Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
CONTINUIDADE CONCRETA: COMPLICATIO-EXPLICATIO-IMPLICATIO
Silvio Ferraz; William Teixeira
Silvio Ferraz; William Teixeira
CONTINUIDADE CONCRETA: COMPLICATIO-EXPLICATIO-IMPLICATIO
Concrete Continuity: complicatio-explicatio-implicatio
Revista Orfeu, vol. 4, núm. 2, 2019
Universidade do Estado de Santa Catarina
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Este artigo expõe a articulação entre três conceitos filosóficos como operadores da criação musical, tanto no âmbito da composição musical quanto da performance. Trata-se de uma retomada que o filósofo Gilles Deleuze faz dos conceitos de complicatio, explicatio e implicatio a partir de Giordano Bruno e outros filósofos que o antecederam. Partindo desse referencial, este trabalho apresenta de que maneira tais conceitos podem elucidar a questão da continuidade no discurso musical produzido recentemente, com ênfase no repertório brasileiro dos últimos dez anos. Dessa maneira, objetiva-se não apenas a condução de uma discussão conceitual, mas, principalmente, o vislumbre de soluções criativas para a música atual, contando, para tanto, com experiências dos próprios autores como exemplos de sua aplicabilidade.

Palavras-chave: Continuidade,Música contemporânea,Composição musical,Performance musical.

Abstract: This paper presents the articulation between three philosophical concepts as operators of musical creation in the scope of both musical composition and performance. This is a retrieval that philosopher Gilles Deleuze makes after the concepts of complicatio, explicatio and implicatio from Giordano Bruno and other philosophers that preceded him. From this framework, this paper presents how these concepts can elucidate the issue of continuity in the recently produced musical discourse, with emphasis on the Brazilian repertoire of the last ten years. Thus, the objective is not only to conduct a conceptual discussion, but mainly the glimpse of creative solutions for Contemporary music, relying on the authors’ own experiences as examples of their applicability.

Keywords: Continuity, Contemporary Music, Musical Composition, Musical Performance.

Carátula del artículo

Artigos

CONTINUIDADE CONCRETA: COMPLICATIO-EXPLICATIO-IMPLICATIO

Concrete Continuity: complicatio-explicatio-implicatio

Silvio Ferraz
Universidade de São Paulo (USP), Brasil
William Teixeira
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 4, núm. 2, 2019

Recepção: 08 Setembro 2019

Aprovação: 10 Dezembro 2019


Notas iniciais

No capítulo “O paralelismo e a imanência”, de seu Espinosa e o problema da expressão, Gilles Deleuze traz uma nota interessante sobre dois elementos que pretendemos aqui converter em operadores criativos (ora composicionais, ora interpretativos). Ali, na nota 12, cita Maurice de Gandillac para falar de dois conceitos, em um caminho cheio de curvas que nasceria em Boécio, passaria por comentadores da Escola de Chartres no século XII e chegaria a Nicolaus de Cusa e Giordano Bruno. Tais operadores nascem, assim, da distinção entre a complicatio e a explicatio, conforme Nicolas de Cusa, no Livro II-5, de Douta Ignorância, e os modos complicativo e explicativo, de Giordano Bruno, em Causa, Princípio e Unidade. De um lado, o contraído do todo e, de outro, seu desdobramento.3 Aquele que gera e aquele que é gerado.4 Tomamos aqui esses dois termos de um modo mais simples e direto, e, se citamos sua origem, essa pequena trajetória de sua presença, é apenas como lastro que permita ligar aspectos que possam parecer técnico-musicais a um modo de pensamento mais amplo e que liga Deus, o homem e a existência; o finito e o infinito; o ser e o devir. E a relação de substância que existiria entre estes pontos.

Junto aos conceitos de complicatio e explicatio, acrescentaremos um terceiro conceito trabalhado por Giordano Bruno em De triplici minimo et mensura e resgatado por Deleuze em A Dobra: a implicatio.5 Do ponto de vista da composição musical, o que propomos pensar é a questão da continuidade, de pensar o tempo musical não como algo relativo a um relógio, a uma medida de passagem ou a um oráculo de previsibilidades. Propomos pensar o tempo enquanto questão de continuidade. E, mesmo aqui, cabe uma observação: não se trata de continuidade no âmbito das ideias abstratas, mas de continuidade imanente, traduzida em um plano concreto onde se dê como continuidade de fato. A continuidade entre um elemento e outro simplesmente porque alguma coisa passou entre um e outro, de modo a não haver interrupção de fluxo de energia. Como se um fluxo de energia atravessasse a escuta de uma obra por um momento longo de imersão. Lembrando que entendemos aqui por fluxo de energia algo que se manifesta na matéria e na substância sonora, mas que não é limitado a estas formas e que pode, por sua não corporeidade, atravessar ou ganhar corpos distintos.6 É exatamente esse conceito de fluxo de energia que articula o pensamento composicional à performance, outro ponto de vista presente neste artigo, na medida em que a performance experimenta e propõe uma acepção de tempo que sintetiza as arestas entre passado e futuro,7 ora comprimindo, ora dilatando as distâncias por meio das operações aqui discutidas. Finalmente, a performance de um discurso concebido por outrem encontra no fluxo de energia um conceito capaz de mediar a relação entre compositor e intérprete.8

Mesmo diante da complexidade na definição de energia, é importante delimitar em que campo a estamos compreendendo, ou seja, nos perguntar de que energia falamos quando falamos de música. A noção de energia tem sua presença marcante na filosofia de Aristóteles, quando este distingue uma energia potencial de uma energia dinâmica. O conceito se estabelece de fato através da noção de conservação, que estará nas proposições de Descartes, Leibniz, Carnot e Kant até os dias de hoje. Mas do que estamos falando quando falamos de energia? Como observam Poincaré e Feynman, “é impossível encontrarmos uma definição geral” ou “não temos nenhum conhecimento do que é realmente a energia” (POINCARÉ e FEYNMAN apud. HERVÉ; VENTURINE; ALBE, 2014, p.123). Mas interessa-nos a noção de potencial, de que uma energia é fonte de movimento e de que implica transformação (seja transformação da própria energia, como na transformação de uma energia mecânica em calor, seja em uma energia modelando uma forma). É no sentido de algo que passa entre os corpos e mesmo os define e delimita, que compreendemos aqui a noção de energia musical, energia de performance, ligando esta energia ao tempo, à sequência de nascimento de objetos dentro de uma sequência musical e, neste sentido, ligar esta noção à de movimento vibratório. Compreenderemos então uma energia como a manifestação de um movimento pendular, podendo ela estar apresentada em um fluxo que tenda a se conservar, passando de um ponto a outro, ligando os momentos e objetos da sequência musical. No caso da energia musical, de modo geral, propomos aqui que a energia está relacionada ao fluxo da dinâmica temporal, este ligado tanto às estruturas rítmicas como aos campos de ressonância harmônico, à sonoridade ou à gestualidade. São nestes domínios pulsantes, rítmico, harmônico, textural e gestual que pensaremos a noção de continuidade imanente, em contraponto à unidade formal transcendente ou mesmo abstrata.

