Resumo: A vocalização humana apresenta pontos chave do nosso desenvolvimento musical e é ela que promove nossas primeiras manifestações de habilidades para podermos nos comunicar musicalmente. As melodias da fala constituem os primeiros elementos linguísticos a serem vivenciados e dominados, e são precursores indistinguíveis do canto melódico, posto que são elementos essenciais na comunicação musical intrapessoal e interpessoal. O canto como forma de comunicação tem origem nos contornos melódicos vocais, cujos intervalos musicais são explorados na fala dirigida do adulto1 (pais, responsáveis ou cuidadores)2 ao bebê3 (lactente ou criança) para promover o desenvolvimento da linguagem. Características semelhantes, porém, mais explícitas, são evidenciadas no canto dirigido do adulto ao bebê através de canções de ninar e de canções de brincar. Esses elementos musicais básicos da comunicação podem ser percebidos ainda no útero e formam as bases para as vocalizações e comportamentos musicais subsequentes do bebê. Além disso, a integração fundamental da emoção com a percepção e a cognição dá origem a uma rede de comportamentos vocais e emocionais interligados que são centrais para a comunicação humana. O capítulo investigará a crescente evidência da comunicação musical como parte integral da vocalização humana e da expressão emocional.
Palavras-chave: Vocalização humana,Melodias da fala,Fala dirigida ao bebê,Canto dirigido ao bebê,Comunicação musical,Expressão emocional.
Abstract: Human vocalization contains key essences of our musical development and fosters our earliest abilities to communicate musically. Speech melodies are the first linguistic elements experienced and mastered, and are indistinguishable from the melodic precursors of singing as essential elements in intraand inter-personal musical communication. Singing as communication originates in vocal pitch contours whose musical intervals are exploited by caregivers in infant-directed speech to foster language development. Similar, but more explicit, features are evidenced in caregivers’ infant-directed singing, such as in lullabies and play songs. These basic musical elements of communication can be perceived in utero and underpin the infant’s subsequent vocalizations and musical behaviors. Additionally, the underlying integration of emotion with perception and cognition generates a network of linked vocal and emotional behaviors that are central to human communication. The chapter will examine the growing evidence for musical communication as integral to human vocalization and emotional expression.
Keywords: Human vocalization, Musical communication, Speech melodies, Emotional expression, Infant-directed speech, Infant-directed singing.
Dossiê
O canto como comunicação interpessoal intrapessoal*
Singing as Interand Intra-personal Communication
O som da voz [ou som vocal] constitui uma das características que definem a humanidade; Suas características comuns, plurais, e o seu desenvolvimento distinguem as espécies umas das outras. Dentro da ampla gama de sons que os humanos produzem com suas vozes, há dois tipos de sons padrões que têm maior significado sociocultural: esses grupos padrões são categorizadas como a fala e o canto. No entanto, há uma sobreposição significativa entre os dois porque ambos os comportamentos são gerados a partir das mesmas estruturas anatômicas e fisiológicas, e são iniciados/ são interpretados por redes neuropsicobiológicas específicas cujos desenvolvimento e função são formados através da experiência cultural.
Nossa predisposição para perceber determinados sons vocais como canto ou fala depende de suas características acústicas dominantes, bem como da nossa experiência. A percepção se inicia quando o sistema sensorial é estimulado pela informação acústica que é filtrada de acordo com princípios da organização perceptiva que agrupa os sons de acordo com características-chave, tais como variações na altura, proximidade temporal, similaridade de timbres, e relações harmônicas (PATEL, 2008).
A percepção de sons como música ou como linguagem é contextualizada pela idade, pelo contexto familiar, pela participação na comunidade, pela enculturação e pelo desenvolvimento do ouvinte. Os primeiros meses de vida, por exemplo, são frequentemente caracterizados pelo jogo vocal (“murmuro eufônico” como tradução livre de “euphonic cooing”, PAPOUŠEK, H., 1996) no qual as vocalizações do bebê em crescimento podem ser interpretadas como glissandi musicais, bem como precursores da prosódia na fala. Tais percepções categóricas do som da voz como sendo “musical” ou “da fala”, no entanto, são um produto de camadas da enculturação que informa nossas interpretações que são socialmente construídas1.
Para o bebê em desenvolvimento, tal distinção é relativamente insignificante, porque a fala e o canto possuem a mesma ontogenia. No que diz respeito à produção sonora, os comportamentos vocais do bebê são restritos por suas estruturas limitadas e pelas possibilidades comportamentais do sistema vocal em desenvolvimento (KREIMAN; SIDTIS, 2011). As primeiras vocalizações se referem à comunicação de um estado afetivo, inicialmente o desconforto e o distresse2 (choro), seguido de sons de conforto e eustresse3 (estados de espirito/humores positivos). A predisposição dos bebês para produzirem sons vocais que apresentam características quase melódicas acontece entre os dois e os quatro meses de idade (STARK et al., 1993), e há evidências crescentes do controle vocal durante os três meses seguintes (VIHMAN, 1996). Essas vocalizações infantis pré-lingüísticas são caracterizadas por uma modulação voluntária e por um controle da altura do som que se assemelham às características prosódicas predominantes da língua materna (FLAX et al., 1991; MAMPE et al., 2009), ao mesmo tempo em que s as sequências silábicas rítmicas com melodias sobrepostas e padrões musicais curtos são exploradas (PAPOUŠEK, H. 1996; para uma revisão compreensiva sobre o desenvolvimento musical pré-natal e as primeiras manifestações do desenvolvimento musical veja PARNCUTT, 2016)
No que diz respeito à recepção sonora, a audição geralmente já está em funcionamento antes mesmo do nascimento, no último trimestre da gravidez (KISILEVSKY et al., 2004) e o recém-nascido entra no mundo sendo capaz de perceber diferenças sutis no som da voz (TRAINOR; ZATORRE, 2016). Os bebês são “universalistas” (TREHUB, 2016), no sentido de que eles estão equipados, em termos perceptivos, para compreender músicas e idiomas de qualquer cultura. Essa predisposição levará, em termos de desenvolvimento, à discriminação de categorias de vogais e de contrastes de consoantes na língua nativa por volta do primeiro ano de vida (ESCUDERO et al., 2014). Durante esses primeiros 12 meses de vida, são as características prosódicas (altura e ritmo) da “fala dirigida aos bebês” (também conhecido como “fala materna”, “manhês” ou “fala dos pais” como tradução livre de “motherese” e “parentese”) (WERKER; MCLEOD, 1989; SAINT-GEORGES et al., 2013) que dominam a comunicação inicial dos pais /cuidadores para os filhos (FERNALD; KUHL, 1987; PAPOUŠEK, H., 1996). Os contornos prosódicos que delimitam as frases faladas são considerados blocos de construção perceptiva fundamentais para a compreensão da linguagem pela criança em desenvolvimento (KREINER; EVIATAR, 2014).
