Dossiê
Razões e meios para o envolvimento com a proposta de Heinrich Schenker
Reasons and means for involvement with Heinrich Schenker’s proposal
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 6, núm. 3, 2021
Recepção: 12 Maio 2021
Aprovação: 07 Julho 2021
Resumo: A expansão da percepção de obras musicais que emerge do contato de músicos com a proposta schenkeriana é valorizada neste artigo. Para tanto, as autoras compartilham com o leitor suas experiências docentes junto ao ensino dessa prática analítica, em interlocução com processos harmônicos, contrapontísticos e texturais.
Palavras-chave: Heinrich Schenker, Motivo musical, Contraponto musical, Harmonia musical, Gráfico musical em multiníveis.
Abstract: The expansion of the perception of musical works that emerges from the contact of musicians with the Schenkerian proposal is valued in this article. Therefore, the authors share with the reader their experience with the teaching of this anatictical practice, in dialogue with harmonic, contrapuntal and textural processes.
Keywords: Heinrich Schenker, Musical motif, Musical counterpoint, Musical harmony, Musical multilevel graphic.
Quais têm sido os caminhos percorridos por uma proposta de análise musical inovadora, com base em uma teoria que sintetiza a estrutura harmônico-melódica contrapontisticamente e a apresenta em gráficos que refletem a audição como protagonista dessa análise?
Em 1952, Milton Babbitt (In: PELES et al., 2012, p. 19) definiu a proposta schenkeriana como “um corpo de procedimentos analíticos que refletem a percepção de uma obra musical como uma totalidade dinâmica”3. Quase sessenta anos depois, ao avaliar o contexto atual dos países de língua inglesa, o teórico cognitivo estadunidense David Temperley (2011, p. 146) a descreve como “a abordagem dominante para a análise da música tonal nos países de língua inglesa, [...] uma força poderosa e pervasiva [...], o próximo passo padrão na análise tonal após os fundamentos do núcleo de graduação; [...] ou de pós-graduação”.4
O trabalho teórico de Heinrich Schenker (1868-1935), desenvolvido em Viena (Áustria), desde as primeiras décadas do século passado, chega aos EUA na época da Segunda Guerra Mundial, principalmente através de seus ex-alunos Oswald Jonas (1897-1978), Ernst Oster (1908-1977) e Felix Salzer (1904-1986), que para lá emigraram. O teórico e estudioso de Schenker, William Rothstein, apresenta a polêmica travada então, no ensaio ao qual denominou “A Americanização de Heinrich Schenker”. Os três ex-alunos iniciaram publicações a partir dos textos de Schenker. Rothstein (1986, p. 9) observa como “a expansão do império shenkeriano se acelerou desde a publicação de Free Composition”5 e, ao lado de novos adeptos, formaram-se então alguns fortes opositores6.
É nesse contexto que surge, em 1952, a publicação de Felix Salzer, Structural Hearing, com o subtítulo Coerência tonal na música. O livro apresenta, em gráficos e exemplos da literatura musical, tópicos como Gramática e significado do acorde, Música como direção do movimento, Harmonia e contraponto, Prolongamento do acorde, Tonalidade e implicações de estrutura e prolongamento. Rothstein (1986, p. 11) testemunha a clareza e a forma didática do livro de Salzer para estudantes ainda não familiarizados com as análises de Shenker7. Como Diretor do Mannes College (New York), Leopold Mannes (In: Salzer, 1962 [1952], viii), afirma no Prefácio do livro, que “o trabalho pioneiro de Schenker foi modificado, expandido e completado, em certo sentido, pela primeira vez, de tal forma que sua aplicação possibilita o entendimento da música tonal de vários estilos e períodos”8.
A trajetória de Schenker chegou ao Brasil no início da década de 1960, segundo consta no artigo “The Reception and Dissemination of European Music Theories in Brazil”, quando o musicólogo George Wasserman esteve nos Cursos de Verão de Teresópolis (RJ), patrocinados pela Pró-Arte9. No final daquela década, a pianista, compositora e professora Ester Scliar passou a trabalhar o contorno melódico por graus conjuntos nos Seminários de Música Pró-Arte, no Rio de Janeiro. O artigo conclui que “talvez, conceitos de Schenker de estrutura e coerência na música tonal tenham sido inicialmente transmitidos no Brasil através de Salzer” (ALMADA et al., 2018).
A proposta schenkeriana encontrou seu espaço nas universidades brasileiras desde o surgimento dos cursos de pós-graduação em Música na década de 1970, tendo se acentuada na década de 1980. Creditamos esse fato ao retorno de musicólogos brasileiros que estudaram nos Estados Unidos – como Cristina Capparelli Gerling, Ilza Nogueira e Jamary de Oliveira (cf. ALMADA et al., 2018) – bem como ao reconhecimento de sua abrangência, seja pela identidade com as práticas da performance e da história da composição, seja pela relevância que conquistou junto à área de Música desde a década de 1950. Nas aulas de Análise Musical ministradas por duas pianistas e analistas musicais brasileiras10, Professoras Maria Lúcia Pascoal e Adriana Lopes Moreira11, a bibliografia tem estado baseada em edições de neo-schenkerianos – desde Felix Salzer (1962 [1952]), até Schmalfeldt (2011), passando por Forte e Gilbert (1982), Neumeyer e Tepping (1992), Meeùs (1993), Moreira (2002), Huff (2010), Fraga (2011) e Cadwallader e Gagné (2011 [1998]), tendo incorporado recentemente o livro publicado por Cristina Gerling e Guilherme Sauerbronn de Barros (2020) e a tese de Renata Coutinho de Barros Correia (2021)12. Naturalmente, publicações originais de Schenker são abordadas, bem como artigos com perspectivas específicas, como é o caso de Burkhart (1978), Beach (1983, 1989), Baker (1983), Forte (1984, 1988, 1992), Rothstein (1986), Straus (1987), Agawu (1989), Schmalfeldt (1991), Rink (1993), Dunsby (1999), Straus (2003), Dodson e Jonas (2003), Rifkin (2004), Drabkin (2006), Barros e Gerling (2007, 2009), Koslovsky (2010), Temperley (2011) e Barros (2018)13.
Nessas aulas, procuramos apresentar a proposta schenkeriana nas diversas dimensões que ampliam a percepção dos músicos para os diferentes enfoques da obra musical analisada. Ao trazerem à tona diferentes níveis de profundidade, estes enfoques provocam no músico analista uma sensação de percepção tridimensional da obra.