Explicatio

Quando um som irrompe e deixa seu rastro de ressonância, ele pode ser explicado – desdobrado –, passando de um instrumento a outro, de uma forma a outra.



Fig. 1

Um piano que primeiro ressoa e se desdobra em uma nota longa e depois se desdobra em uma linha melódica.

Silvio Ferraz, Dona Letícia

Dois momentos de explicatio, os ataques de piano se explicam, se desdobram e estabelecem uma continuidade direta, simples e de fácil escuta; tão fácil que o ouvinte leva alguns milissegundos para se dar conta de que outro instrumento apareceu, de que o som não vem mais da mesma fonte. Isso deve incluir, necessariamente, o performer-ouvinte, o agente musical que, por meio da escuta, articula suas ações musicais, conectando seu gesto a uma injeção sonoro-energética à qual explica.



Fig. 2

Dois gongos tailandeses que transitam para instrumento de cordas, agora com uma variação de seu colorido através do uso de frequências que geram batimentos simples de segunda (dó-dó# ou fá-mi)

Silvio Ferraz, Dona Letícia

A explicatio aqui se dá na forma de estereotopia,9 um simples eco que pode se manter apenas como prolongamento simples, ou ganhar os contornos de uma melodia, ou ainda de componentes espectrais de um som que se deformam por acréscimo de batimentos. Ouvir dois sons se relacionarem, não enquanto signos que representam uma melodia, uma linha melódica, uma harmonia, mas ouvir a continuidade entre dois sons através dos batimentos e das ondas estacionárias que se estabelecem no fluxo de energia que modula os dois corpos sonoros em um só e que se manifesta por um leve trêmulo ou ondulação.10

Importante observar que na relação de explicatio, de desdobramento, nenhum som pede signo algum de identificação, nenhuma analogia formal é chamada a agir. O que se dá é a passagem de energia de um corpo a outro, em que o próprio desdobramento é que estabelece o vínculo de continuidade sonora e, por conseguinte, musical.

Takemitsu fala desta mesma continuidade em Confronting Silence,11 de uma continuidade que existiria inclusive no silêncio do Gagaku, entre uma ilha de sons e outra, que estabeleceria não uma continuidade de ideias, mas de um fluxo sonoro (sound stream), vibrante, que respira como no Sho (instrumento do Gagaku), cujo som se obtém inalando e exalando, que resulta em uma continuidade sem quebra (TAKEMITSU, 1995, p.7).

É desse jogo de desdobramentos explicativos que consiste, por exemplo, a interação entre as linhas dos dois trompetes de Transmissão oculta de pensamento, escrita por Tadeu Taffarello12 em 2000, que, a partir da proliferação cíclica de cinco personagens gestuais, tece uma relação de continuidade interrompida momento a momento por pausas com fermata, mas que obtém permanência justamente por operar novos tipos de explicação ao mesmo material. Na Fig. 3, um personagem-liso explica o personagem-staccati, de maneira a operar a continuidade ao invés de um esperado corte; dessa linha se desdobra um personagem replicado no trompete 1 em uma espécie de cânone permutado, o que permite uma reiteração do personagem-staccati no trompete como injetor de energia, seguido pelo personagem-estriado, que, mais uma vez, é desdobrado em um personagem com os mesmos atributos no trompete 1, amplificando a textura de glissando rugoso descendente.



Fig. 3

Transmissão oculta de pensamento, p. 1, s. 2.

Tadeu Taffarello

É a partir dessas combinações de explicações que o discurso se desenvolve, constituindo sua continuidade. Essa escuta que não hierarquiza voz principal de contracanto (Hauptstimme de Nebenstimme) é uma premissa para que a performance seja capaz de concretizar os pontos de conexão estabelecidos pela composição, constituindo camadas de personagens ao invés de uma relação canto-acompanhamento, o que, no entanto, depende intrinsecamente da resposta-escuta dos performers, dada a abertura inerente a esse tipo de escrita.13



Fig. 4

Transmissão oculta de pensamento, p.2, s. 1. Exemplo de reconfiguração dos operadores explicativos que permite que, ainda que com os mesmos materiais dos personagens-gestuais anteriormente apresentados, sejam produzidas outras resultantes texturais.

Tadeu Taffarello

A explicatio é mais fácil e didaticamente compreendida nos exemplos até aqui oferecidos por serem esses excertos constituídos por relações sonoras da ordem curto-longo bastante notáveis. Entretanto, essa operação também age em níveis microestruturais, operando contrapontos complexos onde a relação entre linhas, vozes ou partes se dá de maneira mais fragmentada e intrincada. Esse é o caso da peça Kranke Zeiten, escrita por Martin Herraiz14 em 2019, que explora, dentre outros recursos, uma forte aplicação do conceito estudado pelo compositor de “dissonância rítmica”,15 através do amplo uso de quiálteras, o que, ainda que acontecendo em um tempo metronomicamente guiado e metrificado, oculta uma sensação mais clara de pulso, demandando algum outro tipo de operador para a continuidade. Na Fig. 5, a relação entre piano (por vezes entre vozes do próprio piano) e violoncelo é operada exatamente por essas microexplicações que desdobram pequenos elementos com maior duração, o que é suficiente para aferir continuidade local até a próxima injeção de energia.16 No compasso 38, um ataque uníssimo de ré bemol grave em ambos, piano e violoncelo, já nasce desdobrado em um dó, tendo esse bicorde sustentado enquanto pequenos fragmentos são sobrepostos. À semelhança do exemplo acima dado com os gongos (Fig. 2), a partir do compasso 39, pequenas explicações em intervalos de semitom desdobram-se em uma textura de cluster, operada, primeiramente, através da explicação que a mão direita do piano e o violoncelo fazem do ataque staccato da mão esquerda e que, em seguida, se desdobra em um golpe de getato do violoncelo, que emerge da linha anteriormente desdobrada. Essas micropolifonias se encontram novamente no compasso 40, onde a mão esquerda do piano se encontra com o mesmo Mi tocado pelo violoncelo, trazendo uma regularidade transiente, pronta a se dissolver logo em seguida. Essas relações não apenas consistem em uma descrição analítica, mas têm em seu conhecimento uma condição sine qua non para que ambos os instrumentistas possam sequer tocar juntos, já que a complexidade rítmica criada pelo grande número de camadas polirrítmicas e de dissonâncias rítmicas sobrepostas faz com que o encaixe das partes de violoncelo e piano seja de muito difícil obtenção. Desse modo, a operação da explicação pelos performers é não apenas o grande desafio da peça, como também a grande responsabilidade dos músicos ao interpretá-la.



