mostraram que investir no ensino para o desenvolvimento da criatividade, o que é diferente de investir num sistema de ensino criativo, permitiu uma fecunda melhoria no desempenho dos estudantes em Matemática. Diante desses resultados, alguns países passaram a implementar ambientes favoráveis ao desenvolvimento de potencial criativo dos alunos.
Tem-se então, que, como a criatividade matemática pode estar presente, ou não, no contexto escolar, certamente os matemáticos serão influenciados por este fator. De maneira que, aqueles que tiverem contato com a criatividade matemática, estarão melhor preparados para lidar com um raciocínio flexível e original. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso que as metodologias para o ensino e aprendizagem com criatividade cheguem à sala de aula.
Percebe-se que a estética, a intuição e a criatividade são características inerentes da experiência matemática e consequentemente tais aspectos se expressarão nas demonstrações matemáticas. Assim, em uma demonstração matemática, conforme explicam Davis e Hersh (2013), a intuição tem como objetivo prever o encadeamento das hipóteses para garantir a obtenção da demonstração, isto é, a intuição visa antecipar a conquista da prova.
Mais ainda, Davis e Hersh (2013) discutem que uma prova em matemática, de certa forma, é um processo mecanizável e um teorema matemático será dito profundo caso sua demonstração seja difícil e um tanto obscura, sendo que um dos fatores que implicam a dificuldade da demonstração é justamente o caráter subjetivo.
Em vista disso, Hamami e Morris (2020) problematizam a questão do juízo de valor. Segundo as autoras, quando uma parte da matemática é analisada, observa-se mais sobre os critérios de rigor do que se a sua estrutura lógica está, de fato, correta.
Especialmente para demonstrações, os matemáticos almejam que, além de corretas, transpareçam beleza exuberante, tenham um encadeamento lógico curto e sejam frutíferas, impliquem na eclosão de corolários espetaculares.
Embora seja um aspecto complicador, tal caráter subjetivo desempenha um papel fundamental em matemática. De acordo com Ponte et al. (1997), para Henri Poincaré, ao se deparar com um problema difícil, o matemático deveria analisar de maneira lógica e objetiva, e então abandonar seu trabalho durante uma fase para que a mente pudesse o interpretar. Inconscientemente, uma resolução do problema seria processada numa fase de florescimento e confronto de ideias e daí surgiriam as contradições. Assim, a resolução tomaria a forma de inspiração. Por fim, a último momento se daria com uma análise consciente e rigorosa dos elementos lógicos e dos elementos etéreos para, então, resolver o problema.
Enquanto praticam a matemática, os matemáticos, inconscientemente, refletem sobre a aceitação de suas próprias demonstrações e até mesmo sobre conceitos bem estabelecidos e aceitos pela comunidade matemática. Portanto, tais características da face extralógica da matemática como o rigor, a beleza e a intuição estão legitimamente conectadas ao repertório matemático. Não sendo diferente na vida de Pierre de Fermat ou de Andrew Wiles.
O ÚLTIMO TEOREMA DE FERMAT
Segundo a matéria O poder das crianças, da revista Cálculo (2012), Pierre de Fermat (1601 – 1665) foi um matemático amador francês do século XVII sem amigos, mulheres ou mesmo filhos. E, embora tenha se consagrado como um juiz na cidade de Toulouse, em seu tempo livre, costumava estudar a matemática e postular conjecturas. De acordo com Boyer (2010), Pierre de Fermat esteve interessado em problemas sobre lugares geométricos, teoria dos números, diferenciação, integração e geometria analítica de dimensão superior. Contudo, somente após o ano de 1629 é que Fermat começaria a alcançar resultados matemáticos que fossem relevantes para a comunidade matemática.
Ainda conforme a mesma fonte, após o falecimento de Fermat, foram encontrados registros em sua residência que intrigariam a comunidade matemática por séculos. Em meio ao volume de papéis que ali estavam, um desses registros continha a seguinte proposição, conhecida como o último teorema de Fermat:
É impossível para um cubo ser escrito como a soma de dois cubos ou uma quarta potência ser escrita como a soma de dois números elevados a quatro, ou, em geral, para qualquer número que seja elevado a uma potência maior do que dois ser escrito como a soma de duas potências semelhantes. (REVISTA CÁLCULO, 2012, p. 64)
Logo em seguida, estava registrada sua célebre frase: “Eu tenho uma demonstração realmente maravilhosa desta proposição, mas esta margem é estreita demais para contê-la” (REVISTA CÁLCULO, 2012, p. 64).
De acordo com Milies e Coelho (2003), Fermat tinha demonstrado que a proposição era verdadeira para a soma de números elevados à quarta potência e, posteriormente, Euler demonstrou que a proposição também era verdadeira para a soma de cubos.
