ARTIGOS CIENTÍFICOS
Recepção: 30 Junho 2022
Aprovação: 14 Dezembro 2022
Publicado: 01 Janeiro 2023
Resumo: O texto reúne algumas reflexões sobre a natureza da matemática e seu ensino no contexto escolar, ancoradas nos resultados terapêuticos obtidos na segunda fase do pensamento do filósofo Ludwig Wittgenstein sobre os fundamentos da matemática. Dentre eles, a ideia de autonomia das proposições matemáticas em relação ao empírico que resulta de sua crítica ao modelo referencial da linguagem presente nas concepções realistas e idealistas da matemática, relativizando-se, assim, crenças dogmáticas sobre a natureza de seus conteúdos, com implicações imediatas para as práticas pedagógicas. Tem-se como hipótese central, que ao ser explicitada a função normativa (e não descritiva) dos enunciados matemáticos, vários equívocos e confusões podem ser evitadas no ensino da disciplina, que ocorrem, em boa parte das vezes, quando se introduz métodos característicos das ciências naturais que levariam supostamente à descoberta de conteúdos matemáticos em geral. Observa-se que, ao se desconsiderar o papel distinto desempenhado pelas proposições matemáticas em relação ao das proposições empíricas, passa-se a se acreditar que as conjecturas matemáticas seriam hipóteses a serem testadas através de experimentações empíricas, relegando-se as provas matemáticas a segundo plano, ou mesmo descartando-as, como se a formalidade da matemática fosse um empecilho para a sua aprendizagem no contexto escolar. Em contraposição a esta crença, propõe-se na formação dos professores a explicitação da função paradigmática das demonstrações formais, que não só produzem novos sentidos, como também instruem o aluno a empregar os teoremas que fazem parte do currículo escolar. Conclui-se o texto propondo-se diretrizes preventivas de confusões na sala de aula advindas de pedagogias permeadas por concepções filosóficas sobre os fundamentos da matemática que, por sua vez, estão atreladas a uma concepção referencial da linguagem matemática.
Palavras-chave: Fundamentos da matemática, Prova matemática, Educação Matemática, Wittgenstein.
Abstract: The text brings together some reflections on the nature of mathematics and its teaching in the school context, anchored in the therapeutic results obtained in the second phase of the philosopher Ludwig Wittgenstein's thinking on the foundations of mathematics. Among them, the idea of autonomy of mathematical propositions in relation to the empirical that results from his criticism of the referential model of language present in the realist and idealist conceptions of mathematics, thus relativizing dogmatic beliefs about the nature of its contents, with immediate implications for pedagogical practices. The central hypothesis is that when the normative (and not descriptive) function of mathematical statements is made explicit, several mistakes and confusions can be avoided in the teaching of the discipline, which occur, in most cases, when characteristic methods of natural sciences are introduced that would supposedly lead to the discovery of mathematical contents in general. It is observed that, when disregarding the distinct role played by mathematical propositions in relation to that of empirical propositions, one starts to believe that mathematical conjectures would be hypotheses to be tested through empirical experiments, relegating mathematical proofs to second plan, or even discarding them, as if the formality of mathematics were an obstacle to their learning in the school context. In opposition to this belief, it is proposed that the paradigmatic function of formal demonstrations is made explicit in teacher education, since they not only produce new meanings, but also instruct the student to use the theorems that are part of the school curriculum. The text concludes by proposing guidelines to prevent confusion in the classroom arising from pedagogies permeated by philosophical conceptions about the foundations of mathematics which, in turn, are linked to a referential conception of mathematical language.
Keywords: Foundations of mathematics, Mathematical proof, Mathematics Education, Wittgenstein.
Resumen: El texto reúne algunas reflexiones sobre la naturaleza de la matemática y su enseñanza en el contexto escolar, ancladas en los resultados terapéuticos obtenidos en la segunda fase del pensamiento del filósofo Ludwig Wittgenstein sobre los fundamentos de la matemática. Entre ellos, la idea de autonomía de las proposiciones matemáticas en relación con el empírico que resulta de su crítica al modelo referencial del lenguaje presente en las concepciones realista y idealista de la matemática, relativizando así las creencias dogmáticas sobre la naturaleza de sus contenidos, con implicaciones inmediatas para las prácticas pedagógicas. La hipótesis central es que cuando se aclara la función normativa (y no descriptiva) de los enunciados matemáticos, se pueden evitar varios errores y confusiones en la enseñanza de la disciplina, que ocurren, en la mayoría de los casos, cuando se introducen métodos característicos de las ciencias naturales que supuestamente llevan al descubrimiento de contenidos matemáticos en general. Se observa que, al prescindir del papel distinto que juegan las proposiciones matemáticas en relación con el de las proposiciones empíricas, se pasa a creer que las conjeturas matemáticas serían hipótesis a contrastar mediante experimentos empíricos, relegando a un segundo plano las demostraciones matemáticas, o mismo descartándolas, como si la formalidad de las matemáticas fuera un obstáculo para su aprendizaje en el contexto escolar. En contraposición a esta creencia, se propone en la formación docente explicitar la función paradigmática de las demostraciones formales, que no sólo producen nuevos significados, sino que instruyen al alumno en el uso de los teoremas que forman parte del currículo escolar. El texto concluye proponiendo pautas para evitar confusiones en el aula derivadas de pedagogías permeadas por concepciones filosóficas sobre los fundamentos de las matemáticas que, a su vez, se vinculan a una concepción referencial del lenguaje matemático.
