Artigos
O repertório na construção identitária das bandas de música
The repertoire in the identity construction of wind bands
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 6, núm. 1, 2021
Recepção: 03 Fevereiro 2021
Aprovação: 12 Maio 2021
Resumo: A pluralidade de costumes e valores presentes nas bandas de música é uma característica discutida em ampla bibliografia sobre o tema. A construção identitária destes grupos musicais vem ocorrendo a partir de suas interações com diferentes segmentos da sociedade sempre perpassadas pelo seu repertório. Apresentamos neste texto uma discussão sobre estas interações das bandas, cujo pano de fundo é tecido pelo repertório. O objetivo principal é discutir o papel do repertório na construção identitária do movimento de bandas no Brasil. Partimos dos episódios do trabalho de campo de pesquisa de mestrado finalizada em 2019. Situações similares de diferentes regiões e momentos históricos são colocadas em diálogo com os episódios observados. A perspectiva teórica adotada tem por base a concepção de música como linguagem a partir da filosofia do Círculo de Bakhtin. A partir disto observamos que o repertório das bandas se constrói na mesma dinâmica do desenvolvimento dos grupos e cumpre diferentes papéis numa extensa trama histórica de significações musicais.
Palavras-chave: Banda de Música, Repertório, Construção identitária.
Abstract: The plurality of customs and values present in wind bands is a characteristic discussed in a wide bibliography on the subject. The identity construction of these musical groups has been taking place from their interactions with different segments of society, always permeated by their repertoire. We present in this text a discussion about these interactions of the bands, the background of which is constructed by the repertoire. The main objective is to discuss the role of the repertoire in the identity construction of the band movement in Brazil. We started from the episodes of the fieldwork done for the master’s research completed in 2019. Similar situations from different regions and historical moments are placed in dialogue with the observed episodes. The theoretical perspective adopted is based on the conception of music as a language based on the philosophy of Bakhtin’s Circle. From this we observe that the bands repertoire is built on the same dynamics of the development of the groups and plays different roles in an extensive historical plot of musical meanings.
Keywords: Wind Band, Repertoire, Identity Construction.
Introdução
As bandas de música são apresentadas de modo recorrente pela pluralidade de suas atuações frente à sociedade por ampla bibliografia, como é o caso de Pereira (1999), Lange (1998), Cruz e Cruz (2019) e Schwarcz (1999). Dentre os costumes mais aparentes no ambiente das bandas de música estão o militar, explorado por Binder (2006) e Reily (2009), o religioso, conforme Duprat (1968), e aqueles advindos de demandas do ócio, do entretenimento, também discutidos pelos autores já citados. O contraste da característica tradicionalista de traços militares e religiosos com aquelas advindas da particpação nas atividades de entretenimento é discutido como um entrelaçar de diferentes costumes na construção de uma identificação plural, contraditória e própria presente nos ambientes das bandas de música por Vieira (2013) e Cruz (2019) . Não distante desta plural formação identitária no ambiente das bandas, a discussão sobre estes grupos enquanto espaços de formação e ensino musical também é ampla, como se vê em Babosa (1994, 1996, 2009), Moreira (2007), Salles (1985) entre outros.
Vimos pesquisando o perpassar desta pluralidade de costumes e valores no ambiente da banda de música como vetores de sua própria construção identitária desde 2017. Nossa pesquisa teve início em nível de mestrado na busca de entender a relação entre a construção identitária das bandas de música brasileiras e a manutenção de suas atividades frente aos desafios enfrentados ao longo dos anos. Em nível de doutorado seguimos investigando as possibilidades destas dinâmicas para o trabalho pedagógico nas bandas de música. Desde o início, vimos percebendo que o repertório cumpre papeis fundamentais tanto na construção identitária das bandas quanto em suas potencialidades pedagógicas Cruz e Cruz (2018). Este texto é um recorte mais ligado às investigações iniciais sobre a construção identitária histórica das bandas de música, especificamente sobre o papel do repertório neste processo. A pesquisa foi realizada a partir de trabalho de campo observacional na Corporação Musical Nossa Senhora do Carmo (destarte, Banda do Carmo) na cidade de Itu, interior de São Paulo (CRUZ, 2019). Os episódios selecionados para análise, tanto na pesquisa completa quanto neste texto que dela se recorta, foram postos em constantes diálogos com a bibliografia consultada por se tratarem de situações recorrentes em diferentes regiões e momentos históricos das bandas brasileiras. Os episódios mostram como ocorrem as múltiplas interações das bandas de música com diferentes segmentos da sociedade e a partir disto como sua identidade vem se reconstruindo historicamente. Além de presenciar todo o processo, o repertório se mostrou ora como motivo inicial, ora como tema contínuo e em outros momentos como resultante de tais interações.
A perspectiva teórica adotada advém da filosofia da linguagem, mais especifica- mente do Círculo de Bakhtin, cuja figura central foi o filósofo russo Mikhail Bakhtin, que se dedicou ao estudo das criações simbólicas, sobretudo da linguagem e da literatura. Para Volóchinov/Bakhtin (2017)2 é pelos diálogos, ou seja, pelos discursos e enunciados proferidos em situações concretas, que se pode compreender e estudar a língua. Os significados que afloram nesses diálogos revelam a própria língua; isto ocorre num processo de apreensão e transformação de tais significados por cada indivíduo ou grupo social. Essas significações são possíveis apenas dentro de um contexto social comum entre interlocutores. É neste contexto social que se encontram as leis que regem as transformações da própria língua.