As expressões orais da mãe dirigidas ao bebê também se caracterizam por apresentarem uma regularidade de pulso, uma qualidade vocal e forma narrativa, teorizadas coletivamente como uma “musicalidade comunicativa” (MALLOCH, 2000) que se engaja com um “pulso motriz intrínseco”, uma habilidade inata para sentir o tempo rítmico e a variação temporal na voz humana (TREVARTHEN 2016). Os contornos prosódicos expressivos, os glissandi de altura, e a predominância dos intervalos melódicos simples (terças, quartas, quintas, oitavas) da “fala dirigida ao bebê” (FERNALD 1992); PAPOUŠEK, H., 1996) ocorrem paralelamente ao “canto dirigido para bebês” emitido pela mãe (DELAVENNE et al., 2013; ver também TREHUB; GUDMUNDSDOTTIR, 2015 neste volume4), que faz uso de um repertório especial e limitado de canções de ninar e canções de brincar, caracterizado, por sua vez, por uma simplicidade estrutural, pela presença de repetições, por alturas mais agudas do que as habituais ([alturas] um pouco mais próxima[s] dos registros vocais próprio do bebê), por andamentos mais lentos e por uma qualidade de voz mais emotiva.
Em geral, o repertório materno de canções dirigidas aos bebês é limitado a um punhado de canções de brincar ou canções de ninar que são executadas de uma maneira expressiva e altamente ritualizada. A partir do período neonatal, os bebês preferem interpretações acústicas de uma música em estilo materno (execuções de mães de outros bebês) à interpretações ‘não maternas’ da mesma música pela mesma cantora. Além disso, [as crianças] ficam fascinadas por performances nas quais elas podem tanto ver quanto ouvir a cantora, como demonstrado em períodos longos de atenção focada e na redução do movimento corporal da criança. (TREHUB, 2003, p. 671)
A primeira manifestação da vocalização está intimamente ligada à percepção (VIHMAN, 1996), na qual a primazia do desenvolvimento do controle das alturas na fala da criança ocorre juntamente aos sons gerados pelos adultos, que são dominados em termos perceptivos pelo contorno melódico. Embora os “precursores do canto espontâneo possam ser indiscrimináveis dos precursores das primeiras manifestações de fala” (PAPOUŠEK, M. 1996, p. 104), o grau da evidência disponível nas origens da linguagem e da música na criança sugere um domínio habitual de “melodia antes das palavras” (VIHMAN, 1996, p. 212), relacionado ambos às “melodias” da própria criança em desenvolvimento e às “melodias” dos outros.
O texto a seguir enfoca a compreensão da natureza da comunicação intrapessoal e interpessoal no canto.
Os avanços tecnológicos em neuroimagem cerebral durante a última década forneceram informações valiosas sobre as bases neurais de uma variedade de funções cognitivas e emocionais, incluindo àquelas relacionadas à música. Por exemplo, áreas e redes neurais foram identificadas na percepção de estruturas tonais (JANATA et al., 2002), nas características da “sintaxe” musical (MAESS et al., 2001; PATEL, 2003), no processamento da altura relativa e “absoluta” (ZATORRE et al., 1998), no processamento temporal (STRAIT et al., 2014) e nos efeitos da prática sobre o córtex motor (ALTENMÜLLER; SCHLAUG, 2015).
As assimetrias hemisféricas são frequentemente evidenciadas, assim como os vieses relativos a localizações neurais específicas, dependendo do tipo de comportamento musical estudado, das experiências do indivíduo e da expertise no canto (ver KLEBER; ZARATE, 20145, neste volume). No entanto, os resultados de pesquisas nas áreas de musicoterapia neurológica e do cérebro humano sugerem que a percepção musical envolve um processamento hemisférico cruzado (ALTENMÜLLER; SCHLAUG, 2015; REYBROUCK; BRATTICO, 2015; ROSSLAU et al., 2015), de tal forma que o reconhecimento inicial do contorno melódico e da métrica pelo hemisfério direito é seguido por uma identificação do intervalo melódico e do padrão rítmico pelos sistemas do hemisfério esquerdo, sendo ainda mais evidente em adultos com experiência musical. Também há evidências de que circuitos neurais específicos estão dedicados ao cálculo da dissonância e que estes [circuitos neurais] também estão ligados aos sistemas emocionais (quer nas estruturas paralímbicas ou nas áreas frontais) (BLOOD; ZATORRE, 2001; BLOOD et al., 1999; CROSS, 2001 ver também COUTINHO; SCHERER; DIBBEN, 20146 neste volume).
Os comportamentos musicais na idade adulta parecem depender de circuitos cerebrais específicos que são relativamente discretos a partir do processamento de outros tipos de sons (ZATORRE; KRUMHANSL, 2002), como a fala e as letras de canções. Um modelo modular de arquitetura neural funcional fundamentado em estudos de caso de deficiências nas habilidades musicais em pacientes com lesão cerebral foi proposto (PERETZ; COLTHEART, 2003), para explicar o processamento musical neuropsicobiológico, inclusive no caso do canto (ver Figura 1). Sistemas distintos no cérebro são responsáveis pelas análises da linguagem, organização temporal e organização das alturas dos sons (PERETZ, 2012). Esses sistemas relacionam as informações recebidas aos bancos de conhecimento existentes (um léxico fonológico e um léxico musical), assim como às experiências prévias de expressão emocional. As letras de canções são processadas em paralelo com a melodia da canção e encenadas pela cooperação simultânea entre áreas dentro dos hemisférios cerebrais esquerdo e direito, respectivamente (COGO-MOREIRA et al., 2013), com processamento cortical comum às características sintáticas da música e da linguagem (MAESS et al., 2001), juntamente com uma habilidade não consciente7 para perceber as estruturas harmônicas subjacentes (BIGAND et al. 2001). Outros estudos neurológicos sustentam o modelo Peretz e Coltheart ao compararem a imagem sonora (pensando através da música na memória) com a percepção real da música (ALONSO et al., 2014; MANTELL; PFORDRESHER, 2013). A ativação bilateral do córtex temporal e do córtex frontal e da área motora suplementar sugerem que uma integração da letra e da melodia na representação musical da canção é alcançada através da ação combinada de dois sistemas discretos para a memória de trabalho auditivo-tonal e a auditivo-verbal (SAITO et al., 2012). Há evidências também de que a imagem sonora por si só pode ativar as regiões corticais auditivas (OH et al., 2013).
