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A produção da encenação a partir da música na ópera “Otello”, de Verdi-Boito
The scene staging started from music in the opera Otello, by Verdi-Boito
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 6, núm. 1, 2021
Recepção: 10 Agosto 2021
Aprovação: 05 Outubro 2021
Resumo: O presente artigo pretende investigar a relação entre música e teatro na ópera Otello, de Verdi e Boito, o emprego da orquestração musical na produção de possíveis sentidos cênicos ou, em outras palavras, a música fazendo teatro, na fusão desses gêneros artísticos, dando origem a um terceiro que se materializa na referida ópera. Para tanto, a investigação articula o conceito de obra de arte total, de Trahndorff-Wagner, como ponto de partida para abordar o campo híbrido entre as artes que a ópera representa; em seguida, reflete sobre a doutrina do êthos, herdada do mundo helênico, e a teoria dos afetos, que atinge o ápice no período Barroco, como sendo teses dedicadas a pensar a ação da música no indivíduo; na sequência, observam-se os ideais de reforma da ópera, segundo Metastasio, como uma iniciativa destinada a construir um léxico operístico; e, por fim, sintetiza tais conceitos, confrontando a partitura e o libreto, de Otello. O trabalho justifica-se a pela escassez de propostas dessa natureza envolvendo a obra verdiana, em especial, Otello, na língua portuguesa; proporcionar o estudo da música em conexão com outras artes; e porque o estudo das relações dos elementos que compõem a ópera enriquece a pedagogia desse gênero artístico.
Palavras-chave: Ópera, Otello, Orquestração, Teoria dos afetos, Doutrina do êthos.
Abstract: This article intends to investigate the relationship between music and theater in the opera Otello, by Verdi and Boito, the use of musical orchestration in the production of possible scenic meanings or, in other words, music making theater, in the fusion of these artistic genres, giving rise to a third one that materializes in the aforementioned opera. Therefore, the investigation articulates Trahndorff-Wagner’s concept of the total work of art as a starting point to approach the hybrid field between the arts that opera represents; then, it reflects about the doctrine of ethos, inherited from the Hellenic world, and the theory of affections, which reached its apex in the Baroque period, as theses dedicated to thinking about the action of music in the individual; in the sequence, the ideals of opera reform are observed, according to Metastasio, as an initiative aimed at building an operatic lexicon; and, finally, it synthesizes these concepts, comparing the Otello’ score and the libretto. The work is justified by the scarcity of proposals of this nature involving the Verdian work, in particular, Otello, in the Portuguese language; provide the study of music in connection with other arts; and because the study of the relations of the elements that make up the opera enriches the pedagogy of this artistic genre. Keyword: Opera; Otello; Orchestration; Theory of affects; Doctrine of ethos. 1 Carlos Eduardo da Silva é doutor em Literatura pelo Programa de Pós-graduação homônimo, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com bacharelado e mestrado em Artes Cênicas, respectivamente realizados na UFSC e na UFBA; além de licenciado em Música, pela Faculdade Claretiano. Introdução
Keywords: Opera, Otello, Orchestration, Theory of affects, Doctrine of ethos.
Introdução
A ópera, enquanto gênero artístico, coloca-nos diante de dois problemas interrelacionados: o da definição e da essencialidade. O primeiro, trata de tentar responder à difícil questão: o que é ópera? E, por consequência, afirmar o que ela não é. Dizer que a ópera é a síntese entre música e teatro, não ajuda muito, tendo em vista que a definição de ambas, assim como a da arte em geral, está permanentemente em crise. A música, por exemplo, está relacionada à produção de sons delimitados pelo silêncio. Mas, quando John Cage desenvolveu a performance 4’33” (CAGE, 1952), tal conceito pareceu insuficiente, pois o silêncio já não era mais a fronteira. Nas artes da cena, com o advento da dramaturgia televisiva e do cinema, o teatro passou a buscar em si elementos distintivos.
O segundo problema, parte da existência de uma suposta essência de cada gênero artístico que os distingam entre si e singularize. A pergunta que surge é: será que existe essa ‘substância’, o ‘ser’ da coisa? Seria uma espécie de zona onde existe, por exemplo, a essência do teatro ou a música ‘pura’, autônomos e descontaminados de quaisquer outras artes. É provável que esse dilema só faça sentido na contemporaneidade. Pois, para os românticos alemães, a arte na Grécia antiga não era fragmentada e distribuída em gêneros isolados como atualmente é percebida.
Para tentar resgatar essa forma de abordar a arte cunhou-se o conceito de Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”) que aparece pela primeira vez no ensaio, de Trahndorff (1827), intitulado: Ästhetik oder Lehre von Weltanschauung und Kunst, conforme segue:
Falamos anteriormente, na seção da arte do Som da Palavra (§. 57 S., 2z), sobre o fato de que as quatro artes, chamadas de arte do Som da Palavra, da Música, da Mímica e da Dança, têm a possibilidade de fluir em conjunto. No entanto, essa possibilidade é baseada em um comando que existe em toda a arte que se esforça para formar uma Gesamt-kunstwerk por parte de todas as formas da Arte. É uma busca que existe originalmente em todo o campo da arte. Uma vez que é reconhecida a unidade de sua existência, esta possibilidade não se dá apenas nas artes acima mencionadas, mas em todas. (TRAHNDORFF, 1827, p.312, tradução nossa)2.
Para Richard Wagner, a decadência da polis coincide com a ruína dos valores helênicos, resultando na segmentação da arte, como algo desintegrado, perceptível nos gêneros fracionados: literatura, música, teatro, dança e artes visuais. Conforme o refe rido compositor:
A dissolução do Estado ateniense está relacionada com a queda da Tragédia. À medida que o espírito da comunidade se fragmentou em mil direções egoístas, a obra de arte total [Gesamtkustwerk] da Tragédia também se desintegrou em seus componentes individuais: nas ruínas da Arte Trágica, Aristófanes, o criador das comédias chorou enlouquecidamente [...] (WAGNER, 1849, p. 10, tradução nossa)3.
