ARTIGOS CIENTÍFICOS
Recepção: 11 Agosto 2021
Aprovação: 30 Outubro 2021
Publicado: 12 Agosto 2022
Resumo: Este trabalho aborda o conceito de intuição, bem como elucida a manifestação de diferentes categorias do raciocínio intuitivo, sendo estas analisadas por um viés teórico, visando as possibilidades de sua identificação e contribuição para a área educacional. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar a intuição e sua categorização, na perspectiva de Efraim Fischbein (1920-1998), como uma teoria a ser considerada, buscando uma visão mais abrangente em relação aos seus mecanismos e utilizando evidências de pesquisas a partir de suas obras, como forma de apoiar e ampliar a interpretação e uso do raciocínio intuitivo voltado para o campo da Matemática. Para tal, foi adotada a pesquisa bibliográfica como metodologia para este trabalho, em que se realiza uma análise de conteúdo, buscando consubstanciar uma investigação reflexiva sobre algumas obras do referido autor. Por fim, reforça-se que no campo da Educação Matemática é importante desenvolver nos alunos a capacidade de distinção entre percepção, sentimentos intuitivos, crenças intuitivas e convicções formalmente sustentadas, desenvolvendo interpretações adequadas no campo da intuição, juntamente à evolução das estruturas formais do raciocínio lógico.
Palavras-chave: Intuição, Efraim Fischbein, Categorias do Raciocínio Intuitivo.
Abstract: This work addresses the concept of intuition, as well as elucidates the manifestation of different categories of intuitive reasoning, which are analyzed from a theoretical perspective, aiming at the possibilities of its identification and contribution to the educational area. Thus, the objective of this paper is to present intuition and its categorization, from the perspective of Efraim Fischbein (1920-1998), as a theory to be considered, seeking a more comprehensive view of its mechanisms, and using research evidence from his works, as a way of to support and expand the interpretation and use of intuitive reasoning aimed at the field of Mathematics. To this end, bibliographic research was adopted as a methodology for this work, in which a content analysis is carried out, seeking to substantiate a reflective investigation on some of the works by the aforementioned author. Finally, in the field of Mathematics Education, it is important to develop in students the ability to distinguish between perception, intuitive feelings, intuitive beliefs and formally held convictions, developing appropriate interpretations in the field of intuition, together with the evolution of formal reasoning structures logical.
Keywords: Intuition, Efraim Fischbein, Categories of Intuitive Reasoning.
Resumen: Este trabajo aborda el concepto de intuición, así como dilucida la manifestación de diferentes categorías de razonamiento intuitivo, las cuales son analizadas desde una perspectiva teórica, apuntando a las posibilidades de su identificación y contribución al ámbito educativo. Así, el objetivo de este trabajo es presentar la intuición y su categorización, desde la perspectiva de Efraim Fischbein (1920-1998), como una teoría a considerar, buscando una visión más integral de sus mecanismos y utilizando evidencia de investigación de sus trabajos, como una forma de Apoyar y ampliar la interpretación y uso del razonamiento intuitivo dirigido al campo de las Matemáticas. Para ello, se adoptó la investigación bibliográfica como metodología para este trabajo, en el que se realiza un análisis de contenido, buscando fundamentar una investigación reflexiva sobre algunos de los trabajos del citado autor. Finalmente, en el campo de la Educación Matemática, es importante desarrollar en los estudiantes la capacidad de distinguir entre percepción, sentimientos intuitivos, creencias intuitivas y convicciones formalmente sostenidas, desarrollando interpretaciones adecuadas en el campo de la intuición, junto con la evolución de las estructuras formales del razonamiento lógico.
Palabras clave: Intuición, Efraim Fischbein, Categorías del razonamiento intuitivo.
INTRODUÇÃO
O diálogo sobre a intuição no âmbito educacional tem sido discutido ao longo de muitos anos dentro do campo da Psicologia Cognitiva. Pode-se dizer que a intuição remete a um produto de representações que são feitas a partir da realidade e, nesse sentido, ela tem um papel auxiliar no processo de aprendizagem dos estudantes, que pode ser levado em consideração pelo docente. Esse papel é especialmente significativo no contexto da Matemática.