O modelo de Peretz e Coltheart propõe que qualquer estímulo acústico está sujeito a uma análise acústica inicial. Este estímulo é então “encaminhado” para uma gama de “módulos” discretos que são projetados especificamente para extrair características diferentes, denominadas de conteúdo da altura (contorno melódico e funções tonais de intervalos sucessivos) e de conteúdo temporal (organização métrica = regularidade temporal, e estrutura rítmica = valores de duração relativos). Ambas informações de saída de altura e de tempo são novamente “encaminhadas” para um “léxico musical” individual que contém uma representação, que é continuamente atualizada, de todas as frases musicais específicas experimentadas pelo indivíduo ao longo da vida. A informação de saída deste léxico musical depende dos requisitos da tarefa. Se o objetivo é reproduzir uma música que foi ouvida, então a melodia a partir do léxico musical será pareada com a respectiva letra cujos elementos, segundo a teoria, estão armazenados no “léxico fonológico” (PERETZ; COLTHEART, 2003).
Isso não quer dizer, no entanto, que a informação de saída resultante do canto seria necessariamente uma espécie de “casamento” musical ideal ao modelo de estímulo original. Um número significativo de crianças pequenas frequentemente tem dificuldades (e para uma pequena minoria isso pode ser uma dificuldade a longo prazo) em executar com precisão tanto a letra quanto a melodia das canções da sua cultura (CREEL 2015). A análise de dados empíricos de estudos longitudinais sobre o desenvolvimento do canto em crianças pequenas (WELCH et al., 2012; NILAND, 2012) aponta que a maioria das crianças é geralmente muito precisa em lembrar e comunicar as letras das canções que lhe foram ensinadas (ou que ouviram informalmente), mas muitas vezes as crianças são frequentemente menos precisas ao reproduzirem as alturas constituintes das mesmas canções (cf. WELCH et al.,1997, 1998). Um viés similar é relatado na habilidade de cantores adultos que cometem menos erros na memorização das palavras de novas músicas quando comparadas com a memorização de seus elementos musicais (GINSBORG, 2002). Em relação ao modelo de Peretz e Coltheart (Figura 1), os dados de estudos sobre o canto infantil sugerem que o “léxico fonológico” médio de crianças de cinco anos de idade é frequentemente mais avançado em termos de desenvolvimento, do que seu “léxico musical”. Além disso, os dados de estudos com crianças favorecem a noção de que há um módulo de “contorno” de melodia do modelo que tem uma predominância básica sobre outra organização perceptiva da melodia. Crianças pequenas que foram avaliadas como “desafinadas”, ao cantarem canções com um foco especifico, demonstraram ser muito mais afinadas em termos vocais quando receberam a orientação de combinar glissandos (glissandi) que foram desconstruídos dos contornos melódicos das mesmas canções para fins de avaliação do desenvolvimento do canto.
O modelo neuropsicológico de Peretz e Coltheart também está alinhado com um modelo de desenvolvimento do canto infantil anterior que reuniu um grande número de estudos independentes (WELCH, 1986, 1998; ver também WELCH, 2016). Esse modelo de desenvolvimento e uma revisão de literatura correspondente a ele sugerem que uma fase importante no percurso da criança em direção à correspondência precisa da altura vocal é a habilidade da criança de equiparar o contorno melódico de uma canção (WELCH, 2009a; WELCH et al., 1998; HARGREAVES, 1996).
Resultados semelhantes foram destacados numa pesquisa longitudinal de avaliação do Programa Nacional de Canto do Governo do Reino Unido na Inglaterra, o “Sing Up” (ver http://www.singup.org/ para mais detalhes) envolvendo 11.000 alunos de mais de 180 escolas de educação básica no Reino Unido (WELCH, 2009a; WELCH et al., 2014). Esses resultados sugerem que o canto está sujeito a um processo de desenvolvimento no qual a correspondência da altura vocal (1) aprimora com a idade, e (2) pode ter seu desenvolvimento acelerado em um ambiente onde o estímulo seja adequado (ver também WELCH, 2016).
O modelo de Peretz e Coltheart propõe que, de modo paralelo, mas de forma independente, as informações de saída dos módulos de percepção da altura e temporal são alimentadas em um módulo de “análise da expressão da emoção” (ver Figura 1), mediando uma resposta emocional aos sons musicais. Com relação à avaliação emocional dos sons vocais, várias estruturas corticais e subcorticais distintas, principalmente (mas não somente) no hemisfério direito, foram identificadas como significativas (PERETZ et al., 2013). Como parte de nossa comunicação básica, seis emoções primárias medo, raiva, alegria, tristeza, surpresa e repulsa são geralmente expressas verbalmente (TITZE; MARTIN, 1998), sendo diferenciadas pela forte variação acústica da voz (PATEL, 2008). A voz é um aspecto essencial da nossa identidade humana: ela diz respeito a quem somos, como nos sentimos, como nos comunicamos e como as outras pessoas nos percebem.
A habilidade de gerar sinais (em inglês “tags”) emocionais concomitantes para as informações de saída vocais (canto e fala) provavelmente está relacionada às primeiras experiências do feto com o meio ambiente acústico, particularmente em relação ao som da voz da mãe que é ouvido no útero durante o último trimestre da gravidez. Embora a fala esteja parcialmente abafada e as frequências agudas do espectro sonoro estejam reduzidas, a inflexão da altura da voz da mãe seu contorno prosódico é claramente audível (ver PARNCUTT 2016 para uma revisão). O último trimestre também é marcado pelo desenvolvimento fetal em relação aos principais elementos funcionais dos sistemas nervoso, endócrino e imunológico para o processamento de estados afetivos (DAWSON, 1994). Consequentemente, a vocalização de uma mãe com seu próprio correlato emocional concomitante (PERETZ; COLTHEART 2003) provavelmente produzirá uma resposta neuroendócrina em seu (sua) filho (a) em desenvolvimento (KEVERNE et al., 1997; SECKL, 1998; THURMAN, 2000; ver também WOODWARD, 2017 neste volume8).
A interface filtrada da corrente sanguínea materno-fetal permite que o feto perceba o estado emocional da mãe em termos endócrinos e concomitantemente aos contornos melódicos realizados pela mãe (veja a Figura 2). Sentimentos como prazer, alegria, ansiedade ou angústia irão se refletir nos contornos melódicos e no estado emocional básico da mãe. Visto que cantar para ela mesma, ouvir o rádio, no carro, com os outros é geralmente considerada uma atividade “prazerosa”, isso será refletido em um “estado corporal positivo” (DAMASIO, 2006) que está relacionado ao seu sistema endócrino de secreção de neuropeptídeos específicos, como a β-endorfina, em sua corrente sanguínea (THURMAN, 2000). Seu prazer musical, expresso em termos vocais e hormonais, será comunicado ao feto.
