Resumo: O eixo central deste artigo é uma análise da canção “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, com interesse em aspectos formais de certa representação da brasilidade na música comercial radiofônica local durante os anos sessenta. Apontamos como a canção, proponente no III Festival de Música Popular Brasileira, de 1967, e espécie de manifesto de primeira hora pelo programa estético da Tropicália, suspende uma interpretação consagrada da brasilidade ao tensionar os pares conceituais antitéticos arcaico/moderno e local/universal. Visando à exposição do argumento, percorremos, em detalhe, procedimentos que chamamos multidirecionamento e justaposição, realizados entre os estratos musical e poético. À luz dos elementos levantados, ressaltamos, enfim, como “Alegria, alegria” encampa, na própria estrutura, impasses que inflexionam o debate da brasilidade ante o influxo global da cultura de massas.
Palavras-chave: Alegria, alegria, Tropicália, Brasilidade, Música popular, Análise.
Abstract: The core of this paper is an analysis of the song “Alegria, alegria” by Caetano Veloso, focusing on formal aspects of a particular depiction of brazilianness in local commercial radiophonic music during the sixties. We indicate how this song, a proponent in III Festival de Música Popular Brasileira, in 1967, and a kind of first-hour manifest for the aesthetic program of Tropicália, suspends a canonic reading of brazilianness by means of tensioning the conceptual antithetic pairs archaic/ modern and local/universal. To introduce the argument, we go through the details of procedures we have called multidirectioning and juxtaposition, operating through the musical and poetic strata. Based on the presented elements, we highlight, at last, how “Alegria, alegria” engenders, in its very structure, conflicts that inflect the debate of brazilianness in face of the global influx of mass culture.
Keywords: Alegria, alegria, Tropicália, Brasility, Popular Music, Analysis.
Artigos
A equação da brasilidade em “Alegria, alegria”: panorama e aspectos formais
The Equation of Brazilianness in “Alegria, alegria”: An Overview and Formal Aspects
Recepção: 20 Abril 2021
Aprovação: 28 Junho 2021
Antagonizar a Bossa Nova para lhe fazer jus: a Tropicália habita essa contradição, formalizada de modo exemplar na obra inaugural do movimento, “Alegria, alegria”. Propomos uma análise dessa canção como leitura tropicalista da brasilidade, em meio ao debate da questão nacional no Brasil dos anos 1960. Acenando ao cosmopolitismo urbano sem prescindir de seu lugar periférico de enunciação, “Alegria, alegria” tensiona os pares antitéticos arcaico/moderno e local/universal sob a noção de descompasso, valendo-se de procedimentos poético-musicais que denominamos multidirecionamento e justaposição. O ambiente da canção se complexifica com a mediação das incipientes indústrias fonográfica, radiofônica e televisiva no país, estendendo às pautas da cultura a dimensão de negócio. Com efeito, “Alegria, alegria” se colocou no terreno do showbiz ao mesmo tempo em que encampou uma brasilidade ambígua e, ainda hoje, instigante. De modo geral, mostraremos como a Tropicália perfurou o dualismo entre “música jovem” (Jovem Guarda) e “música brasileira” (MPB) no repertório popular radiofônico de então, apresentando-se como alternativa brasileira e jovem.
O artigo se divide em duas partes: panorama e análise. Inicialmente, apresentamos os atores e as disputas simbólicas no terreno da canção radiofônica brasileira dos anos 1960, visando remontar à gênese da Tropicália. Para isso, enfocamos aspectos do ambiente de festivais, que condicionou parte importante do repertório à época. Seguimos, então, com nossa proposta de análise, alternando entre comentários e exemplos musicais (harmonia, melodia, ritmo, arranjo e instrumentação) e poéticos (sujeito cantante, espaço, imagens e versificação), de modo a explicitar os apontamentos com a transcrição de passagens específicas. Apoiamo-nos na leitura dialética da Tropicália por Schwarz (2008, 2012), abrangendo a pujança e os impasses da síntese aventada pelo grupo baiano. Também nos são caros os sentidos de evolução técnica e conceitual em Cícero (2005), como suporte para a compreensão das inflexões estilísticas no percurso entre Bossa Nova, MPB e Tropicália. Permeando a exposição, as particularidades da questão nacional no caso brasileiro são consideradas a partir de Ortiz (1994), que discorre sobre o deslocamento do debate aos veículos de comunicação de massa. Subscrevendo essas leituras, procuramos oferecer um argumento musicológico à apreciação da Tropicália, com atenção ao discurso poético-musical e ao quadro histórico-cultural pertinente.
As bases da Tropicália foram lançadas durante o III Festival de Música Popular Brasileira, organizado pela TV Record no Cine-Theatro Paramount, São Paulo,2 entre setembro e outubro de 1967.3 Naquela ocasião, as proponentes “Domingo no Parque” (Gilberto Gil) e “Alegria, alegria” (Caetano Veloso) passaram pelas eliminatórias e alcançaram a audição final. Gilberto Gil apresentou um arranjo de Rogério Duprat, combinando orquestra e instrumentos elétricos. Para isso, escalou Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee Jones, Os Mutantes. Caetano Veloso optou por subir ao palco na companhia do grupo argentino Beat Boys, trazendo um formato de iê-iê-iê e deixando entrever o sotaque castelhano nos cantos de apoio. “Domingo no Parque” terminou em segundo lugar; “Alegria, Alegria”, em quarto.4 Essas canções figurariam, entre outros números representativos da Tropicália, nos próximos álbuns dos baianos, lançados respectivamente em janeiro e maio de 1968.5 Após prestarem tributos às narrativas preponderantes da brasilidade musical – Domingo, de Caetano e Gal Costa, é uma homenagem à bossa-nova, enquanto Louvação, de Gilberto Gil, ilumina e esgarça as fronteiras do samba – os expoentes tropicalistas se puseram a revolver esses mesmos caminhos. Para isso, o festival de 67 foi momento propício, não apenas pela ampla consequência, mas por oportunizar o encontro, e a fricção, de leituras da brasilidade representadas musicalmente, em um momento de reverberações políticas imediatas e inevitáveis.