Palabras clave: Fundamentos de las matemáticas, Demostración matemática, Educación Matemática, Wittgenstein.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é resgatar de modo sintético algumas reflexões resultantes da minha pesquisa sobre as implicações das ideias de Wittgenstein para a educação matemática, em particular, as que considero mais relevantes tendo em vista relativizar diretrizes educacionais fundamentadas hegemonicamente na pedagogia das competências, presentes na atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) no Brasil e em diversos outros documentos que a respaldam. Em boa parte destes documentos subjaz uma visão tecnocrática da educação, cuja orientação mais ampla tem como objetivo atender demandas do mundo do trabalho, em detrimento de uma formação mais crítica, autônoma e reflexiva dos professores[2]. O ensino da matemática não ficou imune a este processo progressivo de submissão da educação às exigências do mercado, relegando-se a segundo plano (ou mesmo tendo sido excluídas dos currículos dos cursos de licenciatura) disciplinas das áreas das humanas, essenciais para a formação do professor de matemática, como é o caso da filosofia da educação matemática.
Tendo como pano de fundo este cenário preocupante, as reflexões que apresento a seguir se voltam, em particular, para questões filosóficas da educação matemática com implicações para a sala de aula do ensino básico[3], tendo como fundamentos teóricos não apenas os próprios escritos de Wittgenstein[4] sobre as concepções filosóficas da matemática vigentes em sua época, mas, também, as observações sobre esta temática por parte de alguns de seus principais comentadores nas seguintes publicações: a tese de doutorado de Steve Gerrard (1987), Wittgenstein in transition: the philosophy of mathematics, o livro de Crispin Wright (1980) intitulado, Wittgenstein on the Foundations of Mathematics; como também as anotações de aulas de alunos de Wittgenstein no curso que ele ministrou em Cambridge em 1939, editadas por Cora Diamond em 1975, Lectures on the Foundations of Mathematics - Cambridge 1939[5].
Também não poderia deixar de mencionar o grande valor da sistematização realizada por Arley Ramos Moreno de parte das ideias de Wittgenstein, inspirando-o a elaborar uma nova teoria do significado, intitulada por ele de Epistemologia do Uso (MORENO, 2005, 2013). Embora Moreno (1995, 2005, 2013) não tenha tratado especificamente de questões da educação matemática, suas teses sobre a constituição do sentido linguístico em geral esclarecem também os mecanismos de funcionamento da linguagem matemática, o que possibilita, a meu ver, a prevenção de equívocos em suas práticas de ensino.
Assim, com base nos autores mencionados acima, pudemos olhar para os enunciados matemáticos como protótipos de uma função específica da linguagem que passa despercebida, mas sem a qual nenhuma descrição dos fatos do mundo faria sentido: a de condição de sentido para as proposições empíricas da nossa linguagem. De fato, não foi à toa que Wittgenstein se dedicou por quinze anos a investigar a natureza do conhecimento matemático[6], na medida em que logo se deu conta da natureza distinta de seus enunciados em relação às proposições das ciências naturais, a saber, aqueles possuem uma função normativa, enquanto estas têm uma função descritiva ou explicativa.
Observou também que os enunciados matemáticos desempenham um papel peculiar na linguagem: são formas que não se referem a fatos do mundo, apenas os organizam. Além do que, sua função normativa vai muito além de expressar verdades inquestionáveis, consideradas absolutas por boa parte das vertentes filosóficas da civilização ocidental, na medida em que também produzem novos sentidos. E o mais surpreendente foi ele também ter observado que o papel que as proposições matemáticas desempenham não se restringe ao campo da matemática e suas eventuais aplicações no mundo empírico, mas que este papel também é desempenhado por boa parte dos enunciados da linguagem ordinária, os quais passaram a ser denominados por ele de proposições gramaticais[7].
Motivada pela relevância dos resultados obtidos por Wittgenstein na segunda fase de seu pensamento, que, a meu ver, possibilitaram uma revolução copernicana na filosofia da linguagem, e graças à sistematização de MORENO (2005, 2013) dos resultados do método terapêutico[8] do filósofo austríaco, iniciei uma investigação filosófica com a finalidade de rever as diretrizes pedagógicas vigentes no campo da educação matemática sob este novo prisma filosófico. Neste texto, como um dos resultados desta investigação, apresento algumas reflexões que se contrapõem às orientações que estão sendo propostas nos documentos oficiais para o ensino de matemática, com a expectativa de se prevenir confusões de natureza conceitual em sala de aula. Mas vejamos, inicialmente, duas imagens que nos levam a elas e que estão presentes em boa parte das propostas pedagógicas atuais: a força do modelo referencial da linguagem e a crença no saber matemático como decorrência de uma atividade empírica fundamentada em estruturas cognitivas supostamente universais.
A FORÇA DO MODELO REFERENCIAL DA LINGUAGEM NA FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
Wittgenstein não tinha o objetivo de propor uma nova filosofia da matemática, como por vezes transparece nos textos de seus comentadores que chegam a falar em uma filosofia da matemática que teria sido formulada por ele. Muito menos tinha como finalidade criticar a atividade dos matemáticos profissionais. Sua crítica se dirigiu exclusivamente às observações de matemáticos de sua época quando estes pretendiam fazer filosofia da matemática, como é o caso exemplar de um contemporâneo de Wittgenstein, o matemático G. H. Hardy, considerado na época o mais puro dos puros dos matemáticos, e que defendia uma visão platônica da matemática ainda bastante hegemônica entre seus praticantes (GERRARD, 1987). Em seu livro “Em defesa de um matemático”, HARDY (2000, p. 115-116) afirma peremptoriamente:
Para mim, e penso que para a maioria dos matemáticos, existe outra realidade, que chamarei “realidade matemática”, e não há nenhum consenso entre os matemáticos e filósofos quanto à natureza dessa realidade. Alguns sustentam que ela é “mental” e que, em certo sentido, nós a construímos, outros sustentam que ela é exterior a nós. [...] Acredito que a realidade matemática é exterior a nós, que a nossa função é descobri-la ou observá-la, e que os teoremas que provamos e que chamamos de modo grandiloqüente de nossas “criações” são simplesmente as anotações das nossas observações. Essa concepção foi sustentada, sob uma ou outra forma, por muitos filósofos de elevada reputação, de Platão em diante, e vou usar a linguagem que é natural para um homem que a sustenta. O leitor que não gostar da filosofia pode mudar a linguagem; isso não há de fazer muita diferença para minhas conclusões.
