Dossiê
O modo de dizer da teoria musical: uma reflexão sobre a terminologia de Schenker
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 6, núm. 3, 2021
Recepção: 17 Abril 2021
Aprovação: 12 Setembro 2021
Financiamento
Fonte: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
Resumo: Coloca-se em discussão a tradução para a língua portuguesa de alguns termos da teoria musical de Heinrich Schenker. Detendo-se, principalmente, sobre os termos Urlinie e Ursatz, procura-se realizar um debate a respeito do significado de tais conceitos, significado que aparece como a manifestação estritamente musical do princípio da unidade da obra de arte. Tal princípio assume um papel emblemático na teoria se Schenker por meio do conceito de coerência orgânica e, portanto, do conceito de organismo. A argumentação se concentra sobre os múltiplos significados da palavra Satz, destacando seus usos no vocabulário musical e, principalmente, nos escritos de Schenker, mais especificamente, como elemento formador do termo Ursatz. A discussão oportuniza uma reflexão a respeito de termos propostos por Schenker e de suas implicações e alcances quando vertidos para outras línguas, épocas e lugares.
Palavras-chave: teoria musical austro-germânica, música e filosofia, Heinrich Schenker coerência orgânica.
Abstract: The translation into Portuguese of some terms of Heinrich Schenker’s music theory is discussed. Focusing mainly on the terms Urlinie and Ursatz, we seek to conduct a debate about the meaning of such concepts, meaning that appears as the strictly musical manifestation of the principle of unity of the work of art. Such a principle assumes an emblematic role in Schenker’s theory through the concept of organic coherence and thus the concept of organism. The argument focuses on the multiple meanings of the word Satz, highlighting its uses in the musical vocabulary and, especially, in Schenker’s writings, more specifically, as a forming element of the term Ursatz. The discussion provides an opportunity for reflection on the terms proposed by Schenker and their implications and scope when translated into other languages, times, and places.
Keywords: Austro-Germanic music theory, music and philosophy, Heinrich Schenker, organic coherence.
Como vínculo linguístico, um nome implica sempre, ao mesmo tempo, em um vínculo lógico, em uma unidade objetiva: é por isso que a atribuição de nomes é um dos mais importantes encargos do Espírito.
Heinrich Schenker, Der Freie Satz.[4]
Conceito-chave para a compreensão da concepção musical de Heinrich Schenker, coerência orgânica (organischen Zusammenhang) é a expressão escolhida por ele para servir como denominação geral para o seu pensamento, para sua teoria musical. Essa afirmação está contida na seguinte passagem de Der Freie Satz: “Vos apresento [...] uma nova teoria, tal como se encontra nas obras dos grandes mestres, precisamente enquanto o segredo da sua origem e do seu desenvolvimento: a teoria da coerência orgânica” (SCHENKER, 1935, p. 2).[5] Noção complexa que estende ligações com toda uma rede de conceitos, utilizada como uma espécie de lema, o conceito de coerência orgânica representa uma síntese do pensamento de Schenker.
O termo alemão Lehre, traduzido no trecho citado pela palavra teoria, mas que pode significar também aprendizagem, ensino, ensinamento, doutrina, lição[6], veio a ser traduzido, na conhecida versão em língua inglesa de Der Freie Satz, de uma forma um tanto livre, pela palavra conceito[7]. Embora compreensível de alguma maneira, na medida em que coerência orgânica é, de fato, um conceito, a tradução não se justifica do ponto de vista linguístico, chamando a atenção devido à distância que existe entre o significado de ambas as palavras: teoria e conceito não são propriamente equivalentes. Além disso, a tradução da palavra Lehre pela palavra conceito no trecho citado tende a obscurecer o caráter emblemático que o termo coerência orgânica assume no pensamento de Schenker justamente como a denominação geral de sua teoria musical, anunciada por ele como a teoria da coerência orgânica (die Lehre vom organischen Zusammenhang).
O conceito de coerência orgânica possui um significado amplo que remete à noção de unidade da obra de arte musical. Este significado geral, quer dizer, o papel emblemático ocupado por este conceito, se sustenta sobre o significado específico que esta expressão assume no pensamento de Schenker. Enquanto a definição da unidade da obra musical, a coerência orgânica, remete diretamente aos conceitos de Ursatz e de Urlinie. Para que se possa compreender as especificidades tanto do conceito de coerência orgânica quanto da teoria que este conceito nomeia, é importante que se compreenda o significado do adjetivo orgânico e, portanto, do conceito de organismo, que Schenker recebe da tradição e sobre o qual ele articula o sentido particular que o termo vem a assumir no seu pensamento.
No ensaio Vom Organischen Der Sonatenform, título que pode ser traduzido literalmente como Sobre o Orgânico da Forma Sonata[8], Schenker faz um comentário que traz à tona o papel fundamental que o conceito de organismo representa, não apenas para o seu próprio pensamento, mas também, historicamente, para a teoria da música em geral:
Mas onde na teoria anterior se encontra ao menos indícios de tal caminho para a unidade? É certo que ela também prega incansavelmente o orgânico, embora apenas com as palavras baratas de uma esperança devota; na verdade, ela não conhece ainda a essência do orgânico musical e, por isso, também não é capaz de indicar os meios que conduzem ao orgânico (SCHENKER, 1926, p. 47).[9]
Lugar-comum do discurso da teoria musical, de acordo com o testemunho do próprio Schenker, a analogia entre a obra de arte e o organismo possui uma história que remete aos primórdios da filosofia, às obras de Platão e de Aristóteles.
O conceito de organismo[10]
Faz parte de um diálogo chamado Fedro a célebre passagem na qual Platão, para definir o que seria um bom discurso em oposição a um discurso ruim, compara-o a um organismo vivo. Nas palavras de Platão:
Todo discurso deve ser formado como um ser vivo, ter o seu organismo próprio, de modo a que não lhes faltem nem a cabeça, nem os pés, e de modo a que tanto os órgãos internos como os externos se encontrem ajustados uns aos outros, em harmonia com o todo (PLATÃO, 2000, p. 98, 264c).
Cabe, entretanto, perguntar: qual seria o critério para essa comparação? Qual aspecto do organismo é levado em conta como base para uma tal analogia? A resposta de Platão é: o ser uno, o ser completo, o formar um todo, uma unidade. A noção de unidade, representada exemplarmente pelo organismo vivo, é determinada pela necessidade das partes para a formação do todo. Nas palavras de Platão: “ter o seu organismo próprio, de modo a que não lhes faltem nem a cabeça, nem os pés”. Ao mencionar a necessidade da cabeça e dos pés, Platão faz referência à necessidade de haver, no discurso, um início, um meio e um fim. A definição de Platão parece, nesse sentido, fazer menção não só à necessidade da existência de uma extensão apropriada e de uma proporcionalidade entre as partes que formam o todo de um discurso, mas também, essencialmente, à noção de causalidade: início, meio, e fim são aquilo que são por conta de uma relação de causa e efeito que os determina enquanto partes de um todo.