A partir da evolução da Matemática e suas ramificações em diferentes subdivisões, a linguagem, as notações e definições formalizadas passam a ter papel imprescindível em sua compreensão. Esta evolução traz uma complexidade derivada das simbologias que representam os objetos matemáticos, sendo tais representações “consequências da generalização das formas de abstração, cognição e memória necessárias para a apreensão destas entidades conceituais abstratas peculiares da Matemática” (ALVES, 2011, p. 20).
Nasser (2013) corrobora que na educação básica, o estudante apropria-se de conhecimentos acerca dos resultados principais da Matemática de forma pronta, em grande parte das ocasiões sem ter a chance de contemplar sua evolução histórica, teorias e demonstrações. Isto nos faz refletir sobre as dificuldades encontradas no percurso destes estudantes na disciplina de Matemática. Em muitos casos, tais obstáculos são oriundos do formato com que a disciplina é apresentada, de modo mecanizado, com fórmulas pré-estabelecidas, sem levar em consideração o raciocínio matemático, sua natureza e aspectos da Psicologia Cognitiva em seu desenvolvimento (ALVES, 2016).
Segundo Fischbein (1993) é válido ter conhecimento sobre a forma como os estudantes solucionam diferentes tipos de problemas, os obstáculos e percalços que eles encontram, a fonte desses obstáculos e, por sua vez, os erros sistemáticos cometidos por eles, como forma de compreender aspectos do pensamento matemático e de sua evolução.
Nesse sentido, Fischbein (1987a) traz, primordialmente, uma proposta por um viés teórico que abrange o domínio da intuição. O autor, em sua obra Intuition in Science and Mathematics: an Educational Approach identifica e organiza resultados experimentais relacionados à intuição, bem como revela suas implicações no âmbito educacional, desenvolvido para a ciência e difundido em uma ampla variedade de contextos de pesquisa e educação matemática.
Na perspectiva de Fischbein (1987a, 1987b), o raciocínio do aluno sobre um novo assunto parte inicialmente da intuição e, com base em suas percepções, este passa a conjecturar suas ideias, formalizando-as em uma linha de raciocínio que faça sentido para ele. Ainda no que diz respeito à intuição, o autor reforça uma visão de que o termo ‘intuição’ significa, basicamente, “uma avaliação global, sintética, não explicitamente justificada ou predição. Tal cognição global é sentida por um sujeito como auto evidente, auto consistente e duramente questionável” (FISCHBEIN; GAZIT, 1984, p. 2).
A partir do exposto, questiona-se: de que maneira a intuição poderia ser reconhecida e categorizada no âmbito educacional, na área de Matemática, a partir das contribuições do estudioso na área, Efraim Fischbein?
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar a intuição e sua categorização, na perspectiva de Efraim Fischbein, como uma teoria a ser considerada, buscando uma visão mais abrangente em relação aos seus mecanismos e utilizando evidências de pesquisa em suas obras como forma de apoiar e ampliar a concepção de intuição voltada para o campo da Matemática. Deste modo, a partir deste estudo, espera-se que os docentes percebam as nuances dessa manifestação do pensamento em sala de aula, com base em uma análise subjetiva das reações e atitudes dos estudantes diante de problemas propostos.
Os autores que embasam o referencial teórico apontado neste trabalho são Alves (2011, 2016), Alves e Borges Neto (2009, 2011), Poincaré (1899; 1988), Bachelard (1984), Fischbein (1982, 1987a, 1987b, 1993, 1999), Fischbein e Gazit (1984).
A metodologia adotada para este trabalho é a pesquisa bibliográfica, do tipo análise de conteúdo. Para Bardin (2011), a análise de conteúdo consiste em um conjunto de técnicas que examinam informações no intuito de se angariar, via procedimentos sistemáticos e objetivos, uma descrição do conteúdo a ser pesquisado, permitindo a inferência de conhecimentos através da análise de características que permeiam a estrutura de uma mensagem a ser transmitida.
Assim, a pesquisa bibliográfica realizada com o material referenciado, a partir da análise de conteúdo, permite uma exame de ideias que convergem para a reflexão sobre o conceito de intuição e seus contributos para o ensino de Matemática, em que se busca discutir a importância da correta interpretação de sua definição e sua relevância no contexto educacional.