Roberto Schwarz entrevê, no calor da hora,6 um esquema geral para o programa estético da Tropicália: “o efeito básico do Tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos (...), grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil” (SCHWARZ, 1978, p. 87). Esses procedimentos são analisados em detalhes por Favaretto (1979). Vale destacar a remissão ao debate da brasilidade no Modernismo paulista dos anos 1920, sobretudo em obras de Oswald de Andrade; e o paralelismo com vanguardas artísticas do mesmo período, mais habituadas ao debate da cultura, como Concretismo e Cinema Novo. Tal equação da brasilidade se fez pelo tensionamento de pares antitéticos: arcaico/moderno e local/universal. Nesse sentido, os arcaísmos da realidade local, relacionados a modos de vida que antecedem a ordem econômica internacional do pós-guerra, responderam pela especificidade da experiência brasileira, ao mesmo tempo em que constrangeram o ímpeto modernizante do período. Deslocado ao seio da indústria cultural, cujo desenvolvimento, no Brasil, é contíguo aos esforços por uma estética nacional (ORTIZ, 1994), esse impasse alimentou uma contradição, a saber, a procura por uma dicção contemporânea e nacional pautada em insumos que trazem a assinatura do “atraso”. O III Festival de Música Popular Brasileira levou o debate aos meandros do entretenimento de massa. Sobre o palco, o empenho formativo da MPB, representado, principalmente, por Edu Lobo e Chico Buarque, em seguimento à estética bossa-novista; e a encruzilhada conceitual da Tropicália, sobreposição desarmoniosa por projeto – ultrajante como realização de um nacionalismo musical, acabrunhadora como aspiração a uma linguagem universal.
“Como os espetáculos de luta livre”, explica Paulo Machado de Carvalho Filho, diretor da TV Record na ocasião, referindo-se à concepção dos festivais de música, organizados, à época, como programas de televisão (TERRA; CALIL, 2013, p. 55). Estabelecendo antagonismos e mobilizando a opinião popular sobre a disputa, o festival de 67 marcou, à feição do entretenimento de massas, interpretações diferentes da realidade brasileira durante os primeiros anos do pós-golpe. “O país estava irreconhecivelmente inteligente”, sintetiza Roberto Schwarz sobre o início da década de 1960, referindo-se a iniciativas como o Movimento de Cultura Popular (MCP) em Pernambuco, empenhado na alfabetização politizada de adultos com o método Paulo Freire; e o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, responsável por várias produções artísticas de tom engajado. Mesmo com essas iniciativas estancadas após o golpe de 64, subsistiu certo ímpeto, que as circunstâncias tornaram marcadamente político, pela compreensão da brasilidade no âmbito da cultura. Nesse sentido, episódios como a Marcha Contra a Guitarra Elétrica, em 1967, foram contraponto à adesão imediata ao globalismo estético e comportamental, observada, por exemplo, na Jovem Guarda.7 “Não queríamos guitarra elétrica”, lembra Chico de Assis, jornalista e participante da passeata, que continua: “Sabia que, atrás do som da guitarra elétrica, havia um monte de lixo de rock americano pronto para desembarcar no Brasil” (Ibid., p. 261). À luz do quadro cultural no Brasil sessentista, o ambiente de festival provou-se mais que propício ao acirramento de semelhantes impasses, tornados, a um tempo, mote para o entretenimento de massas e amplificação improvável de um debate caro à inteligência nacional.
Remontando ao ambiente do festival com depoimentos e reportagens, Napolitano (2010) discorre sobre o que considera dois mitos historiográficos do período: a) a compreensão do evento como arena pública e b) o caráter de ruptura da intervenção tropicalista. Mostra também que o festival de 67 foi importante para a organização das indústrias fonográfica e televisiva no Brasil, pois TV Record e parceiros atuaram para promover artistas sob contrato, e os discos com as canções selecionadas renderam cifras importantes, bem como presença frequente no rádio (Ibid., p. 148-161). A esse empenho coletivo, uniu-se a imprensa escrita, que fomentou o antagonismo entre narrativas, incorporado pela Record em programas como Jovem Guarda e O Fino da Bossa. Em consequência, se houve disputas programáticas entre os proponentes do festival, estas se colocaram, majoritariamente, em função dos arranjos comerciais que sustentavam o espetáculo. Atento ao código de interação com o público, e mais afeito à linguagem das massas que os principais concorrentes, Caetano Veloso entendeu logo as vicissitudes do festival. As reações do auditório não atendiam a uma lógica engessada, as vaias não se pautavam em aspectos programáticos bem definidos, respondendo, não raro, por simples rejeição à personalidade do artista. Afinal, o mpbista Sérgio Ricardo recebeu-as mais intensamente que Caetano. Portanto, sem colocar em xeque a força do argumento, Napolitano revê a gênese da Tropicália para salientar que as apresentações de “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” se revelaram menos disruptivas em relação o grande público que no interior do campo musical, propiciando a reorganização de premissas não apenas ligadas à sonoridade universal, mas também à compreensão das mediações e do trânsito de compositores e intérpretes entre os veículos de comunicação (Ibid., p. 157). A recepção do argumento tropicalista em grande escala pode ser observada pelos números comerciais, que refletiam parâmetros distintos dos adotados pelo júri do festival. Em dezembro do mesmo ano, dois meses após a audição dos finalistas, a canção de Caetano Veloso havia se tornado o single mais vendido no Brasil, enquanto a campeã “Ponteio” ocupava apenas o 10º lugar (DUNN, 2001, p. 65).