O conceito gesamtkunstwek era o instrumento que Wagner buscava para restaurar (ou seria ressignificar?) o modo de relacionamento e abordagem da obra de arte, à maneira dos gregos antigos, observando o todo, em vez das partes.
A grande Gesamtkunstwerk tem que abranger todos os gêneros da arte, a fim de conscientemente utilizá-los e destruí-los em favor da realização do propósito geral de todos, a saber, a representação direta e incondicional da natureza humana perfeita – esta grande Gesamtkunstwerk, não é como a ação voluntária possível do indivíduo, mas como a obra comum necessária dos homens do futuro. (WAGNER, 1850, p. 32, tradução nossa)4.
O Romantismo incorporou e idealizou esse conceito e desdobrou-o tanto na estrutura do drama (libreto e poesia), na orquestração musical, na linguagem de encenação e até mesmo na arquitetura teatral, razão pela qual Richard Wagner empreendeu a construção de um teatro totalmente em Bayreuth. Todos os elementos constitutivos da obra de arte lírica foram articulados para se atingir o máximo efeito diegético, a maior imersão possível na dimensão ficcional. Se propôs uma relação entre as artes integradamente, resultando em uma que é, enfim, o objetivo final dessa união: a ópera.
Independentemente do idealismo romântico, de fato, na ópera, a orquestra tem papel decisivo na construção de paisagens sonoras, no estabelecimento de climas, de estados d’alma, de tensões dramáticas e até a caracterização física das cenas e personagens. Assim como, os personagens são realizados por cantores que atuam (ou seriam os atores que cantam?). Já o teatro, através das ações, dos versos e da distribuição visual que realiza, só faz sentido dentro de um ritmo que produz inquestionavelmente harmonia e musicalidade.
Por exemplo, na primeira cena de Otello, sabe-se que há um furacão, não por que o coro diga: “Lampejos! Trovoadas! Redemoinhos! Tempestade revolta e raios!...” (BOITO, 1887, p.8, tradução nossa)5, ou porque a iluminação cênica cintile simulando trovões, mas, sobretudo, porque a orquestração constrói o ambiente que materializa a dramaturgia. Nesse instante, a orquestra é uma ‘atriz’, interpretando um tufão.
A ópera Otello foi escolhida, por se tratar da última tragédia de Giuseppe Verdi. De acordo com Abbiati (1963), o velho maestro estava na maturidade artística, com 73 anos, quando estreou sua adaptação da peça shakespeariana para o drama lírico. O libreto foi criado pelo poeta e também compositor Arrigo Boito, responsável por trazer Verdi no- vamente ao trabalho, após uma aposentadoria autoimposta, quase uma década antes, quando houvera composto a ópera Aida (1871). De acordo com a tradição operística italiana, uma ópera normalmente é fruto do trabalho de duas pessoas, um libretista e um compositor musical, sendo o primeiro aquele que transforma o argumento dramatúrgico em versos; e o segundo o que dá forma à camada musical.
O problema da doutrina dos êthos e da teoria dos afetos na produção de sentidos
Desde os filósofos clássicos, defende-se a capacidade da música de agir no comportamento humano. Segundo Rocconi (2012, p. 66), os helênicos acreditavam que a música poderia influenciar a personalidade daqueles que a ouvissem. Para explicar essa ação, pensadores da Grécia antiga desenvolveram os princípios teóricos do que ficou conhecido como: doutrina do êthos. Dentre os filósofos que aceitavam essa doutrina, destacam-se Pitágoras (cerca de 570 a.C. à 490 a.C.), Platão (cerca de 427 a.C. à 347 a.C.)6 e Aristóteles (de 384 a.C. à 322 a.C.)7.
O primeiro deles compreendia a relação entre música, psiquê (ou alma) e física (matéria ou corpo) de forma matemática e determinística. O segundo interessava-se pela relevância que a música alcançava na educação da alma. O último, considerava essa relação variável segundo os indivíduos. No entanto, apesar das diferenças, todos concordavam que a música provocava uma reação no ouvinte.
Conforme as duas maiores autoridades no assunto, Platão e Aristóteles, o êthos de uma peça musical, seu caráter estético, seu estatuto moral e sua influência nas disposições psicológicas de seus ouvintes, depende diretamente da natureza da estrutura harmônica e rítmica na qual é construído. A harmonia Dórica impõe um tipo de êthos a uma melodia, o modo Lídio outro, e diferentes variedades de ritmo criam seu próprio êthos específico de maneira semelhante. (BARKER, 2012, p. 21, tradução nossa)8.
Por outro lado, o peripatético filósofo Aristóxeno de Tarento (cerca de 354 a.C. à 300 a.C.) divergia dos mestres e negava tais princípios. Segundo Barker:
[Aristóxeno] insiste que as disciplinas musicais técnicas que analisam tais estruturas – harmônicas, rítmicas e o restante – não podem fornecer qualquer compreensão do êthos musical. Os Harmônicos[9], por exemplo, estudam os gêneros melódicos, intervalos, concatenações de tetracordes, notas, tonalidades e modulações, ‘mas não pode ir além disso’. Não pode nos dizer nada sobre se o compositor escolheu as estruturas que ele usa ‘apropriadamente’ (oikeiōs); ‘pois o empreendimento dos harmônicos não se estende a tais assuntos ... visto que ignora o atributo (dynamis) da adequação. Pois nem o gênero cromático nem o enarmônico já vem equipado com o atributo da adequação, em correspondência com o qual o êthos da melodia que foi composta se apresenta; mas este é o trabalho dos technitēs [10]’ (1142f-1143a)[11]. (2012, p. 22, tradução nossa)12.