A concepção de unidade orgânica assumida por Aristóteles na Poética parece seguir expressamente o conceito apresentado por Platão: Aristóteles, assim como Platão, se utiliza do conceito de organismo como uma metáfora para a ideia de unidade da obra. No entanto, Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia reconhece na formulação de Aristóteles um desenvolvimento significativo em relação à de Platão. Segundo Abbagnano: “a partir de Aristóteles, o conceito de fim passou a fundamentar a noção de organismo e assim continuou mesmo quando, com Descartes, o organismo passou a ser considerado máquina.” (ABBAGNANO, [1971] 2007, p.733). Retira-se desta citação duas considerações relevantes: uma diz respeito à determinação da unidade do organismo por Aristóteles a partir da noção de finalidade; a outra se refere a uma confirmação de que o conceito de organismo da filosofia antiga serve como fundamento para a discussão moderna, que, em certa medida, veio a ser renovada por Descartes a partir da noção de mecanismo. Ao abordar a discussão moderna em torno do conceito de organismo, Abbagnano centraliza a sua explicação nos pensamentos de Descartes e de Kant.
Opondo-se à tese cartesiana que equipara organismo e mecanismo, Kant buscou demonstrar como, no organismo, a força responsável por seu movimento, caracterizada por ele como força formadora, é interna, inerente ao próprio organismo; enquanto no mecanismo, essa força é externa, denominada força motora. Na formulação de Kant, aquilo que já se apresentava em Platão, embora não necessariamente de forma explícita, aparece agora claramente: Kant define o organismo a partir da noção de causalidade. Em suas palavras: “um produto organizado da natureza [ou seja, um organismo] é aquele em que tudo é fim e reciprocamente meio.” (KANT, [1790] 2016, p. 242). Ser reciprocamente meio e fim significa, em outras palavras, ser a causa e ser, ao mesmo tempo, o efeito. O que significa ainda: produzir a si mesmo. Kant ilustra a sua concepção de organismo tomando como exemplo uma árvore. Em suas palavras:
Uma árvore produz em primeiro lugar uma outra árvore segundo uma conhecida lei da natureza. A árvore, contudo, que ela produz é da mesma espécie; e assim produz-se a si mesma segundo a espécie na qual ela se conserva firmemente como espécie, quer como efeito, quer ainda como causa, produzida incessantemente a partir de si mesma e do mesmo modo produzindo-se muitas vezes a si mesma. Em segundo lugar, uma árvore produz-se também a si mesma como indivíduo. Na verdade, esta espécie de efeito designamos somente crescimento; mas isso deve ser tomado num sentido tal que seja completamente distinto de qualquer outro aumento segundo leis mecânicas e deve ser visto como uma geração [Zeugung], se bem que com outro nome. [...] Em terceiro lugar, uma parte desta criatura produz-se também a si mesma do seguinte modo: a preservação de uma parte depende da preservação da outra, e reciprocamente. O olho, numa folha de árvore, implantado no ramo de uma outra, traz a um pé de planta estranho uma planta da sua própria espécie e desse modo o enxerto num outro tronco. Daí que se possa, na mesma árvore, também ver qualquer ramo ou folha como simplesmente enxertado ou inoculado, por conseguinte como uma árvore subsistindo por si mesma, que somente depende de uma outra e dela parasitariamente se alimenta. De igual modo as folhas são verdadeiramente produtos da árvore, porém por sua vez preservam-se; com efeito, uma desfolhagem repetida matá-la-ia, e seu crescimento depende da ação das folhas no tronco (KANT, [1790] 2016, p. 236-237).
Kant distingue três sentidos nos quais é possível afirmar a existência de uma tal relação, ao mesmo tempo, de causa e efeito entre as partes e o todo, que caracteriza o organismo. Em seu exemplo, Kant afirma que uma árvore produz a si mesma, primeiramente, enquanto espécie, no sentido da reprodução; em segundo lugar, uma árvore produz a si mesma, enquanto indivíduo, no sentido do crescimento; em terceiro lugar, Kant menciona um significado que remete a uma relação de identidade entre as partes e o todo, no sentido de cada parte conter, em si mesma, o todo, na medida em que a sobrevivência de uma árvore (todo) depende da sobrevivência de suas folhas (partes). Seriam esses os três sentidos nos quais Kant afirma que em um organismo “tudo é fim e reciprocamente meio”.
A discussão a respeito do significado do conceito de organismo dentro da tradição filosófica aponta para o conceito de causalidade como o seu fundamento, na medida em que é através dela (causalidade) que se diferencia o que é vivo daquilo que não é, o que, no contexto da Modernidade significa: diferenciar o organismo do mecanismo. Com o que foi dito é possível observar que a analogia entre o organismo e a obra de arte atravessa os mais diferentes momentos da história da filosofia. Esta analogia se constitui historicamente como a afirmação da unidade da obra de arte enquanto o mais alto valor e como o critério último para a determinação, não apenas da qualidade da obra, mas também do seu sentido e, portanto, da sua inteligibilidade. A absoluta necessidade das partes para a conformação do todo, que caracteriza a unidade da obra, é, desse modo, determinada por uma relação de causalidade que se estabelece entre as partes e o todo, tal como em um organismo vivo. A definição do conceito de organismo que, assim, se coloca e que se fundamenta sobre a noção de causalidade estabelece ainda uma outra relação bastante significativa: o ter em si mesmo a causa do próprio movimento que caracteriza a força formadora remete o conceito de organismo a um outro conceito também bastante presente nos escritos de Schenker, o conceito de liberdade. Embora esta consideração que aponta para a existência de uma relação entre os conceitos de organismo e liberdade represente certa digressão no que diz respeito ao objetivo desse comentário – que consiste somente em uma breve revisão histórica acerca do conceito de organismo e da sua utilização em referência à obra de arte – é oportuno caracterizar esta relação, entre organismo e liberdade, já neste momento, mesmo que de forma preliminar, na medida em que ela serve como fundamento para uma relação não necessariamente aparente que existe entre duas importantes concepções do pensamento de Schenker nomeadas através das expressões coerência orgânica e composição livre.
Sobre o conceito de liberdade em sua relação com o conceito de organismo
O conceito de liberdade pode ser definido ao longo da história da filosofia, grosso modo, de duas maneiras: liberdade no sentido negativo, como independência de algo; e liberdade em sentido positivo, como autonomia, como autodeterminação.[11] Este significado positivo de liberdade, como autodeterminação, que implica na faculdade de dar início ao próprio movimento, coincide com a noção kantiana de força formadora usada para caracterizar o organismo. Acerca dessa relação entre os conceitos de organismo e liberdade, Abbagnano, em seu Dicionário, afirma:
Liberdade consiste não só em ter em si a causa dos próprios movimentos, mas também em ser esta causa. Esta definição, que se aplica a todos os seres vivos, privilegia o homem porque a causa dos movimentos humanos é aquilo que o próprio homem escolhe como móbil, enquanto juiz e árbitro das circunstâncias externas (ABBAGNANO, [1971] 2007, p. 606) [grifo nosso].