O advento da Tropicália reorganizou o campo da música comercial radiofônica de modo comparável ao que aconteceu, na década anterior, com a Bossa Nova. Enquanto as harmonias de Tom Jobim, os versos de Vinicius de Moraes e as performances de João Gilberto deram sentido ao dado local na modernidade, depurando e expandindo as possibilidades do repertório, a intervenção tropicalista pressupôs um recuo formal, simplificando procedimentos, sobretudo em nível harmônico, no que Antonio Cicero denominou elucidação conceitual da linguagem (CICERO, 2005). Resulta que o esmero construtivo do exercício mpbista sobre o ideário nacional “envelheceu” de repente ante o arroubo, a um tempo, irreverente e disforme da Tropicália. A percepção do contraste, e as ressalvas programáticas, transparecem nas palavras de Edu Lobo: “acho que toda a história da Tropicália gira muito em torno da atitude no palco, do tipo de roupa, de ficar uma coisa mais jovem, mais moderna. E eu era dos mocinhos caretas” (CALIL; TERRA, 2013, p. 204). Chico Buarque reporta algo semelhante: “Fui um pouco escolhido para ser o representante de uma música, uma atitude conservadora, uma postura conservadora, um cara velho. (...) E era um pouco jovem contra velho. E ninguém quer ser chamado de velho. Ainda mais com 23 anos” (Ibid., p. 100-101). Esses antagonismos movimentaram a contenda sobre o palco do Paramount, tensionando interpretações musicais do país aos olhos e ouvidos de um auditório apaixonadamente participativo.
Leite (2015) reconhece duas vias no alvorecer da Tropicália: uma com Gilberto Gil e Torquato Neto, mais afeita à simbologia nacional-popular, porém menos disposta a contemporizar com a linguagem das massas; a outra, representada por Caetano Veloso, confortável nos meandros da indústria cultural sob certa ironia, erigindo palco para contradições que alternam entre riso e melancolia. Para Leite, esta se tornou logo a abordagem prevalente, talhando, tanto para dentro quanto para fora, o argumento da Tropicália como o conhecemos historicamente. Assim, comparando representações da violência nas canções tropicalistas figuradas no festival de 67, o autor evidencia que, enquanto “Domingo no Parque” retrata o assassinato como disfunção e subproduto da precariedade entre grupos periféricos, “Alegria, alegria” engendra a violência na fatura: menos em crimes, guerrilhas e fuzis, lidos como signos da cultura de massas, que no deslumbre da personagem com um projeto de modernidade firmado apesar e às custas de parcela significativa da sociedade.
Embora “Domingo no Parque” seja realização tecnicamente mais robusta do receituário tropicalista, “Alegria, alegria” se caracteriza por encenar os impasses da brasilidade nos próprios procedimentos estéticos, o que lhe empresta destacado teor conceitual.
É mesmo possível que a escutemos algo como uma canção-manifesto não declarada, observados o pioneirismo – antecedendo o lançamento do primeiro álbum tropicalista do compositor – e a densidade no tratamento de aspectos norteadores da Tropicália. De modo geral, a performance realizada no festival de 67 traz andamento acelerado e baterias mais evidentes se comparada à gravação para o álbum lançado posteriormente. Naquele momento, a interpretação encampou, abertamente, o caráter de canção rock. A opção pelo quarteto argentino Beat Boys, entre os longos cabelos e os instrumentos elétricos, contribuiu de modo decisivo para a expressão do ímpeto de modernidade pretendido. Os sotaques estrangeiros adquiriram sabor peculiar no refrão, entoando o verso provocativo “Por que não?”. Sabemos se tratar de convite a uma interpretação da realidade local em que se impõem o cosmopolitismo citadino e a internacionalização em várias esferas. Milani analisa a ambiguidade desse verso: uma exortação aos moldes da tradição participante, que, no entanto, convida para fora do imaginário nacional-popular estrito (MILANI, 2020, p. 70-71). Ao mesmo tempo, em comparação entre “Alegria, alegria” e “Caminhando”, de Geraldo Vandré,8 exemplo do repertório mpbista de tom engajado, Oliveira (2018) percebe o protagonista de Caetano tomado pelo êxtase de um presente maximizado, em elogio à individualidade sob a consciência de uma brasilidade plural. Em oposição, vê a personagem de “Caminhando” apoiada em ideal coletivista, querendo-se um elo de reconciliação do imaginário nacional-popular. A trama de “Alegria, Alegria” mobiliza as linguagens musical e poética para a representação de disparates. Nesse sentido, a marchinha iê-iê-iê estabelece o encontro – pensadamente incongruente – de antagonismos da vida cultural brasileira. Eis um denominador comum no procedimento estético da Tropicália: apresentar feições da brasilidade por meio da fricção, igualmente cômica e melancólica, entre o arcaico e o moderno.