Para Aristóxeno, o ethos não é inerente à arte, mas externo a ela. Em linha com os pensadores anteriormente citados, para Nascimento e Silva, “a doutrina do êthos era a crença de que a música teria o poder de induzir disposições éticas, afetivas e morais” (2016, p.24). Desse modo, no nível psicológico, a música poderia despertar nos indivíduos coragem, alegria, tristeza, etc., tornando-se um importante meio pedagógico na medida em que interferia no caráter humano. Conforme Lia Tomás:
Essa associação, que já se encontrava nas narrativas mitológicas e que também fora desenvolvida e firmada por Pitágoras se justifica com base na convicção de que a música exerce uma influência profunda e direta sobre os espíritos e consequentemente, na sociedade em seu conjunto. Esse poder da música se fundamenta na crença de que cada harmonia provoca no espírito um determinado movimento pois cada modo musical grego era associado a um êthos específico, ou seja, caráter particular de ser. (TOMAS, 2005, p. 171)
Na Idade Média, Santo Agostinho desempenhou papel importante na adaptação do pensamento platônico aos cânones católicos e, juntamente com Beócio, deu à música uma importância elevada por causa da doutrina do êthos. Na renascença, como o nome sugere, vários estudiosos, artistas e cientistas tentaram resgatar, ou fazer renascer, o pensamento e os ideais clássicos. Assim, na transição da Renascença para o Barroco, em Traité des passions de l’âme (1649), de René Descartes, as referidas ideias ressurgem desenvolvidas no que ficou conhecido como: doutrina dos afetos. Ainda que, o autor francês já dispusesse de tais argumentos numa obra anterior, intitulada: Compendium Musicae, de 1618, nela “[...] está presente a concepção de que a finalidade da música é a estimulação dos afetos.” (GATTI, 1997, p. 18).
Apesar da doutrina do êthos distanciar-se em mais de mil anos da teoria dos afetos, ambas possuem uma semelhança fundamental: a relação de que uma causa musical tem um efeito anímico e buscam, conforme afirma Gatti, “[...] determinar quais Affectiones (propriedades) do som produzem os diversos Affectus (paixões)” (1997, p. 19). No entanto, a teoria dos afetos, refletindo um pensamento barroco e de caráter muito mais determinista que sua antecessora, aproxima-se do concebido por Pitágoras, ao estabelecer quase numa proporção matemática essa relação de causa e efeito. Cabe ressaltar que o teatro também foi submetido a uma abordagem de interpretação hermética, na medida em que cada gesto e movimento produziam uma interpretação unívoca. O abade Bretteville escreveu, em 1698, L’eloquence de la chaire, et du barreau, selon les principes les plus solide de la rhetorique sacrée & profane, onde catalogou os gestos que até hoje são usados como clichés de interpretação, por exemplo: costas da mão esquerda próxima à testa com o braço direito estendido para o lado oposto significa repulsa.
Conforme Nascimento e Silva (2017, p.159), enquanto gênero artístico, a ópera surgiu no começo do período barroco, refletindo fortemente a teoria dos afetos nos seus propósitos musico-teatrais e na sua estrutura formal fechada e rigorosa. Dessa forma, falar de ópera implica em tratar de um gênero relacionado desde as origens com a proposta do êthos musical e da teoria dos afetos. Desse período resultam estudos de relacionamentos entre música e afetos abaixo listados. A tabela, a seguir, resulta da catalogação feita por Mattheson (1713):
Tonalidade maior | Afeto | Tonalidade menor | Afeto |
Dó maior | Rude e atrevido | Dó menor | Amável e triste |
Ré maior | Penetrante e teimosa | Ré menor | Devoto, calmo, fluente grandioso |
Mi bemol maior | Patético | Mi menor | Pensamentos pesados, aflitos e tristes |
Mi maior | Desespero | Fá menor | Suave, serena, profunda e pesada |
Fá maior | É capaz de exprimir os mais belos sentimentos do mundo | Fá sustenido menor | Tristeza, aflição |
Sol maior | Insinuante, falante | Sol menor | Serenidade, amabilidade, vivacidade |
La maior | Paixões lamentosas e tristes | Lá menor | Lamentosa, respeitável e serena |
Si bemol maior | Divertido e exuberante | Si menor | Bizarro, melancólico |
Na listagem abaixo, há duas tabelas produzidas por Gatti (1997, p. 54):
Mattheson | Quantz | Rameau | Charpentier | |
Dó maior | Rude | Alegre | Alegre | Guerreiro |
Ré maior | Alegre | Alegre | Alegre | Alegre |
Mi maior | Penetrante | Alegre | Grandioso | Questionador |
Fa maior | Generoso | Prazeroso | Majestoso | – |
Sol maior | Amoroso | Prazeroso | Afetuoso | Doce, alegre |
Lá maior | Brilhante | Alegre | Brilhante | – |
Sib maior | Magnífico | Alegre | Intempestivo | – |
Mib maior | Choroso | Cantábile | – | – |
Mattheson | Quantz | Rameau | Charpentier | |
Dó menor | Triste | Melancólico | Lamentoso | Triste |
Ré menor | Devoto | Terno | Compaixão | Devoto |
Mi menor | Aborrecido | Terno | Terno | Lamentoso |
Fa menor | Doloroso | Melancólico | Lamentoso | – |
Sol menor | Encanto | Terno | Afetuoso | Magnífico |
Lá menor | Honroso | Melancólico | – | – |
Si menor | Melancólico | Melancólico | Terno | Melancólico |
No Barroco, a ópera sofreu algumas ‘reformas’ para adequar-se a um desejo de padronização de produção e recepção do efeito cênico, que reflete um pouco o objetivo do esquema acima. Uma delas, foi proposta pelos árcades, ou seja, destacadas personalidades da Accademia d’Arcadia, fundada em 1690 na cidade de Roma.