Não é apenas no título Der Freie Satz (A Composição Livre) que Schenker atribui liberdade à música. No ensaio Uma palavra a mais sobre a Urlinie (Noch ein Wort zur Urlinie), Schenker escreve:
Assim, nossos mestres, a partir da observação da Urlinie, dos graus e da seleção dos intervalos, souberam cultivar uma liberdade na condução de vozes cuja vasta dimensão não se pôde, até hoje, ter nem sequer noção, uma vez que a lei do contraponto estrito [strengen Satzes] não foi nem concebida em sua profundidade, nem pressentida em tais prolongamentos. E assim aconteceu que nossa juventude, distinta da de outrora, parecendo apenas viver entre nós, com a frivolidade democrática de um anão gigante, pôde aceitar o pensamento de que, primeiramente, teria de destituir a condução de vozes de sua liberdade, como se ela não dispusesse desde há muito da mais suprema liberdade, uma liberdade absolutamente inconcebível para eles, e eles, de fato, conseguiram abater uma liberdade de tão longa data porque, em sua ignorância, voltaram-se também contra aquela lei. Pois o que seria a liberdade senão uma emanação do âmago da lei? (SCHENKER, 1922, p. 4-5).[12]
Atribuir liberdade à condução das vozes, como Schenker o faz, significa, de alguma maneira, atribuir à música a causa e o princípio de seu próprio movimento. Esta atribuição de liberdade à música, ou às notas musicais, implica, em última instância, em atribuir vida à música. A intenção inicial, de discutir o significado do conceito de organismo herdado pela tradição filosófica sobre o qual Schenker articula o significado específico que este conceito assume em seu pensamento, possibilitou que se visualizasse, mesmo que preliminarmente, uma diferença relevante entre o significado tradicional do conceito de organismo nas discussões estéticas – o seu sentido metafórico – e a concepção de Schenker que, ao atribuir liberdade à composição ou à condução das vozes, faz um uso literal – e não apenas metafórico – do conceito de organismo em relação à música.[13]
Com isso se indica um elemento marcante da teoria schenkeriana da coerência orgânica cujo significado consiste na atribuição de vida, de um tipo de vida lógica[14] à música. A discussão deste caráter específico do pensamento de Schenker, ou seja, a sua atribuição de uma vida lógica à música, deve ser precedida por um debate acerca do modo como, para além desse caráter particular da teoria musical de Schenker que parece colocá-la em uma relação direta com a filosofia do Idealismo alemão, o sentido tradicional do conceito de organismo permanece válido e vigente em seu pensamento.
Sobre o significado da partícula Ur-[15]
A unidade da obra de arte musical parece ser o traço essencial da teoria schenkeriana da coerência orgânica que, nesse sentido, mantém-se alinhada ao significado do conceito de organismo oriundo da tradição filosófica. A manifestação estritamente musical da noção de unidade da obra de arte é expressa por Schenker por meio dos conceitos de Ursatz e de Urlinie. Esses termos são compostos a partir da partícula Ur-, partícula que participa da formação de uma série de palavras alemãs, e que traz em seu significado uma remissão à ideia de origem (Ursprung, Herkunft, Ursache), de princípio (Anfang, Prinzip), e também, embora, talvez, em um sentido um pouco mais distante, à noção de fundamento (Grundlage).
Casanova usa a palavra originário como tradução da partícula Urquando, para manter um jogo de palavras, traduz a palavra alemã Ursache, que significa causa, de uma forma literal, pela expressão coisa originária[16]. Assim como Casanova, Maria Filomena Molder, ao traduzir a obra de Goethe A Metamorfose das Plantas (Versuch die Metamorphose der Pflanzen zu erklären), opta também pelo termo originário como tradução da partícula Ur-: no estudo introdutório à obra de Goethe escrito pela tradutora, o termo Urpflanze é vertido na expressão planta originária[17]. Por outro lado, diferentemente dos exemplos anteriores, Giannotti utiliza a palavra primordial em sua tradução de A doutrina das Cores (Zur Farbenlehre) de Goethe Nela o termo Urphanomen é traduzido pela expressão fenômeno primordial, embora em determinado momento, em uma nota explicativa, seja usada, em substituição, a expressão fenômeno originário.
Nos três casos mencionados, a partícula Urfoi traduzida de duas formas distintas: pelas palavras primordial e originário. O significado dessas palavras não exclui a sua equiparação a um terceiro termo: a palavra fundamental. A tradução de Der Freie Satz para a língua inglesa utiliza esta terceira opção: como se sabe, foram escolhidas as expressões fundamental line e fundamental structure para traduzir os termos Urlinie e Ursatz. Embora a palavra fundamental faça parte de um campo semântico próximo àquele das palavras primordial e originário – no sentido de que todas elas remetem às ideias de causa, princípio e origem – as noções de fundamento e de fundamentação, noções mais estritamente relacionadas ao adjetivo fundamental, parecem possuir uma implicação um pouco distinta. Diferentemente das palavras primordial e originário, os termos fundamento e fundamentação parecem pressupor a existência de um processo teórico (formal), escrito, de estabelecimento de regras ou princípios. É certo que a obra de Schenker é totalmente comprometida e definitivamente determinada por um projeto de fundamentação da teoria e da composição musical, destacadamente as suas Novas Teorias e Fantasias Musicais (Neue Musikalische Theorien und Phantasien), nas três partes que a compõe. No entanto, a tese defendida por Schenker se refere à validade e à efetividade da Urlinie e do Ursatz enquanto origem do fenômeno musical mesmo antes do estabelecimento formal desta fundamentação que é realizada por ele em sua obra. Aliás, este parece ser um passo essencial da argumentação de Schenker: o de que as obras-primas da música expressam, a partir de si mesmas, em seu desenvolvimento mais próprio, a sua origem no acontecimento musical mais simples, representado pelo Ursatz. Isto equivale a dizer não só que as próprias obras devem ser o fundamento para o discurso acerca da música (teoria, análise e crítica musical, história da música, etc...), mas também, que o Ursatz representa, inclusive de um ponto de vista histórico, o fundamento musical independentemente de uma fundamentação teórica formal. Portanto o Ursatz não seria o fundamento exclusivamente no sentido de uma fundamentação, mas, mais propriamente, a origem. É este significado que, em um sentido determinante, é posto em questão nos termos Urlinie e Ursatz por meio da partícula Ur-.