No mosaico de citações da canção, alguns elementos permanecem cifrados. Sustentam-se à superfície para se revelarem ambíguos sob exame detido. O título, por exemplo, antecipa certo entusiasmo, mas ganha potencial alegórico quando remetido ao bordão de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, personagem que capitaneou programas de auditório de grande repercussão e tom caricatural no mesmo período (VELOSO, 1997, p. 166).9 Na leitura tropicalista, Chacrinha10 encampou a brasilidade bruta e não calculada, marcadamente contemporânea como expressão da linguagem das massas. Incorporar esse elemento, que estremecia visões consagradas do nacional-popular opondo-lhes o global/contemporâneo, estava na base do programa tropicalista. Nesse sentido, o bordão popularesco, a sonoridade iê-iê-iê e os estandartes da cultura de massas convergem para formar o quadro da canção. Já o verso “Nada no bolso ou nas mãos” diz da condição do sujeito que submerge no fenômeno urbano, enquanto também acena a dizeres de Jean-Paul Sartre, de cuja obra As Palavras (1964) o trecho é replicado quase literalmente: “(...) o mais profundo dos livros numa canção de circunstância”, provoca Caetano (Ibid., p. 167).11 Esse comentário revela consciência das escutas distintas que se empilham na canção. Em outras palavras, “Alegria, alegria” foi concebida tanto para o palco quanto para as mediações no entorno. Portanto, apreender a “canção de circunstância”, do bordão popular aos chamariscos do consumo, não contradiz a escuta que reconhece, na mesma obra, uma reformulação alegórica da brasilidade. A propósito, eis o atravessamento pretendido, uma vez que a incursão no fenômeno pop constrange o debate da questão nacional a um quadro contemporâneo e global.
Augusto de Campos percebeu precocemente que o arranjo possui centralidade na estética tropicalista, que os timbres elétricos constituíam mais que adereços, portando relevante carga conceitual (CAMPOS, 1993, p. 154). Nesse sentido, o simples deslocamento de signos do pop internacional ao campo da MPB, onde se colocava o debate da brasilidade, acarretou desentendimento profícuo na inteligência musical do país. Foram postas bases para a suspensão do dualismo brasileiro/universal, ou, no mínimo, para a reformulação de semelhantes antagonismos, observadas as especificidades das linguagens estéticas e da atuação política. A manobra conceitual de “Alegria, alegria” consiste, precisamente, em deflagrar essas tensões, empenhando verso e música com vistas à formulação de um argumento estético. O papel do arranjo transcende o acabamento: atribui direção, especialmente se recuperamos o ambiente político dos anos sessenta e a atmosfera dos festivais. Por outro lado, diante de execução ao violão, em estilo joãogilbertiano, não encontramos a canção de 1967. As tensões se esvaziam, e ficamos apenas com uma marchinha de imagens curiosas. Coube aos Beat Boys encontrar meios para eletrificar a canção de Caetano, em cujo disparate reside o interesse estético. O resultado pouco consequente revela, a um tempo, imprecisão e causalidade formal. A posição lateral da guitarra, que parece tatear um espaço nunca plenamente encontrado na gravação – ora acanhada, ora imitando um sotaque de violão –, espelha, formalmente, impasses na compreensão da brasilidade ante a emergência de um globalismo pautado na cultura de massas. Para o argumento da canção, de modo geral, importam, antes, os efeitos que implicações imediatas.
O protagonismo desde a primeira hora e a capacidade de reunir o cerne de um programa estético fazem de “Alegria, alegria” um momento chave para a Tropicália. A propósito, a diferença entre a recepção local e a internacional é outro indício da referida especificidade histórica da canção: embora permaneça entre os números preferidos do repertório de Caetano Veloso entre brasileiros, “Alegria, alegria” é pouco lembrada por plateias estrangeiras (VELOSO, 1997, p. 495). A peculiaridade da recepção local pode ser entendida à luz das pujantes contradições culturais que a obra apresenta, num período de redefinição da brasilidade. Daí as várias menções do autor à relevância da canção para a estética tropicalista, a despeito do aspecto simplório (Ibid., p. 167). Caetano se ressente, contudo, da centralidade que “Alegria, alegria” possui em seu repertório, lembrando o exemplo de Chico Buarque com “A banda”:
(...) eu tinha vontade de ter me livrado um pouquinho mais dela [“Alegria, alegria”], como Chico se livrou de “A banda”. Todo mundo se lembra de “A banda”, mas ele nunca mais cantou. Ninguém acha mais que “A Banda” é “a” música do Chico, mas muita gente acha que “Alegria, alegria” é “a” minha canção, no Brasil. Ela teve esse papel profundo, sim, eu não tenho problema de ter escrito essas palavras meio presunçosas porque teve, é isso mesmo (VELOSO In: CALIL; TERRA, 2013, p. 147).