Para devolver o bom gosto à ópera, preferiram libretos que eram menos complexos e mais dramaticamente coerentes. As referências alegóricas deveriam ser inequívocas; moderação e clareza estrutural eram de importância primordial. Enquanto a imaginação e a fantasia ainda eram valorizadas, aqueles que atribuíam à estética Arcadiana acreditavam que a verdade e o realismo poderiam ser alcançados fazendo com que os personagens se comportassem de maneira digna e se expressassem em um estilo poético apropriadamente elevado, enquanto também mantinham a pureza dos gêneros trágico e cômico, como havia sido alcançado nas óperas de Lully e Quinault. (HELLER, 2014, p. 195, tradução nossa) 13
Esses princípios foram adotados por um libretista, em especial: Pietro Trapassi (1698–1782), melhor conhecido como: Metastasio. Para Natali (1923, p. 43 – 44), o propósito desse poeta era renovar o tema dos dramas; reduzir os atos, o prólogo e os recitativos; diminuir a quantidade de personagens, de atores e de árias; equilibrar a importância dada entre música e poesia; revogar o excesso de poder dos empresários, cantores e, por fim, acabar com a impressão de que o sucesso de uma ópera se determinaria pelo sucesso da recepção de uma ária especifica. A ária deveria ser subordinada ao recitativo, nascer dele; na primeira destacam-se os aspectos líricos (poesia), no segundo, habita o drama (as ações).
Em suma, buscava-se resgatar, por meio de uma reforma nos elementos estruturais da ópera, que os afetos produzidos pela música e pela poesia fossem os mais dignos e eficientes possíveis, isto é, enobrecendo e elevando a plateia. Também se pretendia que a produção de afetos estivesse a serviço da arte e não do exibicionismo de certos virtuoses, da ambição de empresários ou da vaidade de determinados compositores.
Assim, o termo ‘ópera séria’ surgiu para designar os libretos metastasianos, e todos aqueles que aceitassem a solita forma14 defendida pelo mencionado poeta, em razão do aspecto formal, da elegância e da concisão desses. Segundo Natali: “Metastasio entendeu que a música e a poesia deveriam ser objeto de um único magistério.” (1923, p. 45, tradução nossa)15, ou seja, no eterno jogo de forças que constitui a ópera, qual seja: a tensão existente entre música, poesia e teatro, todos têm a mesma importância. Apesar de que, em carta ao senhor Chastellux, em 15 de julho de 1775, desponta um certo favorecimento da palavra, como se pode verificar:
Quando a música [...] concorre pelo primeiro lugar no drama com a poesia, destrói a essa e a si mesma. [...] Enfim, esse incômodo atingiu um excesso intolerável, que ou será conveniente que logo essa serva fugitiva [16] volte a submeter-se à reguladora que sabe torná-la assim tão bela, ou que, separando completamente a música da poesia dramática, contente-se essa última de sua própria melodia interna, da qual jamais deixarão de fornecer os excelentes poetas, e que outro vá colocar em acordo as várias vozes de um coro, regular a harmonia de um concerto, ou seguir os passos de um balé, mas sem intrometer-se com o teatro [17]. (METASTASIO apud FUBINI, 1968, p. 750-751, tradução nossa)18.
Por isso, o mencionado poeta recebeu a alcunha de ‘reformador’ do gênero, mesmo que, segundo Weiss:
Não que Metastasio tentasse suprimir as convenções linguísticas do drama musical. O léxico poético tradicional também permanece intacto em suas obras: os reis não dão um ‘comando’, mas um ‘aceno’; têm a prerrogativa de gritar ‘olá’ para chamar as pessoas, de preferência ‘seguranças’ (nunca ‘soldados’), até que o prisioneiro seja preso e amarrado com ‘laços, cordas, grilhões’ (= ‘correntes’); cada pastora é uma ‘ninfa’, cada carta uma ‘epístola’ e assim por diante. (2013, p. 105, tradução nossa)19.
Logo, apesar da reestruturação dos dramas líricos, Metastasio empregou na sua poesia a terminologia corrente. No campo sonoro, o libretista aprofundou o uso de um léxico de apontamentos descritivos que resultassem num repertório de figurações rítmicas, sonoras e retórico-musicais para manter o rigor estético da ópera, como apontados abaixo:
[...] são sugeridas pelo texto de tal forma que a tempestade é representada com trêmulos dos arcos das cordas, as ondas com um fluxo ininterrupto de semicolcheias, os relâmpagos com escalas ascendentes e descendentes rápidas, a caça com trompas e a guerra com trombetas e tímpanos. (GBOPERA, 2018, tradução nossa)20.
A tentativa de estabelecimento de um léxico sonoro revela uma importante iniciativa de ir além do som, ou da mera associação de uma tonalidade específica com um afeto, e buscar incluir o timbre e a articulação como elementos necessários na produção desse efeito final. Afinal, um acorde de Dó menor gerado por um contrabaixo estimulará uma reação distinta da mesma tonalidade estabelecida numa arpa, numa flauta transversal, ou num violino. Mesmo assim, a articulação, a dinâmica, enfim, a expressividade da produção sonora dará outras nuances importantes na conformação de um dado efeito.
No caminho oposto, o movimento romântico trouxe uma nova compreensão da relação entre a arte e a produção das subjetividades. Nesse novo contexto plural não seria possível encarar o público como um conjunto que responderia homogeneamente ao mesmo estímulo. Cada um poderá responder de uma maneira distinta a mesma provocação artística e não há qualquer garantia de que a obra de arte logre afetar a alma humana conforme a intenção do seu autor. Logo, como conciliar a construção de sen- tidos cênicos a partir da semântica musical, na ópera Otello, considerando a teoria dos afetos já superada ao tempo da sua composição?