Outra questão relativa à escolha da palavra fundamental como tradução desta partícula, e à remissão aos termos fundamentação e fundamento que acompanha esta palavra, está na apropriação técnico-científica desses termos, verificável, por exemplo, através da ampla utilização da expressão fundamentação teórica como componente necessário da pesquisa científica. O aspecto problemático de tal vinculação se encontra na rejeição de Schenker em conceber a investigação e o discurso acerca da música como científicos, sustentada por ele especialmente em Der Freie Satz. Nas suas palavras: “Música é, em toda parte e a todo momento, arte, na composição, na execução, até mesmo na sua história, mas em parte alguma e em momento algum ela é uma ciência”[18] (SCHENKER, 1935, p. 6). A recusa de Schenker em conceber a música como uma ciência, em qualquer uma de suas manifestações, inclusive no discurso acerca dela, impede, se se quiser ser condizente com o seu pensamento, que se imponha a ele a aparência científica que o termo fundamental pode vir a suscitar. Nesse sentido, a palavra originário, enquanto uma derivação do termo origem, com toda a carga semântica que esta palavra carrega, incluindo a sua possível remissão a problemas filosóficos (metafísicos), parece ampliar a compreensão do seu significado.[19]
A opção por traduzir a partícula Urpor originário determina quase que imediatamente a tradução da palavra Urlinie, por conta da simplicidade deste termo, pela expressão linha originária.[20] O mesmo não ocorre com a palavra Ursatz, que exige ainda maiores considerações. Antes, entretanto, é importante mencionar que uma mudança na tradução da partícula Urtem implicações sobre a tradução de outros termos que não necessariamente são formados a partir dessa partícula, mas cuja tradução é, de algum modo, determinada por ela. Este parece ser o caso do termo Hintergrund, traduzido para o inglês pela palavra Background, e que é traduzido para a língua portuguesa, muitas vezes, pela expressão nível fundamental, possivelmente por uma questão de correspondência com a tradução dada à partícula Ur-. No entanto a palavra alemã hinter não implica necessariamente em uma referência aos termos fundamento, fundamental, e, muito menos a fundamentação, mas representa a indicação espacial daquilo que se encontra por detrás ou ao fundo[21]. De acordo com Hans Weisse[22], o termo Hintergrund, que, assim como diversas outras palavras da terminologia schenkeriana, advém dos mais diversos campos do conhecimento, consiste em uma aproximação ou uma analogia entre a música e a pintura. Em carta para Jeanette Schenker[23], Weisse afirma:
A língua inglesa é demasiado precisa para permitir o uso, em sentido figurado, de expressões alegóricas como meio de comunicação. Hintergrund, Mittelgrund, e Vordergrund, por exemplo, significarão alguma coisa para o inglês tão somente quando aplicadas à pintura. Elas simplesmente não são adequadas para caracterizar o audível e, usadas assim, seriam apenas palavras que encobrem e obscurecem ao invés de inequivocamente impor de forma instantânea ao leitor ou ouvinte aquilo que é pensado e imaginado.
Aliás, considero, mais do que primeiramente se estaria disposto a admitir, como uma fatalidade que se impõe sobre o caminho da divulgação da teoria que a atribuição de nomes, coisa que o próprio Schenker diz na “Composição Livre” ser uma das mais importantes tarefas do Espírito, pague tributos a um princípio tão barato e obscuro como a metáfora. Com poucas exceções, todos os termos são emprestados de outras disciplinas, seja da filosofia, da pintura, da geologia... (Schenker Documents Online, OJ 15/16, [101], carta de Hans Weisse para Jeanette Schenker de 22 de outubro de 1935).[24]
Portanto, ao traduzir a partícula Urpor originário, perde-se a necessidade de se manter aquela concordância – com a sua tradução por fundamental –, abrindo-se a possibilidade de que se traduza o termo Hintergrund de forma mais literal e, de acordo com o testemunho de Weisse, em plena concordância com as intensões de seu autor, pela expressão plano de fundo. Com isso, afasta-se, mais uma vez, a possível vinculação do discurso de Schenker com o discurso científico que os termos fundamental, fundamento e fundamentação podem sugerir, recuperando-se a significação original do termo, a sua vinculação com um outro campo artístico, o da pintura.[25] Assim, preservando-se esta vinculação, traduz-se, de forma correspondente, os termos Mittelgrund por plano médio, e Vordergrund por primeiro plano.[26]Destaca-se ainda que a tradução da palavra Grund, neste contexto, pela palavra plano ao invés de nível, além de condizer com o significado original da terminologia, oferece ainda a vantagem de estabelecer uma diferença mais nítida entre a noção de camada (ou nível) e a noção de plano. Na medida em que a palavra plano constitui uma designação mais geral, ela deixa em aberto a possibilidade de que um plano seja formado por mais de uma camada (Schicht), coisa que, de fato, ocorre com o plano médio (Mittelgrund).
Os significados da palavra Satz
No que se refere a uma problematização do termo Ursatz, é necessário ainda que se esclareça os sentidos da palavra Satz. O dicionário Langenscheidt indica pelo menos seis significados para esta palavra. Além destes seis significados, é apresentada uma relação de outras sete palavras compostas a partir da palavra Satz cujos significados jogam mais alguma luz sobre ela:
Satz [zats] 1. (=Sprung) salto 2. GRAM frase, oração; Logik, a. MATH teorema; axioma 3. Im Spiel série; MUS a. andamento 4. Zusammengehöriges [pertencer ao mesmo grupo, estar relacionado] jogo, conjunto 5. (=Bodensatz) borra 6. TYPO [tipografia] composição ‘Satzaussage GRAM predicado; verbo ‘Satzbau construção (da frase), fraseologia ‘Satzlehre sintaxe ‘Satzteil parte da oração; elemento sintático ‘Satzung estatuto; regulamento ‘satzungsgemäβ consoante o estatuto (od regulamento) ‘Satzzeichen sinal de pontuação.[27]
A multiplicidade de significados da palavra Satz exposta pelo verbete indica o grau de dificuldade em traduzi-la adequadamente. No que se refere ao uso específico da palavra dentro do vocabulário musical, o dicionário alemão online wissen.de destaca os três seguintes significados, os quais se somam ao uso já mencionado como andamento:
1. a estrutura da composição, sua natureza técnica (por exemplo, estrita, livre, com uma ou várias vozes, homofônica ou polifônica, vocal, orquestral [Orchestersatz], etc...) ensinada como teoria da composição [(Ton-)Satzlehre], dividida em disciplinas individuais da teoria musical. 2. Na teoria musical dos séculos XVIII e XIX, em sentido estrito, um elemento estrutural da melodia. 3. seção individual fechada em si mesma de uma obra contituída por várias seções, por exemplo, uma Suíte, Sonata, Sinfonia.[28]
Portanto, com relação aos significados da palavra Satz especificamente dentro do vocabulário musical, apresenta-se aqui, a princípio, quatro significados distintos: 1. Andamento (Dicionário Langenscheidt); 2. Movimento – designação para as partes ou seções de peças musicais de maior extensão, como sonatas ou sinfonias (Dicionário online wissen.de); 3. Como designação para um elemento estrutural da melodia utilizada, notadamente, pela teoria das formas musicais (Dicionário online wissen.de); 4. Como uma abreviação para os termos Tonsatzlehre, Tonsatz ou Satzlehre (Dicionário online wissen.de). Com exceção deste último, todos os outros parecem se afastar do significado da palavra Satz pressuposto por Schenker na definição do termo Ursatz.