Ao nascerem, os recém-nascidos estão particularmente sensíveis ao som da voz de suas mães; essa sensibilidade é procedente de suas experiências anteriores, durante o período fetal, ao ouvir sua mãe cantando e lendo em voz alta (PARNCUTT, 2015). A proeminência perceptiva do contorno melódico materno (TREHUB, 1987) foi também relatada na habilidade de bebês de três a quatro meses imitarem um contorno melódico-prosódico exagerado apresentado por suas mães (MASATAKA, 1992; ver TREHUB; GUDMUNDSDOTTIR, 2015, neste volume9), bem como a habilidade de bebês de mesmo tempo de vida imitarem vogais básicas após apenas 15 minutos de exposição laboratorial (KUHL; MELTZOFF, 1996). Da mesma forma, bebês de seis meses de idade demonstraram um aumento da atenção continuada ao verem gravações de vídeo de suas mães cantando em comparação à atenção que demonstraram ao verem gravações de vídeo de suas mães falando (TREHUB, 2003).
Deste modo, a criança entra no mundo com uma “predisposição” emocional em relação a certos sons, ligada às suas primeiras experiências acústicas e afetivas provenientes do contorno melódico materno. Indiscutivelmente, essa predisposição irá moldar a maneira como os bebês em desenvolvimento respondem a outros sons, sendo complementada e expandida pela experiência auditiva e afetiva concomitante de suas próprias vozes, começando com os contornos acústicos de seus primeiros choros. Como sugerido acima, os dados disponíveis sugerem que há uma preparação do sistema neuropsicobiológico desde o pré-nascimento até a primeira infância na qual as melodias vocais são associadas a vários correlatos emocionais. Estas associações fornecem uma base para a comunicação musical ao longo da vida, tanto na produção quanto na recepção de melodias vocais como também para outras comunicações musicais intrapessoais e interpessoais que se baseiam em características acústicas semelhantes. Essa integração da experiência musical inicial com seus correlatos afetivos pode ser interpretada como o capital emocional básico, um recurso que é empregado à medida que os humanos em desenvolvimento interagem, se relacionam, lidam com e dão sentido a seus ambientes sonoros diretos e ampliados. Experiências auditivas podem ser inter-relacionadas com as seis emoções básicas que são evidenciadas nos primeiros nove meses de vida. Os estados emocionais tripolares iniciais relacionados com a angústia (evidenciado pelo choro e irritabilidade), prazer (indicado pela saciedade) e o estar atento ao ambiente imediato levam ao surgimento de interesse (e surpresa), alegria, tristeza e repulsa em torno da idade de três meses, seguida por demonstrações emocionais de raiva e medo em torno dos oito meses de idade (LEWIS, 1997). Conforme acima relatado, cada uma dessas emoções básicas possui uma assinatura acústica vocal especifica e um perfil acústico que é associado a um forte estado emocional característico. Sons que têm perfis acústicos similares são suscetíveis de gerar emoções relacionadas ou idênticas. A performance musical se baseia em “sinais” acústicos expressivos, tais como mudanças no andamento, no nível do som, no timing, na entonação, na articulação, no timbre, no vibrato, nos ataques do som, na diminuição na intensidade do som, e nas pausas para comunicar emoção, como por exemplo ternura, felicidade, tristeza, medo e raiva (JUSLIN et al., 2010). Análises de performances gravadas indicam que praticamente todas as variáveis da performance são influenciadas de maneiras específicas para cada moção (GABRIELSSON, 2016). Na performance, os padrões de mudanças contínuas em tais variáveis constituem um “contorno expressivo” e foram comparados ao contorno prosódico da fala (JUSLIN et al., 2010). Deste modo, parece haver uma correspondência próxima entre as características acústicas da emoção transmitida pela voz na vida cotidiana e os sinais expressivos usados para transmitir emoção na performance musical (LAVY, 2001). Por exemplo, uma mãe sofrendo de depressão pós-parto terá uma qualidade vocal diferente (mais silenciosa, mais grave, e com pausas mais longas) do que mães sem depressão (ROBB, 2000). À medida que as crianças crescem, elas tornam-se mais hábeis em reconhecer e expressar a emoção desejada tanto no canto quanto na fala (GABRIELSSON; ÖRNKLOO, 2002). Provavelmente, esta correspondência tem suas raízes na vocalização mãe-feto / mãe-bebê e no desenvolvimento neuropsicobiológico humano a partir do terceiro trimestre da gravidez.
As características acústicas da voz materna e de seu ambiente sonoro direto são localizadas socialmente e culturalmente, de tal modo que a plasticidade genérica inicial demonstrada pelo recém-nascido para a discriminação de diferenças em qualquer grupo de sons é logo moldada em direção a uma detecção tendenciosa das características distintas específicas de sons locais proeminentes (SOLEY; SEBASTIÁN-GALLÉS, 2015). Isso, por sua vez, tem um efeito nos comportamentos relacionados desde muito cedo. Por exemplo, os recém-nascidos também são capazes de produzir diferentes acentos em suas diferentes formas de chorar logo que nascem, como relatado na análise dos contornos melódicos e de intensidade de recém-nascidos franceses e alemães (MAMPE et al., 2009). O grupo de recém-nascidos francês preferencialmente chorava10 com contornos melódicos ascendentes, enquanto que o grupo de recém-nascidos alemão preferencialmente chorava com contornos melódicos descendentes.
Por esse motivo, há uma hipótese de que qualquer ocorrência de contorno auditivo que é percebida como “estranha” à cultura sonora dominante (como experimentada prèviamente) provavelmente é percebida e “marcada” emocionalmente em um continuum positivo/ negativo, dependendo de seu perfil acústico. Essas experiências concomitantes em andamento atuam como uma das bases para a formação da “preferência” musical dentro do léxico musical em desenvolvimento. Exemplos relatados da primeira “preferência” musical em relação ao canto são os seguintes:
• recém-nascidos com dois dias de vida que ouvem gravações em áudio de mulheres cantando em um estilo maternal (“canto dirigido para bebês”) por mais tempo do que gravações de mulheres cantando no seu estilo habitual (MASATAKA, 1999);
• preferências infantis por canto com melodias agudas do que as graves (TRAINOR; ZACHARIAS, 1998), que é uma das características do “canto dirigido para bebês”;
• bebês de dois a seis meses de vida que ouvem por mais tempo sequências de intervalos musicais consonantes do que as sequências de intervalos dissonantes (TREHUB, 2003);
• alterações endócrinas (cortisol salivar) em bebês de seis meses de vida após ouvirem suas mães cantando (TREHUB, 2001).