Partimos da premissa de que o interesse voltado ao trabalho teórico-analítico de Schenker é, em alguns aspectos, comparável ao interesse que se tem pela obra de grandes compositores14 (DRABKIN, 2006, p. 812):
Aquilo que é chamado de “teoria schenkeriana” constitui-se de um conjunto complexo de princípios reguladores que inicialmente pretendiam explicar a música tonal dos séculos XVIII e XIX; é, ao mesmo tempo, uma síntese de muitas tradições, abrangendo o contraponto de Fux, o ensino do baixo contínuo de Carl Philipp Emanuel Bach e a teoria harmônica do final do século XIX. [...] um sistema analítico de imenso poder empírico [...]15 (DRABKIN, 2006, p. 812).
Contudo, sempre que o tema análise schenkeriana entra na pauta de discussões, surgem os que ainda hoje insistem no foco em uma suposta redução da linguagem do objeto para a metalinguagem, da obra para o discurso sobre a obra. Ao desconsiderarem a totalidade da apresentação gráfica em multiníveis, reduzindo-a apenas ao momento de apresentação da Ursatz, são perdidas as interlocuções desta reflexão musical multifacetada com práticas de percepção, intuição analítica, composição e performance. Já a afirmativa de que a notação em um gráfico schenkeriano em multiníveis não representa a duração “é, obviamente, normativamente correta, mas poderia facilmente desviar a atenção das ricas possibilidades abertas por este gráfico”, observa o musicólogo ganense Kofi Agawu (1989, p. 290).
Em boa medida, o discurso crítico desabonador é calcado em uma descontextualização das considerações políticas e sociológicas historicamente circunscritas à época desse pianista, teórico e analista musical judeu austríaco, falecido em 1935, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. No artigo Recent Schenker: The Poetic Power of Intelligent Calculation, o pianista e musicólogo britânico Jonathan Dunsby (1999, p. 264) já chamava a atenção para a crítica europeia à retomada estadunidense da proposta schenkeriana ter estado sempre apoiada nos “maneirismos verbais do original”. A respeito desses maneirismos, continua vigente a consideração de Agawu (1989, p. 283): evidentemente, “não são mais axiomáticos no clima intelectual de hoje”.
Schenker atuou também como crítico musical. Contudo, restringiu-se ao campo artístico, tendo em vista a consciência de sua circunscrição a este domínio. Para a formação teórica de músicos comprometidos com a performance e a composição em profundidade, posicionou-se favorável ao estudo de obras musicais vivas do passado, em detrimento de replicarem treinamentos alheios ao repertório musical:
o cerne da crítica de Schenker aos teóricos de seu tempo é justamente a ausência de gênio16 – e de improvisação17 – na obra desses autores. Não apenas as análises realizadas a partir das teorias correntes, mas as obras compostas segundo os tratados de composição convencionais são, na visão de Schenker, estruturas mortas, cadáveres desprovidos da chama vital que somente a verdadeira arte do gênio possui.
Schenker [...] [coloca] como o mais elevado propósito musical de seu tempo constatar e revelar a perfeição – a organicidade – das obras primas dos grandes mestres do passado. Sua busca pela conexão das obras primas entre si e de todas elas com o absoluto da arte – absoluto formal que é a própria Ideia – transparece nas palavras finais do artigo sobre a organicidade na fuga: “Com olhos e ouvidos voltados para as profundezas, liguemos eternidade a eternidades!”. (GERLING; BARROS, 2009, p. 106, 108-109)
Desde o momento em que Schenker passou a desfrutar de alguma proeminência no cenário musicológico, sua proposta foi acolhida com entusiasmo por uns e rechaçada por outros. Oswald Jonas (In: DODSON; JONAS, 2003, p. 124, 127) sugere que esta polarização seja fruto, sobretudo, de certa propensão à abstração na proposta schenkeriana. Trata-se de uma abstração completamente dependente da experiência prática do analista, que reflita a experiência prática do próprio Schenker, impressa nas entrelinhas de sua proposta. Talvez a necessidade dessa resposta instintiva seja mais responsável pela negação da proposta schenkeriana do que propriamente a retórica politicamente carregada das décadas de 1920 e 193018.
Nesse sentido, “valorizar o julgamento e responsabilidades individuais, para afirmar os valores humanos contra os mecânicos, esta é a fonte do tom moralizante e às vezes messiânico que, se não for entendido no contexto, pode ser uma das características mais alienantes da escrita de Schenker”19 (COOK, 2007, p. 128). Embora aparente algum mecanicismo, a proposta schenkeriana atinge seu objetivo apenas quando conduz o analista a uma vivência de resgate intuitivo do seu conhecimento musical. Assim sendo, os diferentes níveis schenkerianos correspondem a diferentes níveis de consciência musical acerca da obra analisada.
Não podemos deixar de registrar nossa divergência quanto a posicionamentos contrários à análise por vozes condutoras de obras pós-tonais. No artigo de 1999, Jonathan Dunsby (1999, p. 266) destaca dois autores que se estabelecem nesse sentido. Leslie Blasius (1996) acredita ser prematura a abordagem de Katz, Salzer, Travis, Baker e Straus sobre vozes condutoras pós-tonais e destaca a natureza diferenciada das análises desses autores em relação à proposta original de Schenker. Robert Snarrenberg (1997) concorda com isso e acredita que o pensamento de Schenker não resiste à descontextualização, ou seja, está intrinsicamente ligado ao seu próprio cânone, tempo e lugar.
Naturalmente, estamos cientes de que a proposta original de Schenker é voltada ao repertório tonal cujas bases qualitativas respondem ao seu ideário. Contudo, em um sentido didático, percebemos haver uma resposta qualitativa considerável por parte dos músicos que se mobilizam para interagir com a realização de reflexões e análises motivadas pela proposta teórico-musical de Schenker, sobretudo quando estas se estendem a repertórios para além daqueles presentes nas publicações originais. Um acolhimento dos repertórios de preferência dos estudantes – invariavelmente incluindo obras pré-tonais, pós-tonais e da vertente popular e jazz – favorece uma interlocução da proposta schenkeriana com suas vivências musicais pregressas, redundando em reflexões em um nível musical ao mesmo tempo identitário e aprofundado20.
1. Ensinando a identificação motívica através do contraste entre o motivo schenkeriano e o motivo schoenbergiano
Cadwallader e Gagné apresentam a proposta schenkeriana a partir de um enfoque em sua singularidade, “por sua habilidade em diferenciar o que é único em uma composição do que é comum a várias peças do repertório tonal”21 (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 12). Focando inicialmente aspectos exclusivos de cada obra, o livro se inicia pela exposição da análise motívica da Sonata para piano op. 2, n. 1, I, de Beethoven, a partir da análise publicada pelo jovem Schenker no primeiro volume de Der Tonwille (SCHENKER, 2004 [1921-1923]), antes que a teoria da Ursatz atingisse sua forma final.
Em nossas aulas, costumamos contrastar as considerações de Schenker sobre motivo, conforme expostas por Cadwallader e Gagné (2011 [1998]), com as da conhecida publicação de Schoenberg (2015 [1967]), Fundamentos da composição musical, para que os alunos possam conhecer particularidades do motivo schenkeriano.