O significado da palavra Satz enquanto “um elemento estrutural da melodia”, discriminado na relação acima como o terceiro, conforme foi dito, constitui um uso ligado ao estudo da fraseologia musical e, portanto, à teoria das formas musicais (Formenlehre).
Faz-se referência assim a um determinado conjunto de obras e de autores entre os quais é possível citar Johann Gottfried Walther (1684-1748), Joseph Riepel (1709-1782), Johann-Phillip Kirnberger (1721-1783), Heinrich Christoph Koch (1749-1816), Anton Reicha (1770-1836) e Adolf Bernhard Marx (1795-1866). Em sua tese a respeito da obra de Heinrich Christoph Koch, Barros dá indicações sobre o significado da palavra Satz neste contexto específico traduzindo-a pela palavra frase:
Dado que, durante todo o século XVIII, a música era concebida como uma linguagem, e que sua arte era essencialmente discursiva, todos os autores que trataram sobre aspectos da fraseologia aproveitaram-se das categorias disponíveis nos manuais de retórica para classificar e caracterizar as unidades de pensamento musical, conforme equivalências estabelecidas entre elas e as unidades discursivas. As categorias de Koch corroboram essa prática: são elas o período [Periode], a frase [Satz] e o inciso [Einschnitt]. A menor unidade de pensamento que encerra um sentido completo é a frase. O inciso é uma parte da frase, e contém, por isso, um sentido incompleto. O período, por sua vez, é um conjunto de frases articulado pelo mais eficiente ponto de repouso do espírito, a cadência perfeita (BARROS, 2011, p. 41).
Dentro desta perspectiva, o estudo fraseológico é caracterizado como uma teoria da mecânica da construção do discurso musical. Para ilustrar esta caracterização, recorre-se mais uma vez à tese de Barros a respeito de Koch, onde se afirma que:
Koch atribui à fraseologia musical uma lógica análoga à lógica da linguagem verbal, mesmo quando a música não está associada a um texto, como na modalidade vocal. Nesse sentido, constrói toda uma teoria chamada de mecânica da melodia, em que ele categoriza as unidades de pensamento musical e sistematiza sua formação, desenvolvimento e encadeamento (BARROS, 2011, p. 34).
A caracterização feita por Barros da teoria de Koch, em particular, como um estudo da “mecânica da melodia”, mas que pode ser estendida à teoria das formas musicais de um modo geral, representa uma concepção diametralmente oposta à noção de organicidade musical defendida por Schenker. O uso do adjetivo mecânico, que constitui uma nítida oposição ao adjetivo orgânico, torna manifesta a contraposição em que esta concepção musical pode ser colocada em relação à de Schenker. As direções opostas tomadas por ambas as concepções evidencia o fato de que este uso da palavra Satz, no sentido de uma frase musical, não corresponde ao uso feito que será feito por Schenker. De qualquer modo, fica estabelecida assim uma outra possibilidade de tradução para esta palavra no campo musical: a sua tradução pela palavra frase. Esta tradução constitui um uso específico da palavra Satz, uso que é feito dentro do contexto de uma teoria das formas musicais. A teoria das formas (Formenlehre), enquanto um âmbito restrito de uma teoria da composição musical mais geral, pode ser incluída, no contexto da língua alemã, sob as denominações Tonsatzlehre, Tonsatz ou Satzlehre, termos que necessitam ser analisados mais detidamente.
Em sua acepção dentro dos campos da linguística e da gramática, Satzlehre significa sintaxe[29]. O termo Tonsatzlehre é usado como designação para uma teoria da composição compreendida como o estudo da sintaxe ou gramática musical e, nesse sentido, como uma denominação ampla para um conjunto de disciplinas particulares, descrito, algumas vezes, como a reunião de duas disciplinas: contraponto e harmonia[30]; outras vezes, como a reunião de três disciplinas: contraponto, baixo cifrado e harmonia. De acordo com o Dicionário Musical Austríaco online (Österreichisches Musiklexikon online), em cujo verbete é possível encontrar uma explicação acerca do motivo de discordância em relação ao número de disciplinas ou assuntos que seriam reunidos sob tal denominação, o termo Satzlehre é definido da seguinte maneira:
Doutrina escrita e teoricamente fundamentada da composição musical [musikalischen Satz]; termo coletivo comum para contraponto, baixo cifrado e harmonia, assuntos da composição polifônica [mehrstimmigen Komposition]. Enquanto subdivisões da teoria da composição [Kompositionslehre], os assuntos mencionados coexistiram lado a lado sem alteração no século XIX. Cada um deles acentua diferentes aspectos da composição [Satzes]. Suas raízes históricas remontam a diferentes domínios. O contraponto se estabeleceu no século XIV na zona de fronteira entre a composição e a improvisação vocal. A antiga doutrina do contraponto correspondia essencialmente a uma doutrina da progressão de intervalos (a duas vozes). Na era da tonalidade harmônica, a combinação de vozes conduzidas de forma relativamente independente tornou-se o objeto do contraponto. O baixo cifrado foi uma conquista da prática performática instrumental do século XVII. Nele, a notação e a realização improvisada do contínuo foram codificadas. A composição musical [Der musikalische Satz] é considerada uma consequência do dedilhado. A doutrina do baixo cifrado retém cumulativamente as diferentes possibilidades da construção dos acordes. A teoria da harmonia, cujo protótipo é o Traité de l’harmonie (1722) de Jean-Philippe Rameau, é baseada nas ideias do Iluminismo. Ela aspira a uma penetração racional na composição musical [musikalischen Satzes] por meio de um número restrito de princípios. Com base na ideia de inversão, a doutrina da harmonia cria um sistema dos acordes e da sua progressão.
Na composição dodecafônica [Zwölftonkomposition] da Segunda Escola de Viena, os campos de estudo do contraponto e da harmonia seriam reunidos enquanto as duas dimensões da composição [Satzes], horizontal e vertical. A ordenação das notas em ambas as dimensões seria determinada pela série e por suas transformações, o que tornaria supérflua uma abordagem desvinculada (contraponto atonal, harmonia atonal).