Dentre as conclusões a que Hardy chega neste livro a partir de sua perspectiva platônica da matemática, irei destacar a seguinte: os objetos matemáticos em geral teriam uma existência prévia, exterior ao homem, e os teoremas que provamos seriam simplesmente as anotações das nossas observações sobre esta realidade pré-existente. Ao longo de sua argumentação, Hardy cita outro matemático proeminente de sua época, Alfred North Whitehead[9], que havia associado a certeza da matemática à absoluta generalidade abstrata de todos os seus teoremas. Embora Hardy (2000) compartilhasse da ideia do caráter abstrato de todos os seus teoremas, irá questionar a alegada generalidade que Whitehead atribui a eles:
“A certeza da matemática”, diz Whitehead, “depende da sua absoluta generalidade abstrata”. Quando afirmamos que 2 + 3 = 5, estamos afirmando uma relação entre três grupos de “coisas”, e essas “coisas” não são maçãs, nem moedas, nem coisas de uma ou outra espécie particular, mas apenas coisas, “qualquer coisa”. O significado do enunciado é totalmente independente das individualidades dos membros dos grupos. Todos os “objetos” ou “entidades” ou “relações” matemáticas, tais como “2”, “3”, “5”, “+” ou “=”, e todas as proposições matemáticas em que eles ocorrem, são absolutamente gerais na medida em que são absolutamente abstratos. Na verdade, uma das palavras de Whitehead é supérflua, já que a generalidade, nesse sentido, é abstração. (HARDY, 2000, p. 100-101)
Retomarei esta questão sobre o sentido atribuído por Hardy (2000) à generalidade dos teoremas matemáticos no próximo item. De resto, nestas passagens percebe-se claramente a posição neoplatônica do matemático britânico. Contrapondo-se a tais conclusões de Hardy a respeito da natureza do conhecimento matemático e de suas proposições, WITTGENSTEIN (1989) ao longo de seus escritos publicados na obra Observações sobre os fundamentos da matemática aplica sua terapia filosófica às teses metafísicas sobre os fundamentos da matemática, herdadas de filósofos realistas e/ou idealistas, e, ao final deste processo terapêutico, conclui que os enunciados matemáticos não descrevem uma realidade metafísica a ser gradualmente descoberta pelo matemático e tampouco expressam um mundo mental do sujeito, supostamente presente (potencialmente) em estruturas cognitivas universais. Segundo ele, a matemática é uma invençãodo homem, não tendo uma existência prévia ao sujeito. Além do que, seus enunciados desempenham uma função normativa, e não descritiva. A certeza matemática expressa pela necessidade de seus enunciados advém do uso que fazemos de seus enunciados, e não por se referirem a algo exterior ou interior ao sujeito, contrapondo-se, assim, aos matemáticos proeminentes de sua época, como Hardy, que passaram a fazer filosofia matemática ancorados em uma concepção referencial da linguagem.
Por exemplo, como vimos acima, para HARDY (2000), e outros matemáticos neoplatônicos, uma proposição matemática tal como “2 +3 = 5” seria uma certeza matemática que apenas reflete uma realidade exterior a ser paulatinamente descoberta pelos matemáticos. E eis aqui, o “pulo do gato” de nosso filósofo: ao proclamarmos que “2 +3 = 5” a alguém que ainda está aprendendo matemática, estamos transmitindo não só uma informação a ser aprendida, mas uma atitude: 2 + 3 deve ser igual a 5. Somos nós, enquanto uma coletividade pertencente a uma determinada forma de vida, que atribuímos esta necessidade à proposição em questão.
Em outras palavras, a necessidade matemática não decorre de uma realidade matemática que seria o fundamento último de seus enunciados, não é necessário postulá-la para garantir a legitimidade e veracidade de seus enunciados. E tampouco estas verdades são absolutas! Poderíamos imaginar uma comunidade que tivesse aprendido a relacionar os termos “0”, “1”, “2”, “3”, “4” …, “+” ou “=” de um modo totalmente diferente de como foi aprendido por nós, como WITTGENSTEIN (1989) sugere a um dos seus interlocutores platônicos (talvez Hardy?) no parágrafo 38 da parte I de suas Observações sobre os Fundamentos da Matemática:
«Basta que olhes a figura
para ver que 2 + 2 = 4.» Então basta que eu mostre a figura
para ver que 2 + 2 + 2 = 4. (WITTGENSTEIN, 1989, Parte I, 38, nossa tradução)
Mas por que, então, temos tanta convicção do primeiro resultado (“2 + 2 = 4”) e rechaçaríamos imediatamente o segundo (“2 + 2 + 2 = 4”)? A resposta de Wittgenstein (1999) é surpreendentemente simples: “Não pense, mas olhe!” (IF §66), ou seja, vejamos como efetivamente empregamos estes símbolos. Ao invés de postularmos entidades metafísicas e relações entre elas pertencentes a uma suposta realidade matemática pré-existente, olhemos para as técnicas que convencionamos para operar com elas. Primeiro aprendemos técnicas de contagem que, ao longo da história foram inventadas de modos diferentes pelos povos da civilização ocidental, lembrando que o zero foi introduzido tardiamente em nosso atual sistema decimal. Em seguida, como se vê na figura acima, aprendemos a circular os elementos de uma soma do primeiro modo, e não do segundo. E, finalmente, somos ensinados a somá-los contando todos os elementos uma única vez.