Portanto, as próximas seções trazem uma explanação sobre os diferentes conceitos de intuição na perspectiva de Efraim Fischbein, a intuição no campo da Matemática, as Categorias do Raciocínio Intuitivo, bem como as considerações dos autores.
O CONCEITO DE INTUIÇÃO NA PERSPECTIVA DE FISCHBEIN
Segundo Fischbein (1987b) o conceito de intuição tem longa história. Filósofos, matemáticos, entre outros cientistas e especialistas têm utilizado, ao longo dos anos, uma variedade de significados para o termo “intuição”, como exemplificado no fragmento:
Segundo Descartes (1967) e Spinoza (1967), a intuição é a fonte inicial e a última garantia confiável de certeza. Na visão de Bergson (1954), a intuição é a chave para compreender a essência dos fenômenos da vida, da duração, do movimento. Filósofos da ciência moderna, como Hahn (1956) e Bunge (1962), consideram a intuição uma forma de conhecimento primitiva e não confiável. (FISCHBEIN, 1987b, p. 48. Tradução nossa).
Partindo deste trecho, Fischbein (1987b) aponta que algumas definições propostas são comumente aceitas, sendo a intuição definida como um conhecimento imediato, como uma cognição que é aceita diretamente como evidente a partir de um sentimento de certeza peculiar, sem qualquer imposição de verificação ou prova.
Fischbein (1987a) aponta que, a princípio, a cognição cumpre objetivos idiossincrásicos, sendo esta moldada por restrições comportamentais. O mesmo deve ser dito sobre a intuição, que é uma forma particular de cognição. Do ponto de vista do autor, uma explicação seria que a intuição é geralmente vista como um fenômeno primário que pode ser descrito, mas que não é redutível a componentes mais elementares. “Na verdade, a intuição ainda não encontrou seu lugar definido em psicologia, não porque seja um termo obscuro, mas, ao contrário, porque é implicitamente considerado um termo primitivo e auto evidente” (FISCHBEIN, 1982, p. 9).
Desta forma, espontaneamente, a intuição tem a aparência de uma cognição auto evidente e consistente, como a percepção de uma cor ou a experiência de uma emoção, por exemplo. Com efeito, geralmente, nenhuma tentativa é feita pelos pesquisadores de usar seus achados experimentais para elucidar a estrutura de fenômenos intuitivos (FISCHBEIN, 1987a). De modo antagônico, é a intuição que se utiliza como conceito descritivo e explicativo.
No curso do raciocínio humano, entre tentativas e erros, é necessária a confiança em representações e ideias que surgem, de modo subjetivo, como corretas, auto consistentes e intrinsecamente claras. Assim, Fischbein (1987a) apoia-se na conjectura de que não se pode duvidar de tudo a todo momento, pois isto causaria a estagnação do conhecimento. Portanto, algumas representações e concepções devem ser tomadas como certas e devem aparecer, subjetivamente, como cognições autônomas, coerentes, total e diretamente aceitáveis a fim de manter o processo de raciocínio funcionando de maneira produtiva.
No que concerne ao âmbito educacional e seus aspectos, de acordo com Fischbein (1987a, 1987b) muitos autores, pesquisadores experimentais e teóricos esforçam-se para estabelecer recomendações que evitem erros de base intuitiva na aprendizagem e resolução de problemas, para melhorar suposições e avaliações intuitivas. No entanto, na perspectiva do autor, dificilmente se pode esperar que tais sugestões sejam realmente úteis caso estas não estejam, de fato, baseadas em uma teoria abrangente da intuição. As intuições são apenas aparentemente cognições autônomas e evidentes, em que dessa forma conferem a algumas das ideias do indivíduo a aparência de certeza e validade intrínseca (FISCHBEIN, 1987a). Entretanto, na realidade, tais ideias parecem muito robustas como um efeito de estarem profundamente enraizadas na organização mental básica do indivíduo.