Dessa maneira, Schroeder (2005) faz uma leitura dessa concepção de linguagem discursiva com a música e a arte de modo geral. A autora faz uma discussão de como a música pode ser concebida enquanto uma forma de linguagem discursiva, a partir da concepção de linguagem de Volóchinov/Bakhtin (2017). As significações musicais também estão vinculadas aos contextos onde os enunciados musicais acontecem e se transformam. Esta concepção de linguagem cujo objeto está nos significados socialmente construídos, e por conseguinte da música enquanto linguagem pela mesma perspectiva, apresenta o conceito de dialogia como central em sua construção. O conceito de dialogia de Bakhtin/Volochinov (2017, p. 40) aponta para o diálogo como a “forma mais importante de interação discursiva”. Esta concepção de diálogo não se restringe a dialogar no sentido de concordar, mas inclui qualquer forma de resposta como arguir, contrapor, negar e até mesmo simplesmente fruir. Este processo dialógico ocorre através dos discursos e enunciados, que são as elaborações da linguagem postas em conversação.
Sendo assim, também buscamos compreender a música enquanto linguagem por seus processos dialógicos através dos discursos e enunciados musicais; na banda, através do repertório posto em prática no seu contexto social. Além disso, buscamos compreender a própria banda de música em diálogo com diferentes campos de atuação da sociedade, cujos diálogos ocorrem também através da música como uma forma de linguagem discursiva. Assim é que percebemos as leis sociais regrando as transformações da banda e do seu repertório como já discutimos em Cruz e Cruz (2019) e também em Cruz (2019a). Durante as observações feitas em trabalho de campo, percebemos o repertório nesse fluxo dialógico entre os componentes da banda e entre a banda e outros grupos, seu público e diversas representações de diferentes segmentos da sociedade. Às interações ocorridas entre os indivíduos no ambiente das bandas passamos a chamar de interações internas, ou seja, dentro de um contexto mais imediato do convívio dos membros da banda de música. Nestas interações internas estão presentes o que Volóchinov/Bakhtin (2017) chama de ideologias do cotidiano. Às interações ocorridas entre as bandas, enquanto grupos, com outros grupos/segmentos da sociedade estamos chamando de interações externas. Nelas estão presentes o que Volóchinov/Bakhtin (2017) denomina de ideologias formadas . Os campos de atividade nos quais são geradas as ideologias formadas e complexas são chamados por Volóchinov/Bakhtin (2017) de sistemas ideológicos. A interação dialógica entre os sistemas ocorre sempre em refração, ou seja, a cada interação os sistemas ideológicos elaboram e interpretam os discursos a partir das ideologias neles constituídas/formadas. Pela abrangência da própria teoria, entendemos que este processo de mútua transformação no entendimento dos discursos é recorrente em todo processo dialógico, inclusive naqueles processos entre indivíduos nas comunicações cotidianas.
O objetivo deste texto é discutir o papel do repertório que perpassa as interações externas da banda a partir do caso da Corporação Musical Nossa Senhora do Carmo de Itu/SP. Para tanto, apresentaremos os episódios nos quais observamos a banda em contato com o público e a comunidade ituana nas apresentações ocorridas durante o período do trabalho de campo. Além disso, situações semelhantes ou complementares às discussões também serão apresentadas e colocadas em diálogo com os episódios observados. Os temas presentes neste texto são a contínua incorporação de novos estilos musicais ao repertório das bandas; o pertencimento social dos grupos com a comunidade; adaptações da formação instrumental e dos arranjos; a interação com os sistemas político e militar; as interações com os campos religioso e de entretenimento. Vale ressaltar que a discussão de alguns temas combinados em um mesmo tópico diz mais daquilo que pudemos observar nos episódios selecionados para análise do que da aproximação destes campos. A partir da perspectiva adotada percebemos um entrelaçar de valores e costumes de diversos sistemas ideológicos presentes no ambiente das bandas de música, todos numa mesma trama de construção de significados cuja pluralidade é comum ao ambiente das bandas. Logo, esta coincidência entre campos num mesmo tópico de análise diz mais respeito à organização textual do que a uma maior aproximação entre eles, pelo menos neste texto.
A incorporação de repertório e o pertencimento social
Diferentes discursos ideológicos perpassam o ambiente social das bandas de música, advindos de diferentes sistemas ideológicos. Como dito, percebemos este fluxo ocorrer por interações internas e externas às bandas de música. A partir de agora traremos situações observadas para ilustrar tais interações externas.
Episódio 1
A manifestação do público era ainda mais
intensa quando a banda tocava as músicas
“Tema da vitória”, de Eduardo Souto, e “Get Lucky”, da dupla francesa de música
eletrônica Daft Punk. Nestes momentos de manifestação do público os componentes da banda também demonstravam
clara animação; ao perceber a manifestação do público como uma forma de “aprovação”, por vezes o maestro da banda decidia tocar a mesma música novamente.