No caso de números maiores, passamos a aprender determinados algoritmos de soma, como a conta em pé, ou recorremos a ábacos ou outras calculadoras, entre outros instrumentos inventados pelo homem. Enfim, uma vez aprendidas estas diversas técnicas, formamos o conceito de soma e passamos a não conseguir imaginar o contrário daquela primeira asserção (“2+ 2 = 4”) e de outras asserções análogas, de tal modo que chegamos a utilizá-las na nossa linguagem cotidiana para expressar nossa certeza inquestionável sobre determinado assunto. Por exemplo, é comum ouvirmos: “tenho tanta certeza disso quanto ‘dois mais dois é igual a quatro’!”
No entanto, simplesmente esquecemos que estas certezas vistas por nós como absolutas decorrem de técnicas aprendidas de natureza convencional, e que poderiam ter sido outras. Esquecemos que nós mesmos, enquanto docentes, também fomos treinados a efetuar somas aritméticas até chegarmos aos seus resultados de modo convicto. Retomando a exortação de Wittgenstein (1999), “não pense, mas olhe!”, simplesmente são estas técnicas o fundamento último da matemática, um fundamento de natureza convencional, bastante distante dos ideais fundacionistas dos matemáticos platônicos e mesmo dos matemáticos construtivistas cognitivistas, os quais pressupõem uma realidade matemática mental em cada indivíduo que abrigaria potencialmente todas as verdades matemáticas possíveis.
Assim, de uma perspectiva wittgensteiniana as concepções platônica e mentalista do conhecimento matemático estão ambas atreladas a um modelo referencial da linguagem, a saber, como se a linguagem matemática se referisse a uma realidade extralinguística, previamente existente no exterior ou no interior do indivíduo. Como argumentamos a seguir, estas concepções levam a diversas confusões em sala de aula, na medida em que se espera que o aluno por si só descubra verdades matemáticas, onde o professor é visto apenas como um propiciador de situações de aprendizagem, analogamente a Sócrates nos diálogos platônicos, que diz não ensinar nada, que apenas extrai as verdades da alma de seu interlocutor através de um interrogatório bem conduzido… Esquece-se que os fundamentos destas certezas são de natureza convencional, e precisam ser aprendidas explicitamente. Nas palavras de WITTGENSTEIN (1981): “Toda a explicação tem o seu fundamento no treino. (Os educadores deviam lembrar-se disto.)” (F § 419).
UMA PROVA MATEMÁTICA NÃO É UM EXPERIMENTO EMPÍRICO
Uma característica notável da atividade matemática é a exatidão de seus conceitos, a ponto de terem sido considerados paradigmas para a legitimidade de conceitos pertencentes a outras ciências, as quais passaram a procurar definições precisas para os seus próprios conceitos. De fato, ao efetuarmos uma soma qualquer, como por exemplo, “2 + 2”, não dizemos que seu resultado é aproximadamente quatro, mas que deve ser exatamente quatro. Inclusive, o resultado obtido na soma é um dos critérios do professor de matemática para avaliar se a soma foi efetuada corretamente. A confusão se dá, como vimos no item anterior, no caso deste professor acreditar que seu aluno teria então aprendido o conceito de soma por si só, como se fosse decorrente de uma intuição privada ou mesmo da observação de situações empíricas, por exemplo, juntando dois dedos de cada mão, e não simplesmente pelo fato de seu aluno ter passado a dominar técnicas compartilhadas pela comunidade de matemáticos transpostas para o contexto escolar.
De fato, embora haja consenso entre os professores em relação à exatidão dos conceitos matemáticos, paradoxalmente, muitos acreditam que os enunciados matemáticos possam ser extraídos do mundo empírico, aos moldes das ciências naturais, formulando hipóteses e verificando-as através de experimentações empíricas (WRIGHT, 1980). Bastaria, então, propiciar a seus alunos “situações de aprendizagem” que possibilitariam a eles deduzir conteúdos matemáticos previstos no currículo escolar. Confunde-se, aqui, a prova matemática com a observação e a experimentação empíricas, como o próprio HARDY (2000) havia alertado ao se contrapor ao tipo de generalidade absoluta pressuposta por Whitehead em seus escritos sobre a natureza dos teoremas matemáticos. Segundo HARDY (2000, p. 101):
É bastante comum, por exemplo, ouvirmos um astrônomo ou físico afirmar que encontrou uma “prova matemática” de que o universo físico deve comportar-se de uma maneira específica. As afirmações desse tipo, se interpretadas de maneira literal, não significam absolutamente nada. Não é possível provar matematicamente que haverá um eclipse amanhã, porque os eclipses e outros fenômenos físicos não fazem parte do mundo abstrato da matemática; e suponho que todos os astrônomos o admitiriam se fossem pressionados, por mais eclipses que possam ter previsto corretamente.
Em outros termos, as hipóteses e leis formuladas pelos cientistas são decorrentes de fatos contingentes, e suas descobertas não comportam uma necessidade matemática. O fato de a matemática ter um usona realidade empírica não justifica o salto dado por alguns cientistas de que se estaria descrevendo algo subjacente a um fato empírico que equivale a uma certeza matemática. Estas certezas independem do empírico. Por exemplo, ao termos comprado dois pares de ingressos para o teatro, a proposição “2 + 2 = 4” nos autoriza a dizer que temos quatro ingressos em mãos. Mesmo que ao chegar ao teatro aconteça de termos perdido um dos ingressos no meio do caminho, isto não invalida o enunciado em questão, “dois mais dois” permanece sendo quatro! Trata-se de um enunciado que atribui uma forma ao fato em questão, mas que independe de seu conteúdo empírico.