Essas “preferências” por contornos melódicos vocais específicos, timbres vocais e consonância intervalar, ligadas a estados endócrinos e emocionais subjacentes, também podem ser vistas como os primeiros exemplos de como a experiência musical (incluindo o canto) é processada de forma múltipla dentro das funções gerais do sistemas nervoso, endócrino e imunológico o integrado “corpo-mente” humano (THURMAN; WELCH, 2000).
Os sons podem ser gerados pelo próprio indivíduo como uma base para a comunicação musical intrapessoal, como por exemplo os primeiros sons vocais melódicos que surgem em torno de oito semanas de vida (PAPOUŠEK, H. 1996), o brincar com a voz que começa em torno dos quatro a seis meses (PAPOUŠEK, M 1996) e, posteriormente nas canções espontâneas em forma de pot-pourri para crianças em idade pré-escolar (COUNTRYMAN et al., 2015; MARSH, 2008) e como “outline songs” [canções com contorno melódico esquemático] (HARGREAVES 1996) que se baseiam em aspectos da cultura dominante da canção. Os sons também podem fazer parte da comunicação interpessoal, tal como o jogo vocal interativa e imitativa entre o bebê e os pais (PAPOUŠEK, M, 1996; TAFURI 2008), ou improvisações e composições de canções começadas por adultos (BARRETT 2006; ver BARRETT, 2017, neste volume11). À medida que o ser humano desenvolve a consciência social e as habilidades comunicativas vocais, há uma mudança da comunicação que tende a ser voltada para o intrapessoal, para as possibilidades de comunicação interpessoal no canto, mas a comunicação intrapessoal estará sempre presente.
O cantor em desenvolvimento se comunica em termos intrapessoais em uma variedade de maneiras em relação à natureza do sistema de feedback. O feedback pode ser auditivo, visual, tátil, cinestésico ou vestibular (WELCH et al. 2005) e é usado na construção da identidade musical individual, tanto no sentido de “identidade em música” como músico quanto no sentido de “música na identidade” como uma característica da identidade pessoal global de um indivíduo (HARGREAVES et al. 2002). Em um nível, há um sistema de feedback psicológico interno que está essencialmente fora do estado consciente e que se refere a um auto monitoramento momento a momento do comportamento do canto (cf. “formação do plano vocal” PERETZ E COLTHEART, 2003). Nos primeiros meses da infância, esse sistema está sendo desenvolvido através de comportamentos vocais que são os precursores do canto espontâneo e das primeiras manifestações da fala, antes de seu uso no surgimento de uma “união entre canções espontâneas e culturais” (HARGREAVES, 1996, p. 156) a partir dos dois anos de idade.
Uma teoria do esquema do desenvolvimento de canto (WELCH, 1985) propôs que qualquer início de um comportamento de canto específico (denominado “programa de voz” no modelo original), tal como imitar um modelo de canção externo, produziria expectativas de feedback proprioceptivo e exteroceptivo que são comparados ao feedback real recebido dos receptores sensoriais e do ambiente auditivo (como por exemplo tanto o som conduzido pelo osso quanto o som conduzido pelo ar), respectivamente. Esse sistema de feedback interno do comportamento motor também fornece a base para julgamentos psicológicos auto reflexivos quanto à “adequação” de qualquer exemplo de comportamento de canto, tal como sua correspondência a um modelo de canção externo ou a uma representação mental interna de uma tonalidade de uma dada melodia, das relações tonais, da intensidade e/ ou do timbre. Na ausência de feedback avaliativo provido de uma fonte externa (denominado “conhecimento de resultados” tradução livre de “knowledge of results”), o cantor tem que fazer seu próprio julgamento do nível de “adequação” de sua resposta cantada em comparação a seu modelo interno. Essa comparação provavelmente depende dos desenvolvimentos relativos do “léxico musical” e do “léxico fonológico” individualmente e entre eles (cf. PERETZ; COLTHEART 2003), no sentido de que a reprodução precisa de canções da cultura dominante requer a combinação de uma variedade de habilidades musicais e linguísticas (DAVIDSON, 1994; WELCH et al. 1995, 1997, 1998). Em alguns casos, haverá a percepção de uma incompatibilidade entre o comportamento do canto desejado e real e uma subsequente correção pode ocorrer (veja também DALLA BELLA, 2016, neste volume12, sobre a função de um “Loop motor sensorial vocal” tradução livre de “Vocal sensory motor loop”). A consciência por si só, no entanto, não é uma garantia necessária da precisão vocal ou do desenvolvimento de canto. O canto “desafinado”13 pode persistir, por exemplo, porque os cantores não sabem como mudar seu comportamento, mesmo que percebam que alguma coisa está “incorreta” ou “inadequada”. O canto “desafinado” também pode persistir porque não há uma consciência que seu comportamento referente ao canto precisa mudar.
Em um nível consciente e reflexivo, a comunicação intrapessoal do cantor é uma forma de auto monitoramento que é essencial para o desenvolvimento de uma performance especializada de diversas peças em uma ampla variedade de contextos acústicos. Ajustes tanto mentais quanto os relacionados à coordenação física, podem precisar ser feitos à medida que o performer passa da individualidade da aula de canto para o ambiente de ensaio mais coletivo [que envolve um público], bem como em relação às exigências da performance real, quando os níveis de estresse podem ser maiores (KENNY, 2011) devido ao estimulo eferente da glândula suprarrenal (CHANDA; LEVITIN, 2013; KOELSCH, 2014). Além disso, existem outros efeitos específicos do contexto. Comportamentos referentes à performance estão sujeitos a imperativos sociais e culturais essenciais, como mostrados nos estilos de canto clássico através de uma mudança na ênfase da agilidade vocal no século XVIII para ressonância vocal no final do século XIX (MASON, 2000) e pelos diferentes estilos culturais na performance operística (ROSSELLI, 2000). A prática, particularmente a prática deliberada, pode ser considerada como uma característica essencial da comunicação intrapessoal e do desenvolvimento da performance de excelência. Lehmann (1997) sugere que existem três representações mentais necessárias envolvidas particularmente no que se refere ao objetivo da performance desejada, da performance real e da produção da música.