Além disso, é comum que ocorram equívocos acerca da compreensão conceitual do domínio da intuição, onde outros termos são usados em referência à mesma categoria de fenômenos, como é o caso do insight, explicitado por Alves (2012):
De fato, na atividade de investigação do matemático profissional, a manifestação do insight pode ocorrer, em tese, a cada “passo de raciocínio” do mesmo [...]. Todavia, dada sua natureza que envolve uma experiência subjetiva de esforço mental e, nem sempre consciente, [...], a prática mostra que a frequência de sua manifestação é rara (pois, em certos casos, pode estar vinculada a um processo de invenção) e, podendo mesmo, na maioria dos casos, nem ocorrer. (ALVES, 2012, p. 151).
Por vezes, as pessoas usam o termo insight para indicar um rearranjo global repentino de dados no campo cognitivo que permitiria uma nova visão, uma nova interpretação ou solução nas condições dadas, por exemplo. Ou os termos revelação (especialmente em contextos religiosos) e inspiração (em questões artísticas) também são usados, às vezes, como sinônimos de intuição, ou pelo menos com alguns de seus significados. Muitas vezes, “senso comum”, “raciocínio ingênuo”, “interpretação empírica” são usados em referência a formas de conhecimento que também podem ser consideradas como equivalentes ao conhecimento intuitivo (FISCHBEIN, 1987a).
O termo intuição se refere a uma grande variedade de fenômenos cognitivos. Para alguns autores, a intuição significa a fonte fundamental de certos conhecimentos. Para outros, a intuição representa um método particular para apreender a verdade, a essência da realidade. Em um terceiro uso, uma intuição é um tipo especial de cognição caracterizada por auto evidência e imediatismo. Para Fischbein (1987a) o termo está relacionado principalmente a este terceiro significado. Uma intuição é uma cognição caracterizada pelas seguintes propriedades: auto evidência e imediatismo; certeza intrínseca; perseverança; coercividade; status da teoria; extrapolação; globalidade; e implicidade. Assim, o autor aponta que:
O domínio da intuição e o significado diferente e contraditório a que se refere estão relacionados a uma grande variedade de investigações cognitivas. Lembremos alguns deles: Resolução de problemas (iluminação, heurísticas, esquemas antecipatórios etc.); Imagens e modelos (representações intuitivas, modelos intuitivos, meios didáticos intuitivos, pensamento em imagens etc.); crença e níveis de confiança; estágios de desenvolvimento da inteligência (Piaget descreveu pensamento intuitivo como uma fase pré-operacional). (FISCHBEIN, 1987a, p. 5-6, tradução nossa).
Destarte, Fischbein (1987a, 1987b) recorre ao campo da pesquisa em Psicologia Cognitiva, e da Filosofia em busca de estruturar e desenvolver sua teoria e argumentos para obter respostas possivelmente exigidas para problemas destas áreas do saber científico.
No que diz respeito ao campo da Matemática, Fischbein (1987b) afirma ainda que o aprendizado de uma definição ou prova formal não determina absolutamente a maneira pela qual um aluno a entende e usa e, deste modo, “obstáculos à compreensão, equívocos e estratégias de solução inadequadas são, muitas vezes, o efeito de influências intuitivas” (FISCHBEIN, 1987b, p. 49), o que será abordado na seção seguinte.
INTUIÇÃO NO CAMPO DA MATEMÁTICA
Segundo Alves e Borges Neto (2009, p. 31) possivelmente o maior defensor da “intuição como instrumento de descoberta e invenção matemática tenha sido Henri Poincaré (1894-1912)”. As colocações de Poincaré acerca do domínio da intuição e sua importância na compreensão e no fazer matemático, bem como sua relação com a realidade valorizavam-na enquanto faculdade cognitiva, como apontado no excerto:
O principal objetivo da educação matemática é desenvolver certas faculdades da mente, e entre elas a intuição não é a menos preciosa. É por meio disso que o mundo matemático permanece em contato com o mundo real. E mesmo que a matemática pura pudesse prescindir dela, ainda teria de ser utilizada para transpor o abismo que separa o símbolo da realidade. O praticante, portanto, sempre precisará dela, e para um geômetra puro deve haver uma centena de praticantes. (POINCARÉ, 1899, p. 160-161).