Uma das causas de confusão conceitual no campo da educação matemática é acreditar que suas proposições estariam descrevendo o próprio fato empírico, como se pudessem ser “extraídas” de uma experiência empírica (a compra dos ingressos). E aqui poderíamos aproximar Wittgenstein de Hardy (2000), quando este chama a atenção de que não cabe falar em certeza matemática como decorrente de uma suposta generalidade abstrata, como havia suposto Whitehead. Da perspectiva de Wittgenstein, suas proposições não decorrem de uma indução empírica efetuada pelos indivíduos, como se somando-se objetos empíricos em diversas situações seria possível generalizar os resultados obtidos.
Contrapondo-se a esta imagem da atividade matemática, nosso filósofo observa que seus enunciados desempenham outra função: possibilitam a passagem de uma proposição empírica para outra proposição empírica, funcionando como regras de inferência. Assim, a proposição acima “2 + 2 = 4” possibilita transitar da proposição empírica “comprei dois pares de ingresso” para a proposição também empírica “comprei quatro ingressos”, independentemente do que de fato possa ter ocorrido no meio do caminho, como a perda de um dos ingressos: “2 + 2” continuará sendo igual a 4, mesmo que chegarmos com 3 ingressos na mão.
No entanto, é comum vermos em documentos oficiais para o ensino de matemática instruções didáticas que pressupõem a dedução de conteúdos matemáticos a partir de situações empíricas que deveriam ser propiciadas pelo professor, como se aqueles pudessem ser extraídos delas. Em outras palavras, acredita-se que através de diversas observações e experimentações empíricas a criança seria capaz de generalizar seus conhecimentos prévios para se chegar a uma verdade matemática do mesmo modo que ao vermos o sol nascer a cada dia concluímos que o sol nasce todos os dias… Assim, desta concepção empirista da matemática, a observação e experimentação passam a ser considerados no contexto escolar tão válidos quanto os de uma prova formal. Por exemplo, é muito frequente ver professores em sala de aula pedirem para seus alunos recortarem triângulos os mais diversos e medirem com um transferidor de grau o tamanho de seus respectivos ângulos internos com o objetivo de “constatarem” que a soma deles será sempre 180º. Para frustração dos professores, esta generalização abstrata esperada por eles, na maior parte das vezes, simplesmente não ocorre. Os alunos encontram somas muito próximas de 180º, mas são poucas as crianças que chegam ao resultado final esperado… Trata-se de uma incapacidade motora destas crianças, ou simplesmente estes professores não estão introduzindo seus alunos na atividade matemática, distinta radicalmente das ciências naturais?
Se seguirmos, mais uma vez, a recomendação de WITTGENSTEIN (1999), “não pense, mas olhe!”, veremos que esta conjectura matemática de que a soma dos ângulos internos de um triângulo deve ser exatamente 180º não é uma hipótese a ser verificada no mundo empírico. Uma conjectura matemática não se torna uma proposição matemática testando-a em situações empíricas, simplesmente porque a matemática não se refere a fatos empíricos[10]. Como então introduzir o aluno a conteúdos geométricos e suas relações sem submetê-lo a uma concepção referencial da linguagem? Podemos imaginar os seguintes passos para que uma criança que está se iniciando na geometria adquira novos conceitos e aprenda a relacioná-los de modo a construir novos conhecimentos e, eventualmente, seja capaz de usá-los em situações empíricas, o que é diferente de extraí-los destas situações.
Nos níveis mais iniciais, por exemplo, podemos introduzir o conceito de triângulo para uma classe de alunos apontando para figuras triangulares desenhadas na lousa ou para objetos triangulares e dizendo concomitantemente: “Isto é um triângulo!”, “Aquilo também é um triângulo!”, e assim por diante. Em outras palavras, através do gesto ostensivo estas figuras entram para a linguagem matemática como amostras do que é ser um triângulo. O som da palavra “triângulo” emitido por nós simultaneamente apontando para as figuras triangulares faz com que se estabeleça gradativamente uma relação de sentido entre a palavra “triângulo” e o objeto apontado.
Em outra terminologia, estabelece-se uma regra que a criança aprende a seguir, na medida em que em algum momento não previsível a priori, esta criança será capaz de identificar um triângulo que ainda não havia sido mostrado para ela, e dizer: “Isto então também é um triângulo?” Neste momento podemos dizer que ela adquiriu o conceito de triângulo, ou seja, ela já é capaz de seguir a regra do que é ser um triângulo na geometria euclidiana, em situações novas. Esta compreensão não decorre de generalizações empíricas, mas sim de relações de parentesco que ela vai observando entre os diferentes triângulos que lhe são mostrados, semelhanças que Wittgenstein (1999) denomina de “semelhanças de família” (IF, §§ 66-67).
Em seguida, quando a criança já puder perguntar pelo sentido da palavra triângulo (e eventualmente também o sentido de outras figuras geométricas que estiverem sendo introduzidas nas aulas de geometria), respondemos que “triângulo é um polígono de três lados”, ou seja, entra em cena uma definição da palavra triângulo. Neste momento, é apresentada uma regra que a criança aprende a seguir, uma convenção que pode ser aceita, ou não. Até então, a criança havia sido apresentada a várias figuras de triângulo, tendo sido treinada a reconhecê-los em diversas posições e tamanhos, e aprendido apenas a correlacionar a palavra “triângulo” às figuras apontadas pelo professor.
Neste momento anterior, não cabe falar em sentido ainda, só neste segundo momento é que se torna possível apresentar uma definição da palavra “triângulo”, uma regra que, uma vez aceita, passa a ser seguida em situações novas. No entanto, neste novo nível de aprendizagem, não há ainda a presença da necessidade matemática. Até aqui é realizado um trabalho de persuasão, e não de convencimento (AUTOR, 2020).