Mais tarde, conforme Souza (2017), Dirichlet e Legendre demonstraram a validade do teorema para o caso exclusivo da soma de números elevados a quinta potência, baseando-se em pesquisas realizadas pela jovem matemática Sophie Germain. Porém, matemáticas e matemáticos falharam em obter um resultado mais forte, que pudesse ser generalizado, durante muito tempo.
No campo da teoria aritmética dos números, destacam-se os dois teoremas de Fermat enunciados a seguir:
Teorema 1 (Pequeno Teorema de Fermat): Sejam um primo e a um inteiro tal que Então, .
Teorema 2 (Teorema de Fermat): Para todo n natural maior que 2, não existe solução para a equação .
Enquanto o Teorema 1 foi demonstrado em aproximadamente um século por Euler, em 1736, conforme Serpa (2012), o Teorema 2, que foi enunciado no ano de 1637, levou cerca de 358 anos para ser demonstrado! Apenas em 1995 foi possível mostrar a sua validade quando Andrew Wiles publicou a prova do último teorema de Fermat.
Nos três séculos e meio desde sua formulação, quais foram os entraves que outros matemáticos se depararam para demonstrar o último teorema de Fermat? Esta ineficácia da matemática pode parecer espantosa já que, ao final do século XIX já haviam sido superadas algumas inconsistências e os métodos analíticos já se encontravam avançados. A influência dos aspectos extralógicos da matemática teria sido a grande responsável por essa lacuna nas tentativas de demonstração? Vejamos.
Andrew John Wiles nasceu em Cambridge, Reino Unido, no ano de 1953, e descobriu o teorema quando tinha apenas dez anos de idade. Era uma criança que gostava muito de ler e se interessava por enigmas. Conforme apresenta a matéria O poder das crianças, da revista Cálculo (2012), ao tomar contato com o livro O Último Teorema, de Eric Temple Bell, Wiles encantou-se com o problema deixado por Fermat e, assim, pôs-se numa aventura duradoura, declarou que seria aquele que demonstraria tal teorema, que, em sua opinião, afirmava algo um tanto simples, mas extraordinário.
Wiles iniciou, então, uma jornada de estudar apenas assuntos que fossem relevantes para contribuir em sua demonstração. De acordo com Souza (2017), Andrew Wiles concluiu seu Ph.D. e logo se voltou ao estudo de curvas elípticas e, depois, guiou-se por trabalhos e teorias relacionados ao teorema de Fermat.
Dessa maneira, Wiles tomou contato com a teoria dos matemáticos japoneses Yutaka Taniyama e Goro Shimura, sobre as formas modulares e as equações elípticas, de modo que, logo depois, as intuições de Andrew Wiles acerca das formas modulares o levaram a outra etapa de seu incansável trabalho.
Nos anos posteriores, fundamentando-se em resultados da pesquisa matemática do alemão Gerhard Frey, Wiles seguiu trabalhando secretamente e, finalmente, após demorados sete anos de pesquisa árdua, Wiles assegurou que tinha provado o último teorema de Fermat.
Entretanto, havia uma falha em sua prova. Conforme explica Souza (2017), em 1993, Andrew enviara seu trabalho à revista Inventiones Mathematicae, fase em que um dos juízes responsáveis por analisar seu trabalho acaba detectando um erro na demonstração.
Contudo, isso não foi capaz de abalar Andrew Wiles. Em 1995, juntamente a Richard Lawrence Taylor, doutor em teoria dos números, Wiles foi capaz de resolver definitivamente a questão, corrigindo o erro. Portanto, estava demonstrado o último teorema de Fermat.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo visou exibir um ângulo singular da matemática, através da perspectiva da Filosofia da Prática Matemática, que pondera a experiência da humanidade e as suas trocas como a origem da matemática. Desse modo, tratando-se de uma produção humana, traz consigo questões subjetivas, e esta vertente da Filosofia Matemática é incapaz de ignorar os aspectos diversos que se mostram além da própria lógica.
Tal orientação que permite refletir sobre certos raciocínios matemáticos, inclina-se a estudar, com especial interesse, as demonstrações matemáticas, que, por ocuparem posição destacadamente especial em matemática, têm implicações na própria experiência ou prática matemática, tanto nos ambientes acadêmicos como da educação básica.
Essas demonstrações, além de sustentar as proposições, também definem limites, já que estabelecem os padrões rígidos que devem ser seguidos em situações profissionais. Porém, resgatando os conceitos de rigor e de critério de aceitabilidade, De Toffoli (2020) critica a atitude dos matemáticos, em geral, que aceitam provas formais sem uma discussão mais aprofundada. Além disso, ainda segundo De Toffoli (2020), há provas que demonstram teoremas e provas que asseguram a validade das provas demonstrativas. E em ambos os casos, deve-se inspecionar as demonstrações atenciosamente.