Nesse sentido, Poincaré (1899) aponta que a intuição tem seu valor nas descobertas matemáticas, partindo do pressuposto que esta faculdade cognitiva relaciona a matemática com a realidade. Assim, de alguma forma o papel que a intuição efetua na evolução, sistematização e padronização do saber matemático é evidenciado (ALVES; BORGES NETO, 2009). A intuição, segundo Poincaré, prevalece ao relacionar o mundo matemático com o mundo real, pois só ela pode transpor o abismo que separa o símbolo da realidade.
Outro tema amplamente defendido por Poincaré é o papel da intuição na elaboração do pensamento científico, especialmente nas construções matemáticas. É a intuição que une o raciocínio, que ilumina o caminho, orienta os matemáticos e permite que inventem. É a intuição que nos coloca em contato com a realidade, mas ela precisa da lógica para formalizar e complementar as ideias do pensamento intuitivo. Poincaré (1988) afirma que as ideias científicas são concebidas como construções livres do pensamento e nesse espaço de liberdade surge a ideia de criação no trabalho científico, que leva a descobertas, pois para ele, a intuição é necessária em todo trabalho criativo. Bachelard (1984, p. 92) complementa nesse sentido que:
Quem condena demasiado rápido o realismo matemático está seduzido pela magnífica extensão da epistemologia formal, isto é, por uma espécie de funcionamento das noções matemáticas no vazio. Mas se não fizer abstração indevidamente da psicologia do matemático, não tardará a perceber que há na atividade matemática mais do que uma organização formal de esquemas e que toda ideia pura tem a contrapartida de uma aplicação psicológica, de um exemplo que faz as vezes de realidade. E, meditando o trabalho matemático, percebe que ele sempre provém de uma extensão de um conhecimento tomado do real e que, nas próprias matemáticas, a realidade se manifesta em sua função essencial: fazer pensar. (BACHELARD, 1984, p. 92).
Bachelard (1984) acrescenta que a atividade matemática envolve mais do que uma organização formal de esquemas e métodos. Refletindo sobre o trabalho do matemático, o autor evidencia que ele sempre vem da extensão do conhecimento retirado da realidade e que, na própria matemática, a realidade se manifesta como função essencial de fazer pensar. Nesse aspecto, surge o dualismo do subjetivo e do objetivo.
Conforme Fischbein (1987b) em qualquer atividade matemática pode-se identificar três componentes: (i) o aspecto formal, expresso de forma estritamente redutiva, a partir de uma estrutura lógica da matemática: axiomas, definições, teorias, provas; (ii) o aspecto algorítmico, que inclui operações matemáticas padronizadas, fórmulas e estratégias de solução, sendo estes os componentes instrumentais de qualquer atividade matemática; (iii) a dimensão intuitiva, que se refere principalmente à dinâmica da aceitação subjetiva de uma ideia matemática. Por este ponto de vista, Alves e Borges Neto (2011) corroboram que:
Fischbein analisa o complexo e multifacetado raciocínio lógico-matemático. Nunca desconsidera o modo peculiar e diferenciado na Matemática, em relação às outras áreas do saber científico. Analisa também o modo peculiar do surgimento, evolução, abstração e da sistematização das ideias matemáticas. (ALVES E BORGES NETO, 2011, p. 39)
Os autores Alves e Borges Neto (2011) apontam que diversas transformações e quebras de paradigmas com relação à Matemática foram consequência das formas de cognição humana, a partir do progresso da capacidade de abstração, em que a intuição fez parte deste processo.
Fischbein (1987a) mostra que, ao invés da confiabilidade intrínseca oferecida por objetos reais e por operações realizadas na prática, a matemática trata de um tipo de certeza com base formal. Ao invés de objetos concretos, a matemática postula, de maneira formal e sistematizada, a existência de entidades abstratas. De maneira oposta à verificação empírica, esta área do conhecimento usa verificações dedutivas por meio de provas formais. Assim, a evidência comprovada substitui a evidência direta. Em oposição à coerência intrínseca, dada das realidades empíricas, a matemática se esforça para criar conjuntos de frases, cuja coerência e consistência são formalmente estabelecidas. “Com efeito, a intuição revela elementos que o processo de formalização desconsidera ou encobre” (ALVES, 2011, p. 25).