Essa situação observada no trabalho de campo nos dá a clara noção da popularidade das músicas tocadas pela banda durante o desfile de Sete de Setembro de 2017. Obviamente, esse não é um estilo musical atrelado à cultura do movimento de bandas de música brasileiro. Segundo Duprat (2009), esta posição é reservada a estilos musicais que passaram a integrar o repertório das bandas desde o final do século XVIII até meados do século XIX. Neste período de apogeu do movimento de bandas a música reconhecida como música de banda se reservava aos Dobrados e Marchas Militares. Pelo forte apelo popular, outros ritmos passaram a integrar o repertório das bandas e mais tarde passaram a ser reconhecidos como tradicionais destes grupos. Como exemplo citamos quadrilha, marchinha, congada, transcrições de ópera e operetas (LANGE, 1968 e 1997), fandango, modinha, fado, lundu (SCHWARCZ, 1999), maxixe, polca, tango brasileiro, valsa (DUPRAT, 2009), além de outros. Porém, o que se observa a partir do caso da Banda do Carmo é que a música de apelo popular de hoje passa a integrar o repertório de banda por um processo de incorporação similar ao que ocorreu com o repertório já consagrado como tradicional, devido à popularidade da música com o público. Esse processo de incorporação de músicas populares ao repertório da banda coloca as mesmas no fluxo do diálogo da banda com seu público. Tocar tais músicas torna-se importante por seu apelo popular e pelo desejo de agradar o público que se espera ter presente durante as apresentações.
Vemos tais interações da banda de música com a comunidade na qual se insere de modo refratário. Ou seja, essas interações são fluxos de troca, transformações mútuas que ocorrem pela coparticipação da banda em uma determinada dinâmica de significação mais própria de um ou de outro sistema ideológico, ou ainda em determinado evento ou situação específica que envolva a comunidade, como no caso analisado. A respeito da ideia de sistemas ideológicos de Volóchinov/Bakhtin (2017), vale lembrar que os mesmos figuram como determinados agrupamentos sociais ligados a determinadas atividades e marcados por sua predominância ideológica na religiosidade, militarismo, cientificidade e outros. Cada sistema ideológico tem seus modos próprios de percepção e interação com a realidade. Assim, esses processos de diálogos interativos entre diferentes sistemas ideológicos são dotados da refração, pois os discursos são significados e transformados a partir dos filtros que são próprios de cada sistema ideológico. É desta forma que o movimento de bandas vai se transformando e acomodando uma trama complexa de diferentes costumes e valores através dos diálogos ocorridos a partir de seu repertório.
Atendo-nos à interação com a comunidade local nesse momento, consideramos também os apontamentos de Páteo (1997), que discute uma situação em que a interação da banda com a comunidade acontece de maneira mais direta, sem mediação de um de seus componentes, como no episódio aqui relatado; a banda como grupo interagindo e compondo a realidade de uma comunidade. A autora apresenta uma situação específica colocando a banda como parte constitutiva de um cenário. Ela lembra as tradicionais apresentações nas praças dos centros urbanos, em que há grande fluxo de pessoas se divertindo, carros passando, balões, conversas e todo tipo de interação social que chama a atenção das pessoas. Neste caso as pessoas não frequentam a praça apenas para apreciar a banda, pois ela na verdade faz parte desse cenário. Para a autora, a banda não está apenas representando ou simbolizando algo para as pessoas presentes naquela situação, mas sim compondo uma realidade junto delas, o que é, a nosso ver, proporcionado pelo repertório posto em ação. A percepção disso fica clara pelo fato de que a autora utiliza a canção “A Banda”, de Chico Buarque, para ilustrar o referido cenário da banda na praça, porém a canção descreve uma banda em movimento, passando enquanto todos param para observar. Assim, não se trata de uma situação em si mas de uma realidade social na qual a banda se insere no espaço público, seja tocando parada na praça ou desfilando nas ruas.
A presença da banda, nesse caso em que as pessoas estão dispersas em diversos afazeres, está evidenciada pela música mais do que por sua presença física ou pela referência visual. É pela música tocada que Páteo (1997) explica a participação da banda nessa situação, que remete a um sentimento nostálgico das tais vivências em praças públicas. A presença da banda por vias de seu repertório nos espaços de interação social também é discutida por Reily (2009):
O próprio repertório da banda traz, para o evento, as associações simbólicas a ele atribuídas na sociedade em questão. A banda, portanto, acompanha uma coletividade que, ritualmente, traça uma trajetória por um espaço geográfico, ato este que produz fortes sensações nos participantes, fazendo deles não apenas observadores da constituição do espaço público, mas pessoas integradas à sua constituição através dos seus atos e das formas como são vividas, incorporadas e interpretadas (REILY, 2009, p. 25).
A autora afirma que aquilo que é trazido pelo próprio repertório também lhe é atribuído em determinada realidade coletiva. Nisto vemos um processo de refração acontecendo pelo próprio repertório, quando a música é colocada em prática. Ou seja, é neste momento de pertencimento da composição a uma realidade social que a arte, a música, a banda e/ou o repertório estão/entram para a vida em um processo de transformação existencial mútuo.