Ambos os autores se referem ao motivo como um elemento “germinal” da obra musical, remetendo à ideia evolucionista então vigente. Já a noção de “coerência” é relacionada por ambos a estratégias de construção musical. No entanto, para Schoenberg (2015 [1967], p. 35-36), a coerência decorre do fato de um motivo incluir elementos de todas as figuras musicais subsequentes e estar presente em todas elas – ou seja, pode ser identificado através de sua capacidade de produzir variações, desde as mais próximas até as mais remotas. Schoenberg considera que as variações em desenvolvimento na música tonal desempenham um papel de realizadoras das implicações do motivo inicial (Grundgestalt), atingindo a consumação da ideia musical (Gedanke) (BOSS, 1992, p. 130). Em Schenker, a noção de coerência vem imbuída do sentido de “conexão” e encontra uma ressonância especial em sua visão estrutural (DRABKIN, 2006, p. 829). O agrupamento escolhido para ocupar a posição de motivo precisa ser um padrão que se repete em momentos de articulação estrutural da peça (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 4), revelando conexões e relações que não são de apreensão imediata. Esse motivo é “sempre o mesmo, mas nunca [está] da mesma maneira”22 (SCHENKER, 2004 [1921-1923], p. 4).
Na Figura 1, os motivos destacados por Schoenberg (2015 [1967], p. 89) estão circulados com a cor lavanda (comp. 1) e o motivo considerado por Schenker (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 5-6) está demarcado com um retângulo na cor verde (comp. 7-8).
Qual é a razão dessa diferença? Schoenberg depreende a unidade de uma composição musical da relação lógica e coerente entre suas partes (sobretudo motivos e temas); Schenker considera os significados e as formas de articulação das partes em relação ao todo. Schoenberg identifica as três ideias musicais formadoras do primeiro tema, que se somarão às ideias musicais do segundo tema, tendo sido ambas amplamente variadas com o intuito da manutenção de uma identidade no nível de superfície do primeiro movimento, mesmo quando variações mais longínquas são exploradas pelo compositor. Este elemento de superfície molda-se às ambientações harmônicas, rítmicas, texturais, timbrísticas, articulares e dinâmicas da obra musical. Schenker, por outro lado, observa nos primeiros compassos desta Sonata uma “energia propulsora”, que tem como ponto focal a nota Dó623 (comp. 7, Fig. 1) suportada pelo acorde arpejado de Fá menor e seguida por um movimento descendente de sexta, que ademais virá a estabelecer um contraste entre a nota Mi (comp. 1-8) e a nota Mib (comp. 9 e seguintes). Na Transição, na Retransição e na Recapitulação, essa sexta estabelece uma ampla conexão (Fig. 2); na Transição e na Exposição do Tema 2, o contraste maior-menor é explorado. Para Schenker, todo esse complexo conceitual assume um significado motívico devido à sua proeminência ao longo do movimento24.
Em seus primeiros escritos, Ein Beitrag Zur Ornamentik (1908) e Harmonielehre (1906), Schenker associa seu conceito de motivo ao seu conceito de improvisação:
Ele [o motivo] compreende duas partes básicas. A primeira é semelhante à interpretação de Salzer: uma série de ideias curtas e interconectadas formam o tecido musical. Cada motivo inspira naturalmente o seguinte. E essas ideias formam grupos maiores, a que Shenker denomina Gruppenbildung (“construção por grupos”). Conectada com a Gruppenbildung está a segunda parte do impulso improvisatório: isto é, a habilidade de um artista em gerar uma abundância de ideias musicais no interior de uma harmonia enxuta. A harmonia necessita do contexto musical e o conteúdo é agrupado com base na condução harmônica – ambos vivem em uma relação simbiótica.
[...] O impulso improvisatório, portanto, fornece um organicismo motívico baseado em um fluxo dinâmico de ideias musicais, ao invés de estar vinculado ao desenvolvimento de uma única célula motívica25 (KOLOVSKY, 2010, p. 60-61).
No todo de sua obra, Schenker reconheceu e descreveu algumas repetições de motivos na superfície26, mas seu foco recaiu sobre repetições em níveis mais profundos, onde o motivo fica obscurecido por sua elaboração:
Essa repetição “oculta”, para usar um dos termos de Schenker, é definida não por sua articulação rítmica, mas por seu conteúdo de alturas, ordenado em relação ao enunciado original, podendo estar com as mesmas alturas ou ser transposto. [...] Schenker, é claro, não é o único teórico a observar a repetição motívica em níveis mais profundos. Encontramos essa ideia expressa ocasionalmente nos escritos de Réti e pelo menos implícita nos de Schoenberg. Mas [...] a ideia de Schenker é muito mais específica, uma vez que, em sua teoria, a seleção de sons em vários níveis, incluindo sons de um motivo, está ligada às regras do contraponto. Ou seja, a escolha não é arbitrária27 (BEACH, 1989, p. 6).
Um fragmento da interpretação de 1978 do pianista e musicólogo estadunidense Charles Burkhart, acerca do mesmo primeiro movimento da Sonata para piano op. 2, n. 1, de Beethoven (Fig. 3), foi apresentada à luz de seus estudos sobre a bibliografia completa de Schenker. Nesse fragmento, são projetadas as três primeiras notas do motivo schenkeriano subjacentes à superfície dos 41 compassos iniciais. Observe-se como, através dessas linhas “ocultas” projecionais, o motivo vai generalizando para os demais níveis estruturais em um processo dinâmico de conexão do geral com o particular.
Ao estabelecer uma distinção entre as ideias de motivo e variações (Schoenberg) e repetições “ocultas” (Schenker), Burkhart (1978, p. 149, 155) considera uma distinção de grau, em que a primeira preserva uma identidade rítmica, estando tanto o padrão quanto a repetição inteiramente na superfície. Embora essas repetições pudessem assumir a forma de transformações rítmicas simples na superfície, ficando menos evidentes pela ação dessas transformações, “Schenker estava muito mais interessado naquelas que envolviam elementos subjacentes, ou seja, em que o motivo era expresso em diferentes níveis estruturais”28 (BURKHART, 1978, p. 146). A Figura 4 traz mais um exemplo de Burkhart, novamente com foco nas repetições “ocultas” de Schenker:
Assim, o ponto de partida de Schenker se configura como “uma teoria da estrutura tonal que explica tanto a melodia quanto a harmonia e a interação entre ambas” (BURKHART, 1978, p. 146). Uma extensão desse raciocínio inicial de Schenker pode ser verificada em análises de obras pós-tonais. O teórico musical Joseph Straus “sugere um ‘modelo associativo’ pelo qual as notas separadas no tempo podem ser relacionadas por meios contextuais (por exemplo, registro, timbre, dinâmica e assim por diante)”29 (BEACH, 1989, p. 4).