Fig. 5

cc. 38-40

Martin Herraiz, Kranke Zeiten

Complicatio

Mas a continuidade não se dá apenas na explicatio. É neste ponto que a relação explicatio-complicatio-implicatio interessa aqui neste artigo. Se na explicatio temos uma passagem em que um fixo se mantém entre dois estados, entre duas paisagens ou mesmo objetos sonoros, a complicatio seria aquele ponto em que se daria o choque entre dois fluxos distintos, a mudança brusca de direção e amplitude de um fluxo de energia: como em um corte, por exemplo. Em outras ocasiões, foi dado como exemplo o grande corte que se dá em Atmosphères, de Ligeti.17, quando os flautins atingem o extremo agudo da tessitura da orquestra e são interrompidos por um estampido no extremo grave dos contrabaixos.



Fig. 6

Letra “G” de Atmosphères, de Ligeti: os flautins em ffff cortados por um também muito forte ataque de cluster no grave dos contrabaixos.

Ligeti

Em um outro exemplo, uma linha aparentemente contínua toma outra direção, como se a linha parada na nota longa do clarinete-violoncelo-violino sofresse o impacto de uma forte turbulência externa e fizesse com que mudasse de direção.



Fig. 7

Trecho de Window into the Pond, de Silvio Ferraz, com a linha parada de clarinete-violoncelo-violino que repentinamente muda de direção e se torna extremamente movida.

Silvio Ferraz

A noção de complicatio serve aqui para pensarmos o que se dá na passagem. De fato, quando se estava falando de explicatio, estava também se tratando do que se dá na passagem. Se a explicatio é o desdobramento, onde o fluxo é contínuo e compartilha um sentido, uma trajetória comum entre dois momentos, na complicatio a questão é bem diferente, e é como se fosse estabelecido um abismo separando dois momentos. Um abismo, no entanto, em que não necessariamente o fluxo sonoro foi interrompido, nem o fluxo de energia musical. Não estamos falando apenas de fluxo de energia sonora, como trabalhado em um estudo-referência aos compositores espectrais franceses, como Auditory Scene Analysis, de Bregman. O fluxo não é apenas sonoro, mas também musical, e pode estar presente, por exemplo, em uma pulsação aludida, como realizado no exemplo abaixo (Fig. 8).

O que se passa então neste ponto em que o fluxo muda de direção, muda seu sentido? É aqui que se torna importante a presença do trabalho composicional sobre operadores. Operadores que podem ser um simples filtro, podem ser a conversão de uma estrutura audível em um tempo aludido ou em uma estrutura de ressonância também apenas aludida, na relação de flutuação entre dois sons que se sobrepõem, na relação de corte ou na de nascimento de universos paralelos. Este pensamento “alagmático”, que Gilbert Simondon propõe como uma teoria da operação, tem por prioritário não apenas o material composicional formado, como harmonias, estruturas melódicas, caracterização de texturas, estruturas rítmicas, mas também e sobretudo o modo de passagem e manutenção do fluxo de energia ao se passar de um complexo sonoro a outro. O outro aspecto que a ideia de complicatio nos permite é de ter em mente que o corte, a mudança de sentido, não é necessariamente a interrupção do fluxo de energia musical, seja em uma relação explicada, seja em uma relação complicada.



Fig. 8

Passagem final em De um tempo em deserto, de Silvio Ferraz, onde o tempo subdividido dos sopros e violoncelo é apenas aludido em uma percussão realizada por fragmentos articulados sob um mesmo pulso mecânico.

Silvio Ferraz



Fig. 8

Passagem final em De um tempo em deserto, de Silvio Ferraz, onde o tempo subdividido dos sopros e violoncelo é apenas aludido em uma percussão realizada por fragmentos articulados sob um mesmo pulso mecânico.

Silvio Ferraz

Com a ideia de alagmática, Simondon põe em jogo a importância do pensamento analógico distinto ao pautado pela identificação de elementos e material a partir de semelhanças ou simbologias. Existiria um pensamento da identificação de forma e substância, ou um pensamento das relações simbólicas, mas antes atravessado pelo que chama de analogia, a presença de operadores comuns. Existiria um operador comum entre dois momentos musicais, entre dois fluxos sonoro-musicais, o operador podendo ser a manutenção de uma frequência de pressão ou de suas componentes espectrais.18

A relação que nasce no embate entre dois fluxos sonoros é sempre potencial. A explicatio deste momento é aquele ponto em que o compositor dá a resposta, distinguindo-se de um momento de maior espessura, pressão ou densidade temporal vertical,19 em que cabe ao ouvinte realizar a passagem, compreender por onde o fluxo se restabelece, e que estaria na complicatio. A complicatio sendo tal qual sua definição em Cusa e Bruno, o ponto de contração, uma espécie de ponto de origem talvez caótico, em que as conexões potenciais permanecem como tal sem que o compositor diga qual a conexão privilegiada, como exemplificado acima no piano que ataca e tem uma nota privilegiada prolongada por um clarinete.

Em uma peça como a Partita 1, de 2010, é exatamente da justaposição entre explicações e complicações que o discurso adquire sua continuidade, cabendo ao performer duas grandes categorias de desafios, respectivamente: nas explicações, uma resistência física e musical de se manter a energia em um fluxo absolutamente contínuo, que não cessa de se desdobrar; nas complicações, entretanto, há a necessidade da entrada imediata em um estado afetivo totalmente outro, já que nada fora preparado ou gradualmente transitado ou transformado pelo compositor. O que há é o corte, a quebra de uma linearidade pretensamente narrativa. O que continua é apenas o ato, ora purificando-se, ora sujando-se das aparas de sons e gestos anteriores.



Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz



Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz



Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz



Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz

Implicatio

Observamos assim que, no ponto de inflexão da complicatio, mais operadores são chamados a agir, já que não há um ponto privilegiado e uma operação proposta pelo compositor. Nesse sentido é que a relacionamos com a ideia de um aumento da intensidade do tempo vertical. O tempo vertical seria o tempo nascido da sequência de inflexões e de suas intensidades. Importante observar que saímos de um espaço medido simples e que entramos em uma outra estrutura, que atravessa a escuta de uma música – uma escuta que aparentemente pode ser conduzida pelo compositor. Uma estrutura móvel, já que não mensurável, em que se alternam pontos de inflexão, cada qual de intensidade distinta. Chegamos, assim, ao tempo heterogêneo tal qual Bergson afirma em Essai sur les données immédiates de la conscience.20 Talvez aqui caiba mais uma imagem vinda da filosofia, a de diagrama, o diagrama como sendo a imagem mutante, metaestável, da estrutura; uma estrutura que a todo tempo pode mudar de direção e pode conectar pontos distintos, sem privilégios de longa permanência. Neste sentido, complicatio e explicatio entram em uma mesma escala, uma sendo o ponto mais intrincado da outra, mas lembrando sempre que, se na segunda a conexão privilegia um aspecto qualquer entre os dois momentos, na primeira não há privilégio, e qualquer elemento pode se tornar o ponto de conexão, a linha por onde passa a energia entre um ponto e outro.

Mas é importante observar que o ponto de conexão não é qualquer um. Aqui entra o trabalho do compositor. Nem sempre determinar qual o ponto de ligação, nem sempre mergulhar em uma explicação infindável que torne a escuta didaticamente conduzida como um exercício de oratória. Mas ter sempre em mente que os pontos, as linhas, os modos de ligação são implícitos; eles sempre trazem algo de um momento e de outro, determinando um importante elemento composicional, ou mesmo de performance musical; há sempre um elemento implicado. Uma linha que nasce do desdobramento entre os dois momentos, uma linha que encontra ressonância mesmo que às avessas, como no caso do corte em Atmosphères. Há sempre um operador analógico, como observa Simondon. No corte entre o agudo e o grave, nasce o vazio, nasce a noção de profundidade, de distância, que estabelece um parâmetro de relação entre um ponto e outro. No corte em algo que estava parado e de súbito se põe em movimento, é o movimento que toma o lugar de parâmetro de relação. É neste sentido que, em uma cena de performance ao vivo, a visão pode ser chamada a conectar e dar continuidade a um fluxo sonoro ineficaz. Interrompido o movimento, a presença vibrátil do som, os sentidos continuam a buscar o fluxo de energia, a persegui-lo nem que seja no gestual do músico, nas cores do palco, no brilho dos instrumentos, destruindo toda possibilidade acusmática, que depende assim de fatores importantes da continuidade da presença vibrátil do som.

Um dos modos de implicação é aquele da réplica.21 Mas o que diz a réplica? O que uma réplica liga? Se de um ponto de vista da escuta intelectual promovida pelo estruturalismo musical do final do século XIX até meados do século XX, uma réplica, uma repetição, liga dois momentos pela identificação de elementos, sendo esta identificação eleita de modo didático (mesmo que transitório) como foco privilegiado de escuta. Ver a réplica de outro modo talvez tenha uma relevância composicional outra do que aquela que estava fincada em princípios de reconhecimento e de seleção do bom ouvinte-reconhecedor-de-formas. Quando Sciarrino faz a réplica de pequenas frases em seu Il cerchio tagliato dei suoni, não se trata de réplicas que visem uma construção formal, da retomada enquanto material de memória para o ouvinte, mas de simplesmente estabelecer uma permanência e fazer manifestar espaço e tempo.



Fig. 10

Dois momentos de Il cerchio tagliato dei suoni, de Salvatore Sciarrino, distanciados de aproximadamente dois minutos. O primeiro com o primeiro gesto replicado e que constitui o primeiro espaço sonoro da peça, e o segundo já com a presença de dois novos elementos, que foram sendo lentamente inseridos e muito lentamente abandonados.

Salvatore Sciarrino



Fig. 10

Dois momentos de Il cerchio tagliato dei suoni, de Salvatore Sciarrino, distanciados de aproximadamente dois minutos. O primeiro com o primeiro gesto replicado e que constitui o primeiro espaço sonoro da peça, e o segundo já com a presença de dois novos elementos, que foram sendo lentamente inseridos e muito lentamente abandonados.

Salvatore Sciarrino

Em Il cerchio, Sciarrino coloca o público imerso em sons que são retomados criando realmente uma dimensão espacial feita de sons. As quatro flautas estão cada uma em um ponto cardinal, a uma distância de aproximadamente 15 metros e são uma o eco da outra, com estes ecos se adensando ou se rarefazendo. Um mesmo e curto gesto sonoro que é retomado por dois minutos e lentamente vai sendo somado a outros, que também permanecem por longo tempo. São gestos simples e quase insignificantes, que lançam o foco da escuta para o espaço, para o movimento do som que migra entre os quatro pontos cardeais da sala. As réplicas do gesto não se põem a conectar momentos distintos, mas a desenhar um espaço-tempo específico que ora se adensa, ora se rarefaz, dado o atributo fragmentado e transiente desse gesto.

De certo modo, toda conexão musical tem um elemento comum implicado: o som. A própria estrutura, como aquelas definidas por frequências periódicas, estabelece uma continuidade por implicação. Está implicado em uma nota musical ser seguida por outra que ou lhe é mais aguda, mais grave ou a mesma, e esta implicação privilegia um tipo de escuta. Talvez aqui caiba uma observação na mudança de paradigma operada pela música concreta nos anos 1950 e na transposição deste paradigma por um compositor como Helmut Lachenmann, no final dos anos 1960, especificamente na composição do que denominou “música concreta instrumental”,22 como em sua peça Pression, para violoncelo solo, de 1969. Esta observação diz respeito à sobreposição de dois modos distintos de escuta de continuidade sonoro-musical.23 No caso da música concreta instrumental, a escuta de fluxo de objetos sonoros, conduzindo transformações tipológicas (RIBEIRO; FERRAZ, 2017), por vezes se torna instável pela presença de outra que lhe é paralela, de objetos musicais relacionáveis às alturas (acordes, figurações melódicas, estruturas rítmicas). Neste caso, a continuidade implicada no próprio som que define uma nota musical não tem a mesma implicação em um ruído branco ondulado que lentamente se torne mais granulado. Surgem duas camadas de implicação, sendo que a ruptura temporal entre um momento e outro pode fundar pontos de interrupção na passagem de fluxo de energia própria da continuidade.