A tradição não foi desprezada, a partir do Romantismo. Dialogar com a tradição faz parte do ofício de todo artista. Em verdade, cada ópera passou a responder ao seu próprio projeto poético, a constituir seu léxico e estabelecer sua semântica, atendendo ao compromisso com o drama representado e não com uma estrutura predefinida. Assim, manteve-se a noção de que a música exerce influência no caráter humano, mas isso não implica numa correspondência universal. Conforme ressalta Pianigiani abaixo:
Se, por um lado, pensar a música como um momento emocional nos permite justificar seu caráter “universal” e compartilhado, por outro, sua imprescindível natureza linguística assegura que nunca se perca sua referência num código interpretativo preciso. O compositor é mais livre que o orador comum: ele pode permitir-se estabelecer de tempos em tempos um léxico indicial cujo significado emerge não apenas do que o traço musical pode indicar em si mesmo, mas acima de tudo do modo e do contexto em que esse traço é colocado. Pode-se dizer que o compositor, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, tem maior liberdade para montar os elementos musicais, pode construir ma nova gramática, experimentar qualquer combinação. E, no entanto, se o número de “agregações indiciais” é “potencialmente infinito” e se os campos semânticos da música procedem de grandes categorias emocionais, também devemos destacar que estes indícios “possuem limites de interpretação, cruzamento que é considerado arbitrário: não se pode julgar facilmente como leves e aéreos um grupo de quatro trombones no registro grave”. (PIANIGIANI, 2009, p. 11, tradução nossa)21
Não obstante, a relevância e profundidade da doutrina do êthos, da teoria dos afetos, existem muitos objetivos a serem atingidos com cada uma delas, seja através do viés moralista, no sentido da produção da catarse, da pedagogia e melhoramento do indivíduo; seja para a instauração da comunicação entre obra e público. Por isso, ampliar-se aqui a noção de afeto, ou êthos, para uma relação de sinestesia voltada a construção de imagens, sensações, sentimentos e emoções.
Assim, ‘efeitos cênicos’ seriam a capacidade de se interromper o fluxo tempo/espaço corrente para se instaurar um novo cenário, com um tempo correndo em outra velocidade. A música e o teatro são capazes de criar essa interrupção para inserirem-se como diferencial na realidade humana, como criadores de realidades ficcionais, espelhadas ou não no mundo objetivo.
A música e o teatro de Otello
A ópera Otello advém do texto teatral de William Shakespeare (1604), que por sua vez colheu argumentos da obra homônima existente no célebre conjunto de novelas Gli Ecatommiti, de Cinzio Giraldi (1525). Trata-se de uma história ambientada no século XV, em Chipre – mais precisamente em 1527, conforme Boito em Conati (2015, p. 133)
–, da trágica relação de amor entre o general africano, Otello, a serviço de Veneza, e a jovem Desdemona. Após nomear Cassio ao posto de Capitão, o mouro desperta a inveja de Iago, que passa a planejar o rouba do cargo do jovem e instigar suspeitas no general quanto a relação entre Desdemona e o jovem Capitão. Envenenado pelo ciúme, o Otello enlouquece, mata a esposa e suicida-se.
O primeiro ato da ópera é impactante, segundo Pianigiani (2009), poucas cenas de abertura atraíram tanto a atenção de críticos e musicólogos quanto a de Otello, pois a ópera começa abruptamente – sem prelúdio, nem sinfonia introdutória – com uma tempestade e intervenções do coro entrecortadas por breves frases de Cassio, Montano, Roderigo e Iago. A dramaticidade aumenta com a guerra em curso entre Otello e os Turcos, próximo a Chipre. A qualidade do timbre orquestral é poderosa: madeiras e me tais divididos, a seção de percussão envolve, além dos tímpanos, pratos, dois bumbos e um tam-tam para efeitos de relâmpagos, raios e trovões.
Conforme Viagrande (2013), a ópera começa com um acorde de décima terceira de dominante, de Fá Maior, que dura seis compassos sem se resolver; o acorde é modificado com o abaixamento da nona (Ré bemol) para depois misturar-se outros acordes que não estão diretamente ligados entre si de acordo com os esquemas tradicionais, conforme (Figura 1).
O cenário harmônico é extremamente moderno e engenhoso, buscando produzir imagens por meio da orquestração. O drama é conduzido acima da própria harmonia tonal, por exemplo, na figura 1, há o efeito das ‘rajadas de vento’ na tempestade, feito por rápida concatenação de tercinas de quintas diminutas confiadas às madeiras (compasso 12), ou tríades das trompas (compassos 9 e 10); há as ‘ondas’ formadas por velozes arpejos de semicolcheias de sétimas diminutas com sensível, ligadas sem nenhum nexo harmônico tradicional. Em seguida, novamente, arpejos rápidos de flautins (ottavino), de flautas e oboés que transmitem a instantaneidade do raio cortando os céus (compasso 13). Toda a cena prossegue numa instabilidade harmônica e tonal o tida com a concatenação atípica de tríades maiores e menores. A partitura quase forma uma topografia marítima. Não por acaso, nesse momento, a Nau de Otello está em mar revolto, instável e volátil, levada pelas ondas de alto a baixo (Figura 2).