Para a formação de sua proposta associativa (Fig. 5), inicialmente Straus (1987, p. 4-8) confirmou que uma formação correlata a um motivo pode ocupar contextualmente uma função correlata a uma consonância, permitindo projeções em pequena escala. Contudo, ao tentar completar os diferentes significados de um gráfico em multiníveis, Straus chegou a um dilema: essas “consonâncias” não podem ser hierarquizadas, portanto não podem atingir profundidades mais amplas nos termos prolongacionais schenkerianos. Por outro lado, Straus observou que “afirmações significativas” podem ser obtidas no nível do plano intermediário se as associações de longo alcance forem associativas, ao invés de prolongacionais. A sistematização da Teoria de Conjuntos30 emprestou a essas formações “uma integração motívica em todos os níveis estruturais”31:
A música pós-tonal pode imitar a aparência de extensões prolongacionais sem usar uma voz condutora verdadeiramente prolongacional. Nessas situações, é fundamental não se deixar seduzir pela referência tonal para aplicar aspectos anacrônicos da teoria tonal. [...] Isso é explicado de forma mais significativa em termos das associações contextuais de cada peça32 (STRAUS, 1987, p. 15).
2. Música tonal como um jogo de padrões harmônicos? O acorde gramatical e o significado harmônico do acorde
Ao longo de toda a publicação, Salzer (1962 [1952], p. 10-14, 47, 86) enfatiza uma diferenciação fortemente valorizada por Schenker, entre a gramática do acorde – um meio puramente descritivo de registro e rotulação de cada acorde e sua relação com os diferentes centros tonais, importante apenas como um pré-requisito e não como um fim em si mesmo – e o significado do acorde – o propósito específico e arquitetônico de um acorde no interior de uma ideia musical e dependente da finalidade e da direção do movimento. Cadwallader e Gagné (2011 [1998], p. 41-42) reservam o termo acorde para a primeira situação e o termo harmonia para a segunda.
O significado de um acorde com a mesma denominação gramatical depende de seu posicionamento no interior desse movimento33. Cadwallader e Gagné (2011 [1998], p. 41-42) optam por explorar a forma mais elaborada do movimento tonal essencial I-V através das classes harmônicas T-Int-D-T34. No enfoque harmônico das análises de obras musicais, são observados os movimentos contrapontísticos de prolongamento e expansão junto às classes harmônicas subjacentes. Nesse contexto, um acorde de quinto grau (V), por exemplo, reveste-se de diferentes sentidos, sendo um deles o significado de dominante. Na Figura 6, o V do compasso 4 articula a frase com 4 compassos, mas no movimento em larga escala, o IV6 (comp. 5-7) mostra que o V do comp. 4 é um ponto focal intermediário entre o I-V, uma dominante divisória “que divide o espaço (Tonraum) governado pela tônica, expandindo-a” (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 56). O V com significado de dominante cadencial é atingido no compasso 8.
Essa diferenciação é essencial ao aprendizado do estudante que entende a harmonia como sendo um jogo de padrões, esquecendo-se de percebê-la como resultante dos movimentos horizontais, que por sua vez elaboram um fluxo de condução – de maneira única para cada obra musical.
A compreensão de Schenker, de que as obras tonais se constituem enquanto desdobramentos do acorde de tônica, que contém os elementos essenciais do movimento harmônico, leva à distinção de harmonias mais e menos essenciais ao contexto da obra que está sendo analisada:
Da mesma forma, as notas de uma melodia podem ser descritas como essenciais ou como transitórias. Além disso, a noção de essencial versus passagem, de harmônico versus não harmônico, se aplica não apenas à superfície da música, mas também informa os níveis mais profundos: uma harmonia pode ser essencial em um nível, mas transicional em outro, uma nota de passagem em um nível pode ser o início de uma “progressão linear” importante em outro35 (DRABKIN, 2006, p. 816).
3. Ensinando contraponto através da identificação do significado do movimento das vozes condutoras em obras musicais
No livro The Schenker Project, o musicólogo e crítico musical Nicholas Cook (2007, p. 103104, 118-121, grifos nossos) contextualiza os primeiros estágios do projeto de Schenker no âmbito da crítica contemporânea artística vienense. Partindo do pressuposto de que alguns padrões de pensamento teórico “são tecidos na estrutura da experiência cotidiana”, Cook constata uma identificação “do progresso com a eliminação do ornamento” no ambiente artístico de Viena à época de Schenker – com reflexos na arquitetura, nas artes visuais e na crítica musical. Nesse ambiente, o detalhe remetia “à força potencialmente contracultural”36. O “modernismo ético” vigente em Viena rechaçava a frivolidade da ornamentação arquitetônica e, embora esse “modernismo como uma atitude de espírito não se traduza de maneira muito direta em preferências estéticas”, esse conceito permeou o projeto schenkeriano inicial. Schenker, no entanto, estabelece uma distinção entre os ornamentos e valoriza aqueles que estabelecem uma relação dialética com o todo, considerando sempre que o que não é essencial em um nível pode se tornar essencial em outro nível (COOK, 2007, p. 128-134)37.
Nesse modernismo no qual o conservadorismo de Schenker esteve imerso, o acessório subordina-se ao principal, o primeiro plano reverbera o plano de fundo, as janelas periféricas posicionam-se em relação à sua função junto ao cômodo arquitetônico que atende (COOK, 2007, p. 128-134), o traçado essencial das artes visuais traduz-se enquanto voz condutora musical.
Subjacentemente a uma linha melódica tonal, por mais angulosa que esta possa ser, é sempre possível encontrar movimentos por graus conjuntos em que cada nota estabelece uma relação única com as demais, gerando a maior continuidade melódica possível.
Schenker usou o termo fluxo melódico (flissender Gesang) para descrever este equilíbrio e estabilidade, e o termo Urlinien para se referir a estas linhas subjacentes (cf. CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 17, 34). Variadas são as técnicas de elaboração melódica, estendendo-se das ornamentações aos prolongamentos e às melodias polifônicas, por exemplo (cf. GERLING; BARROS, 2020). Nas abordagens schenkerianas, “os termos ‘contraponto estrito’ e ‘contraponto livre’ deveriam ser substituídos por ‘contraponto elementar’ e ‘contraponto elaborado’. Desse modo ficaria evidente a unidade e a continuidade do processo composicional” (SALZER; SCHACHTER, 1969, p. xix apud BARROS; GERLING, 2009, p. 93). “Tomando emprestados os termos de Schenker de ‘Weg mit dem Phrasierungsbogen’, unidade não precisa implicar uniformidade, mas pode englobar diferença”38 (COOK, 2007, p. 135).