O processo de percepção do apelo popular também é um fator a ser considerado nesses processos de incorporação. A banda de música, não representando mais um meio de comunicação sonora tão determinante frente aos meios de comunicação modernos, acaba por interagir com esses meios, como a televisão e a Internet, de onde surgiu a incorporação do tema da vitória e da música “Get Lucky” no repertório da Banda do Carmo. Porém, essas tradições e transformações vivenciadas ontem e hoje pela banda de música permanecem presentes em seu dia a dia juntas e continuam eternizando a interação da banda com a comunidade.
Adaptações da formação instrumental e dos arranjos
Já parece claro como a dinâmica de reconstrução identitária das bandas está presente nas condições de atuação dos grupos; além disso essas condições revelam algumas adaptações na organização instrumental e elaboração de arranjos, como veremos a seguir:
Episódio 2
Antes que a banda tocasse cada música, o
orador do evento (também maestro do
Coral do Carmo, grupo mantido pela mesma instituição religiosa que mantém
a Banda do Carmo) abria o microfone para o maestro da banda, que buscava sempre
contextualizar a próxima música a ser tocada. Antes da música “Tema da Vitória”, de Eduardo Souto, o maestro
trouxe como contexto as manhãs de domingo da década de 1990 em que o “Brasil” parava à frente da televisão para assistir a uma competição automobilística e ficava torcendo para ouvir a música
com uma vitória do piloto brasileiro Ayrton Senna. Durante a apresentação da música, o público se animava, aplaudia e muitos conversavam animados em meio a diversas manifestações.
De modo geral, comumente encontramos três tipos de formações que são mais recorrentes nas bandas de música interioranas brasileiras. São as chamadas bandas musicais (naipes de madeiras, metais e percussão), bandas marciais (metais e percussão) e fanfarras (instrumentos de metais, em sua maioria sem pisto, e percussão). A definição dessas formações instrumentais está ligada diretamente às condições sociais e históricas de atuação das bandas. Apesar da manutenção de uma base instrumental (instrumentos de sopro e de percussão), algumas adaptações na instrumentação das bandas, em determinadas situações de performance, são comuns. No episódio acima, em que a banda estava tocando parada na praça, uma primeira observação importante é a troca do uso da percussão com peças soltas sendo tocadas por vários músicos pelo uso da bateria montada sendo tocada por um único músico. Essa seria uma influência da gravação original da música na adaptação para a banda de música, pelo menos é o que se pode inferir do episódio observado. Essa adaptação do grupo utilizando um baterista é muito comum quando da incorporação de músicas populares. No caso em discussão, essa adaptação também ocorreu com a música “Get Lucky”, porém não é uma mudança obrigatória nos grupos; por exemplo, na apresentação observada em que a banda tocou desfilando, ambas as músicas foram tocadas por percussão e peças da bateria executadas individualmente por músicos diferentes.
A música “Tema da Vitória” é outro exemplo deste processo de apropriação de música de forte apelo popular, advinda dos meios de comunicação de massa. Fortemente relacionada às bandas de música, essa obra figura como se fosse efetivamente uma música de banda. Porém, a composição de Eduardo Souto foi encomendada por um canal televisivo e gravada originalmente em 1981 pelo grupo Roupa Nova3; a música seria tocada nas edições de uma competição automobilística que ocorreria no Brasil. Sua gravação foi tocada pela primeira vez em 1983 na vitória do piloto Nelson Piquet e após isso passou a ser tocada em todas as edições da competição que ocorriam no Brasil. Mais tarde, na década de 1990 passou a ser tocada apenas nas vitórias de pilotos brasileiros; notadamente neste período a música foi atrelada principalmente ao piloto Ayrton Senna. O que possibilitou o conhecimento popular da música foi a ampla divulgação feita pelo canal televisivo. Hoje, mais de vinte anos após a morte do piloto Ayrton Senna, que representava o Brasil na competição, a música ainda é tocada em virtude da relação estabelecida com o mesmo, sempre com falas de contextualização evocando o sentimento patriótico.
A estrutura da gravação original feita pelo grupo Roupa Nova contou com sintetizador eletrônico (teclado com timbre similar ao de um naipe de metais) tocando o motivo inicial da música, seguido por um breve solo de flauta transversal e depois por solo de saxofone alto em diálogo com um grupo de cordas de arco. Apesar de a gravação da música tocada no programa televisivo não ter sido feita por uma banda de música, aos poucos a música passou a ser executada por várias bandas desde a década de 1990.
No processo de incorporação desta música ao repertório das bandas, é possível perceber algumas transformações na apresentação da obra pelas adaptações na instrumentação. Nas execuções feitas pelas bandas de música é comum que os temas iniciais sejam tocados por todos os instrumentos de sopro com destaque para os metais (sobretudo aos trompetes). Os trechos de solo de flauta da gravação original, na banda, são executados em soli pelo naipe de clarinetes ou pelo naipe de flautas. O solo de saxofone da gravação original é executado pelo naipe de saxofones alto em diálogo com os naipes de flautas e clarinetes.
Para além de uma discussão isolada das adaptações instrumentais que observamos na Banda do Carmo, lembramos que a instrumentação também é apontada como característica fundamental na caracterização da banda de música brasileira por Páteo (1997); a autora exemplifica o contraste entre os naipes de metais e madeiras pelos sons graves dos trombones e agudos dos flautins. A autora está se referindo à sonoridade produzida pela formação instrumental básica da banda: instrumentos de sopro e percussão.