Em níveis mais avançados do ensino é que surge a figura da prova geométrica ou prova matemática. Por exemplo, podemos imaginar que no caso de um triângulo retângulo também sejam definidos os conceitos de cateto, hipotenusa, altura de um triângulo, ângulo interno a um triângulo, etc. Uma vez aceitas novas definições de termos da geometria, novas relações passam a ser constituídas entre eles através de demonstrações geométricas, deduzindo-se que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º, ou que a hipotenusa ao quadrado de um triângulo retângulo é a soma de seus catetos ao quadrado, entre outras proposições da geometria euclidiana. Estas proposições, por sua vez, passam também a desempenhar o papel de regras, mas neste nível de complexidade tornam-se regras com uma função normativa, comportando uma necessidade que não estava presente nas definições apresentadas inicialmente.
Assim, novos enunciados passam a expressar proposições e teoremas matemáticos à medida em que forem sendo provados. Deste modo, enunciados deixam de ser meras conjecturas e, à diferença das definições, são demonstradosatravés de provas matemáticas, constituindo-se, assim, uma trama de enunciados entrelaçados entre si de tal maneira que questionar um deles seria abalar todo o sistema assim construído. Estes sistemas, por sua vez, constituem o que Wittgenstein chama de jogos de linguagem da matemática, em seus diversos domínios: regras expressas simbolicamente envolvidas com técnicas convencionais que organizam o mundo empírico de uma determinada forma.
Wittgenstein recorre a uma metáfora esclarecedora para “definir” o que entende por um jogo de linguagem. Imaginemos um jogo de xadrez, com suas peças e regras para movimentá-las. Como aprendemos a jogar este jogo? Em um primeiro momento, aprendemos os nomes de suas peças, do mesmo modo como aprendemos no exemplo acima os nomes de figuras geométricas. Apontamos para cada uma das peças e dizemos: este é o peão, este é o cavalo, este é o rei, esta é a torre… Só em um segundo momento aprendemos as regras de movimentação de cada uma das peças.
No caso da geometria, aprendemos as definições dos termos geométricos, e só então, em ambos os casos, passamos de fato a “jogar”, ou seja, a operar com as figuras fazendo novos lances no “tabuleiro”. Enfim, aprendemos a jogar após um certo treino, que envolve o aprendizado de determinadas técnicas, inclusive envolvendo memorização, repetição, etc.. Por fim, nossos alunos aprenderão a demonstrar determinados teoremas, sendo convencidos, agora, de suas verdades, e passam a ser capazes de aplicá-las em situações empíricas. Neste momento a analogia com o jogo de xadrez se desfaz. Distanciando-se de um mero jogo, a matemática pode ser vista como jogos de linguagem que eventualmente organizam a experiência empírica de determinadas formas, ou seja, parte da matemática pode ter um uso empírico em determinadas circunstâncias.
No entanto, como já mencionamos, quando o professor está preso à imagem de que as proposições matemáticas desempenham uma função descritiva do mesmo modo que os enunciados das ciências empíricas, confunde-se forma com conteúdo, com implicações para o ensino que podem dificultar consideravelmente a aprendizagem de seus alunos.
A MATEMÁTICA COMO PRODUTORA DE NOVOS SENTIDOS
Ao olhar para a prova matemática como uma mera experimentação empírica, esquece-se também que a função da prova matemática é fundamental para a constituição dos sentidos de seus enunciados. Do mesmo modo que apontamos para um triângulo como amostra do que é ser um triângulo, a prova matemática pode ser vista como uma imagem que nos esclarece o sentido da proposição demonstrada por ela:
É importante provar os conceitos matemáticos, pois introduzimos, com eles, paradigmas importantes na linguagem: estes paradigmas são (..) preparações (Vorbereitungen) para a construção de descrições específicas dos fatos: com os paradigmas matemáticos entramos em acordo a respeito das formas de descrição sem, entretanto, nada descrever. São formas que devem ser expressas em proposições matemáticas, isto é, em proposições gramaticais para que possam polarizar nosso consenso. Se os aceitarmos [os conceitos], então as proposições matemáticas conformes a eles serão aplicadas e terão consequências sobre as descrições efetivas que construirmos. É possível, todavia, que não os aceitemos, apesar da inexorabilidade das provas: suas consequências podem (...) ser inúteis ou pouco eficazes para a organização da experiência (MORENO, 1995, p. 57).
Como apontado acima por Moreno (1995), as provas matemáticas desempenham uma função paradigmática, ao produzirem paradigmas na linguagem. O teorema de Pitágoras, por exemplo, diz o que é ser um triângulo retângulo: sua hipotenusa ao quadrado equivale à soma do quadrado de seus catetos. Caso esta relação não seja satisfeita, não estamos diante de um triângulo retângulo.
Neste sentido, este teorema pode ser visto como uma regra que aprendemos a seguir que nos diz o que é ser um triângulo retângulo, ou seja, este enunciado matemático tem uma função transcendental no sentido kantiano, na medida em que nos fornece uma das condições de sentido do conceito matemático “triângulo retângulo”. Aprendemos a reconhecer um triângulo retângulo ao “seguirmos”, dentre outras regras, o teorema de Pitágoras, ou seja, aplicando sua fórmula como sendo a referência, o paradigma, para afirmarmos sua identidade. A prova a que se recorre deste teorema, por sua vez, torna-se uma instrução para a aplicação do próprio teorema. Em outras palavras, a prova matemática institui o teorema e, ao mesmo tempo, esclarece como aplicá-lo. Nas palavras do próprio WITTGENSTEIN (1989): “A demonstração é também, portanto, uma instrução para o uso de uma regra.” (OFM, Parte VI, §3) Daí a importância da demonstração matemática nas práticas de ensino, na medida em que ela não apenas constitui o sentido do que se ensina como também nos mostra como aplicá-lo.