O aparecimento de Otello ocorre com o famoso “Esultate!”, ou “Exultai!”, que alça o protagonista à glória na sua extraordinária batalha, não apenas contra a armada Turca, mas também sobre as forças da natureza que aturdiram-no. Otello é um tenor heroico que deve apresentar certa maturidade vocal, afinal ninguém chega ao generalato por volta dos 20, 30 ou 40 anos. Segundo a Messa in scena (1887), a entrada ocorre em posição de destaque, na parte alta do centro do palco cênico, e exprime o tortuoso itinerário cheio de dificuldades que foi percorrido para a obtenção de tamanho sucesso, graças a uma harmonia modulante, inquietantes arpejos das cordas, até alcançar a tonalidade maior no fim do solo (Figura 5).
Após, ocorrem sucessivos festejos, numa harmonia tonal estável, não obstante os ecos da tempestade que se vão distanciando. Na cena, o foco recai sobre Iago e Roderigo. Esse último confessa o desejo de atirar-se ao mar pelo amor não correspondido à Desdemona. Musicalmente, o diálogo se dá na forma de recitativo accompagnato, em que Iago manifesta seu caráter imediatamente, graças a duas intercorrências melódicas. A primeira, é uma expressão magistral da hipocrisia, da dissimulação e da esperteza do personagem, por meio de um saltitante movimento de dança (Figura 6). A posterior, é diabólica e insinuante, com uma melodia sinuosa de muitas curvas e de tempo sensivelmente solto, redobrada pelas cordas (Figura 7). No salto de oitava final, precedido pela acicatura, parece reforçar o caráter demoníaco do personagem.
Na sequência, vem o coro Fuoco di gioia (Figura 8), segundo Viagrande (2013, p.136), trata-se de um exemplo refinado, uma pequena joia de equilíbrio entre a massa coral e as cores orquestrais que se alternam e mesclam. Ao fim, cria-se um efeito de instrumentos a plectro, com as cordas em pizzicato. A sonoridade, produzida pela escala ascendente e descendente de décima terceira de flautins, remete à imagem de uma hipnótica fogueira de labaredas fugidias, das quais volitam fagulhas incandescentes que confundem-se com as estrelas, e ao redor da qual reúne-se a população, em grande alegria. Já o ritmo lembra as danças circulares, festivas.
Diretamente do coro nasce a cena sucessiva: o brinde. Nela, Iago induz Cassio a beber e embriagar-se. Uma vez alcoolizado, o jovem é envolvido em uma briga. Não se trata de um brindisi à la Traviata, com taças cheias de champanhe, empunhadas por nobres franceses, mas da população cipriota festejando a vitória de Otello, ao redor de uma fogueira, com canecas rústicas. Cassio sabe que não pode beber em serviço, mas o convite ao vinho soa-lhe como um desafio, entrementes, Iago dissimula beber fartos goles. Conforme o jovem cede, sua forma de se referir à Desdemona desperta a suspeita de também amá-la.
A introdução orquestral do brinde deriva do acompanhamento de Fuoco di gioia, adquirindo um caráter sádico e quase demoníaco, com acentos, notas de passagem, staccati e acicaturas conservadas em alguns pontos. Interessante notar que Iago mostra-se insinuante e falso na imitação do ‘soluço’ de uma embriaguez, ao final da sua frase (Figura 9).
Consequentemente, Cassio está completamente bêbado, sonoramente, as apojaturas e bordaduras parecendo imitar o cambalear típico de um ébrio. A escala sucessiva cuida de dar-lhe uma aura de tenor heroico que resulta, inesperadamente, fora do tom ao fim (Figura 10). Nesse ínterim, Roderigo, instruído por Iago, provoca o jovem capitão. Cassio desembainha a espada e trava uma luta com Montano (predecessor de Otello no governo cipriota), esse último termina ferido. O contraste gerado pelo pretenso heroísmo e os ímpetos de demonstrar coragem apenas realça a condição real de embriaguez.
Iago aproveita a confusão para atiçar a multidão e causar um motim. No caos, expresso por um inquietante cromatismo, chega Otello. No exercício de sua autoridade, o general ordena que todos abaixem suas espadas e, depois, pede que Iago explique-lhe o ocorrido. O alferes não perde ocasião de dissimular-se, fingindo ignorância. Na conclusão da cena, Otello destitui Cassio do posto, para o qual fora indicado, e Iago vê no sucesso atingido a possibilidade de alcançar algo maior: a destruição do próprio general. Ao fim, a acomodação harmônica transita para tonalidade de Fá maior, preparando o clima tranquilo no qual se dá o dueto de amor entre Otello e Desdemona.
Nesse dueto, o casal protagonista resgata, no próprio diálogo, fragmentos originais do primeiro ato da peça, de Shakespeare, que foi omitido do libreto, de Boito. Em especial, destaca-se a justificativa do amor entre ambos. O fato de Otello ser africano, de tez escura, por si já levantaria questões raciais intensas, mas, além disso, o general teria, aproximadamente, 50 anos, sendo, portanto, um homem maduro. Por sua vez, Desdemona não é apenas uma nobreza veneziana, em contraste, branca e loira, mas uma donzela, o que localiza sua faixa etária na casa dos 18 anos.
Assim, a genialidade dos autores (Giraldi e Shakespeare), capturada por Boito, foi provocar a sociedade elizabetana, do bardo22 inglês, e a vitoriana, do maestro italiano, com argumentos raciais e de diferenças etárias, uma aproximação pouco usual para os costumes da nobreza da Serenissima23. O próprio epíteto ‘Mouro’ já despertava a ojeriza europeia considerando-se os tempos de cruzadas e os séculos de dominação árabe na península ibérica. Assim, a união de um africano, de meia idade, com uma nobre donzela tinha o alto propósito de chocar a moral vigente.
Na continuidade, o mencionado dueto é um dos momentos de maior intensidade na obra verdiana. Inicia-se com poucos instrumentos, numa orquestração de câmera, que representa bem o ambiente intimista da cena. De acordo com a história original, desde que haviam se casado, Otello e Desdemona ainda não haviam consumado sua primeira noite de amor. O fato pode ser verificado nas linhas da início do terceiro ato, quando, em novo dueto, discutem: “Otello: Corre para tua danação, diz que és casta. / Desdemona: [Encarando-o] Casta... eu sou.” (BOITO, 1887, p. 47, tradução nossa)24.