Na Banda do Carmo a formação instrumental é a tradicional composta por instrumentos de sopro madeiras, sopro metais e percussão4. Esta base de formação instrumental (envolvendo instrumentos de sopro e percussão/tambores) já era popular na Europa dos séculos XIV a XVI com os grupos chamados de “alta kapelle” ou “alta musique”5. Esses grupos dariam origem às bandas como conhecemos hoje (BINDER, 2006). Lange (1997) também apresenta a ideia de que a formação de bandas que conhecemos atualmente é muito mais recente: o autor afirma que essa formação é típica do século XIX. Ele relaciona esse processo de mudança ao enfraquecimento do monopólio português e espanhol sobre o Brasil. Também aponta a aproximação com Inglaterra, Alemanha e França, sobretudo através da importação de instrumentos desses países. Além disso, o autor aponta contribuições da imigração italiana e alemã inclusive no repertório das bandas dessa época.
Se por um lado essa estrutura instrumental se mantém até os dias atuais, por outro seria um erro dizer que a banda de música se mantém numa realidade estática. Diversas transformações viriam a ocorrer no grupo ao longo dos séculos. Essas transformações se deram por condições culturais, políticas, econômicas e tantas outras. Até mesmo o surgimento de novos instrumentos influenciou e/ou foi influenciado pelas bandas (BARBOSA, 2009). Além disso, os tipos e quantidades de instrumentos presentes no grupo também foram mudando. Surgiram, então, diversas configurações instrumentais de bandas, diferindo uma banda de outra. Cada banda com tais especificidades também se alinha, geralmente, a dedicar-se a determinado repertório específico. O que se mantém é apenas a estrutura base de instrumentos de sopro e percussão.
A inferência de uma caracterização da identidade das bandas de música interioranas por sua instrumentação feita por Páteo (1997) evoca não apenas os instrumentos musicais utilizados: a autora atribui sentido à combinação dos timbres específicos das flautas, pratos e tubas. Além disso, coloca essa realidade instrumental no contexto urbano, na atuação em ruas e praças, na inserção da banda nessa realidade urbana de um cenário coletivo de interação social. Em local aberto, com pessoas conversando e comércio popular em que não há intencionalidade primária de apreciação musical, a banda cumpre um papel conformativo, participativo. Quanto à instrumentação que ganha destaque na fala da autora, o que se pode averiguar é que, no contexto apresentado, a característica mais determinante seria a projeção sonora, além da praticidade de instrumentos musicais que não dependem de energia elétrica, construídos para serem carregados e até executados pelos músicos em movimento, se necessário.
Para Barbosa (2009), há uma relação estreita entre o desenvolvimento das bandas brasileiras e a indústria de fabricação de instrumentos. O autor sugere uma dupla via de influências, sem apresentar uma posição definitiva quanto a se a banda influenciaria a fabricação e o surgimento de novos instrumentos ou se o fluxo ocorreria em direção contrária. De todo modo, entendemos que todo fluxo acaba sendo duplo; assim como a banda pode influenciar o surgimento de novos instrumentos, a direção contrária também nos parece lógica. O que se mantém é a condição de performance, neste caso a experiência da banda na rua, compondo este cenário de atuação de direta interação com o público nos espaços urbanos. Esta composição interativa nos espaços urbanos só ocorre a partir da banda em atividade, ou seja, tocando seu repertório. Mesmo atrelado a outras circunstâncias, o repertório posto em ação continua tecendo a reconstrução identitária das bandas mediando suas interações com diferentes sistemas ideológicos e, como discutido, transformando continuamente suas condições de performance, arranjos musicais e adaptações da formação instrumental do grupo.
A interação com os sistemas político e militar
O tradicional desfile de Sete de Setembro, do qual os músicos da banda estudada participaram no ano de 2017, evidenciou uma viva comunicabilidade do grupo com o público a partir da apresentação de um repertório popular. Além disso, outros pontos serão trazidos à evidência; o principal a ser discutido é a presença de valores e costumes advindos dos sistemas ideológicos do militarismo e político subentendidos pela própria natureza da comemoração em voga, o dia da Independência.
Episódio 3
Enquanto a banda desfilava, tocando e
marchando, as manifestações do público eram recorrentes: toda vez que a banda
começava a tocar outra música o público
vibrava ao reconhecê-la, uns aplaudiam e outros gritavam, aos poucos avançando pela avenida; também era comum a manifestação de pessoas aglomeradas em pequenos grupos enquanto a banda ia se aproximando.
As interações a serem discutidas neste episódio são múltiplas. Além da aparente temática militar e política perpassada pelo repertório de apelo poupar, essas interações foram impulsionadas pelos meios de comunicação em massa, como veremos. A incoporação da música “Get Lucky” ao repertório da banda se deu por iniciativa do maestro da banda, que, em conversa informal durante os preparativos para o desfile de Sete de Setembro, declarou ter visto o vídeo de uma banda militar tocando essa música em ocasião da visita do presidente dos EUA à França. Nessa ocasião, a banda militar tocava vários temas de uma dupla francesa de cantores de música eletrônica, Daft Punk, e entre elas estava o tema de “Get Lucky”6.