No outro extremo do continuum de habilidade da performance estão aqueles indivíduos que são menos desenvolvidos como cantores (veja WISE, 2015, neste volume14; veja DALLA BELLA, 2016, neste volume15). Alguns indivíduos podem ter vivenciado uma desaprovação extrema em relação ao seu modo de cantar, geralmente feito por uma pessoa importante em sua vida (como por exemplo pais, professores ou colegas) (WELCH, 2001, 2017). Suas representações internas de si mesmos como “não cantores” e, por associação, como “não músicos” são construídas através de suas experiências negativas com o ato de cantar, geralmente vividas na infância. Esta autoimagem é comumente mantida por comportamentos como evitar cantar, pelo menos em público (KNIGHT, 1999; WISE; SLOBODA, 2008), embora há evidência de que mesmo aqueles que se consideram incapazes de cantar podem fazer progressos em um ambiente apropriado (RICHARDS; DURRANT 2003; WELCH, 2017). Essa classificação também pode ser suscetível a mudanças a nível ambiental e cultural, como demonstrado pela mulher que nasceu em Barbados e se mudou para os EUA quando tinha quatro anos de idade. Quando questionada sobre o porquê de ela estar convencida de que não era uma cantora, ela respondeu: “Agora que penso nisso, quando volto para o meu país de origem Barbados, eu digo que sou uma ‘cantora’. Eu não sou apenas uma ‘cantora’ neste país” (PASCALE, 2001, p. 165). Ela tinha duas representações internas diferentes de ser uma “cantora”: uma “cantora” dos EUA era alguém que podia liderar canções, cantar solos e fazer performance com certa facilidade, enquanto que uma “cantora” de Barbados era alguém que conseguia cantar rápido, canções “alegres”, e quem geralmente participava no canto em conjunto.
No entanto, até mesmo cantores com habilidades menos desenvolvidas podem cantar sozinhos e para eles próprios, seja acompanhados por outra atividade (como por exemplo tomando banho, fazendo trabalho doméstico, dirigindo, realizando trabalho de escritório ou de jardinagem) ou apenas para o seu próprio bem. Esta é mais uma indicação do estado agradável da comunicação musical intrapessoal, primeiramente evidenciada na infância, e da natureza inter-relacionada do canto, da emoção e do eu (self). Quando se desenvolvem em um ambiente apropriadamente estimulante, os cantores em desenvolvimento tendem a aumentar sua gama de comportamentos vocais, a melhorar sua autoimagem e, comumente a sentir-se melhores. Por exemplo, 14 semanas de aulas individuais duas vezes por semana direcionadas ao canto e a fala, que visavam produzir uma grande variedade de dinâmicas e coloridos vocais, juntamente com uma maior facilidade na produção vocal, também produziram uma redução significativa nos níveis de estresse (relacionados tanto ao estresse da saúde física quanto ao estresse cognitivo), um aumento do senso de bem-estar pessoal, maior autoconfiança e uma autoimagem mais positiva (WIENS et al., 2001). “O treinamento de voz se tornou uma metáfora de autodescoberta” (WIENS et al., 2001, p. 231).
Cross (2001) argumenta que a essência da música pode ser encontrada na sua própria estrutura seja na interação social e no significado individual, bem como na sua origem seja no som, no movimento e na heterogeneidade do significado. Salgado (2003) vai além, sugerindo que a comunicação da emoção é o coração da performance do canto através do uso combinado de sinais expressivos acústicos (vocais) e visuais (faciais). Ele conduziu uma série de experimentos empíricos para demonstrar como os movimentos e gestos do cantor (em termos vocais e faciais) facilitam a comunicação da interpretação dos cantores em relação a notação do compositor, em termos de transmitir o significado pretendido, incluindo seu caráter emocional. Além disso, tais expressões vocais e faciais na performance são similares àquelas usadas para transmitir significado emocional na vida cotidiana. Salgado (2003) conclui que as emoções retratadas por um cantor, embora sejam performáticas, não são “falsas”, mas são construídas sobre as recordações de emoções reais. Uma performance é considerada “autêntica” ou de alta qualidade terá uma correspondência próxima entre tais gestos vocais e visuais e a natureza das características originais da estrutura musical; é uma forma de corroboração.
Além da comunicação de um estado emocional básico, o ato de cantar transmite informações sobre pertencimento a grupos16, tais como idade, gênero, cultura e grupo social (veja HARDING, 2016, neste volume17). Vários estudos demonstraram que os ouvintes são capazes de identificar e classificar determinadas características tanto do cantor (como uma “criança”) quanto do canto (como “infantil”). Muitas vezes há uma correspondência precisa entre a avaliação do ouvinte e item acústico, mas nem sempre esse é o caso por causa das variáveis envolvidas, tanto em relação ao ouvinte quanto em relação ao cantor. Como descrito acima (veja “cantar como uma atividade física”), a manipulação vocal do performer em relação ao padrão de vibração das pregas vocais e à configuração do trato vocal são fundamentais para o ato e a arte de cantar. O resultado acústico é dependente do padrão fisiológico e este, por sua vez, está intimamente relacionado à idade, ao gênero, à experiência, aos níveis de habilidade, ao background social e cultural, e ao gênero musical particular do cantor.
Com relação à idade, um estudo com 320 crianças sem treino musical formal em canto, com idades entre três e 12 anos, encontrou uma correlação altamente regular e linear em julgamentos de ouvintes na relação entre a idade estimada e a idade cronológica real (SARGEANT; WELCH, 2008). Quando os ouvintes fizeram julgamentos incorretos, eles tenderam a subestimar a idade daqueles cantores com idade de sete anos ou mais, independentemente do gênero, sugerindo talvez que houve uma percepção categórica da qualidade vocal infantil que influenciou os julgamentos na direção de alguma média especulativa na idade das crianças. A capacidade de reconhecer que um(a) cantor(a) é uma criança está intimamente relacionada à natureza do resultado acústico18 (Rutkowski 2015). Apesar de o desenvolvimento ocorrer durante a infância, o aparato vocal da criança é significativamente diferente em relação ao seu tamanho e estrutura quando comparado ao aparato vocal do adulto (KENT; VORPERIAN, 1995; STATHOPOULOS, 2000), e produz um timbre vocal cantado relativamente distinto daquele produzido pelo adulto.