Acreditamos ser importante um pequeno parêntese para pensarmos o que entendemos por tempo, especificamente tempo musical, ou melhor: qual o problema do tempo na música? Bergson, em seu curso Histoire de l’idée de temps, no Collège de France, no inverno 1902-1903, toma como ponto importante para o pensamento do tempo o paradoxo de Zenon, relacionando o movimento à imobilidade. Para Zenon, entre duas posições imóveis de uma flecha, haveria sempre um ponto intermediário, também imóvel. O que nos interessa aqui é o ponto a que chega Bergson, após diversas aulas, a afirmar que, se a filosofia trabalhou por tanto tempo a noção de unidade no intelecto, seria o momento de se pensar a continuidade no espírito.24 Se a unidade entre um ponto e outro da flecha e o movimento que dela se infere nascem obrigatoriamente de um logos que liga os dois pontos e dá movimento à flecha, haveria um outro modo de pensar tal movimento e, por conseguinte, o tempo. O tempo enquanto jogo entre contínuo e descontínuo, entre fluxo e interrupção, entre micro e macro. O problema do paradoxo de Zenon é que haveria sempre o imóvel no que julgamos movimento, sendo o movimento algo que devemos construir. Estaríamos, assim, sempre imersos em um tempo que se subdivide infinitesimalmente, como uma projeção falha da eternidade, ideia absoluta da qual, de Sócrates a Plotino, o tempo e o espaço são desdobramentos. Bergson busca ir além desta relação em que o movimento estaria sendo sempre pensado a partir do imóvel. Vem daí o conceito bergsoniano de duração, pois, para Bergson, a questão repousa no fato de que a duração não é representável por pontos interligados, mesmo que pelos infinitos pontos entre um momento e outro da flecha, pois, se ela é movimento, não seria representável pelo imóvel e, se é tempo, não seria representada pelo espaço. Bergson pensa então na duração enquanto um movimento que se daria na sucessão de estados de consciência; sucessão de estados heterogêneos, em que momento presente e momento seguinte não se sobrepõem, mas que, concebido em diversas linhas paralelas, permite pensar em pequenos prolongamentos, pequenas permanências, de um estado a outro (BERGSON, 2017[1902], p.80-81). Assim, não se trata mais de aproximar os pontos para encontrar a continuidade, mas de notas que qualquer estado tem a potência de modular outros estados. Não se trata de aproximar subdividindo para obter os pontos mais próximos possíveis, mas de ter em vista que todo e qualquer ponto que se avizinhe de um certo limite de outro, o bastante para sejam notados como sucessivos, se modulam. E o mesmo vale para o espaço. O que seria a modulação? Gilbert Simondon é quem nos trará uma imagem para esta ideia, a de que dois estados compreendem sempre situação de fluxo ordenado e de fluxo livre, como se tivéssemos uma onda portadora e uma modulante, e que ele dá como exemplo o temporizador de um esguicho. Neste sentido, a continuidade, o lugar de nascimento de tempo, de corte entre um antes um depois, é sempre um lugar de modulação entre dois ou mais estados contíguos, contiguidade esta não necessariamente relacionada ao mínimo intervalo possível entre um ponto e outro, mas a apenas um ou alguns estados, pontos de vista, serem notados como contíguos a outros.

Musicalmente esta ideia tem seu interesse. Se Ligeti teceu suas continuidades aproximando ao máximo os pontos de sua “síntese granular”,25 podemos pensar que nos grandes saltos também está a continuidade, a continuidade no espírito, aquela que se dá em quem percebe, em quem ouve, em quem vê, em quem toca, continuidade que poderíamos mesmo dizer concreta e que pode ligar dramaticamente estados aparentemente apartados e/ou ligações sutis entre estados mais fluídos em que um se transforma em outro, como Ligeti propõe nas suas transformações graduais de textura.



Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti



Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti



Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti

A partir dessa exposição, é possível definir a implicatio em música como uma modulação transmodal, no sentido em que fluxo de energia atravessa não apenas de uma constante sonora para outra (complicatio), ou tem a esse fluxo atribuído maior permanência (explicatio), mas no sentido em que esse fluxo atravessa da predominância de uma modalidade sensorial para outra, de uma modalidade de escuta para outra. Isso pode significar uma percepção auditiva que é levada a se transformar em uma percepção visual, isto é, da gestualidade do instrumentista, ou mesmo uma vigorosa sucessão de gestos fortes que carregam um componente visual intenso, podendo se diluir abruptamente em uma textura pianíssimo granular, que conduz a predominância do visual-auditivo para o tátil-proprioceptivo.

Nos momentos em que a implicatio é chamada a agir, há uma ruptura dramática no fluxo de energia. Dramática, tanto no sentido do quão superlativo é o corte operado entre os materiais, quanto em que há uma chamada radical à ação (drama vem da raiz grega drao, que significa ação). Essa chamada à ação atinge e provoca a escuta, que é levada a um estado de total reconfiguração, mas também o performer, que necessita reorganizar-se em sua ação interpretativa, ou seja, em todas as suas faculdades humanas.

Uma ocorrência desse tipo de operação pode ser vista na peça Prins Hendrik 210, de Tadeu Taffarello (Fig. 12), onde, após uma série de gradações onde acúmulos de trêmolos no trompete e do piano crescem e voltam ao piano para repetirem o movimento, há um último crescendo que desemboca em uma disparatada ação do pianista de fechar energicamente a tampa do teclado. Essa acepção tão radical de corte produz uma incisão de energia tão elevada que o prosseguir da peça se torna uma ação extremamente difícil.26 A longa fermata deixa a energia por um fio, sonoramente sustentada apenas pela ressonância do piano, que, devido ao forte impacto do fechamento da tampa, é posto a vibrar em sua totalidade, a depender do tipo e do tamanho de instrumento. Contudo, não é pelo som que é agenciada a continuidade concreta deste trecho. O disparate promove uma realocação de energia perceptiva muito grande para a visualidade da performance. A ação do pianista produz um estado de perplexidade que incrementa a atenção da escuta. Todavia, essa mesma perplexidade faz com que a volta à ação esteja carregada de tensão e reticência por parte dos instrumentistas. É aqui que a implicatio necessita ser tomada como um operador interpretativo, regendo não apenas o discurso sonoro dos músicos, mas a totalidade de seus corpos, precisando que todo o corpo opere a continuidade do trecho. Na fermata que separa o fechar da tampa dos ruídos de ar e pistos do trompete, cabe ao trompetista se manter em posição de ataque, sem ceder à perplexidade do momento. Ao se deixar afetar pela ação feita no piano, o instrumentista destrói o único fio condutor possível nesse momento. Em estar de prontidão, há condição de se operar ativamente as relações de dissipação de energia que o trecho acarreta, controlando a somatória de tensão afetiva e a ressonância sonora que o momento contém, buscando o kairós de sua entrada. A complexidade do trecho ainda traz uma dificuldade final, já que tão logo se restabelece pouco a pouco um fluxo sonoro por meio do abrir gradual da tampa do teclado enquanto o trompetista executa ruídos de ar somados aos pistos, há um novo corte de complicatio que segue para uma sessão isorrítmica em quiálteras rápidas e curtas entre ambos os instrumentos.