O estabelecimento de duas linhas melódicas, uma em região mais grave, outra em região mais aguda, coloca em interlocução as forças geradoras de ambos os fluxos melódicos e dessas forças concorrentes são estabelecidas relações de direcionamento, bem como a formação de uma força motriz que conduz o movimento musical. Vistas sob o enfoque tonal, as linhas melódicas podem ser entendidas como sendo elaborações do caminho traçado pelas vozes condutoras e pelas forças propulsoras das diversas consequências da condução harmônica tonal. Uma maneira de se escutar e entender princípios fundamentais polifônicos das estruturas musicais é através da identificação das estratégias contrapontísticas imanentes à formação de obras musicais.
Schenker estimula uma distinção entre ornamentos mais próximos das vozes condutoras daqueles menos autônomos e mais próximos da superfície (COOK, 2007, p. 129-131). Da segunda espécie contrapontística emergem as primeiras nuances do aprofundamento em multiníveis formador da proposta schenkeriana39. O exemplo na Figura 7 traz uma distinção entre dois diferentes tipos de notas de passagem, a mais estrutural corresponde à nota Si que dá suporte a um acorde de passagem, a mais local corresponde ao Fá da voz superior. Sendo assim, as duas notas com função aparentemente igual ocupam níveis estruturais diferentes.
A identificação das linhas de condução é inestimável ao performer, tanto para o traçado de um direcionamento da execução como para a memorização da obra. E essa estratégia não precisa se restringir ao repertório tonal, tampouco às obras dos vinte e dois compositores analisadas por Schenker:
Em Harmony, há obras de Johann Sebastian e Carl Philipp Emanuel Bach, Beethoven, Berlioz, Brahms, Bruckner, Chopin, Handel, Hassler, Haydn, Liszt, Mendelssohn, Mozart, Scarlatti, Schubert, Schumann, Richard Strauss, Sweelinck e Wagner. O primeiro volume de Counterpoint deixa Berlioz, Hassler, Scarlatti e Sweelinck e adiciona Graun, Wolf, Smetana e Couperin. Essa lista muda notavelmente, no entanto, em Free composition. Schenker adiciona exemplos únicos de Clementi, Crüger, Des Prez e Paganini, bem como vários exemplos de Johann Strauss, tanto o primeiro como o segundo. No entanto, ele omite os modernistas do século XIX de seu novo cânone: Berlioz, Bruckner, Liszt, Smetana, Richard Strauss e Wagner40. (BLASIUS, 1996, p. 99)
No livro Structural Hearing, Felix Salzer (1962 [1952]) interpreta a técnica de análise por vozes condutoras desenvolvida anteriormente por Schenker e amplia o repertório ao incluir obras do Renascimento e do século XX. As ideias dos prolongamentos apresentam os elementos que elaboram a direção determinada pela estrutura e da apresentação em gráficos por multiníveis são mantidas, mas os gráficos de Salzer (Fig. 8) não são tão rigorosos como os de Schenker41. Certamente, foi prioritária a acomodação das ideias presentes em obras cuja concepção não está completamente atrelada aos valores tonais.
Ao prescindir do conceito harmônico tonal organicista de Schenker, não contemplando os domínios de uma Ursatz, a audição estrutural de obras pré e pós-tonais proposta por Salzer “ofereceu uma crítica radical à estética e, de fato, aos fundamentos acústicos da teoria de Schenker”42 (DUNSBY, 1999, p. 264). Após a abertura promovida por Salzer, o grupo de comentadores de Schenker se expandiu, passando a abrager “schenkerianos ortodoxos e não ortodoxos, neo-schenkerianos, construcionistas estritos, pós-schenkerianos e muitos outros”43 (AGAWU, 1989, p. 276).
Em nossa experiência percebemos que tanto a análise formal como a análise estrutural schenkeriana são intimamente vinculadas à construção de uma performance, não havendo nessa relação, atualmente, um caráter prescritivo. Sobre a relação entre forma e estrutura, Schenker (apud CADWALLADER; GAGNÉ, 2011, p. 208-210) considerava que as formas emergiam do nível estrutural, tornando-se aparentes no nível externo final e que “a progressão indivisível da linha fundamental gera a ruptura indivisível”44 (SCHENKER, 1979 apud CADWALLADER; GAGNÉ, 2011, p. 208). Contudo, uma análise mais abrangente pode considerar que as interações entre estrutura, design e prolongamentos harmônicos produzem padrões formais, e que essas interações podem não ser coincidentes – por exemplo, formas organizadas a duas e três partes podem se desenvolver no interior de uma estrutura em uma parte.
No livro In the process of becoming, a experiente pianista, esteta e analista musical Janet Schmalfeldt (2011) reúne artigos que vêm sendo publicados por ela desde 1985. Apoiada por uma compreensão aprofundada de ideias e conceitos formulados por Adorno e Dahlhaus acerca da obra de Beethoven, retoma o repertório tonal e toma a liberdade de inserir no gráfico schenkeriano um elemento gráfico (=>) que reflete o conceito filosófico de devir musical, em que, p.ex., uma passagem inicialmente interpretada como Introdução vai sendo impregnada de outros elementos ao longo da escuta da obra musical e, constantemente rememorada e contrastada com estes, sendo reinterpretada como Tema Principal. Com isso, Schmalfeldt expressa graficamente aspectos musicais que ocorrem ao longo do tempo da escuta da obra, bem como aspectos da escuta interna, da imagética auditiva e da reflexão informada que ocorrem em paralelo a esta. Para embasar qualitativamente a sua proposta, Schmalfeldt discute a respeito de aspectos da teoria da forma, com ênfase na formação de sentenças em obras do Classicismo e do Romantismo. Como resultado, o gráfico em multiníveis de Schmalfeldt reflete uma interlocução entre estrutura, forma e devir (Fig. 9).
Voltando-se a abordagens que colocam em diálogo as configurações horizontais em larga escala e os componentes mais locais, bem como considerando sua contribuição ao estabelecimento da forma e da estrutura musicais, Allen Forte (1988) combina estratégias da fase inicial de Schenker com a abordagem por conjuntos para a análise de obras compostas no final do século XIX e início do século XX (Fig. 10).
Desde que o repertório e a rigidez gráfica foram abertos por analistas neo-shenkerianos45, como é o caso de Salzer (1962 [a952]), Forte (1988) e Schmalfeldt (1985 e seguintes), recursos schenkerianos passaram ser usados mais livremente, tanto em análises conceitualmente mais próximas a Schenker, como em análises que requereram adequações. Tomamos como exemplos a análise da Canção op. 2, no. 4, Warm die Lüfte, de Alban Berg (Fig. 11), apresentada por David Huff (2010) para conclusão do Mestrado realizado junto à University of North Texas (UNT), nos Estados Unidos; e a análise da canção Disclosure (1921), de Charles Ives (Fig. 12), apresentada pelo estudante de composição Gabriel Duarte da Silva junto à disciplina Estudos Especiais IV, ministrada por Eliane Tokeshi no curso de Graduação em Música da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, em 2019.