Mesmo “Alegria, alegria” tendo sido concebida para o ambiente de festival, a incursão tropicalista no pop internacional causou estranheza no campo da MPB pela recusa da convergência esperada entre engajamento nacional e resistência ao globalismo, aspecto prestigiado na esfera cultural, como mostramos. Esse quadro alçou a MPB a uma variante “séria” da música comercial radiofônica no Brasil,12 enquanto o gesto da Tropicália avizinhou-se, colocadas à parte as diferenças programáticas, da irreverência pueril identificada com a Jovem Guarda. Caetano, não obstante, tinha um plano: encaixar a informação nova sobre uma estrutura prontamente reconhecível. Daí o aceno a “A banda”, marchinha de Chico Buarque que havia angariado o primeiro prêmio no festival do ano anterior. Assim, as reservas do auditório à introdução apoteótica e ruidosa se abriram gradualmente em simpatia com a entrada do ritmo de sabor estranhamente familiar. Experimentava-se, inadvertidamente, e pela primeira vez, a ambiguidade da alegoria tropicalista. Em resumo, “Alegria, alegria” vocaliza um sentimento de brasilidade não somente por encenar mudanças na sociedade urbana, mas, sobretudo, por engendrar, na própria estrutura, contradições intrínsecas à formação sociocultural do país. Resulta um pêndulo cujos polos arcaico/local e moderno/universal se elucidam e encobrem mútua e alternadamente.
Propomos esta leitura sob dois princípios estruturais: multidirecionamento e justaposição. A presença entre camadas distintas da canção, abrangendo verso e música, permite empregá-los como eixos de análise em “Alegria, alegria”, em sintonia com as diretrizes do programa estético da Tropicália. Em linhas gerais, o multidirecionamento consiste em desorientar a percepção com inflexões súbitas, provocando instabilidade ou ambiguidade tonal, ou sequenciando imagens poéticas em disparate; já a justaposição pressupõe empilhar semelhantes contrastes, estabelecendo tensões entre canto e acompanhamento, ou entre perspectivas trazidas pelo narrador-personagem. Ambos os princípios mobilizam uma noção central, o descompasso, dado pela coexistência, no imaginário nacional, entre os arcaísmos locais e o cosmopolitismo acenado com a modernidade. Nesse sentido, multidirecionar é dar dimensão horizontal a esse sentimento, projetando-o ao curso do tempo, enquanto justapor significa verticalizá-lo, produzir incongruências intencionais por alguns instantes. Assim, o multidirecionamento e a justaposição, aliados à noção de descompasso, oferecem um suporte para a recepção do discurso poético-musical em “Alegria, alegria”, delineando um argumento na disputa por sentidos da brasilidade.14
Exemplo 1
A introdução de “Alegria, alegria” se faz pelo encadeamento de acordes maiores perfeitos, criando relações que o compositor considerou “insólitas” (VELOSO, 1997, p. 169). A denominação se explica por não haver apenas um centro tonal na passagem. No entanto, por que razão empregar esses acordes e não outros quaisquer? Agrupados em pares, eles formam duas relações de dominância: E | A e C# | F#. Um terceiro par se constitui com os acordes de fronteira, A | C#, atribuindo nexo tonal à passagem. O breve movimento entre A e C# estabelece uma relação de tônica e mediante (I-III). Essa relação condiciona a segunda dominância entre os pares destacados. C#, com elevação da terça, se faz dominan-te secundário do acorde final, F#, em um cenário que tem Lá maior como centro tonal temporário. A costura dos acordes, configurando relações de dominância e dominância secundária, corrobora a percepção de um movimento contínuo entre os centros tonais de Lá maior e Fá sustenido maior. Ora, a instabilidade tonal na introdução, com deslocamento de Lá maior para Fá sustenido maior, constitui expressão do multidirecionamento em sentido harmônico.
Exemplo 2
Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
A estrofe inicial apresenta o sujeito da canção. Os versos exprimem ação, modo e tempo. Encontramos o protagonista flanando pela cidade em um dia de primavera. O momento político inspirava receio, caminhar sem destino era gesto destoante. “Contra o vento”, metáfora para o outsider. A forma nominal do verbo evidencia que a ação é concomitante ao transcorrer dos versos, de modo que o tempo do sujeito que caminha é espelhado no tempo da canção. Outros elementos corroboram esse espelhamento, como o ritmo de marchinha e o metro regular em redondilhas maiores.
Exemplo 3
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou
Se, na primeira estrofe, recebemos informação sobre a voz poética, na segunda, conhecemos o espaço da canção, a saber, um centro urbano. Esses versos transportam o ouvinte para a perspectiva do sujeito, apresentando um cenário repleto de imagens em disparate. Em manchetes de jornal, outdoors e letreiros luminosos, notícias de crimes, levantes políticos e corrida espacial dividem espaço com campanhas estreladas por personalidades do showbiz.15 O sério e o ligeiro sobre o mesmo denominador. Estímulos sensoriais em profusão compõem o cotidiano dos centros urbanos, propiciando uma experiência estética marcada por fácil e constante dispersão. O multidirecionamento – observado, na introdução, em sentido harmônico – estende-se ao estrato poético. O procedimento que desestabiliza a trama dos acordes confunde, também, o olhar do protagonista. O efeito se intensifica na estrofe seguinte, trazendo maior alternância de imagens.
Exemplo 4
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
Mantém-se a indistinção entre o sério e o ligeiro. Elementos de uma simbologia nacional se misturam ao erotismo publicitário de cardinales – com inicial minúscula e no plural – e Brigitte Bardot entre imagens bélicas nos jornais. A simples ordenação dos elementos coloca em operação o princípio da justaposição, fazendo se chocarem dois mundos: um objetivo, dos Estados e relações internacionais; o outro, subjetivo, do indivíduo contemporâneo, involuntária e passivamente implicado em uma espiral de imagens rarefeitas.