A partir do exposto, na seção seguinte trazemos uma discussão sobre as Categorias do Raciocínio Intuitivo e suas possibilidades de manifestação, com base nas obras de Fischbein.
EFRAIM FISCHBEIN E AS CATEGORIAS DO RACIOCÍNIO INTUITIVO
Fischbein (1999) detalha o significado característico de alguns processos do raciocínio intuitivo na obra intitulada Intuitions and Schemata of Mathematical Reasoning, como sintetizado por Alves (2016, p. 65), em que este autor explana o que pode ser identificado em tais raciocínios:
(i) Cognições auto evidentes: significam que intuições são aceitas sem que o indivíduo manifeste a necessidade de uma checagem/verificação ou prova a posteriori;
(ii) Convicção intrínseca: diz respeito a uma cognição (de natureza privada) intuitiva usualmente associada ao sentimento de certeza, convicção de segurança;
(iii) Sentido coercitivo: que a intuição manifesta um ‘efeito coercitivo’ no sentido de afetar as estratégias de raciocínio do indivíduo e sua seleção de hipóteses e soluções. Isto significa que o indivíduo tende a rejeitar/negar interpretações alternativas de outrem, as quais contrariem suas intuições privadas e momentâneas;
(iv) Caráter de globalidade: por fim, uma característica basilar entre um raciocínio intuitivo e um raciocínio lógico é descrita pelo autor, distinguimos o caráter de globalidade, isto é, intuições são cognições globais em oposição às cognições adquiridas por uma via de sequências inferenciais (do tipo: Se vale... Então...) e lógicas ou analítico-inferencial. (ALVES, 2016, p. 65)
Fischbein (1999) exemplifica tais características com diversos exemplos, apontados a seguir. Inicialmente, observe os dois problemas de aritmética apresentados:
(a) Um litro de suco custa 5 siclos. Quanto custarão 3 litros de suco?
(b) Um litro de suco custa 5 siclos. Quanto vai custar 0,75 litro de suco? Como você chega à resposta? (FISCHBEIN, 1999, p. 16, tradução nossa).
Ao analisar o problema (a), pode-se respondê-lo de forma simples e direta. Se 1 litro de suco custa 5 siclos, então três litros custam 3 vezes 5, ou seja, 15 siclos. Entretanto, para o problema (b) o raciocínio não ocorre de forma direta do mesmo modo que no problema (a). Alguns alunos poderiam responder que seria necessário dividir (5 ÷ 0,75). Outros talvez não respondam. Em todo caso, a resposta correta não é direta, necessitando uma mobilização maior do pensamento antes de enunciar uma reposta. Contudo, ambos os problemas têm a mesma estrutura matemática: o preço por unidade e o número de unidades. Ou seja, nos dois problemas a operação a ser realizada seria a multiplicação (o preço por unidade × o número de unidades). Não obstante, no problema (a), a resposta correta é dada sem hesitação, diretamente como uma solução óbvia. No problema (b) a resposta correta não é direta, ela precisa de alguma reflexão lógica (FISCHBEIN, 1999).
Um outro exemplo seria, a partir da sentença: “A soma dos ângulos em um triângulo é 180º”. Conforme o autor, a sentença não parece intuitivamente verdadeira, visto que há uma infinidade de triângulos com lados de comprimentos diferentes. Assim, o autor afirma que a sentença descrita não é uma intuição cognitiva, por exemplo, pois “tem que ser provada, logicamente, indiretamente, recorrendo a uma série de etapas sucessivas. Intuitivamente, 180º não é mais aceitável do que, por exemplo, 160º” (FISCHBEIN, 1999, p. 18).
A partir do exposto, pode-se inferir que no campo da Matemática existem afirmações que aparentemente são aceitáveis de forma direta, como auto evidentes, enquanto para outras asserções necessita-se de uma prova lógica ou formal para aceitá-las como verdadeiras. Assim, o autor generaliza que as cognições intelectuais se apresentam de duas maneiras:
(i) Uma categoria de cognições que parecem diretamente aceitáveis como evidentes por si mesmas. Estas são cognições intuitivas.