A análise de Huff (Fig. 11) é baseada no que o autor denomina acorde estrutural primário (P), um conjunto formado a partir de intervalos de quinta sobre a nota Si. A dualidade entre 3m-3M reflete a dualidade inerente à canção. Harmonias secundárias (S) e transposições (T) do acorde estrutural primário estabelecem um prolongamento (HUFF, 2010, p. 56-69). Colocando lado a lado a análise apresentada na Figura 11 e a partitura, pode-se ouvir claramente a estrutura por quintas originária dos desdobramentos do acorde primário, os prolongamentos levados a cabo pelas harmonias secundárias, breves aparições de trítonos (nos comp. 7-9) e uma voz condutora cromática ascendente na linha melódica. Assim, um gráfico em multiníveis pode sensibilizar o ouvinte para uma escuta ampliada.
Em sua primeira experiência junto à proposta neo-schenkeriana, Gabriel Duarte incorpora ao gráfico por multiníveis cifras próprias de sua experiência prática junto ao repertório jazzístico do século XX, possibilitando a visualização de um contraste entre ambas as propostas (Fig. 12). Essa estratégia imbuiu-lhe de uma conscientização qualitativa sobre toda a gama de movimentos texturais intrínseca à obra, ausente em sua abordagem anterior por acordes cifrados. A abertura da disciplina para obras pós-tonais aproximou a prática schenkeriana da estética composicional do próprio estudante, do que decorreu a escolha da obra de Charles Ives. Nesse sentido, as descontextualizações do original de Schenker, decorrentes da necessidade de adequação de suas ideias ao repertório pós-tonal e à pluralidade de vivências dos estudantes, redundaram em um foco nos elementos gráficos capazes de mostrar os movimentos lineares mais essenciais da obra (Fig. 12), revestindo a sucessão harmônica de um significado linear, de estratégias composicionais subjacentes e de elementos estruturais de longo alcance anteriormente pouco evidentes à percepção do estudante.
4. O ensino da percepção estendida46 através dos gráficos em multiníveis
Os aspectos da música aos quais Schenker se dedicou – performance, teoria, análise, estudo de manuscritos e preparação de edições – “eram inter-relacionados e, portanto, estabeleciam interlocuções em um formato integrado” (DRABKIN, 2006, p. 815). Os gráficos schenkerianos em multiníveis trazem em si um discurso sobre música através de uma notação musical que ao mesmo tempo requer a formação de uma imagem auditiva daquilo que se lê e desencadeia um acúmulo de performances interiores:
Um gráfico de Schenker é uma forma de escrita. Ele incorpora o discurso sobre uma peça de música. [...] Ao forçar seus praticantes a um mergulho no “interior” do organismo musical e aceitar os vestígios do ambiente em seus produtos finais (ou seja, os gráficos), a análise schenkeriana define uma relação de profunda ambivalência entre o objeto musical e a análise desse objeto. [...] Este cruzamento de fronteiras, ancorado como que por sua intenção comunicativa inequívoca, abre ricas possibilidades teóricas [...]47 (AGAWU, 1989, p. 285).
O movimento imagético importante na análise schenkeriana “não é aquele entre estratos sucessivos e superfície, mas entre o agregado de estratos (tomados como uma entidade única) e a superfície” (BLASIUS, 1996, p. 116). Cada etapa da distância entre a composição e sua estrutura encontra expressão nos gráficos em multiníveis, constituídos pelos níveis externo (foreground), intermediário (middleground) e fundamental (background) – e não apenas pelo nível fundamental que traz a Ursatz. O plano intermediário pode ser subdividido em várias camadas concebidas hierarquicamente. “No interior deste processo de audição estrutural, cada altura e cada progressão revelam seus significados como desdobramentos orgânicos48 da progressão básica” (SALZER, 1962 [1952], p. 207, grifo das autoras).
Os gráficos em multiníveis procuram considerar coletivamente as ações interativas das dimensões melodia, linha do baixo, estrutura harmônica e movimentos lineares (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011 [1998], p. 106-107). O nível intermediário é o que traz as características motívicas e os movimentos harmônicos e contrapontísticos. Cada um desses níveis pode ser apresentado em um ou mais sistemas, a depender da obra que está sendo analisada, de maneira que o padrão de (a) até (c) frequentemente se estende até (e) ou (f).
Assim como ocorre com uma partitura anotada, uma análise gráfica “é um indicador confiável de intenções” (DUNSBY, 1999, p. 267). Se a opção do performer for a interação com um gráfico em multiníveis, as mudanças na textura, a escolha dos tipos de timbre para a performance, a opção por uma métrica elástica que acomode as inflexões rítmicas, o movimento adiante do caráter formativo da repetição motívico-temática, o movimento dinâmico e a escuta expandida das tonicizações de áreas tonais secundárias articulam-se com os três ou mais níveis estruturais – ora condizendo e valorizando, ora obscurecendo e discordando destes. Sendo assim, o acesso atualizado aos gráficos em multiníveis perdem seu aparente caráter prescritivo original.
Schenker foi um pianista atuante e utilizava o piano para ensinar e elaborar suas análises. Um primeiro contato com a proposta schenkeriana pode se dar através de reduções rítmicas ao teclado (Fig. 13), formando uma redução figural – ou “contínuo imaginário” (CADWALLADER; GAGNÉ, 2011, p. 56-66), como gostamos de chamá-la:
Uma redução rítmica [redução por acordes] é uma estrutura metalinguística duracionalmente equivalente à obra ou passagem e que incorpora a linguagem do objeto analisado. Todos estamos familiarizados com as reduções rítmicas de tratados de contraponto, manuais de composição e livros teóricos. [...] Czerny a chama de “harmonia fundamental”; outros podem se referir a ela como um “resumo harmônico”. [...] A redução rítmica parece, de fato, ocupar o espaço entre dois níveis estruturais, o plano intermediário e o plano externo, com excursões ocasionais para cima ou para baixo, dependendo da peça. Sua força pode muito bem residir nesta flexibilidade49 (AGAWU, 1989, p. 286-287).
Tudo o que acrescenta à notação musical a partir do momento da efetivação do contínuo imaginário é feito “de dentro e não de fora” (AGAWU, 1989, p. 285). “Schenker geralmente encerrava seus ensaios analíticos com observações sobre como a obra em questão deveria ser executada. [...] Para Schenker, o objetivo final do estudo [...] é alcançado apenas em sua aplicação à tarefa maior de dar vida à música”50 (BURKHART, 1978, p. 173):
Dessa relação física – corporal e auditiva – com o instrumento e com a própria música emergiam seus insights teóricos. Suas análises, portanto, não tratam apenas da estrutura musical de um ponto de vista composicional, mas resgatam a dimensão instrumental da própria composição musical. Para Schenker, a criação musical está indissoluvelmente ligada à realização instrumental através do conceito de “improvisação”. Os assuntos que Schenker aborda em A Arte da Performance auxiliam a compreender essa dupla dimensão de seu pensamento, compositiva e interpretativa, assim como sua concepção de uma arte em constante fluxo, que se renova a cada interpretação (BARROS; GERLING, 2007, p. 142).