Fig. 12

210, p. 3, s. 1

Tadeu Taffarello, Prins Hendrik

Se nesse exemplo a implicatio opera a continuidade através de um corte de alta energia, no próximo exemplo ela é aplicada em um contexto sonoro de baixa intensidade e que, por essa razão, demanda precisão na operação implicativa da performance. Na peça Por um crescente fio de luz, escrita por Gustavo Penha27 em 2018, pequenas injeções de energia realizadas sobretudo pelos solistas (violoncelo e clarone) se dissolvem através do grupo instrumental (violões e madeiras).28 Tais dissoluções possuem seu interesse textural exatamente na medida em que não estabelecem padrão algum, criando uma irregularidade sonora ocorrência após ocorrência. Entretanto, essas reiterações tendem pouco a pouco a acarretar uma diminuição de energia das injeções futuras quando a pausa momentânea que divide o final de uma dissolução da próxima injeção se estende para além do limite de manter o fluxo em continuidade. Disso se constitui o grande desafio interpretativo da peça: realizar uma separação entre a dissolução e a injeção o suficiente para que a diluição sonora se realize apropriadamente, mas não em demasia, que se perca a continuidade do fluxo de energia. Mais uma vez, é a implicatio que é chamada para agir, tendo no movimento que liga o final da dissolução à preparação do próximo ataque-injeção a chave para conectar a energia, mantendo assim o fluxo de energia em continuidade. Se o músico, sobretudo o solista, deixa esvair o fluxo de energia de seu corpo, não mantendo a prontidão e a antecipação motora hábil a captar a energia sonora em movimento, a continuidade da peça se perde pouco a pouco.

Um último exemplo que apresentaremos ajudará a demonstrar o funcionamento dos três operadores até aqui separadamente definidos e exemplificados, esclarecendo seu papel de conectar a composição à performance. Trata-se da peça Responsório de Domingo de Ramos, onde estes autores colaboraram na construção de uma performance junto à Orquestra de Câmara da USP, sob regência de Gil Jardim, e, posteriormente, com a Orquestra Sinfônica da Unicamp, sob regência de Cinthia Aliretti.

A peça tem já em seu início uma sequência rápida e ininterrupta de notas ao violoncelo solista, prosseguindo com essa energia implacável, atravessando a orquestra por pelo menos os primeiros 30 compassos ou algo como dois minutos. O primeiro gesto mais notável de corte acontece quando o solista soma seus ataques ff com acentos aos contrabaixos, em pizzicato Bartók, em uma série de ataques violentos (Fig. 14, cc. 25-27). Nesse momento, o grupo orquestral se sustenta por um fio espectral bastante tênue, estando a força da energia com os gestos graves descritos. Entretanto, tão logo o último pizzicato Bártok dos contrabaixos é realizado, a música chega em um limite ainda mais delicado, cabendo unicamente ao solista complicar essa textura em um novo tipo de material ritmicamente complexo, com quiálteras de diferentes durações e com sonoridade mais limpa e plena do que até esse ponto havia sido demandado (cc. 28-30). É a partir desse ponto que uma nova configuração reconstrói essa textura delicada que permeou os materiais anteriores, tendo um acréscimo de micropolifonias nas madeiras e sutis acentos nos primeiros violinos (cc. 31-37). Nesse novo trecho, o mais notável é a operação de implicar por meio de réplicas de um gesto de arco para cima com crescendo brusco no violoncelo solista, feito para se emitir um multifônico. A grande questão no trecho é que, embora o multifônico se funda à textura orquestral, o movimento do violoncelista produz mais energia do que o próprio campo sonoro parece conter. Essas réplicas, à semelhança do exemplo de Sciarrino, transformam o espaço de escuta, sobretudo quando em conjunto às raspagens de tam-tam que vêm do fundo da orquestra, criando uma espécie de ecossistema vivo, cujos ruídos quase que se descolam da realidade vista sobre o palco. Desses multifônicos se desdobra uma melodia que canta um lamento grave (cc. 37-40), posta finalmente a explicar a grande textura até aqui sustentada.

Pensamos aqui em um jogo em que a energia acumulada em cada uma se desdobra na outra camada, do solo para a orquestra, da orquestra para o solo e, por fim, do solo ao solo ou da orquestra à orquestra. Uma energia acumulada pode compreender uma passagem rápida em que o volume de notas articuladas (a densidade de arcadas) pede, o que se nota empiricamente, uma distensão, uma respiração. Ou o inverso, um excesso de calma pedindo para ser interrompido por um movimento abrupto e cortante.



Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos



Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos



Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos

Notas finais

“Deus só cria almas expressivas, porque ele cria o mundo que elas expressam ao incluí-lo” (DELEUZE, 2012, p.51)

Essa discussão sobre três operadores criativos expõe, portanto, três modos a partir dos quais as conexões entre materiais-forças podem se dar no discurso musical, compreendendo, neste discurso, a proveniente conexão entre emissão sonora e a escuta e seus modos próprios de articulação. Mais do que isso, contudo, esses operadores também apresentam modos de conexão entre a entidade composicional e a performance, na medida em que apresentam um modelo analítico imanente que independe de significações a posteriori, bastando, à tomada de decisão interpretativa, o mapear das relações energéticas que constitui a vida de uma música. Esse modelo é inclusivo, pois não elege um caminho único para a atualização desse mapeamento enérgico, ao mesmo tempo que estende a compreensão do discurso para além das convenções sonoras, expandindo o trabalho do compositor de um inventor de sons para um compositor de ações e, do performer, de um tradutor de símbolos visuais em som para um ator no sentido mais pleno do termo, como aquele que atua a música em tocá-la e torná-la real.

O colocar-se à serviço do discurso musical passa a significar mais do que um eufemismo para a subserviência interpretativa, libertando o performer a inventar relações criativas com a composição, sem que para isso necessite obnubilar a presença de uma direção composicional para o fluxo de energia: trata-se de um novo estatuto para ambas as instâncias de agenciamento musical. A expressividade da performance não precisa abandonar o objeto para dar vazão ao sujeito. Ao contrário, trata-se de buscar o sujeito de si que há nos intermeios dos objetos, nas conexões que há de serem explicadas, complicadas ou implicadas. A expressão de alteridade talvez seja um novo tipo de relação musical que o repertório atual esteja propondo: após a sujeição a uma igreja, a uma corte, a um espírito genial ou a uma visão turva do gosto da massa, torna-se uma relação de sujeição mútua ao outro, entre outros, que assim constrói pontes entre a composição e a performance, entre a performance e a escuta.