(ii) Uma categoria de cognições que são aceitas indiretamente com base em uma certa prova lógica e explícita. Estas são cognições lógicas ou baseadas na lógica. (FISCHBEIN, 1999, p. 18, tradução nossa).
Além disso, Fischbein (1999) faz uma diferenciação entre intuição e percepção, em que aponta que nem toda cognição direta é uma intuição. As percepções são captadas e tem relação direta com os sentidos, porém não são intuições. Intuições são cognições intelectuais, que exprimem uma concepção geral (uma noção, um princípio, uma interpretação, uma previsão, uma solução), ao passo que as percepções são cognições sensoriais (ver uma cadeira, um triângulo, entre outros).
Com relação à classificação da intuição em categorias, Fischbein (1987a) considera a relação entre intuições e soluções de problemas, dividindo-as no que ele classifica como Categorias do Raciocínio Intuitivo, sendo identificadas por: intuições afirmativas, intuições conjecturais, intuições antecipatórias . conclusivas, descritas abaixo na perspectiva do autor.
A primeira categoria corresponde às intuições afirmativas. Estas fazem menção às representações, explicações ou interpretações diretamente aceitas pelo ser humano como natural, evidente, intrinsecamente significativo, como por exemplo: se alguém indagar a um estudante o que é uma linha reta, muito provavelmente ele tentará desenhar uma linha reta ou ele mostrará o exemplo de uma linha bem esticada.
Já a segunda categoria diz respeito às intuições conjecturais: neste tipo de intuição existe uma perspectiva explícita da solução, no entanto esta não está envolvida claramente em um esforço para a sua resolução, ou seja, são suposições associadas ao sentimento de certeza. Representam declarações sobre eventos futuros ou sobre o curso de certo evento, sendo uma visão preliminar, global que antecede uma solução analítica e completamente desenvolvida de um problema.
Com relação às intuições antecipatórias e conclusivas, estas representam a terceira e quarta categorias, enquanto as afirmativas e conjecturais correspondem às duas primeiras. Estas intuições são categorizadas como “intuições de resolução de problemas” (FISCHBEIN, 1987a, 1987b)
Com relação às intuições antecipatórias, o autor afirma que uma esta categoria de intuição é uma visão global preliminar de uma solução para um problema, que precede a solução analítica totalmente desenvolvida. Assim, a partir da compreensão total de uma forma possível de resolver um problema, esta intuição influencia e direciona as etapas de busca e construção da solução, onde há uma aplicação concreta de estratégias que auxiliam de modo efetivo a identificação de uma resposta. Além disso, pode-se assumir que as intuições antecipatórias são inspiradas ou estimuladas por intuições afirmativas pré-existentes, como ilustrado no exemplo:
Se alguém for perguntado: "Quanto é 3⁄4 de 120 cm?" não se olha, geralmente, para a solução por multiplicação, 120 × 3⁄4, mas tende-se naturalmente a determinar primeiro um quarto (120 ÷ 4) e depois multiplica-se o resultado por 3. Tende-se intuitivamente a evitar multiplicações nas quais o operador não é um todo número. (FISCHBEIN, 1987a, p. 63).
No que tange às intuições conclusivas, estas sintetizam em uma visão globalizada e estruturada as ideias básicas da solução de um problema, previamente elaboradas, dependendo, assim, dos outros três tipos de intuição citadas anteriormente (FISCHBEIN, 1987a).
Fischbein (1987a, 1987b, 1999) em seus estudos analisa cuidadosamente o processo de ensino e aprendizagem ao afirmar que, com frequência, o aluno enfrenta dificuldades em sua aprendizagem, compreensão e resolução de problemas em níveis mais avançados, pois suas técnicas e estratégias de raciocínio são conduzidas por modelos implícitos, por vezes inadequados. Desta forma, o professor deve buscar identificar tais modelos, fornecendo suporte ao aluno na correção de seus modelos mentais, para que seu raciocínio seja construído de maneira apropriada.