No outro extremo do continuum de idade, vozes de adultos mais idosos também têm uma assinatura acústica característica tanto no canto quanto na fala que se relaciona às mudanças no mecanismo vocal subjacente. No entanto, pode existir uma diferença significativa entre as idades cronológica e biológica de uma voz cantada (WELCH; THURMAN, 2000). É possível que uma pessoa “pareça ao cantar” várias décadas mais jovem (ou mais velho), dependendo do uso que foi feito da voz ao longo de sua vida e de sua saúde vocal (DE AQUINO; FERREIRA, 2016; PRAKUP, 2012). As vozes que parecem soar como vozes de adultos com mais idade podem apresentar uma musculatura vocal relativamente mais frágil e um funcionamento do sistema respiratório diminuído, levando a mudanças qualitativas na produção vocal, tal como um som mais “soprado”, uma intensidade máxima reduzida, uma maior variação nas alturas e talvez tremores vocais em sons constantes. No entanto, os cantores mais idosos são bem capazes de conduzir uma vida artística completa como artistas vocais se eles receberem oportunidade para isso (SILVEY, 2001).
Entre esses extremos de idade existem outras “idades” do canto, cada qual relacionada às realidades anatômicas e fisiológicas subjacentes do mecanismo da voz. Essas realidades físicas têm correlatos acústicos, sugerindo que existem pelo menos sete “idades” (WELCH, 2009b): a primeira infância (1 a 3 anos), a segunda infância (3 a 10 anos), a puberdade (8 a 14 anos), adolescência (12–16 anos), a idade adulta jovem (15–30 / 40 anos), a idade adulta de meia idade (40–60 anos), senescência (+ 60–80 anos)19 (cf. STATHOPOULOS et al., 2011, ver também http: // www.ncvs.org/ncvs/tutorials/voiceprod/tutorial/changes. html). No entanto, existe uma considerável sobreposição entre essas “idades”, não apenas por causa das diferenças individuais e de gênero nas idades vocais biológicas (em termos de amadurecimento), mas também nas idades vocais cronológicas.
Com relação ao gênero, há evidências de diferenças entre os gêneros feminino e masculino no padrão vibratório de prega vocal ao longo da vida a partir da metade da infância em diante (KREIMAN; SIDTIS, 2011). As vozes femininas tendem a ter um fechamento da prega vocal ligeiramente incompleto, resultando em uma produção tipo “sopro” que é característica em termos de espectro acústico, com mais “ruído” em suas produções vocais acima de 4000 Hz (WELCH, 2005). As vozes masculinas, por outro lado, tendem a ter um fechamento da prega vocal mais firme e uma queda no espectro acústico mais abrupto. O gênero parece ser comunicado pela quantidade de “sopro” que é percebida e pelo padrão de frequências formantes dentro de uma forma espectral global. O estudo mencionado anteriormente com crianças sem treino musical formal em canto (SARGEANT; WELCH 2008) constatou que os ouvintes cometiam maiores erros na identificação de gênero em meninos com menos de sete anos. Havia uma tendência linear estatisticamente muito significativa na qual a identificação correta do gênero estava estreitamente correlacionada com o aumento da idade dos meninos: os meninos pré-púberes tornaram-se perceptivelmente mais “masculinos” no canto a medida que ficavam mais velhos. Nenhuma tendência foi evidente com as meninas no canto, mas houve relativamente poucos erros de identificação do gênero feminino em todas as faixas etárias.
Os efeitos da formação e do treinamento na comunicação de gênero no canto fornecem evidências similares tanto das particularidades quanto das semelhanças entre os gêneros. Vários estudos (HOWARD et al. 2002; WELCH; HOWARD, 2002) demonstraram que existe uma leve tendência de os coristas masculinos formalmente treinados serem identificados com maior precisão do que as coristas femininas formalmente treinadas, mas essa precisão na percepção é suscetível à performance individual, ao grupo específico de cantores, às idades e às experiências dos cantores, à escolha do repertório e ao ouvinte. Todavia, tanto as análises acústicas quanto os resultados perceptivos sugerem que as meninas com treino musical formal em canto são capazes de cantar com uma qualidade de voz percebida como “masculina”. As mesmas cantoras também são capazes de cantar de uma maneira mais característica “feminina”. Há também evidências de confusão de gênero no canto “coletivo” (coral), bem como no canto solo (WELCH et al., 2012).
Os efeitos da experiência, treinamento e níveis de habilidade são evidenciados em estudos com crianças, adolescentes e adultos com treino musical formal em canto. Cantores que tiveram treinamento formal em música clássica tendem a produzir um timbre mais uniforme em toda a sua extensão vocal. A posição relativamente baixa da laringe cria uma cor perceptiva específica para a voz do cantor treinado, embora isso também possa variar culturalmente (tal como pode ser evidenciado nas diferenças entre os estilos de performance entre as óperas alemã e italiana). Há uma interação intrigante entre gênero e treinamento no canto de melodias mais agudas. Para as vozes masculinas, o registro de falsete formalmente treinado é característico, como na voz contra tenor, sendo uma forma de produção vocal que utiliza um equilíbrio específico da atividade muscular dentro da laringe masculina para produzir uma extensão vocal do canto feminino. Este estilo de cantar é explorado tanto na música clássica quanto na música popular em todo o mundo e pode comunicar um senso de ambiguidade de gênero ou androginia (KOIZUMI, 2001; PARROTT, 2015).
Ao contrário, o registro feminino cantado mais agudo (empregando uma coordenação vocal semelhante à voz masculina denominado registro de “flauta” ou “assovio”) apresenta desafios na comunicação do texto no canto porque todas as vogais compartilham aproximadamente as mesmas frequências formantes, de modo que a inteligibilidade da vogal torna-se problemática (WELCH; SUNDBERG, 2002).
Existe uma literatura extensa sobre os diferentes gêneros musicais e o canto (veja por exemplo POTTER, 2000) e existem certas características sobre o canto como comunicação no que diz respeito a grupos sociais e culturais, que podem ser resumidos da seguinte forma:
• O canto pode ser uma forma de identificação de grupos e de vínculo social (ver PARKINSON, 2016, neste volume20). Exemplos são encontrados no uso de canções especialmente compostas para empresas com o propósito de reforçar a definição da cultura da empresa na gestão empresarial da alta administração (VAAG et al., 2014) e em muitos cenários diferentes de corais, tal como reunir indivíduos desfavorecidos para criar um “Coro de Homens Sem-teto”21 (BAILEY; DAVIDSON, 2013), bem como em comunidades corais tradicionais da Islândia e da ilha canadense Terra Nova22 (veja DAVIDSON; FAULKNER, 2016, neste volume23).