Essa expressividade abre caminho para uma abertura de si muito mais ampla do que uma emotividade naïve, colocando a totalidade dos indivíduos implicados no discurso musical a seu dispor. Essas relações, não nos iludimos, não se dão sem complicações, mas podem ser elas mesmas material para novas explicações e aplicações musicais. Dessa maneira, a heterogeneidade e a diferença se tornam mais e mais partes constituintes da criação musical contemporânea, dando espaço para as mais diversas performances e invenções que constituam novas e singulares formas de fazer musical. A continuidade concreta vem no lugar da unidade ideal. Depois das guerras, talvez a Europa tenha entendido que a linha reta ideal só era possível em detrimento das linhas tortas e sem continuidade ideal que impunham à África, à Ásia e à América Latina.

Material suplementar
Referências
AGON, C.; BRESSON, J.; STROPPA, Marco. OMChroma, compositional control of sound synthesis. Computer Music Journal, Massachusetts: MIT, v. 35, n. 2, summer 2011.
BERGSON, Henri. Histoire de l’idée de temps, 1902-1903. Paris: PUF, 2017.
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: PUF, 1927. p. 95.
BRUNO, Giordano. Cause, Principle and Unity. Trad. Robert de Lucca. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2004 [1584].
CATANZARO, Tatiana. Do descontentamento com a técnica serial à concepção da micropolifonia e da música de textura. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 15., 2005, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: ANPPOM, 2005. p. 1246-1255.
DE CUES, Nicolas. La docte ignorance. Trad. Pierre Caye, David Larre, Pierre Magnard e Fréderic Vengeron. Paris: Flammarion, 2013 [1440].
DELEUZE. Gilles. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Minuit. 1968
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. 6. ed. Trad. Luis Orlandi. Campinas: Papirus, 2012 [1988].
FERRAZ, Silvio. Análise e Percepção Textural: Peça VII, de 10 peças para Gyorgy Ligeti. Cadernos de Estudos: Análise musical, São Paulo: Através, n. 3, p. 68-79, 1990.
FERRAZ, S. Entretempo: a escuta no ponto cego da música. Viso Cadernos de estética aplicada, Ouro Preto: UFOP, n. 20, 2017.
GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’água, 2001.
GRISEY, Gérard. Écrits, 2008, p.31
HERRAIZ, Martin. Um estranho perfeito: a música orquestral de Frank Zappa. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes, Unesp, 2010.
HERVÉ, Nicolas; VENTURINI, Patrice; ALBE, Virginie. La construction du concept d’énergie en cours de physique: analyse d’une pratique ordinaire d’enseignement. In: BUTY, Christian; MORGE, Ludovic (eds.). Énergies, RDST: recherches en didactique des sciences et des technologies, n. 10/2014. Lyon, France, 2014. p. 123-151.
LIGETI, Gÿorgy. Neuf essais sur la musique. Genève: Contrechamps, 2001.
RIBEIRO, Guilherme; FERRAZ, Silvio. Guero: música concreta instrumental e direcionalidade na peça-estudo para piano de Helmut Lachenmann. Vórtex, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 1-22, 2017.
SCHAEFFER, Pierre. Traitée des objets musicaux. Paris: PUF, 1966.
SIMURRA, Ivan Eiji; FERRAZ, Silvio. A utilização de técnicas apreendidas em estúdios como princípios composicionais em Atmosphères. In: CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 20., 2010, Florianópolis. Anais […]. Florianópolis: ANPPOM, 2010.
TAKEMITSU, Toru. Confronting Silence. Oxford: Scarecrow Press, 1995.
TARKOVSKI, Andrei. Die Versiegelte zeit. Berlim: Ullstein, 1986. (Tradução brasileira por Jefferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998).
Notas
Notas
3 Chegamos a estes conceitos a partir da leitura realizada por Gilles Deleuze em seu livro Spinoza et le problème de l’expression, especificamente no capítulo “l’Immanence et les elements historiques de l’expression” (DELEUZE, 1968, p.153 seq.): “[…] tal é a origem desta dupla de noções que tomam importância na filosofia da Idade Média e da Renascença: complicare-explicare. Tudo está presente em Deus que as complica, Deus está presente em todas coisas que o explicam e implicam” (DELEUZE, op. cit., p.158-159).
4 BRUNO [1584], 2004, p.93.
5 DELEUZE [1988], 2012, p.47.
6 Sobre a noção de Energia e sua quase impossível definição, propomos a leitura dos artigos da revista Énergies, RDST - Recherches en didactique des sciences et des technologies.
7 Sobre a questão do tempo na performance, ver Teixeira e Ferraz (2019).
8 Sobre a questão do fluxo de energia como mediador da relação entre compositor e performer, ver Ferraz e Teixeira (2019).
9 Ligeti, em sua análise de Structure Ia, de Boulez, denomina o efeito de ataque de um som e sua retomada como eco de estereometria (LIGETI, 2001, p.120). A partir desta ideia, denominamos aqui a estereotopia como o deslocamento espacial de uma mesma nota ou dos parciais de um som entre instrumentos em um ensemble. O próprio Ligeti trabalha esta técnica em suas 10 peças para quinteto de sopros, de 1969, e em seu Concerto para violoncelo e orquestra, de 1966.
10 “Psychoacoustic research and practical experience have shown the importance of slight deviations in the synthesis parameters, such as jitter, beatings, and vibrato, to obtain sounds that are perceptually more natural, fused, and musically better” (AGON; BRESSON; STROPPA, 2011, p.67-83).
11 “Our task is to revive the basic power of sound. This can be done only by a new recognition of what sound really is. I do not know if Gagaku satisfies that requirement, but I do know that in this stream of sounds that is Gagaku, a richness of sound undivided by rigid classifications can be recognized […] The external and internal world is full of vibration. Existing in this stream of infinite sound, I thought that it is my task to capture a single defined sound” (TAKEMITSU, 1995, p.7-8).
12 Tadeu Moraes Taffarello é um compositor nascido no ano de 1978 em Jundiaí (SP). Atualmente é pesquisador no Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural da Unicamp.
13 Análise-performance realizada a partir de experiência com os discentes Thalison Oliveira e Dione Tavares na disciplina Música de Câmara, do Curso de Música - Licenciatura da UFMS, em 2019.
14 Martin Herraiz é um compositor paulistano nascido em 1980.
15 Herraiz (2010).
16 Análise-performance realizada a partir de experiência de concerto com William Teixeira (violoncelo) e Dennis Gomez (piano).
17 Ferraz (1990).
18 Vale aqui a distinção entre objeto sonoro. como objeto fenomenologicamente formado, já atravessado por uma relação de identificação, daquilo que estamos chamando de fluxo sonoro e que se aproxima à ideia de potencial sonoro. “A ‘sound potential’ is therefore quite different from a ‘sound object’ in the tradition of Pierre Schaeffer (1966). The latter is, to put it simply, a phenomenological description of an existing recorded or processed sound, whereas the former is a specific morphological concept defining a set of cognitively consistent sounds” (AGON; BRESSON; STROPPA, 2011, p.69).
19 A referência que faço aqui é a de algumas imagens de tempo como espessura do presente, proposta por Gérard Grisey, pressão temporal, proposta por Tarkovski, e tempo vertical, noção que, de certo modo, compila as anteriores, proposta por José Gil em Movimento Total e retomada por Ferraz em seu artigo “Entretempo: a escuta no ponto cego da música” (Cf. GIL, 1996, p.188; ver também BERGSON, 1927; GRISEY, 2008, p.31; TARKOVSKI, 1990, p.141; FERRAZ, 2017).
20 “Façamos distinção, então, para concluir, duas formas da multiplicidade, duas avaliações bem diferentes da duração, dois aspectos da vida consciente. Sob a duração homogênea, símbolo extensivo da duração verdadeira, uma psicologia atenta discerne uma duração cujos momentos heterogêneos se penetram; sob a multiplicidade numérica dos estados conscientes, uma multiplicidade qualitativa; sob um eu com estados bem-definidos, um eu onde sucessão implica fusão e organização” (BERGSON, 1927, p.95).
21 Continuamos jogando aqui com a noção de dobra, e é claro que uma das referências aqui é a obra Le Pli, de Gilles Deleuze.
22 A noção de “música concreta instrumental” é apresentada por Lachenmann em seu artigo de 1985, “L’écoute est désarmée - sans l’écoute” (LACHENMANN, 2004, p.116).
23 Chamamos aqui de sonoro-musical os aspectos, implicados na escuta, que o som adquire quando em um fluxo musical, o que é bastante distinto daqueles presentes em uma escuta cotidiana de ruídos urbanos, de uma conversação, de ruídos naturais etc. Tal fato está na distinção que Schaeffer procurou ao definir objeto-sonoro e objeto-musical nos livros II e VII de seu Traité des objets musicaux (SCHAEFFER, 1968, p.103 seq e 601 seq).
24 Cf. BERGSON, Histoire de l’idée de temps, 1902-1903. Paris: PUF, 2017. p.97-102.
25 Catanzaro (2005), Simurra (2010).
26 Análise-performance realizada a partir de experiência com os discentes Gracy Kelly Silva e Dione Tavares na disciplina Música de Câmara, do Curso de Música - Licenciatura da UFMS, em 2018-2019.
27 Gustavo Penha é um compositor paulistano nascido em 1983, atualmente professor da UFMS.
28 Análise-performance realizada a partir de experiência com a Camerata Madeiras Dedilhadas UFMS, sob regência do próprio compositor, tendo como solistas William Teixeira (violoncelo) e Hudson Campos (clarone).