Exemplo 5
Encontramos, no estrato musical, outro exemplo de justaposição. Nesse caso, justapõem-se as orientações do centro tonal e da melodia cantada. O trecho acima corresponde às primeiras estrofes. O acompanhamento traz uma cadência I–IV–V em Fá sustenido maior: F# | B | C#, porém a melodia cantada sugere um centro tonal em Ré sustenido menor, antecipando um ambiente harmônico posterior (ver p. 14). Notamos a recorrência da nota Ré sustenido sobre as sílabas tônicas em “vento”, “documento”, “dezembro”, “crimes”, “guerrilhas” e “bonitas”. Em “documento” (primeira estrofe) e “guerrilhas” (segunda estrofe) especialmente, esses acentos recaem sobre o acorde do primeiro grau (F#). No entanto, a nota Ré sustenido corresponde ao sexto grau de F#, produzindo uma tensão que permanece irresolvida até a terceira estrofe (Exemplo 6), a despeito do ambiente marcadamente tonal.16 Coexistem, pois, duas intenções em níveis distintos do estrato musical: o acompanhamento pressupõe repouso, enquanto a melodia cantada implica tensão. Reside, nesse disparate, uma expressão musical da justaposição.
Exemplo 6
À parte a intensificação do multidirecionamento poético, percebemos, na terceira estrofe, uma solução para as divergências justapostas entre melodia cantada e acompanhamento. No escopo de uma terça maior, o canto assume, enfim, disposição condizente com o encadeamento harmônico. A melodia abandona a centralidade em Ré sustenido, gravitando entre a tônica e a terça maior do acorde do primeiro grau, F#. O sentimento de desajuste na relação entre harmonia e melodia (Exemplo 4) se reverte em euforia, compondo quadro de exaltação da experiência sensorial oferecida nos centros urbanos.
Exemplo 7
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia?
Eu vou
Essa estrofe marca um ponto de inflexão em sentido musical e poético. A representação do indivíduo exposto às vicissitudes da experiência urbana implica em movimento. Esse ambiente possui contraparte formal no ritmo de marchinha e no metro regular em redondilhas maiores, exprimindo o caminhar da personagem em meio à multiplicidade de imagens à disposição. Ora, se as estrofes iniciais possuem aspecto descritivo, esta ostenta uma qualidade reflexiva, dando margem à subjetividade do protagonista. De modo análogo, o momento de reflexão se constrói com suspensão da marchinha e das redondilhas maiores, cedendo lugar à suspensão da percussividade e à métrica irregular dos versos. Como antecipado pela melodia cantada durante as primeiras estrofes, produzindo tensões irresolvidas em justaposição com o acompanhamento, a harmonia modula para Ré sustenido menor. Ao mesmo tempo, uma nova voz surge em contraponto ao canto, entoada pelo órgão, pincelando notas da tétrade do acorde inicial, D#m7, em direção à terça (Si sustenido) do acorde seguinte, G#7:
Exemplo 8
O sentido descendente da melodia espelha o estado subjetivo da personagem, que abandona a observação para submergir – “descender”, como a melodia – em si mesma. Os espaços exterior e interior da canção são delimitados por alguns elementos poéticos e musicais, a saber: percussividade ou suspensão rítmica, métrica regular ou irregular, tonalidade maior ou menor e contorno melódico ascendente ou descendente, regular ou oscilante. Desse modo, o ritmo de marchinha, o metro regular, a tonalidade maior e o contorno alternado da melodia durante as primeiras estrofes produzem um quadro de extroversão; já o ritmo suspenso, o metro irregular, a tonalidade menor e a melodia descendente no trecho acima geram um ambiente de introspecção. O contraste entre essas estrofes responde pela transição entre momentos descritivos e reflexivos na canção, evidenciados por estratégias nos estratos musical e poético.
Exemplo 9
Acompanhamos as ações ocorridas na canção para, em seguida, saber como a personagem reage às experiências narradas. Suspende-se o tempo objetivo, dos acontecimentos; irrompe o tempo subjetivo, psicológico. O exemplar do jornal O Sol17 desperta interesse, mas se perde entre estímulos ligeiros ao redor. Não há tempo para apreender nada detidamente ou tecer ponderações quaisquer. Afinal, o momento de introspecção do protagonista se extingue após três versos ou seis compassos. Somos devolvidos ao plano das ações com uma dupla modulação: o retorno a Fá sustenido maior logo conduz a Si maior, em uma passagem breve como os lances do olhar entre as imagens narradas. “Eu vou”: a inflexão no estrato poético, com o encadeamento telegráfico das imagens, é acompanhada, no estrato musical, por descontinuidades harmônicas que pavimentam caminhos inesperados ao curso da canção. O multidirecionamento acontece poética e musicalmente. A cada conjunto de imagens, a harmonia se movimenta em espelhamento da perspectiva do protagonista. Há um aspecto cinematográfico nesse procedimento, que remete a sucessivos cortes de câmera, com a consequente perda de referência tonal.