• O canto também pode ser uma atividade transformadora em termos culturais, na qual membros ou grupos evolvem novos estilos ou subgêneros musicais ou modificam práticas de performance previamente estabelecidas. Exemplos de tais comunidades de prática são encontradas na música de fusão24 de grupos de jovens do sul da Ásia (FARRELL et al., 2000) e também no recente influxo de vozes femininas no tradicional coro de catedral integralmente masculino que oferece o potencial de uma “paleta de timbre vocal” mais ampla na performance do repertório previamente estabelecido (HOWARD; WELCH, 2002). Aqui as mensagens são sobre inovação musical, modernidade, desafio, e/ ou justiça social, tal como no rap ou no hip hop (FORMAN, 2000; TAYLOR; TAYLOR 2007).
• As atividades regulares de canto podem transmitir uma sensação de padrão, de ordem e de contraste sistemático para o dia de trabalho e a semana de trabalho, tal como no uso de canções na sala de aula da escola de educação especial para estruturar os períodos de atividade e nos ensaios sazonais e de performance do coro amador/ da sociedade coral.
• O canto também pode ser usado como agente na comunicação da mudança cultural, tal como na identificação de certas “Escolas de Canto” pelo Ministério da Educação da Nova Zelândia (BOYACK, 2003) como forma de promover um novo currículo de artes.
Em cada um desses casos, o ato de cantar, seja individual ou como parte de um grupo, pode facilitar tanto a comunicação musical quanto a comunicação não musical, um sentimento de pertencimento ou de ser um “outsider” (cf. BECKER, 1963).
O canto tem sido usado nos últimos anos para atenuar o impacto de grandes desafios sociais (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2012). Estes incluem a necessidade de manter ativa uma população idosa que aumenta em número ou de ajudar a lidar com o aumento dos primeiros sintomas de doenças degenerativas, tais como a demência e a doença de Alzheimer (VELLA-BURROWS, 2012). Atividades formais de canto, como “Cantando para o cérebro”25 um programa de canto popular desenvolvido pela Sociedade Alzheimer26 no Reino Unido (BANNAN; MONTGOMERY-SMITH, 2008), foram elaboradas e implementadas em lares de idosos e centros comunitários em todo o Reino Unido com o objetivo de reunir pessoas em um ambiente solidário e amigável e de evocar memórias e palavras através de canções familiares e da música (ALZHEIMER’S SOCIETY, 2016).
A pesquisa que apoiou o desenvolvimento de tais programas sugere que – nas pessoas afetadas pela doença de Alzheimer no estágio moderado ao grave a memória semântica musical pode ser preservada (CUDDY et al., 2012). Além disso, para essa população, cantar palavras recém aprendidas em associação com uma melodia familiar tem levado por repetidas vezes a uma melhor retenção das palavras e a uma consolidação na memória, quando comparado ao aprendizado de palavras sem música (MOUSSARD et al. 2012, 2014). A associação musical que acontece no cérebro durante o estágio de codificação parece facilitar a aprendizagem e retenção de palavras em pessoas afetadas por demência e pela doença de Alzheimer (PALISSON et al., 2015). Além disso, o canto também tem sido associado a uma melhoria geral do humor e da qualidade de vida em pessoas afetadas por demência (CAMIC et al., 2013).
A conexão entre o canto e a melhora do humor, da interação social, da qualidade de vida relacionada à saúde, da saúde mental e do bem-estar tem sido fortemente relatada na literatura (AHESSY, 2016; CLEMENTS-CORTÉS, 2015; PEARCE et al., 2016; REAGON et al., 2016, SKINGLEY; BUNGAY, 2010, veja DAVIDSON; GARRIDO, 2015, neste volume27). Algumas explicações subjacentes a esses efeitos têm sido associadas à produção neuroendócrina de ocitocina e cortisol (KREUTZ, 2014; WEINSTEIN et al., 2016), dois hormônios que têm sido tradicionalmente associados a vínculo social e respostas ao estresse (STERNBERG, 2001). Também existe um número crescente de evidências destacando o efeito de intervenções psicossociais nas respostas neuroendócrinas e imunológicas de pessoas envolvidas em atividades relacionadas à música (FANCOURT et al., 2014). Por exemplo, em um grupo de adultos com câncer, o canto em grupo tem sido associado a um aumento de citocinas específicas e a uma redução da inflamação, sugerindo uma correlação entre a melhora da resposta imune ao câncer e o ato de cantar (FANCOURT et al., 2016).
O canto coletivo também mostrou ser eficaz na redução do isolamento social em pessoas mais idosas, promovendo o prazer e resultando em uma melhor saúde mental e física, bem como aumento da estimulação cognitiva (CLIFT et al., 2010; SAARIKALLIO, 2011; SKINGLEY; BUNGAY, 2010). Particularmente, Cohen e colegas (2007) realizaram uma série de estudos controlados não-randomizados com 166 participantes (média de idade de 80 anos) participando de oficinas de canto, e constataram que quando comparados ao grupo de controle os participantes do grupo experimental [que participaram de oficinas de canto] relataram menos problemas de saúde, menos quedas, menos visitas ao médico e menor uso de medicamentos. Clift e seus colegas (2010), em uma revisão da literatura sobre os benefícios do canto coletivo, sugeriram que essa atividade promove o bem-estar social e pessoal, encoraja a participação social e reduz a ansiedade e a depressão.
O engajamento ativo com a música em geral e o canto particularmente promove um senso de propósito, de comunidade e de independência na vida das pessoas que participam de atividades relacionadas ao fazer musical (CREECH, HALLAM, MCQUEEN, et al., 2013; CREECH, HALLAM, VARVARIGOU, et al., 2013), proporcionando-lhes algumas ferramentas-chave para auxiliar no processo de envelhecimento saudável, tanto física quanto mentalmente.
Cantar é um comportamento variado que abrange a comunicação humana que é multifacetada e concomitante, com diferentes mensagens sendo produzidas e percebidas ao mesmo tempo, dentro e fora da percepção do estado consciente. O cantor se comunica intrapessoalmente através do fluxo acústico que ocorre de momento a momento, fornecendo diversos tipos de feedback sobre as características musicais, a qualidade vocal, a “precisão” e “autenticidade” vocais, o estado emocional e a identidade individual. Para o ouvinte externo (pais, colegas, público), há também uma comunicação interpessoal que é musical, referencial (através do texto), emocional e não-musical, tal como no senso de pertencimento a um determinado grupo social e / ou grupo cultural. Cantar é se comunicar – o canto é comunicação.
COUTINHO, E.; SCHERER, K. R.; DIBBEN, N. Singing and Emotion In: WELCH, G; HOWARD, D. M.; NIX, J. (Eds.)., The Oxford Handbook of Singing, Oxford Handbooks Online, Online Publication Date: Apr 2014 DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199660773.013.006