São características das tradições austríacas da Satzlehre a captação inicial de impulsos estrangeiros da França (contraponto, teoria da harmonia) e da Itália (baixo cifrado) e o estabelecimento relativamente tardio da disseminação escrita por meio de obras de referência de autores locais; uma grande adesão à teoria do baixo cifrado até o século XIX; o impacto da teoria do baixo fundamental [Fundamentalbasstheorie] nos conceitos harmônicos de H. Schenker, A. Schönberg e E. Kurth; e finalmente, a forte manifestação dos componentes lineares da composição [linearen Satzkomponenten] na tradição austríaca (J. J. Fux, Schenker, Kurth). Com excessão de Schenker e Kurth, cujos estudos de contraponto e harmonia são primordialmente analíticos, ou seja, diferente da Satzlehre comumente orientada para uma aplicação composicional imediata, a teoria do contraponto de J. J. Fux e o método de composição dodecafônico de Schönberg obtiveram a mais ampla repercussão internacional (EYBL, 2001).[31]
O uso da palavra Satz no termo Tonsatzlehre oferece os fundamentos para uma tradução em língua portuguesa da palavra Satz por composição. Com isso se complementa, em relação às possibilidades de tradução da palavra Satz, a lista que mencionava quatro significados desta palavra dentro do vocabulário musical, que ficam agora estabelecidos como:
1. Andamento, 2. Movimento, 3. Frase, e 4. Composição. Os termos Tonsatzlehre, Tonsatz, Satzlehre, ou, em seu uso mais abreviado ainda, apenas Satz, se referem, conforme foi dito, a uma teoria da composição concebida como um estudo da sintaxe ou gramática musical que foi orientada ou subdividida, até o século XIX, particularmente dentro da tradição austríaca, de acordo com três âmbitos ou abordagens da composição polifônica: contraponto, baixo cifrado e harmonia, os quais, a partir do século XX, no contexto da chamada Segunda Escola de Viena, tornam-se restritos ao contraponto e à harmonia.
Uma das definições consultadas da palavra Satz que a remete ao termo Tonsatzlehre, a do dicionário online wissen.de,[32] ao descrever alguns aspectos da “natureza técnica” da composição musical, aspectos que, de algum modo, fazem referência às disciplinas individuas na qual essa teoria da composição se subdivide, menciona uma distinção que é designada pela oposição entre as expressões strenger Satz e freie Satz. Esta distinção, que parece diferenciar a composição musical com caráter pedagógico ou instrutivo, denominada strenger Satz, da composição que possui pretensões artísticas, denominada freie Satz, constitui um aspecto importante para a compreensão do título da obra de Schenker (Der Freie Satz) e, desse modo, do projeto teórico que esse título nomeia. Embora essa distinção ofereça um caminho sólido e pertinente para a compreensão do título Der Freie Satz, a hipótese aventada aqui é a de que o significado desse título não se reduz a esta interpretação, mas que a sua significação plena envolve ainda as implicações filosóficas do conceito de liberdade e, portanto, da relação deste conceito com os conceitos de organismo e causalidade. Compreende-se, dessa forma, que somente a partir da conjunção desta dupla significação é que se pode atingir o sentido mais próprio que a utilização da palavra liberdade acarreta para tal título: por um lado, sua referência à obra musical artística, distinta da obra com fins pedagógicos ou instrutivos, e, por outro lado, sua referência aos conceitos de organismo e causalidade. A presença de tal distinção no interior da chamada Tonsatzlehre torna, de qualquer modo, evidente a relação que a teoria schenkeriana mantém com esta tradição, confirmando a sua vinculação com esta teoria da composição.
Na medida em que a expressão strenger Satz é traduzida constantemente pela expressão contraponto estrito, esta distinção – entre strenger e freie Satz – traz à tona outra possibilidade de tradução da palavra Satz até agora ainda não mencionada: a sua tradução pela palavra contraponto. O fundamento dessa possibilidade se encontra em um significado da palavra Satz já exposto aqui por meio do verbete do Dicionário Langenscheidt que menciona, entre outras, a sua possibilidade de tradução pelas palavras jogo – como uma indicação ao pertencimento a um mesmo grupo – ou conjunto. A ideia de conjunto, de agrupamento, de uma reunião, se encontra na origem do conceito de contraponto enquanto a reunião ou unidade formada por linhas melódicas autônomas. A palavra portuguesa contraponto é usada em sentidos distintos, embora correlacionados, que também podem ser observados nos usos da palavra alemã Kontrapunkt. O verbete Kontrapunkt do Dicionário Austríaco online define este termo como:
A técnica de associar verticalmente (harmonicamente) linhas horizontais (melódicas), o que permite a escuta da sua independência. O termo deriva do latim “punctus contra punctum” (“nota contra nota” ou “ponto contra ponto”) e refere-se não só à técnica de composição polifônica [polyphonen Satztechnik], mas também ao ensino relacionado a ela, bem como à voz individual como uma parte e à peça inteira como resultado do procedimento.[33]
Conforme foi dito, compreende-se que os mesmos usos da palavra alemã Kontrapunk podem ser encontrados no Brasil em relação à palavra contraponto, isto é: como denominação para a técnica da composição polifônica que associa verticalmente linhas horizontais; como denominação para o ensino dessa técnica; como denominação para a voz individual que se relaciona com as outras vozes como parte da composição; e como denominação para a peça inteira como resultado daquele procedimento ou técnica que segue as regras da simultaneidade melódica. É possível observar o uso da palavra Satz como sinônimo de Kontrapunkt especificamente em relação aos dois últimos significados, ou seja, tanto em relação “à voz individual como uma parte” da composição contrapontística, quanto em relação “à peça inteira como resultado do procedimento” de sobrepor uma melodia à outra. Um exemplo da tradução da palavra Satz por contraponto pode ser encontrado na própria obra de Schenker, na tradução para o inglês do subtítulo do livro Contraponto (Kontrapunkt). O texto de Schenker denominado Contraponto (Kontrapunkt), que constitui a segunda parte de suas Novas Teorias e Fantasias Musicais, foi publicado em dois volumes. O subtítulo do primeiro volume, Cantus Firmus und Zweistimmiger Satz, foi traduzido para o inglês como Cantus Firmus and Two-Voice Counterpoint (Cantus Firmus e Contraponto a Duas Vozes). O subtítulo do segundo volume, Dreiund mehrstimmiger Satz, Übergänge zum freien Satz, foi traduzido para o inglês como Counterpoint in Three and More Voices, Bridges to Free Composition (Contraponto a Três ou Mais Vozes, Caminhos para a Composição Livre). Conforme é possível perceber, em ambos os títulos a palavra Satz é traduzida pela palavra contraponto. A tradução do subtítulo do segundo volume representa ainda um caso limite de uma problemática que ocorre na tradução: na mesma frase, duas ocorrências de uma mesma palavra, neste caso a palavra Satz, são traduzidas, cada uma delas, por uma palavra diferente: ora por contraponto (counterpoint), ora por composição (composition). Estes exemplos, que indicam a possibilidade da tradução da palavra Satz por contraponto, apenas ilustram aquilo que foi afirmado anteriormente: que no termo contraponto subjaz a ideia de uma reunião, de uma conjunção passível de ser expressa por meio da palavra Satz.