Portanto, é provável que a instrumentação desse dueto preparasse o ambiente para tal encontro. Otello, profundamente doce, afirma como o amor que sente pela esposa enche-lhe de tal modo que nenhum evento, nem menos o fim do mundo, poderia perturbá-lo. A certeza e a segurança dos sentimentos de Otello são expressas tanto por meio de uma harmonia estática, residente no acorde de tônica, quanto num declamado tranquilo que tende ao canto na primeira parte. Há um sobressalto quando o mouro fala da guerra e das falhas humanas (Figura 11).
A resposta de Desdemona é celestial, quase inteiramente elevada aos agudos e acompanhada das cordas meio-agudas, utilizadas em substituição ao violoncelo que acompanhava o esposo até aquele momento. Quando o diálogo ocupa-se das obras de Otello, a orquestração assume um tom épico, a parte confiada à esposa é sublinhada pela contrastante presença do acompanhamento de uma arpa. No trecho destinado ao guerreiro, a agitação demonstra que todos os acontecimentos vividos por ele permaneciam agindo em sua alma.
O final é um trecho de extrema candura, em que Otello e Desdemona cantam o próprio amor numa harmônica imagem cênica. Sonoramente a tonalidade varia de Fá maior a Fá menor, o que parece exprimir a felicidade presente entre os dois amantes, ao mesmo tempo que a mobilidade tonal denota um caráter transitório e precário, uma instabilidade na relação (Figura 12). Por fim, Otello encerra o segundo ato olhando o céu e dizendo à esposa: “Venha... Vênus esplende.” (BOITO, 1887, p.20, tradução nossa)25. Vênus, a Afrodite romana, deusa do amor e que empresta seu nome ao planeta que muitas vezes refulge na abóboda como uma estrela.
O segundo ato abre-se com um tema orquestral importante, em modo contrapontístico, que apresenta emblematicamente o caráter demoníaco de Iago. O tema introdutório converte-se no Credo, ária estruturada em forma de recitativo accompagnato, ritmicamente bem determinado com a orquestra que intervém ora para retomar a célula do motivo inicial, ora para desenvolvê-lo. Todavia, o elemento trilado, associado quase à gargalhada de deboche, ressalta a índole de Iago. Na segunda parte da ária, Iago mostra-se como protagonista absoluto, intercalando o vibrante declamado pelo qual expõe o seu niilismo. A cena encerrada com uma gargalhada diabólica precedida pela famosa frase: “A morte é o nada / é velha piada o céu” (BOITO, 1887, p.24, tradução nossa)26, que Boito reaproveitou do seu libreto La Gioconda (1879), musicado por Ponchielli.
O destino, imbatível personagem das tragédias, parece ajudar Iago, pois o vilão aconselha Cassio a recorrer à Desdemona para conseguir o perdão de Otello. Ao mesmo tempo, Iago questiona Otello se a proximidade entre o destituído capitão e a jovem é apropriada. Em seguida, a dama adentra a sala de despachos do marido e intercede-lhe em favor de Cassio, provocando a primeira reação rude do general. Então, Desdemona deixa cair no chão um lenço, que fora presente de Otello. Emília, sua fiel criada, junta-o. Iago que, por sua vez, é marido de Emília toma-lhe o lenço das mãos.
No decorrer do terceiro ato, o referido lenço aparece no leito de Cassio, servindo a Otello como prova da traição. Tornando ao segundo ato, cabe notar que Iago não faz qualquer acusação direta sobre a conduta de Desdemona, apenas lança a dúvida em Otello. Assim, como afirma o personagem: “o meu veneno está funcionando” (Boito, 1887, p. 35, tradução nossa) . Com astúcia, o alferes inventou ter presenciado um delírio de Cassio durante o sono, no qual confessava amar a jovem. Boito construiu a invenção de Iago em dez versos alexandrinos clássicos, cuja escansão pode-se ver na Tabela 4.
Verdi musicou os primeiros quatro versos alexandrinos como triplos quinários (versos de 5 sílabas poéticas com a última tônica recaindo sobre a 4ª posição), e os dois versos que correspondem às palavras de Cassio, em estado sonambúlico, são realizados em septenários duplos, declamados em uma nota só . Dessa forma, nota-se na partitura os primeiros quatro versos numa frase ternária, na qual cada inciso corresponde a cinco sílabas. Como o alexandrino tem sistema rítmico de dodecassílabo (ignorando-se as átonas posteriores a 6ª sílaba de cada hemistíquio) e, na língua italiana, a nomenclatura do verso baseia-se no esquema grave e não no agudo (vide nota 32), logo, três quinários consomem as doze sílabas poéticas do verso alexandrino. Conforme figura 14.
Interessante notar o início da voz em anacruse e o pé rítmico composto adotado no gesto da fala de Iago, não sendo nem anapesto, troqueu, dáctilo ou iâmbico puros, mas uma mescla: ora tríbaco (três sílabas curtas) e troqueu (uma sílaba curta e uma longa), ora tríbaco e pírrico (duas sílabas curtas). Essa alternância prossegue até o início do primeiro setenário que coincide com o trecho sonambúlico.