A ênfase de Schenker na manutenção da escuta junto à tonalidade principal [tonality] ao longo de toda a obra faz com que as tonalidades de passagem [keys] produzam uma expansão perceptiva auditiva. Uma expansão da escuta ocorre se, após a apreensão auditiva da tonalidade principal, cada nova alteração em determinada passagem ou seção de uma composição for entendida tanto em sua tradicional função local como na qualidade de expansão da tonalidade inicial. Essa experiência sensibiliza o ouvinte para a percepção da tonalidade como uma entidade elástica e resiliente, que se molda ao contexto composicional.
A análise concebida por Schenker (Fig. 14)51 ilustra a possibilidade de escuta da tonalidade do Estudo op. 10, n. 8, em Fá maior, de Chopin seja expandidada pela ocorrência da seção em Ré menor – evidenciada pela indicação III# (comp. 40) associada à dominante de Ré menor. Sendo assim, ao se buscar a percepção da obra como um todo, a expansão provocada pela cromatização da passagem entre os compassos 40 e 55 passa a ser mais identitária do que uma interpretação com enfoque em uma modulação para Ré menor. Sendo assim, esta análise constitui um bom exemplo de percepção do conceito de monotonalidade.
Os gráficos em multiníveis guardam um parentesco com a composição, o ensino da composição (AGAWU, 1989, p. 290) e a prática da recomposição:
[...] o que o mestre compositor pretendeu realizar em som (e conseguiu) é o que o não compositor interpreta a partir dos sons. Schenker expressa essa relação complementar referindo-se ao compositor como criativo (nachschaffend) e ao não-compositor como re-criativo (nachschqffend). [...] Um objetivo da atividade de Schenker foi ajudar compositores e não compositores a desenvolver essa faculdade interpretativa52 (SNARRENBERG, 1997, p. 142).
A proximidade entre recomposição e análise emerge da interpretação. A metalinguagem gráfica possibilita que se fale de música através de um sistema simbólico musical, dispensando uma recorrência à linguagem verbal ou escrita. E esta apreciação qualitativa aparentemente silenciosa torna disponível uma imagem mental de performances interiores dinâmicas entre si.
5. Considerações finais
Pelo bem e pelo mal, apenas a leitura de textos de análise não é suficiente para que um músico compreenda a que exatamente se refere uma proposta analítica. Uma prévia e intensa experiência musical, somada à prática analítica deliberada, são imprescindíveis à compreensão do contexto analítico musical.
Um aprofundado envolvimento com a proposta schenkeriana permite a percepção do significado criativo, vívido e particular de cada obra musical, subjacente aos planos estruturais dos gráficos em multiníveis, por mais áridos que possam parecer para alguns a uma primeira vista.
Embora Schenker tivesse mantido o forte vínculo com um repertório marcadamente tonal e tivesse resgatado práticas analíticas pregressas, sua forma de abordagem refletiu – até mesmo por essas razões – o ideário modernista:
Ele [Schenker] gostaria de voltar no tempo, mas com sua teoria reinventou os clássicos sob o signo do modernismo. Ele era um antimodernista entusiasta, é claro, mas por trás disso – e talvez apesar dele mesmo – acabou sendo um modernista relutante53 (COOK, 2007, p. 139). O distanciamento no tempo, aliado á incorporação de vivências diferenciadas, nos permite hoje dialogar com percepções que abriram perspectivas analíticas e conseguiram superar as polêmicas discussões surgidas desde o aparecimento da teoria de Schenker nas primeiras décadas do século XX. Assim é possível afirmar que a experiência teórico-analítica neo-schenkeriana incorpora variados repertórios, desenvolve uma direção didática coerente, através de tópicos, como: uma forma diferente do estudo do contraponto, através dos movimentos das vozes condutoras; a diferença entre a percepção do acorde como gramática e como significado harmônico; a comparação do contraste entre os motivos schenkeriano e schoenberguiano; a percepção estendida, possibilitando sempre a incorporação do todo da peça que é analisada.
Um projeto que mudou tanto a análise musical se apresenta aberto a novos aspectos do original, contribuições históricas, que uma teoria revolucionária recebe e passa a viver. O que não muda, porém, é a análise ser sempre uma interpretação, um ato artístico, independente de como será ou não aplicada.
Referências
AGAWU, Kofi. Notation in Theory and Practice. Music Analysis, v. 8, n. 3, p. 275-301, 1989.
ALMADA, Carlos; BARROS, Guilherme; GERLING, Cristina Caparelli; NOGUEIRA, Ilza; SOUZA, Rodolfo Coelho de. The Reception and the Dissemination of European Theories in Brazil: Riemann, Schenker and Schoenberg. Zeitschrift der Gesellschaft für MusikTheorie, v. 15, n. 2, p. 129-154, 2018.
BAKER, James. Schenkerian Analysis and Post-Tonal Music. In: BEACH, David (Ed.). Aspects of Schenkerian Theory. New Heaven and London: Yale University Press, 1983. p. 153-186.
BEACH, David. Schenkerian Theory. Music Theory Spectrum, v. 11, n. 1, p. 3-14, 1989.
BEACH, David (Ed.). Aspects of Schenkerian Theory. New Heaven and London: Yale University Press, 1983.
BLASIUS, Leslie. Schenker’s Argument and the Claims of Music Theory. Cambridge Studies in Music Theory and Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
BOSS, Jack. Schoenberg’s Op. 22 Radio Talk and Developing Variation in Atonal Music. Music Theory Spectrum, v. 14, n. 2, p. 125-49, 1992.
BURKHART, Charles. Schenker’s Motivic Parallelisms. Journal of Music Theory, v. 22, n. 2, p. 145-175, 1978.
CADWALLADER, Allen; GAGNÉ, David. Analysis of Tonal Music: A Schenkerian Approach. 3. ed. Oxford: Oxford U. Press, 2011 [1998].
CADWALLADER, Allen; GAGNÉ, David. Student Workbook to Accompany Analysis of Tonal Music: A Schenkerian Approach. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012 [2007].
COOK. Nicholas. The Schenker Project: Culture, Race, and Music Theory in Fin-de-siècle Vienna. Oxford: Oxford University Press, 2007.
COOK. Nicholas. A Guide to Musical Analysis. NY: George Braziller, 1987.