A partir da discussão a respeito desse uso que a palavra Satz pode receber no contexto musical atualiza-se a relação apresentada anteriormente como: andamento, movimento, frase, composição e contraponto. Embora a utilização de mais de uma palavra em português para a tradução de uma única palavra estrangeira contribua negativamente para que se perca a unidade de significado que se manifesta nesta única palavra, o caráter extremamente polissêmico da palavra Satz parece impedir a realização deste ideal. Como vimos, a tradução da obra de Schenker para a língua inglesa não é capaz de se esquivar de tal situação, fato que se torna patente ao se comparar as traduções da palavra Satz que ora é traduzida por composição (no título Der Freie Satz para Free Composition,), ora por contraponto (nos subtítulos de Kontrapunkt), ora por estrutura (especificamente na tradução do termo Ursatz para fundamental structure). Parece, desse modo, ser impossível lidar com uma tradução única da palavra Satz sem que se leve em consideração os seus usos particulares, o que torna mais necessária ainda uma discussão a respeito do significado do termo Ursatz. Vale ressaltar que, com exceção da tradução de Ursatz para fundamental structure, tradução que é mantida pela versão em francês, que utiliza a expressão structure fondamentale, não se apresentou, por nenhuma das fontes que puderam ser consultadas, a possibilidade de uma tradução da palavra alemã Satz pela palavra estrutura.
Sobre o termo Ursatz
A passagem de Der Freie Satz em que o conceito de Ursatz é apresentado contém uma indicação a respeito do modo como Schenker compreende o significado da palavra Satz dentro deste termo. Schenker afirma: “Der Hintergrund in der Musik wird durch einen kontrapunktischen Satz vorgestellt, von mir Ursatz benannt.” (SCHENKER, 1935, p. 16).[34] A Satz que vem a ser compreendida por Schenker como uma Ursatz é caracterizada por ele, nessa passagem, como uma “kontrapunktischen Satz”, uma Satz contrapontística, isto é, uma Satz relativa ao contraponto. É, portanto, com vistas ao seu caráter contrapontístico que a palavra Satz é tomada nessa definição. Na medida em que, conforme foi dito, a palavra contraponto é usada em português em referência tanto “à voz individual como uma parte” da composição contrapontística, quanto “à peça inteira como resultado do procedimento” de sobrepor uma melodia à outra, parece adequado e pertinente que se traduza a passagem citada da seguinte maneira: “O plano de fundo da música será representado por meio de um contraponto, denominado por mim contraponto originário”. Ressalta-se ainda não só que a palavra Satz é tomada ali em articulação com contraponto, mas também que tanto o termo Urlinie quanto Baßbrechung[35] são definidos, naquela passagem, a partir do conceito de contraponto: a Urlinie como “a voz superior deste contraponto” e a Baßbrechung como a “voz inferior”:
O plano de fundo [Hintergrund] da música será representado por meio de um contraponto, denominado por mim contraponto originário [Ursatz]:
Fig. 1
A voz superior deste contraponto originário, que traz o desenlace [Aufrollung] horizontal de um acorde [Klang], eu denomino linha originária [Urlinie], a voz inferior se ocupa do arpejamento [Brechung] deste acorde [Klang] por meio da sua quinta superior.
Enquanto uma sucessão melódica especificamente por passos de segunda, a linha originária [Urlinie] implica em movimento, expectativa em relação a um objetivo e também, por fim, no cumprimento dessa travessia. É a nossa própria ânsia de viver que, assim, transferimos para o traço da linha originária [Urlinie-Zuges], ela manifesta uma correspondência perfeita com a nossa vida espiritual. O arpejamento na voz inferior implica igualmente em um movimento na direção de um objetivo determinado e no cumprimento dessa travessia, o caminho em direção à quinta superior e o regresso para a fundamental [Grundton].
A vida da linha originária [Urlinie] e do baixo arpejado [Baßbrechung] não se expressa apenas na primeira sucessão horizontal e no primeiro arpejamento; ela se espalha tanto mais através do plano médio [Mittelgrund], por meio daqueles acontecimentos aos quais denominei camadas de condução de vozes [Stimmführungsschichten], camadas transformacionais [Verwandlungsschichten], prolongamentos, desenredo [Auswickelung], etc..., em direção ao primeiro plano [Vordergrund] (SCHENKER, 1935, p. 16-17).[36]
Conclusão
Procurou-se refletir aqui sobre o significado de alguns termos usados por Schenker e sobre algumas possibilidades de tradução desses termos para a língua portuguesa. Como se sabe, o estudo da teoria musical de Schenker é marcado historicamente pela migração de alguns de seus alunos – entre os quais podemos citar Hans Weisse, Oswald Jonas, Felix Salzer e Viktor Zuckerkandl – para os Estados Unidos, tendo obtido lá uma repercussão maior do que aquela que teve lugar nos países de língua alemã. Por conta desse percurso histórico e geográfico, a língua inglesa veio a se tornar uma referência importante para o estudo dessa teoria. É por isso que uma discussão a respeito da terminologia utilizada por Schenker passa necessariamente por sua tradução para o inglês e, consequentemente, por uma avaliação das implicações que essa mediação realizada pela língua inglesa em relação à teoria de Schenker possa, porventura, ter acarretado. A comparação feita aqui da terminologia original em alemão com as suas traduções para o inglês e para o francês indica que a recepção do pensamento de Schenker nos Estados Unidos parece ser caracterizada por uma ênfase nas implicações práticas desse pensamento, no seu caráter técnico. Nesse sentido parecem sintomáticas as declarações de Hans Weisse, parcialmente citadas acima:
Após meses do mais intenso estudo da Composição Livre, tornou-se perfeitamente claro para mim que uma tradução palavra por palavra do livro é impossível, e que aquele que o fizesse, tornaria o livro mais inacessível ainda para um leitor anglófono do que se nem o tivesse traduzido. Nem um único termo (na medida em que existam palavras em inglês para eles) poderia significar algo inequívoco, algo imaginável para alguém que cresceu dentro do espírito da língua inglesa. Tornou-se claro para mim, para o bem da ideia, que é da maior importância para a humanidade, que uma transposição para o inglês é possível apenas se a teoria renascer no espírito da língua inglesa. Isto significa um completo afastamento da letra, da palavra e da expressão específicas, e exige, como substituto para cada termo, uma palavra ou um grupo de palavras que caracterize apropriadamente a coisa como aquilo que ela realmente é. A língua inglesa é demasiado precisa para permitir o uso, em sentido figurado, de expressões alegóricas como meio de comunicação. Hintergrund, Mittelgrund, e Vordergrund, por exemplo, significarão alguma coisa para o inglês tão somente quando aplicadas à pintura. Elas simplesmente não são adequadas para caracterizar o audível e, usadas assim, seriam apenas palavras que encobrem e obscurecem ao invés de inequivocamente impor de forma instantânea ao leitor ou ouvinte aquilo que é pensado e imaginado.