Nesse caso, a música passou a incorporar o repertório da banda após o maestro ter contato com ela já adaptada a uma banda de música militar, contato possibilitado primeiramente pelo meio televisivo, quando o maestro viu pela primeira vez a música sendo tocada numa reportagem de telejornal, e depois pela Internet, onde ele pesquisou pela reportagem que havia visto na televisão para ter acesso à música novamente.
O contato inicial que despertou o interesse do maestro pela música ocorre em um momento dele em um espaço fora do contexto da banda. Porém, a presença de uma banda tocando a música num evento noticiado provoca o ponto de contato da mesma com o maestro. Esse contato inicial com a música, além de ser externo ao contexto da banda estudada também apresenta a música já perpassada por um processo de refração. A música em questão sai de sua “origem” apresentada por Daft Punk, passa por uma adaptação para a banda de música militar francesa e chega ao maestro no segundo plano de uma reportagem de telejornal. Ou seja, os próprios diálogos da banda com os costumes políticos e militares estão postos numa trama mais complexa de significações perpassadas por múltiplas refrações advindas de diálogos com as tecnologias e com o campo do entretenimento. Porém, neste momento nos voltaremos mais especificamente aos campos político e militar.
A prática da marcha e a própria atuação no desfile cívico de Sete de Setembro relatadas neste episódio nos remetem aos costumes e apropriações militares que se encontram na banda. Essas características e costumes militares são muito presentes na Banda do Carmo. Durante as apresentações nas ruas, a banda se mostra marchado em “forma”; nesta ocasião do caso em discussão a banda partiu, como de costume, da frente do segundo grupo de artilharia de campanha leve – regimento Deodoro da cidade de Itu/SP. As orientações musicais e organizacionais vindas do maestro seguem os tradicionais comandos de ordem unida7, inclusive com avisos sonoros emitidos pelo uso de um apito. O uso do apito também é uma forte característica de apropriação militar. Antônio Gonçalves Meira e Pedro Schimer apresentam essa relação do apito desde a antiguidade clássica, quando era usado para “marcação de ritmo dos movimentos das Galés até a concepção de um coral de apitos inaugurado em 1970 na Marinha brasileira” (MEIRA; SCHIMER, 2000, p. 58 e 59). O maestro da Banda do Carmo declarou, em conversa informal, que apesar de não saber de onde vem essa prática, utiliza-a por ver outros maestros utilizando.
O pesquisador Fernando Binder (2006) contempla essas apropriações militares em sua pesquisa. Segundo o autor, as bandas civis8 passaram a incorporar esses costumes desenvolvendo um ethos militar (BINDER, 2006). As principais referências a esse costume militar podem ser percebidas não só na atuação marchando em desfiles, mas também nos uniformes que trazem clara referência aos uniformes militares9. A prática de ordem unida é outra clara evidência. No repertório também é de fácil identificação a prolífera presença das famosas marchas militares. Além disso, a inferência de grandiosidade no contingente de músicos da banda e na massa sonora produzida pelo grupo também acabam relacionando a banda a um símbolo de poder, como discute Reily (2009).
Apesar de discutir com maior afinco as bandas militares brasileiras do século XIX, Fernando Binder (2006) também apresenta a forte atuação das bandas europeias mais antigas nos serviços militares. O autor afirma ainda que havia grupos exclusivos para emissão de ordens militares e grupos para os momentos de lazer e distração das tropas. O pequeno diálogo do caso em discussão com estas apropriações militares nos serviu de provocação da discussão apresentada. A mesma se fez necessária porque se apresenta como uma das condições gerais sob as quais temos observado a Banda do Carmo atuando e se coloca também como uma condição geral em outras situações e momentos históricos, como discutido por Binder (2006).
Como já dito, a própria natureza do evento no qual a banda militar francesa tocava quando o maestro da Banda do Carmo teve contato com a música “Get Lucky” nos revela uma motivação que também influi na atuação das bandas como uma condição geral. A visita do presidente dos EUA à França foi o motivo pelo qual a banda militar francesa estava se apresentando. Ou seja, mais uma vez a banda não compõe um espaço coletivo por um valor atribuído a ela, mas sim pela funcionalidade de animação de um evento de natureza externa às suas atividades. Provocada ou não por isso, a banda acaba apresentando um repertório de forte apelo popular, não ligado ao repertório de tradição das bandas.
Na atuação da Banda do Carmo consideramos ainda o programa da Prefeitura de Itu/SP chamado “Tem banda no coreto”, lançado no ano de 2017. Em cada final de semana uma banda foi convidada a tocar no coreto da praça que fica em frente à sede da banda estudada. A Banda do Carmo foi a que fez a primeira apresentação desse programa. Esse envolvimento no caso da banda estudada ainda é um tanto tímido em relação a outras situações que já presenciamos, seja na condição de aluno, músico, professor ou maestro de banda. Outras situações comuns são as inaugurações de pequenas obras realizadas pela prefeitura, situação a qual já vivenciamos. Neste caso falamos da inauguração de uma calçada nova, o novo telefone orelhão instalado na cidade, a pintura nova de algum prédio público e tantas outras. Apesar de não ser a situação da banda que estudamos, existem trabalhos sobre bandas de diferentes lugares que trazem informações sobre os mantenedores e os desafios destas relações como (LIMA, 2000); nesses casos o envolvimento é sempre maior.