Os próprios sentidos de determinados enunciados matemáticos podem variar em função da geometria que está sendo utilizada. Nem sempre a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º. Por exemplo, se um físico quiser medir distâncias subatômicas, provavelmente utilizará uma geometria não euclidiana, como a de Lobachevsky (hiperbólica). Nesta geometria[11], por exemplo, a soma dos ângulos internos de um triângulo é menor do que 180º! Enquanto um físico que pretenda fazer cálculos astronômicos poderá utilizar a geometria de Riemann (elíptica ou esférica), onde a soma dos ângulos internos de um triângulo é maior que dois ângulos retos.
Em outras palavras, as relações entre a linguagem matemática e o mundo empírico são mediados por jogos de linguagem, que precisam ser aprendidos, suas regras são condições para que possamos descrever o mundo empírico com sentido em diferentes contextos de aplicação. Portanto, não há uma relação imediata entre os termos matemáticos e a realidade empírica, esta é uma imagem que também faz proliferar confusões. Tampouco há necessidade de se pressupor uma intuição matemática comum a todos a partir da qual diferentes axiomas geométricos se tornem evidentes. Compreendê-los pressupõe o domínio de diferentes técnicas, e não um estado mental específico (WITTGENSTEIN, 1999, IF § 150). Ainda nas palavras do nosso filósofo (WITTGENSTEIN, 1981): “Estou fazendo psicologia infantil? - Estou fazendo a ligação entre o conceito de ensino e o conceito de significado.” (F, § 412)
Enfim, embora os enunciados matemáticos tenham, por vezes, uma aparência descritiva, como por exemplo, “um triângulo é um polígono de três lados”, “a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º”, “2 + 2 = 4”, e assim por diante, estes enunciados expressam certezas independentemente da experiência empírica, não cabe verificá-los. Isto porque desempenham o papel de regras a serem seguidas, e não porque teriam fundamentos últimos nas leis da lógica (como pretendiam provar os logicistas), ou em um céu platônico (como na concepção realista defendida por Hardy), em estruturas mentais (como pressupõem as ciências cognitivas), ou tampouco, de que estariam subjacentes ao mundo empírico.
Neste último caso, não é recortando dezenas ou mesmo centenas de triângulos que provamos que “a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º”. Esta proposição expressa uma relação interna entre os conceitos de ângulo e de triângulo que foi estabelecida no interior dos jogos de linguagem da geometria euclidiana, a partir de seus axiomas, e definições, que uma vez aceitas passam a constituir proposições que não são mais simples definições de equivalência terminológica (como por exemplo, “um triângulo é um polígono de três lados”), mas passam a comportar uma necessidade, a saber, não conseguimos mais imaginar o seu contrário: “a soma dos ângulos internos de um triângulo deve ser igual a 180º”, ou no campo da aritmética, “2 + 2 deve ser igual a 4”, enfim, enunciados que incorporam novas informações sobre os fatos, e que, ao mesmo tempo, independem da experiência empírica. São, portanto, proposições gramaticais, que ao serem confundidas com as proposições empíricas podem levar a confusões em sala de aula de natureza conceitual.
CONSIDERAÇÕES PREVENTIVAS
Diante das observações acima, fortemente inspiradas nas reflexões de Wittgenstein sobre a natureza dos fundamentos da matemática, ouso apontar para algumas diretrizes preventivas de confusões conceituais em sala de aula, com a expectativa de que promovam um aprendizado desta disciplina que tire dos ombros dos professores alunos o peso de serem os responsáveis por desenvolverem uma suposta “intuição matemática” potencialmente presente em seus alunos, desdobrando-a nas diversas competências e respectivas habilidades matemáticas demandadas pela BNCC (BRASIL, 2018), e em outros documentos que se apóiam na pedagogia das competências (GOTTSCHALK, 2012, 2015).
Em contraposição às diretrizes vigentes, penso ser necessária uma formação do professor pautada por uma reflexão filosófica sobre a natureza do conhecimento de sua disciplina, que não esteja atrelada a uma concepção referencial e reducionista da linguagem matemática. Neste sentido, sugiro as seguintes orientações de caráter preventivo para o seu ensino, suficientemente gerais, tendo em vista preservar a autonomia didática de cada professor:
i) Como WITTGENSTEIN (1981) nos lembra, “toda explicação tem o seu fundamento no treino”, e não em uma suposta estrutura mental ou em uma intuição matemática previamente existente nas crianças, que seria desenvolvida através de experimentações empíricas. As certezas matemáticas são produto de um trabalho com a linguagem matemática imersa em diferentes atividades, como o aprendizado de técnicas que abrangem diferentes algoritmos ou que envolvem o manejo de instrumentos de medida inventados pelo homem ao longo da história da humanidade. Embora estes procedimentos, na maior parte das vezes, possam ter tido uma origem empírica, as proposições matemáticas que são produzidas em meio a estas atividades adquirem uma autonomia em relação ao empírico. Retomando o exemplo de HARDY (2000), “2 + 3 deve ser igual a 5” independentemente do que esteja sendo somado, como ele próprio havia observado. Seu equívoco foi acreditar que esta seria uma verdade absoluta, independentemente do jogo de linguagem em que estiver inserida. Ou seja, o perigo está no salto que ele e seus colegas haviam dado, ao acreditarem que as verdades matemáticas teriam uma existência prévia em uma realidade metafísica, passíveis de serem descobertas ou intuídas, restando ao matemático fazer “anotações de nossas observações” (HARDY, 2000, p. 116): solo fértil para confusões, como nos revela a terapia filosófica de Wittgenstein. Tendo em vista preveni-las no contexto escolar, cabe ao professor apresentar aos alunos as diversas técnicas inventadas pelos matemáticos que fundamentam as atividades propostas em sala de aula, treinando-os o suficiente para que, uma vez dominadas, eles sejam capazes de operar com o saber matemático em novos contextos, não previsíveis.