Aliás, considero, mais do que primeiramente se estaria disposto a admitir, como uma fatalidade que se impõe sobre o caminho da divulgação da teoria que a atribuição de nomes, coisa que o próprio Schenker diz na “Composição Livre” ser uma das mais importantes atribuições do Espírito, pague tributos a um princípio tão barato e obscuro como a metáfora. Com poucas exceções, todos os termos são emprestados de outras disciplinas, seja da filosofia, da pintura, da geologia... Isso espalha sobre o mundo auditivo de Schenker, que se refere apenas ao real, efetivo e objetivo, um véu quase impenetrável de misticismo, e é somente por isso que aqueles que devem ser conduzidos a seu mundo auditivo apenas por meio de sua palavra escrita levantam suspeitas de que ele estaria praticando metafísica e são afastados por suas dúvidas críticas (Schenker Documents On- line,OJ 15/16, [101], 22 de outubro, 1935).[37]
A preocupação externada por Weisse em relação ao risco de que o aspecto especulativo do pensamento de Schenker pudesse implicar em prejuízo para a sua divulgação e aceitação em território estadunidense parece ter contribuído para que se enfatizasse a objetividade e a efetividade da teoria por meio da sua condição como uma técnica analítica. A possibilidade de um “renascimento” da teoria a partir do “espírito” objetivo da língua inglesa proposto por Weisse, a necessidade de um “afastamento” em relação à formulação em sua língua materna, parece ter encontrado ressonância no trabalho de seus sucessores e alunos. A existência de divergências entre o texto alemão e o texto em inglês, que passa desde a reformulação de certas passagens e de certos termos, até a retirada de trechos inteiros do corpo do texto, atestam essa afirmação[38]. Não se questiona aqui a legitimidade do esforço realizado pelos alunos de Schenker, no sentido de ressaltar o caráter objetivo da teoria por meio da sua caracterização como uma técnica de análise musical. Nossa intensão é tão somente a de indicar a existência de tal movimento, no sentido de constatar algumas características relevantes da recepção da teoria schenkeriana nos Estados Unidos. Características que parecem influenciar diretamente a escolha das palavras na tradução da obra de Schenker para a língua inglesa, e que se tornam mais perceptíveis na medida em que se pergunta pela relação que a obra de Schenker guarda com a Filosofia.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
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Notas
Ich halte es übrigens für ein Verhängnis, das der Verbreitung der Lehre mehr als man zuerst anzunehmen gewillt ist im Wege steht, dass die
„Namengebung” von der Schenker selbst sagt, sie sei eines der wichtigsten Geschäfte des Geistes, im „freien Satz“ einem so billigen und verschleierndem [sic] Prinzip huldigt, wie das des Gleichnisses es ist. Mit wenigen Ausnahmen sind alle Termini erborgt von andern Disziplinen, sei es Philosophie, Malerei, Geologie. ” (Schenker Documents Online, OJ 15/16, [101], 22 de outubro, 1935, transcrição e tradução William Drabkin).
In der Zwölftonkomposition der Zweiten Wiener Schule wurden die Gegenstandsbereiche von Kontrapunkt und Harmonielehre als die beiden Dimensionen des Satzes, Horizontale und Vertikale, zusammengeführt. Die Anordnung der Töne in beiden Dimensionen wird von der Reihe und ihren Transformationen bestimmt, was eine getrennte Betrachtungsweise (atonaler Kontrapunkt, atonale Harmonik) überflüssig macht.
Kennzeichnend für österreichische Traditionen der S. sind das anfängliche Aufgreifen auswärtiger Impulse aus Frankreich (Kontrapunkt, Harmonielehre) und Italien (Generalbass) und das relativ späte Einsetzen einer schriftlichen Verbreitung durch Lehrbücher lokaler Autoren; ein langes Festhalten an der Generalbasslehre bis ins 19. Jh.; die Wirkung der Fundamentalbasstheorie auf die harmonischen Konzepte von H. Schenker, A. Schönberg und E. Kurth; schließlich die starke Ausprägung der linearen Satzkomponenten in der österreichischen Tradition (J. J. Fux, Schenker, Kurth). Abgesehen von Schenker und Kurth, deren Studien zu Kontrapunkt und Harmonik primär analytisch, d. h. nicht wie S. gemeinhin auf unmittelbare kompositorische Umsetzung ausgerichtet sind, entfalteten die Kontrapunktlehre von J. J. Fux und Schönbergs Methode der Komposition mit zwölf Tönen die größte internationale Wirkung”. (EYBL, 2001).
Die oberstimme dieses ursatzes, die die horizontale Aufrollung eines Klanges bringt, nenne ich UrIinie, die kontrapunktierende Unterstimme befaßt sich mit der Brechung dieses Klanges durch die Oberquint.
Als melodisches Nacheinander in bestimmten Sekundschritten bedeutet die Urlinie Bewegung, Spannung zu einem Ziele hin und zuletzt auch die Erfüllung dieses Weges. Unser eigener Lebenstrieb ist es, den wir solcherart auch in die Bewegung des Urlinie-Zuges hineintragen, sie offenbart einen völligen Gleichgang mit unserem Seelenleben. Die Brechung der unterstimme bedeutet ebenfalls Bewegung zu einem bestimmten Ziele hin und Erfüllung des Weges, den Weg zur Oberquint und zurück zum Grundton.
Das Leben der Urlinie und der Baßbrechung drückt sich aber nicht allein in der ersten horizontalen Folge und in der ersten Brechung aus, es breitet sich auch noch durch den Mittelgrund, durch die von mir Stimmführungs, Verwandlungsschichten, Prolongationen, Auswickelung u. ä. benannten Zustände aus bis hin zum Vordergrund” (SCHENKER, 1935, p. 16-17).
Ich halte es übrigens für ein Verhängnis, das der Verbreitung der Lehre mehr als man zuerst anzunehmen gewillt ist im Wege steht, dass die
„Namengebung” von der Schenker selbst sagt, sie sei eines der wichtigsten Geschäfte des Geistes, im „freien Satz“ einem so billigen und verschleierndem [sic] Prinzip huldigt, wie das des Gleichnisses es ist. Mit wenigen Ausnahmen sind alle Termini erborgt von andern Disziplinen, sei es Philosophie, Malerei, Geologie... Dies verbreitet über Schenkers Hörwelt, die sich nur auf Wirkliches, Wirksames, Tatsächliches bezieht, einen fast undurchsichtigen Schleier von Mystischem und nur daher rührt es, dass diejenigen, die durch sein geschriebenes Wort zu seiner Hörwelt hingeleitet werden sollen den Verdacht erheben, es betreibe Metaphysik und vom kritischen Zweifel abgeschreckt werden. (Schenker Documents Online, OJ 15/16, [101], carta de Hans Weisse para Jeanette Schenker de 22 de outubro de 1935, transcrição e tradução de William Drabkin).
Autor notes