Outro caso que vivenciamos ilustra esse envolvimento de interesses políticos da banda e ocorreu no início das atividades de uma banda no interior paulista. Na ocasião recebemos uma solicitação de um concerto durante um comício político (era ano e época de eleição). Pelo pouco tempo em atividade, a banda não poderia realizar um concerto, nem qualquer tipo de apresentação musical. Quando apresentamos essa realidade, o representante da prefeitura solicitou então a presença de um aluno, vestindo o uniforme, para ficar em cima do palanque, mostrando o “investimento” da prefeitura no desenvolvimento da cultura do município.
Consideramos relevante que a aproximação da banda com diversos gêneros musicais é provocada por diversas personagens e/ou situações externas da sua realidade mais imediata, ou da sua realidade musical. Inclusive nessas situações de interesses políticos, quando são comuns os requerimentos de que a banda toque o hino municipal ou o hino nacional brasileiro, por exemplo, existe uma influência direta na formação do repertório e na atuação artística do grupo. Também são comuns as solicitações de que o repertório deva ser “alegre” e “animado”. Em algumas situações o momento específico de se tocar ainda é determinado pelas autoridades políticas: logo após determinado anúncio ou fala específica, cumprindo ali um papel de reforço do discurso pronunciado anteriormente. Lange (1997) também aponta esse apelo às bandas de música como símbolo de sucesso político:
Com a mudança do sistema político, melhorado a partir de 1850, os partidos tradicionais, o liberal e o conservador, também recorreram às bandas para sua propaganda em atos civis, juntamente com os discursos em reuniões ao ar livre ou em locais fechados, e para comemorar com ótimos desfiles o triunfo eleitoral (LANGE, 1997, p. 10. Tradução nossa)10
Na literatura histórica de banda identificamos ainda essa aproximação gerada pela preferência musical da própria corte ou até mesmo pelas características dos eventos nos quais a banda deveria tocar, como no caso das transcrições de óperas e operetas italianas (LANGE, 1968 e SCHWARCZ, 1998) para serem executadas pelas bandas compostas por pessoas escravizadas e tão distantes da realidade musical europeia.
O que concluímos a respeito é que mesmo não proporcionando qualquer contexto musical ou cultural, essas motivações políticas provocam em algumas situações (não em todas) aproximações da banda com diferentes gêneros musicais. Além disso, dão uma identificação simbólica à banda, atribuindo-lhe a identidade de fruto de “sucesso” de trabalho de outro meio, não musical, o político.
As interações com os campos religioso e de entretenimento
Estas dinâmicas também estão intimamente ligadas ao sustento das corporações musicais, seu financiamento, como contrapartida da participação das bandas em tais eventos. Essa relação de sustentação financeira influindo nas situações de performance também é vista em contato com o campo religioso. Isso fica claro nos casos em que as bandas são colocadas a serviço do rito religioso e/ou de festas como quermesses, procissões, festas de “Corpus Christi” e tantas outras. Neste ponto, soma-se a participação das bandas tanto a serviço litúrgico como de entretenimento religioso. É necessário fazer a ressalva de que o envolvimento das bandas com as demandas do ócio e de entretenimento vão muito além das festas religiosas, como participação em festas regionais, bailes de salão, carnavais e outras. Porém, neste texto discutiremos mais especificamente as festas religiosas em função da discussão principal do tópico, a interação com o campo religioso. Logo nos primeiros ensaios e aulas observadas foi possível perceber que, apesar de ser mantida pela Igreja Católica, a Banda do Carmo contava com vários componentes e alunos oriundos de igrejas evangélicas. Esses alunos também atuavam em diferentes grupos musicais criados para a função da liturgia dos cultos evangélicos.
A Banda do Carmo é mantida por uma organização religiosa filiada à Igreja Católica. Na verdade, ela foi criada para servir a um evento da própria Igreja. Foi uma encomenda feita pelo Frei Eustárquio, líder da Congregação Marina de Nossa Senhora do Carmo, a um dos seus congregados, o maestro Antônio Rodrigues (Maestro Toniquinho). O maestro Toniquinho deveria formar e ensaiar uma banda para se apresentar nas festividades em ocasião da passagem da imagem de Nossa Senhora de Fátima pela cidade de Itu/SP, o que ocorreu a 15 de maio de 1951. Com o sucesso da realização, o projeto teve continuidade e a Corporação Nossa Senhora do Carmo tocou no evento de sua inauguração no dia 20 de outubro de 1952. A sede da banda é um prédio anexo à Igreja Nossa Senhora do Carmo, que também dá o nome à própria banda. Além disso, vários músicos que atuam na banda provêm de uma igreja protestante e também tocam na banda da igreja. A banda também não fica de fora das tradicionais festas religiosas: no mês de outubro de 2017, por exemplo, a mesma realizou uma excursão para tocar na Catedral Basílica da cidade de Aparecida/SP, em comemoração ao feriado do dia 12 de outubro em que a Igreja Católica comemora o dia da santa Nossa Senhora Aparecida, considerada a padroeira do Brasil.
Os músicos da banda estudada também estão empenhados em diversos outros grupos musicais. O próprio maestro da banda tem ampla atuação no meio musical da região. Ele ainda ministra aulas na rede privada de ensino regular e é responsável por outra banda de música na mesma cidade. O maestro atua ainda em eventos, sendo que, em um dos ensaios que assistimos, o maestro chegou vestido com roupas para tocar em um evento festivo, para o qual foi direto após a realização do ensaio da banda.