Alves e Borges Neto (2011) alertam para o fato de que existem professores que se encontram em uma realidade diferente (paralela à) do estudante, em que suas inclinações, propensões e hábitos formais fornecem um saber matemático de caráter universal, suprimindo a dimensão subjetiva inerente ao cotidiano de seus aprendizes, sendo um formato de ensino que tem provocado, ao longo dos anos, sérios entraves à sua evolução no campo da Matemática. Estes autores reforçam sobre a importância de levar em consideração os processos intuitivos no âmbito instrucional, refletindo sobre suas implicações pedagógicas (ALVES; BORGES NETO, 2009).
As obras de Fischbein (1987a, 1987b, 1999) instigam o docente, por exemplo a questionar-se sobre de que modo ele poderia, por exemplo, identificar modelos mentais inadequados oriundos de base intuitiva, a partir de um conhecimento sobre as formas de manifestação do raciocínio intuitivo, adequando seus modelos de transmissão didática com base nas categorias do raciocínio intuitivo, muito bem explicitadas pelo autor.
Portanto, uma das tarefa fundamentais da educação matemática é desenvolver nos alunos a capacidade de distinguir entre sentimentos intuitivos, crenças intuitivas e convicções formalmente suportadas. Em matemática, a prova formal é decisiva e sempre se deve recorrer a ela, porque as intuições podem ser enganosas. Isto é uma ideia que o aluno deve aceitar teoricamente, mas que também deve aprender a praticar de forma consistente em seu raciocínio matemático.
Por outro lado, seria um erro grave minar a confiança dos alunos em suas intuições. Para evitar isso, é importante desenvolver nos alunos a convicção de que: (a) também se possui intuições corretas e úteis e (b) podemos nos tornar capazes de controlar nossas intuições assimilando estruturas formais adequadas (FISCHBEIN, 1987a).
Certamente, o aluno deve perceber a diferença fundamental entre uma prova formal em matemática e uma confirmação experimental. Uma prova formal garante a validade universal de uma afirmação, enquanto a evidência empírica adicional apenas aumenta a probabilidade da respectiva afirmação. Como enfatiza o autor, a distinção não é intuitivamente evidente e cuidados especiais devem ser tomados no ensino de Matemática, a fim de desenvolver nos alunos a compreensão dessa ideia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intuição, no âmbito educacional, não deve ser evitada ou desencorajada. Muito pelo contrário: o ponto chave é desenvolver interpretações novas, adequadas e intuitivas, tanto quanto possível, juntamente com o desenvolvimento das estruturas formais de raciocínio lógico. Isso pode ser feito especialmente por meio de atividades práticas apropriadas e não por meio tão somente de meras explicações verbais. As intuições são por sua função e sua natureza, orientadas para o comportamento e para a prática.
Neste caso, a intuição no âmbito da Matemática configura-se em um campo a ser explorado pelo professor, fornecendo informações a partir de uma análise atitudinal do estudante, de forma subjetiva, onde é possível identificar manifestações das categorias do raciocínio intuitivo na resolução de problemas. Assim, recomenda-se ao docente de Matemática um olhar voltado para a intuição, levando em consideração suas potencialidades na compreensão do raciocínio matemático, interpretando-a em sua prática pedagógica e buscando identificar os modelos mentais construídos pelos estudantes em sala de aula e, se for o caso, corrigi-los, empenhando-se para uma melhora do cenário que diz respeito à aprendizagem da Matemática.
As obras de Efraim Fischbein retratam em detalhes o comportamento intuitivo do aluno, distinguindo os conceitos de intuição, percepção e insight, além de mostrar sua relevância para o campo educacional. Um professor pesquisador, diante de tais noções sobre a intuição, tem a possibilidade de compreender com mais clareza as dificuldades de aprendizagem que permeiam o campo da Matemática, podendo predizê-las e, eventualmente, superá-las. São poucos os trabalhos e investigações na área, sendo um tema a explorar, dado o potencial que a intuição tem para fornecer informações subjetivas sobre o desenvolvimento do aluno no campo cognitivo.
Por fim, recomenda-se este estudo para professores de Matemática atuantes em todos os níveis de ensino ou pesquisadores no campo da psicologia cognitiva, como forma de compreender o fenômeno intuitivo, expresso no centro do processo didático, buscando realizar uma transmissão didática a partir de uma mediação que leve em consideração a intuição como modelo cognitivo, capaz de revelar muito sobre os educandos e alavancar seu desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
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Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/33 (pdf)