CORREIA Renata Coutinho de Barros. Análise e Performance Musical: perspectivas de pesquisa, influências mútuas e abordagem crítica. Tese (Doutorado) – Programa de PósGraduação em Música, Escola de Comunicações e Rates, Universidade de São Paulo, 2021.
DODSON, Alan. JONAS, Oswald. Heinrich Schenker and Great Performers. Theory and Practice, Music Theory Society, v. 28, p. 123-135, 2003.
DRABKIN, William. Heinrich Schenker. In: CHRISTENSEN, Thomas (Ed.). The Cambridge History of Western Music Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 812843.
DUNSBY, Jonathan. Recent Schenker: The Poetic Power of Intelligent Calculation (Or, The Emperor’s Second Set of New Clothes). Music Analysis, v. 18, n. 2, p. 263-273, 1999.
FORTE, Allen. Concepts of Linearity in Schoenberg’s Atonal Music: A Study of the Opus 15 Song Cycle. Journal of Music Theory, v. 36, n. 2, p. 285-382, 1992.
FORTE, Allen. New Approaches to the Linear Analysis of Music. Journal of the American Musicological Society, v. 41, n. 2, p. 315-348, 1988.
FORTE, Allen. Heinrich Schenker as an Interpreter of Beethoven’s Piano Sonatas. 19th-Century Music, v. 8, n. 1, p. 3-28, 1984.
FORTE, Allen; GILBERT; Steven. Introduction to Schenkerian Analysis. NY: W. W. Norton, 1982.
FRAGA, Orlando. Progressão linear: uma breve introdução à teoria de Schenker. Londrina: Eduel, 2011.
GERLING, Cristina Capparelli; BARROS, Guilherme. Glossário de termos schenkerianos. Salvador: Tema, 2020.
HUFF, David. Prolongation in Post-Tonal Music: A Survey of Analytical Techniques and Theoretical Concepts with an Analysis of Alban Berg’s Op. 2, No. 4, Warm Die Lüfte. Thesis (Master of Music, Music Theory). Univ. North Texas, 2010.
KOSLOVSKY, John.Tracing the Improvisatory Impulse in Early Schenker Theory. Intégral, v. 24, p. 57-79, 2010.
MEEÙS, Nicholas. Heinrich Schenker: Une introduction. Liège, Mardaga, 1993. Traduzido por Luciane Beduschi, sob o título Análise schenkeriana. Disponível em: http://nicolas.meeus.free.fr/Cours/trad/Introducao.pdf. Acesso em: 24 abr. 2021.
MOREIRA, Adriana Lopes da Cunha. A poética nos 16 Poesilúdios para piano de Almeida Prado: análise musical. Dissertação (Mestrado). 2 v. 411 p. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, 2002.
NEUMEYER, David; TEPPING, Susan. A Guide to Schenkerian Analysis. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1992.
PELES, Stephen; DEMBSKI, Stephen; MEAD, Andrew; STRAUS, Joseph N. (Ed.). The Collected Essays of Milton Babbitt. Princeton: Princeton University Press, 2012.
RIFKIN, Deborah. A Theory of Motives for Prokofiev’s Music. Music Theory Spectrum, v. 26, n. 2, p. 265-290, 2004.
RINK, John. Schenker and Improvisation. Journal of Music Theory, v. 37, n. 1, p. 1-54, 1993.
ROTHSTEIN, William. The Americanization of Heinrich Schenker. In Theory Only, v. 9, n. 1, p. 5-17, 1986.
SALZER, Felix. Structural Hearing. New York: Dover, 1962 [1952].
BARROS, Guilherme. A Humoresque op. 20 de Schumann e a Urlinie de Schenker. Revista Música, PPGMUS-ECA-USP, v. 18, n. 1, p. 1-17, 2018.
BARROS, Guilherme; GERLING, Cristina Capparelli. Análise schenkeriana: interpretação e crítica. In: BUDASZ, Rogério (Org.). Pesquisa em música no Brasil: métodos, domínios, perspectivas. Goiânia: ANPPOM, 2009. p. 87-121.
BARROS, Guilherme; GERLING, Cristina Capparelli. Análise schenkeriana e performance. Opus, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 141-160, dez. 2007.
SCHENKER, Heinrich. Der Tonwille: Pamphlets/Quartely Publication in Witness of the Immutable Laws of Music, Offered to a New Generation of Youth. v.1. NY: Oxford University Press, 2004 [1921-1923].
SCHENKER, Heinrich. Five graphic music analysis. NY: Dover, 1969.
SCHMALFELDT, Janet. In the Process of Becoming: Analytic and Philosophical Perspectives on Form in Early Nineteenth-Century Music. Oxford Studies in Music Theory. Oxford: Oxford University Press, 2011.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. 3ed. SP: Edusp, 2015 [1967].
SNARRENBERG, Robert. Schenker’s Interpretative Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
STRAUS, Joseph. Composing out in atonal music. Orpheus Institute, Ghent, Belgium: International Easter Academy of Music Theory, April, 2003.
STRAUS, Joseph. The Problem of Prolongation in Post-Tonal Music. Journal of Music Theory, v. 31 n. 1, p. 1-21, 1987.
STRAUS, Joseph. Introduction to post tonal theory. 4. ed. NY: W. W. Norton, 2016.
TEMPERLEY, David. Composition, Perception, and schenkerian Theory. Music Theory Spectrum, v. 33, n. 2, p. 146-168, 2011.
Notas
Essas publicações trazem explanações bem claras a respeito das funções dos diversos recursos envolvidos na elaboração do gráfico schenkeriano em multiníveis. Dentre as citadas, o Glossário de termos schekerianos (GERLING; BARROS, 2020) destaca-se pelo cuidadoso e experiente acesso tanto aos originais de Schenker como a textos referenciais de neo-schenkerianos, externando tanto as reafirmações quanto os contrastes estabelecidos entre eles e trazendo entre os exemplos musicais análises elaboradas pelos próprios autores.
Outro destaque pode ser conferido à publicação de Cadwallader e Gagné (2011), tanto pelo texto que alia didatismo com uma descrição aprofundada e precisa de cada recurso schenkeriano, como pelo caderno de atividades que acompanha o texto escrito, que traz partituras desafiadoramente escolhidas para a prática analítica.
Observem que, por não estar em discussão nesse momento do nosso artigo, ocultamos a última frase da citação direta, que se refere às confusões em torno da análise schenkeriana. Agawu (1989, p. 281) encontrou a declaração que “confundiu gerações de alunos de Schenker”: “Os exemplos musicais que acompanham este volume não são apenas ajudas práticas; eles têm o mesmo poder e convicção que o aspecto visual da própria composição impressa (o primeiro plano). Ou seja, a representação gráfica faz parte da própria composição, não sendo apenas um meio educacional” (SCHENKER, 1979, p. xxiii apud AGAWU, 1989, p. 281).
Autor notes