No referencial histórico de banda, também vemos que, durante o século XIX, com a grande evidência das bandas de música no Brasil, os seus componentes protagonizavam o fazer musical religioso de maneira ainda mais direta. Atuavam ainda na “música da praça e música de salão” (DUPRAT, 2009). Além disso, os mestres de bandas comumente ainda atuavam como mestres de capela. Segundo Duprat (2009), esta interação de funcionalidades proporcionava aos músicos um intercâmbio de técnicas, gêneros e formas musicais.
É em meio a essas confluências de papeis desempenhados pelos músicos que a banda também vai se moldando em um dos seus momentos de atividades mais intensas durante os séculos XVIII e XIX. Os grupos figuravam como principais veículos de comunicação sonora da época e detinham ainda os principais acervos musicais juntamente com os acervos religiosos (DUPRAT, 2009). Para se ter uma ideia da intensidade da atuação das bandas no Brasil do século XIX, a Banda da Imperial Fazenda, criada em 1818, tocava todos os dias na fazenda real de Santa Cruz; tocava ainda em solenidades, recepções, festas e bailes, percorrendo toda a província a partir de 1831 (SCHWARCZ 1998). A historiadora Lilia Schwarcz ainda fala sobre a mesma banda:
Em 1856, participou dos festejos do Divino Espírito Santo, em Itaguaí, tocando por dez dias. Esteve em Valença, Campo Grande, Marapicu, Realengo, São Pedro e São Paulo, Maxambomba e outras localidades (SCHWARCZ, 1998, p. 348).
O envolvimento das bandas com a música religiosa e de diversão ainda é evidente em ampla literatura e a interação entre religião e diversão fica exposta nas múltiplas citações da participação das bandas nas festas religiosas dos séculos XVIII e XIX. As festas que demandavam maior produção incluíam até a construção de um coreto para apresentações musicais (LANGE, 1968). Note-se que Francisco Curt Lange ainda verificou alguns casos em que a construção do coreto ficava por conta do próprio mestre da banda (LANGE, 1968, p. 116). Estes processos híbridos também são apontados por Pereira (1999) ao falar da atuação da banda (e não só de seus componentes de maneira individual) em diversas situações de eventos religiosos, bailes, apresentações cívicas etc. Essa múltipla atuação é apontada pela versatilidade de seu repertório e, apesar do autor não discutir o processo de miscigenação de gêneros musicais no repertório da banda, ele percebe e reconhece sua existência. Mais uma vez, o repertório se mostra em função fundamental da contínua construção identitária das bandas de música.
Considerações
Todos os processos que discutimos neste texto nos remetem ao fenômeno de refração de Volóchinov/Bakhtin (2017), pelo qual vimos a banda e seu repertório existirem numa constante situação de transformação. A música “Tema da Vitória” passa a ter forte identificação com o grupo, mesmo passando por algumas mudanças geradas pela própria instrumentação da banda. A banda, por sua vez, adequa-se para melhor executá-la, sendo esta adequação também sujeita a variar conforme a situação da apresentação, seja ela em um lugar qualquer em que a banda esteja parada ou em apresentações em que a banda esteja desfilando ou marchando, nas quais não é possível incluir uma bateria montada.
De modo geral, as músicas incorporadas ao repertório da banda provocaram várias manifestações e reações do público durante as apresentações, tanto no desfile quanto na praça. Ao reagir, o público provoca outra resposta do maestro. Em ambos os episódios descritos acima, a animação do público levou o maestro a conduzir uma repetição de ambas as músicas, sendo isto que prolongava aquele estado de ânimo do público durante as apresentações. O que nos leva novamente a uma identificação da banda e do seu repertório, que acontece abraçando diferentes situações em uma única realidade, seja na praça parada ou na rua desfilando; é a banda tocando seu repertório em pleno diálogo com seu público.
Consideramos que as transformações ocorridas na banda de música estão diretamente relacionadas à sua própria identificação, tanto pelo ethos militar trazido já de suas origens europeias (BINDER, 2006), quanto pelo diálogo com outros sistemas ideológicos, além de uma identificação por sua imersão na realidade urbana das pequenas cidades interioranas (PÁTEO, 1997). Como vimos discutindo, é no repertório posto em ação, dentro de um determinado contexto social, que vimos essa identificação se moldando continuamente. O que percebemos é que o repertório está sempre presente nos processos que envolvem a contínua construção identitária das bandas cumprindo diferentes papéis; seja provocando essas interações em algumas, servindo de tema para elas ou como resultante das mesmas, geralmente em situações de incorporações de novas músicas ao repertório dos grupos. Em outras palavras, pudemos perceber o repertório constituindo o próprio fluxo dialógico de tais processos; sejam as motivações e forças propulsoras de tais interações advindas dos mais diversos sistemas ideológicos, quando se chega ao momento prático é no uso do repertório que uma nova realidade toma forma. É quando a prática do repertório acontece que a banda se coloca novamente em movimento na direção de uma nova forma de estar diante da sociedade. É o repertório em prática que mostra a linguagem musical das bandas por uma extensa trama histórica de significações e construção identitária.
Referências
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Notas
Autor notes