Considerando o caso da demonstração do último teorema de Fermat, isso se tornaria um problema: a demonstração de Wiles tem mais de 100 páginas, que foram consideradas suficientes para seu autor, após pensar sobre ela e escrevê-la, no decorrer de mais de três décadas. Mas, quantas páginas seriam necessárias para explicar logicamente, isto é, realizar a transformação formal, da prova? Além disso, cada uma dessas provas explicativas deveria ser tratada com a formalização e o rigor aceitáveis por comunidades matemáticas, levando a uma regressão infinita.
Ressalta-se que, para esse caso, a face não analítica da matemática tem o controle da situação. Desprezando-se a intuição no contexto matemático, seria impossível verificar a demonstração de Andrew Wiles.
É nesta perspectiva que De Toffoli (2020) reconhece que a lógica é essencial para o entendimento da matemática, mas insuficiente. Há outras discussões relevantes acontecendo fora do campo racional puro, como elementos da face extralógica da matemática que acabam por desempenhar funções primárias em determinadas áreas, por exemplo, na topologia[9].
Em concordância, Saiber e Turner (2009) afirmam que a matemática e a imaginação estão intrinsecamente relacionadas. Corroborando com tal posicionamento também Hamami e Morris (2020), ao afirmarem que elementos não analíticos perpassam a prática matemática, em especial as percepções visuais, a intuição e a criatividade.
De acordo com Gontijo et al. (2018) e Brolezzi (2013), a criatividade tem relação com o caráter plural de se encontrar soluções para problemas abertos, que aceitam múltiplas respostas e que sejam potencializadores das situações nas quais certas táticas e estratégias incomuns prosperam.
Pretendendo estabelecer um encadeamento mais concreto entre a Filosofia da Prática Matemática e a Educação Matemática e, baseando-se na criatividade, Gontijo et al. (2018) propõem um ensino de Matemática em que o estudante possa ter uma visão ampla, saiba identificar padrões, tenha liberdade para se expressar, propor soluções, interpretar gráficos, ultrapassando o ponto de vista reduzido da memorização de fatos matemáticos.
Então, para atingir tal objetivo, Gontijo et al. (2018) propõem o ensino da criatividade através da resolução de problemas para superar aquilo que os autores denominam a cultura do pensamento convergente, isto é, um currículo excludente, de único caminho possível. Logo, torna-se evidente que os fatores subjetivos da matemática também são relevantes para se aprender e fazer matemática de maneiras atípicas, expandindo os caminhos matemáticos.
Atravessando os domínios matemáticos, a face extralógica perpassa pela experiência individual de um matemático, seja num ambiente não matemático, seja em um ambiente matemático profissional. Desta maneira, seria possível dizer que apenas o simples tratamento analítico garantiria o sucesso de Wiles? Note, que, Andrew encantou-se com o teorema com apenas 10 anos de idade e aos 42 finalmente foi capaz de provar sua validade. Em outras palavras, por 32 anos, o inconsciente de Andrew Wiles esteve trabalhando num conjunto de ideias que reuniam a estética, a intuição e a criatividade matemática, até que, juntamente com os aspectos analíticos, obteve uma resposta.
Destaca-se que Wiles ficou, por várias vezes, trancafiado em um quarto, tentando demostrar aquele teorema e que talvez somente tenha conseguido porque tinha aspirações, inspirações e intuições vindas de sua tenra infância.
Resgatando a discussão da beleza matemática, neste caso, permanece incerto se o problema matemático possui estética matemática por si só, ou se depende de cada sujeito ser capaz de sentir ou vislumbrar esse aspecto. Existe beleza, realmente, no último teorema de Fermat, ou Wiles teve que se envolver num nível completamente diferente de admiração do problema para, então, demonstrá-lo?
Assim, torna-se claro a importância da face extralógica da matemática na experiência matemática. No entanto, como comentam Davis e Hersh (2013), em matemática, os fatores subjetivos são menosprezados em detrimento dos aspectos analíticos, que são aclamados pela comunidade matemática. Porém, deve-se ter em mente que as descobertas matemáticas são múltiplas, tem-se diversos e únicos modos de se compreender o mundo e a matemática.
Nesse contexto do último teorema de Fermat, quanto tempo levaria para surgir uma nova prova do teorema? Ter-se-ia que esperar 358 anos? Ou com os avanços da matemática, em um futuro próximo, ver-se-ia demonstrações mais criativas do último teorema de Fermat? Além disso, existiria alguma maneira de estipular se uma demonstração possui elementos que indicam maior ou menor chance de se encontrar uma prova criativa? Essas indagações são terreno fértil para a Filosofia da Prática Matemática.
REFERÊNCIAS
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Notas
Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/22 (pdf)