ii) Para além da introdução de técnicas envolvidas na atividade matemática, também cabe ao professor persuadir seus alunos a aceitarem os axiomas e postulados dos jogos de linguagem da matemática, como também as definições de seus termos, os quais são de natureza convencional, e não decorrentes de uma suposta intuição matemática. Uma vez aceitos, tornam-se condição para que eles possam começar a jogar os jogos de linguagem da matemática em diferentes níveis de complexidade; e não esperar que eles descubram, por si sós, supostas “verdades absolutas” a partir de situações empíricas.
iii) Uma vez aceitos determinados postulados, axiomas e definições no campo da matemática, cabe ao professor introduzir ao aluno as demonstrações de enunciados matemáticos que comportam uma necessidade, como os teoremas da matemática, tendo em mente a função paradigmática que a prova matemática desempenha na produção de novos conceitos e teoremas e, ao mesmo tempo, utilizá-la como instrução para a aplicação deles em situações formais e empíricas. A história da matemática nos fornece inúmeras situações que podem despertar o interesse do aluno para a resolução de problemas e paradoxos que surgiram desde os primórdios da matemática, como os segredos dos pitagóricos e a invenção de novos números para superar as contradições com que eles se depararam, entre outros fatos matemáticos instigantes, como também as observações de antropólogos sobre outras lógicas possíveis em modos de vida distintos dos nossos (GOTTSCHALK, 2007, 2020).
Como argumentamos ao longo do texto, o que embasa as sugestões acima é o resultado terapêutico de que a necessidade dos enunciados matemáticos advém do uso que fazemos de seus enunciados, a saber, um uso normativo. Portanto, não se referem a uma realidade matemática com uma existência prévia em algum reino metafísico, ou potencialmente presente em estruturas mentais universais e tampouco extraída de nossa realidade empírica, através de observações e experimentações. Somos nós que atribuímos necessidade a seus enunciados, mesmo que alguns deles tenham tido origem no empírico.
Na verdade, esta origem no empírico é que torna a matemática importante para nós, não se reduzindo a um mero jogo com suas regras autônomas e independentes do empírico, como seria o caso de um jogo de xadrez. Se precisarmos ir de Nova Iorque a Moscou de avião, confiamos nos planejadores de voo que se baseiam na geometria de Riemann para seus cálculos, enquanto se eu for da minha casa para o trabalho em uma cidade plana, basta olhar para o painel do meu carro para saber quantos quilômetros foram rodados de acordo com a geometria de Euclides.
Embora os axiomas que fundamentam estes cálculos não sejam verdades absolutas, os contextos de aplicação são suficientes para que eu confie cegamente neles, do mesmo modo que quando saio de casa pela porta não dirijo meu olhar antes para o chão para ver se um abismo surgiu diante de mim (WITTGENSTEIN, 1979, DC §657 e ss.).
É neste sentido que Wittgenstein fala do estado civil da matemática, que a distingue de um mero jogo. Em uma de suas aulas na Universidade de Cambridge, Wittgenstein passa a discutir com seus alunos o que distingue a matemática de um mero jogo de xadrez, e pergunta a eles em que sentido as teorias matemáticas não são consideradas arbitrárias, enquanto que as regras deste jogo o são. Um de seus excepcionais alunos, o matemático Alan Turing, responde que as teorias matemáticas possibilitam fazer previsões, ao que Wittgenstein retruca que tanto o jogo de xadrez como as teorias da matemática podem ser usados para fazer previsões, mas à diferença do xadrez, a matemática tem uma aplicação óbvia, enquanto o xadrez é apenas um jogo (Wittgenstein, 1989, p. 150). Temos, de fato, boas razões para afirmar convictamente os seus resultados e aplicá-los em nossa forma de vida ocidental.
Não obstante, a imaginação e a inesgotável criatividade dos matemáticos ao longo dos tempos vai muito além de uma eventual utilidade de suas criações para atender as demandas do mundo do trabalho e outras tarefas do nosso dia a dia, na medida em que produz continuamente novos sentidos através de suas demonstrações e da invenção de novos axiomas e novas técnicas, ampliando-se, assim, os modos de pensar o nosso mundo. Talvez esta seja a máxima que perpassa as reflexões acima.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
GERRARD, Steve. Wittgenstein in transition: the philosophy of mathematics. Tese de doutorado. Chicago, Illinois: Department of Philosophy - University of Chicago, 1987.
GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. “Uma Reflexão sobre o Sentido Linguístico Rumo a uma Pedagogia de Inspiração Wittgensteiniana”. Revista Educação e Realidade, vol. 45, nº 3, 2020.
GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. “Formation de certitudes et comprèhension”. Cahiers de Philosophie du Langage. Images du Monde–Quelle place pour la science, vol. 9, pp.153-175, 2015.
GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. “Três concepções de significado na Matemática: Bloor, Granger e Wittgenstein”. In: Wittgenstein. aspectos pragmáticos. Campinas: UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2007.
HARDY, G. H. Em defesa de um matemático. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MORENO, Arley Ramos. Wittgenstein através das imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.
MORENO, Arley Ramos. Introdução a uma pragmática filosófica. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
MORENO, Arley Ramos. Wittgenstein - Apontamentos para uma epistemologia do uso. Salvador: Quarteto Editora, 2013.
Wright, Crispin. Wittgenstein on the Foundations of Mathematics. London: Duckworth, 1980.
Wittgenstein, Ludwig. Bemerkungen über die Grundlagen der Mathematik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Wittgenstein’s lectures on the foundations of mathematics. Editado por Cora Diamond. Chicago: The University of Chicago Press, 1989.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Bemerkungen über die Grundlagen der Mathematik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.
WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty Oxford:Blackwell, 1979.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Fichas (Zettel) Lisboa: Edições 70, 1981.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1999.
Notas
Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/15 (pdf)