Tecnicamente, a construção do discurso harmônico até a transição de Fá sustenido maior para Ré sustenido menor acena com a chegada ao modo eólio, por prever um movimento simples ao relativo menor dentro do mesmo centro tonal. Em vez disso, observamos a chegada ao modo dórico, com a enunciação de G#7, segundo acorde da passagem, que estabelece Dó sustenido maior como o centro tonal. Nesse recorte, Ré sustenido menor dórico corresponde ao segundo grau. A sequência D#m | C# (Exemplo 9, compassos 5 e 6) também sugere o modo eólio, porém novamente em falso, pois outra intervenção logo redireciona a um terceiro centro tonal, Si maior, que permanece até a chegada do refrão. A costura do tecido harmônico até Si maior se apoia em recurso empregado em outros momentos da canção, junto a ocorrências do verso “Eu vou”: a enunciação do acorde E, atuando de modo distinto conforme o cenário, para gerar o multidirecionamento ao implicar um movimento coordenado entre os níveis semântico (estrato poético) e harmônico (estrato musical):
Exemplo 10
Durante as estrofes iniciais, o acorde E se apresenta entre os graus IV e V, com duração de um tempo: F# | B | (E) C#. Embora seja um elemento estranho ao campo harmônico, não compromete o movimento da cadência, que segue rumo ao acorde do primeiro grau. Aparece e se dissipa de repente, como frame provocativo num filme de narrativa linear. Novamente, a alusão ao cinema se faz pertinente, linguagem, aliás, particularmente cara ao autor.18 Além da breve duração, a semelhança com o acorde do segundo grau, G#m, também responde pela incorporação desse elemento estrangeiro ao campo. Tomadas as tríades de G#m e E, temos Sol sustenido (tônica e terça maior, respectivamente) e Si (terça menor e quinta justa, respectivamente) em comum, com a diferença de uma nota apenas. Em outras palavras, elevado o quinto grau de G#m (Ré sustenido) em um semitom, e aplicada a segunda inversão do acorde, chegaremos a E, substituto elegível para o acorde subdominante, em uma variação da cadência II–V–I. Finalmente, como representado no Exemplo 10 (primeiro excerto), um outro elemento viabiliza o acorde E na passagem, a melodia cantada. As notas sobre o verso “Eu vou”, conforme enunciado durante as estrofes iniciais, são Fá sustenido e Sol sustenido, respectivamente, com a nota final atacada exatamente sobre E, produzindo uma relação consonante, de terça maior. De modo geral, a inserção do acorde estrangeiro na primeira ocorrência do trecho destacado joga com artifícios próprios ao campo harmônico para conseguir uma perturbação do centro tonal que se dissipa tão logo percebida. Ficam inalteradas as relações entre os acordes, assim como a disposição da personagem em prosseguir.
O segundo cenário para a enunciação do verso “Eu vou”, trazido no Exemplo 10 (segundo excerto), configura uma intervenção maior, pois o acorde E delimita o novo ambiente harmônico, ao qual se integra plenamente. A melodia sinaliza, novamente, o movimento da harmonia. Na tonalidade de saída, o par de tensão e repouso se move em sentido descendente da segunda maior à tônica. No entanto, com a chegada a Si maior, a passagem passa a caracterizar uma cadência IV–I. No novo centro tonal, o mesmo par configura um movimento entre sexta maior e quinta justa. Fica preservada a relação entre tensão e repouso, porém em ambientes harmônicos distintos, equilibrando intenções de ruptura e continuidade. Eis o equilíbrio que faz progredir a canção, um caminhar resoluto entre sobressaltos.
Exemplo 11
A cadência I–IV–V reaparece em Si maior: B | E | F#. A marchinha também é retomada à medida que o verso inicial volta a enumerar imagens que se mostram à personagem durante o episódio de flânerie. A estrofe migra, gradualmente, ao aspecto subjetivo: o segundo verso matiza o entorno com relances percebidos aos olhos do protagonista, enquanto o terceiro atribui centralidade aos sentimentos da personagem, ratificando a interiorização das imagens. A esta altura, o metro regular em redondilhas maiores se expande em um eneassílabo, que sugere reflexividade por contraste com o ambiente anterior. A imagem disposta na entrada do refrão aproxima dois termos alegadamente inconciliáveis (“amores vãos”) para traduzir a multiplicidade do cosmopolitismo urbano. O discurso harmônico corrobora esse efeito com a perda de referência tonal. Na modulação de Si maior para Fá sustenido maior, são entoados, em sequência, dois acordes estranhos ao centro tonal de origem, A e C#. Em meio à frágil mediação das vozes internas, a passagem se ancora na melodia cantada. A terminação do terceiro verso na nota Dó sustenido coordena a modulação, participando dos acordes A, C# e F# enquanto alterna a posição nas tríades correspondentes: terça maior (A), tônica (C#) e quinta justa (F#). Nesse excerto, o multidirecionamento atinge o ponto alto: a sequência de acordes fracamente mediados suspende a referência tonal e, ao mesmo tempo, os versos reproduzem o efeito na multiplicidade de encantos fugazes sobrepostos na experiência urbana.