Fig. 1

Um piano que primeiro ressoa e se desdobra em uma nota longa e depois se desdobra em uma linha melódica.

Silvio Ferraz, Dona Letícia


Fig. 2

Dois gongos tailandeses que transitam para instrumento de cordas, agora com uma variação de seu colorido através do uso de frequências que geram batimentos simples de segunda (dó-dó# ou fá-mi)

Silvio Ferraz, Dona Letícia


Fig. 3

Transmissão oculta de pensamento, p. 1, s. 2.

Tadeu Taffarello


Fig. 4

Transmissão oculta de pensamento, p.2, s. 1. Exemplo de reconfiguração dos operadores explicativos que permite que, ainda que com os mesmos materiais dos personagens-gestuais anteriormente apresentados, sejam produzidas outras resultantes texturais.

Tadeu Taffarello


Fig. 5

cc. 38-40

Martin Herraiz, Kranke Zeiten


Fig. 6

Letra “G” de Atmosphères, de Ligeti: os flautins em ffff cortados por um também muito forte ataque de cluster no grave dos contrabaixos.

Ligeti


Fig. 7

Trecho de Window into the Pond, de Silvio Ferraz, com a linha parada de clarinete-violoncelo-violino que repentinamente muda de direção e se torna extremamente movida.

Silvio Ferraz


Fig. 8

Passagem final em De um tempo em deserto, de Silvio Ferraz, onde o tempo subdividido dos sopros e violoncelo é apenas aludido em uma percussão realizada por fragmentos articulados sob um mesmo pulso mecânico.

Silvio Ferraz


Fig. 8

Passagem final em De um tempo em deserto, de Silvio Ferraz, onde o tempo subdividido dos sopros e violoncelo é apenas aludido em uma percussão realizada por fragmentos articulados sob um mesmo pulso mecânico.

Silvio Ferraz


Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz


Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz


Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz


Fig. 9

Partita 1. Exemplos das ocorrências mais dramáticas de complicatio na peça, com destaque aos pontos específicos de corte em fluxo e início de um próximo.

Silvio Ferraz


Fig. 10

Dois momentos de Il cerchio tagliato dei suoni, de Salvatore Sciarrino, distanciados de aproximadamente dois minutos. O primeiro com o primeiro gesto replicado e que constitui o primeiro espaço sonoro da peça, e o segundo já com a presença de dois novos elementos, que foram sendo lentamente inseridos e muito lentamente abandonados.

Salvatore Sciarrino


Fig. 10

Dois momentos de Il cerchio tagliato dei suoni, de Salvatore Sciarrino, distanciados de aproximadamente dois minutos. O primeiro com o primeiro gesto replicado e que constitui o primeiro espaço sonoro da peça, e o segundo já com a presença de dois novos elementos, que foram sendo lentamente inseridos e muito lentamente abandonados.

Salvatore Sciarrino


Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti


Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti


Fig. 11

Passagem contínua (cc. 44-47) e corte súbito (letra R) de Concerto para violoncelo e orquestra, de Ligeti.

Ligeti


Fig. 12

210, p. 3, s. 1

Tadeu Taffarello, Prins Hendrik


Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos


Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos


Fig. 14

cc. 24-40

Silvio Ferraz, Responsório de Domingo de Ramos
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor móvel gerado a partir de XML JATS4R