No terceiro ato Otello tanto dissimula sua ira, quanto se rende à angústia sufocante e torturadora do ciúme. No diálogo inicial, Desdemona percebe que o esposo encontra-se perturbado, mas desconhece os ardilosos planos de Iago, em curso. O dueto degenera quando Desdemona pronuncia, sem malícia, o nome de Cassio. Otello, simula uma indisposição e pergunta à esposa pelo lenço com o qual a presenteou. Desdemona acredita que Otello estivesse desviando o assunto para não tratar da questão relativa a Cassio, mas o marido, ainda mais ameaçador, ofende-a e o duo se desfaz de maneira dramática. A riqueza harmônica desse trecho traduz o estado de alma do personagem. Otello parece asfixiado e com voz estrangulada murmura seu lamento sobre a tônica e a dominante de Lá bemol menor, presente em menor medida na ária (Figura 15).
A orquestração se faz com um acompanhamento inteiramente construído num único desenho harmônico, numa tonalidade nunca afirmada em modo pleno em toda a ópera, até aqui. Após o canto de angústia, Otello exige de Iago a prova irrefutável da traição. O perverso amigo marca um encontro com o jovem Cassio, às vistas de Otello que, de longe, sem conseguir ouvi-los, apenas observa-os. Iago, consciente disso, orienta o diálogo para temas leves, descontraindo Cassio e deixando Otello ainda mais irritado. Em certa altura da conversa, Cassio mostra-lhe um ‘certo’ lenço que havia aparecido misteriosamente no próprio leito, ao estendê-lo, Otello reconhece-o, subitamente, e pensa ter encontrado a prova que buscava.
O fluxo dramático é interrompido, ficando em suspense, com a chegada do embaixador veneziano, Ludovico, que traz ordens do senado: o imediato retorno de Otello e a ascensão de Cassio ao posto de governador de Chipre. Ao ser comunicado, Otello descontrola-se e agride Desdemona em frente à comitiva. Um concertato tem início: Iago transita entre os personagens ora atiçando o mouro, ora somando-se a perplexidade dos demais pela agressão presenciada à uma nobre veneziana; Otello arquiteta o assassinato de Desdemona e Cassio antes de deixar a ilha; Desdemona chora, ao chão; e a corte expressa seu horror pelo gesto ofensivo. Ao fim, Otello expulsa todos do salão e, em sintonia com o texto shakespeariano, convulsiona ante as gargalhadas de Iago, que exulta: “Eis o leão [de Veneza]!” (BOITO, 1887, p. 65, tradução nossa)32.
O quarto e último ato inicia-se com o silencioso clima da inevitabilidade: uma tragédia aproxima-se. Desdemona, no quarto, prepara-se para o recolhimento. Atinge-a uma profunda amargura: a suspeita do fim. A empregada, Emília, testemunha-lhe a agonia. Após despedirem-se, a dama faz uma oração à Virgem Maria, iniciando num recitativo declamado que, depois de um glissando, torna-se cantábile. Na sequência, a jovem adormece. Otello entra silenciosamente. A esposa acorda e ocorre o duo final: uma avalanche rápida e violenta, com frases curtas e agressivas. Até que Otello a estrangula. Posteriormente, Emília, desesperada, informa o mouro que ao tentar eliminar Cassio, Roderigo foi por ele morto. Porém, ao ver sua senhora expirando, grita. Acodem-na: Cassio, Montano, Ludovico e Iago. O primeiro revela as trapaças de Iago, confessadas por Roderigo antes de morrer; Emília confirma a inocência de Desdemona. Iago foge. Otello toma um punhal e enterra-o no próprio ventre. A harmonia cênica é quase petrificante, a orquestra dá uma cor tétrica, prolongando um registro médio grave (Figura 16).
Otello expira ao tentar dar um último beijo na esposa. A orquestra pulsa como um coração que se esgota, confundindo-se com uma marcha fúnebre. A ópera que começa eletrizante em meio a uma tempestade, encerra-se quase silente. Fim.
Conclusão
Não foi a pretensão, no texto aqui apresentado, negar ou refutar as premissas da Gesamtkunstwerk, da doutrina do êthos e da teoria dos afetos. Mas, a partir da ópera Otello, refletir sobre as influências, especialmente, dessas duas últimas teses, próprias da Grécia antiga e do Barroco europeu, sobre a forma de relacionar-se com a arte e com o mundo. Tais teses chegaram até nós expressando um determinismo e uma univocidade entre o som produzido e o efeito alcançado no ser.
Buscou-se alargar os horizontes dessa influência não apenas como mudança na alma, mas como uma produção de sentidos, no sentido de criar novas emoções no âmago humano, bem como, instaurar uma nova realidade, construir novos cenários, enfim ‘efeitos de sentidos cênicos’. Nesse caso, a música torna-se, por meio da orquestração e articulação, uma personagem que joga com os demais artistas; constrói um cenário de tempestade, pinta uma fogueira, transmuta-se para a criação de um ambiente de embriaguez, materializa o amor, a inveja, a dissimulação, o ódio, a violência, a dor, o arrependimento e a morte.
Assim, é inegável que a música construa em outros níveis de abstração menos evidentes, sentidos, impressões, emoções e paisagens que toquem e afetem a alma humana e distintas maneiras. A ópera Otello traduz-se em singular exemplo da genialidade de um maestro e poeta já experientes que souberam sobrepor o drama à estrutura formal da ópera italiana, com aspectos Barrocos ainda resistentes no final do Romantismo, para construir um fluxo dramatúrgico que potencializasse a tragédia, com todos os efeitos que se pretendia.
Por fim, pôde-se perceber ao longo do texto que falar de ópera é como descrever a luta contra a mitológica Hidra de Lerna da qual, a cada cabeça cortada, nasciam duas. Esse gênero artístico possui muitos caminhos de fácil desvio, pois, se entendida como ‘obra de arte total’, implica falar de música, teatro, literatura, poesia, encenação, etc.; e cada qual, com incontáveis possibilidades e abordagens. Enfim, tratou-se de um indomável oceano com seus seres fantásticos que Otello, mais uma vez, tentou domar.
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Notas
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