A imagem que antecede o refrão também indica a dualidade do sujeito entre o entusiasmo e o recuo ante a sociedade de consumo e a massificação. A fatura desse tensionamento vem com o dístico final, “Eu vou/Por que não?”, encampando o encanto-desatino com a modernidade (CAMPOS, 1993, p. 152). Em época de passeata contra a guitarra, os versos implicam um contraponto ao resguardo da brasilidade, logo tornado repúdio ao dado estrangeiro na produção cultural. Nesse sentido, “Alegria, alegria” também fala como metalinguagem, inserindo-se no disputado debate da questão nacional no Brasil dos anos 1960. Em contrapartida, a euforia modernizante também convidou ressalvas. Roberto Schwarz se debruça sobre alguns porquês para a pergunta deixada no estribilho, explicitando os descaminhos da alegoria tropicalista em meio a contradições do desenvolvimentismo à brasileira (SCHWARZ, 2012, p. 99). Ao mesmo tempo, não há menos problemas na antítese posta pela canção engajada. Conduzir temas sociais ao centro da representação se prestou menos a uma elucidação política das multidões que ao apaziguamento estético das referidas tensões, propiciando uma espécie de catarse coletiva (VASCONCELLOS, 1977, p. 47). Ficam expostos os limites da ambição politizante aliada à forma mercadoria, pois também a canção radiofônica se soma aos estímulos que figuram em “Alegria, alegria”.
Exemplo 12
A despeito da superação de tensões na atmosfera apoteótica do refrão, uma intervenção da bateria reconduz, de repente, ao labirinto harmônico da introdução. A sequência reexposta se distingue da anterior pelo último acorde. Enquanto a introdução termina em um movimento V-I até F#, o excerto final tem D# na mesma posição, inviabilizando costuras tonais e acentuando a instabilidade harmônica. Ora, o enfraquecimento dessas relações funcionais coloca em questão a própria escuta cerrada. Talvez estejamos diante de fragmentos que não apenas dificultem, mas dispensem interpretação tonal, exigindo outras ferramentas de análise. Nesse sentido, o multidirecionamento levado ao limite culmina com a suspensão do ambiente tonal, sustentando a premissa de eliminar referências harmônicas e pavimentar diferentes possibilidades para a canção. O paralelismo evidente entre introdução e encerramento delimita o pacto com o ouvinte, marcando o espaço da narrativa. Em vez de uma racionalidade harmônica, é a exposição inicial que passa a balizar o arremate com a reexposição. Também por não pressupor continuidade, o acorde diferencial não se compromete com o discurso harmônico anterior. Engendra, enfim, os diversos e imponderáveis acenos à percepção nos episódios narrados, que espelham a própria experiência do ouvinte com a canção.
Depois de delinear o programa estético da Tropicália, permeando o debate da brasilidade musical durante os anos sessenta, explicitamos como “Alegria, alegria” compreende algo como um manifesto em primeira hora desse receituário. Para isso, analisamos dois princípios relacionados que se expressam estruturalmente na canção: multidirecionamento e justaposição. Os exemplos ratificam ora a alternância, ora a simultaneidade de tais princípios, operando entre os níveis musical e poético sob um denominador comum: o descompasso, que se manifesta pelos pares antitéticos moderno/arcaico e local/universal. Enquanto o multidirecionamento encerra o encanto-desatino com a globalização, a justaposição expõe as contradições de uma sociedade periférica em meio a esse movimento. Assim, o sentimento do descompasso encontra expressão em variados matizes: histórico, com a oposição centro-periferia; harmônico-melódico, com o desencaixe de tensões e resoluções entre acompanhamento e melodia cantada; timbrístico, com o contraste pensado entre as sonoridades acústicas e elétricas; poético, com o confinamento das imagens arrojadas à trivialidade da marchinha e da redondilha maior; e, enfim, um matiz estético com a opção pela roupagem moderna/ estrangeira para canção em que predominam aspectos de um gênero tradicional/brasileiro. No cômputo geral, interessa reter de “Alegria, Alegria” a ruptura conceitual, o disparate calculado, a contiguidade de antagonismos no seio de uma disputa simbólica entre leituras do país.
Durante meio século, entre a gênese do repertório e a circulação de ideias, a intervenção tropicalista tem gerado interpretações que alternam entre a percepção de um diagnóstico consequente, que se esvai, entretanto, em consentimento com a condição periférica; e a visão de um gesto crítico, com valor de atualização de uma narrativa prestigiada no campo da música comercial-radiofônica no Brasil. O primeiro grupo, geralmente calçado na tradição marxiana, enfoca o simbolismo posto em cena, mas se ressente da ausência de síntese programática, como que a perguntar: ao reunir nossos disparates, em meio ao riso e ao embaraço que a cena oferece, que sentido daremos à fatura? A esse respeito, permanece o silêncio, logo entendido como consentimento, quando não oportunismo, considerada a recepção do repertório e de seus expoentes no showbiz. Na segunda perspectiva, sobressai o gesto de ruptura, a atualização de premissas para uma releitura do país pela canção. A pergunta colocada desse outro lado é do jornalista e compositor Nelson Motta:19 entre “música brasileira” e “música jovem”, o que nos impede de conceber uma música, ao mesmo tempo, brasileira e jovem (CALIL; TERRA, 2013, p. 238)? A Tropicália se apresentou como resposta. Ambas as leituras convergem sobre o diagnóstico preciso do mal-estar relacionado à questão nacional, a diferença residindo na apreciação dos efeitos, com matizes de reflexão e deboche. À posteridade, a intervenção do grupo baiano acenou com a hipótese de o fenômeno ser tudo isso, conduzindo ao entendimento de que o debate da brasilidade seguiu, também, os meandros incertos da indústria cultural, onde nada é apenas o que é: nem a ideia, nem o negócio.