A LUTA PELA TERRA NA FRONTEIRA DO PARAGUAI COM O BRASIL AO LONGO SÉCULO XX E INÍCIO DO XXI: MIGRAÇÕES, CONFLITOS, BRASIGUAIOS E CARPEROS

Leandro Baller y Marcos Leandro Mondardo

A LUTA PELA TERRA NA FRONTEIRA DO PARAGUAI COM O BRASIL AO LONGO SÉCULO XX E INÍCIO DO XXI: MIGRAÇÕES, CONFLITOS, BRASIGUAIOS E CARPEROS

Revista Estudios Paraguayos, vol. 37, núm. 2, 2019

Universidad Católica "Nuestra Señora de la Asunción"

Resumen: El tema de la tierra en Paraguay está marcado por migraciones, conflictos en la lucha por la tierra, desterritorializaciones y múltiples territorialidades y temporalidades. El propósito de este artículo es analizar la lucha por la tierra en la frontera paraguaya con Brasil durante los siglos XX y principios del XXI. El diseño metodológico se produjo en la relación dialógica entre fuentes primarias y secundarias. Se crearon dos categorías de análisis: el tema rural paraguayo y la modernización de la agricultura en Brasil. Se ha encontrado que la expansión del agronegocio ha hecho de esta frontera agrícola un espacio transnacional através de la dinámica de la migración y la desterritorialización, y ha generado tensiones entre territorialidades de brasiguayos y carperos en Paraguay.

Palabras clave: frontera, conflictos, brasiguayos, agronegocios, Paraguay.

Resumo: A questão fundiária no Paraguai é marcada por migrações, conflitos na luta pela terra, desterritorializações e por múltiplas territorialidades e temporalidades. O objetivo deste texto é analisar a luta pela terra na fronteira do Paraguai com o Brasil ao longo do século XX e início do XXI. O delineamento metodológico ocorreu na relação dialógica entre as fontes primárias e secundárias. Foram criadas duas categorias de análise: a questão rural paraguaia e a modernização da agricultura no Brasil. Constatou-se que a expansão do agronegócio tornou essa fronteira agrícola um espaço transnacional pela dinâmica de migração e desreterritorialização, e resultou em tensões entre territorialidades de brasiguaios e carperos no Paraguai.

Palavras-chave: fronteira, conflitos, brasiguaios, agronegócio, Paraguai.

Abstract: The land issue in Paraguay is marked by migrations, conflicts in the struggle for land, deterritorializations and multiple territorialities and temporalities. The purpose of this text is to analyze the struggle for land on the Paraguay border with Brazil throughout the 20th and early 21st centuries. The methodological delineation took place in the dialogical relation between the primary and secondary sources. Two categories of analysis were created: the Paraguayan rural issue and the modernization of agriculture in Brazil. It was found that the expansion of agribusiness made this agricultural frontier a transnational space by the dynamics of migration and dereterritorialization, and resulted in tensions between territorialities of brasiguaios and carperos in Paraguay.

Keywords: frontier, conflicts, brasiguaios, agribusiness, Paraguay.

1. Introdução

O objetivo deste texto é analisar como se produziram as principais problemáticas ligadas às questões rurais entre Brasil e Paraguai, elencando episódios que se deram na longa duração deste processo que contribuiu e contribui para delimitar e expandir os limites e as fronteiras internacionais entre os dois países. O artigo compreende um contexto espaçotemporal amplo, com um aporte historiográfico sobre a questão no Paraguai remontando ao início do século XIX. Nossas pesquisas evidenciam que a problemática da terra no Paraguai é melhor compreendida quando expomos os contextos de transformações do setor que comporão os séculos seguintes.

Sendo assim, o estudo não perde de vista os vetores que mesmo antes da Independência paraguaia (1811) já operavam ao encontro de uma formação social rural e da propriedade da terra, que no decorrer dos séculos adquiriu contornos históricos e geográficos variados com transformações de cunho substancial no modelo de produção, mantendo uma das maiores estruturas fundiárias do mundo.

A discussão central da problemática em nosso texto se dá a partir do século XX passando a orientar as transformações no leste paraguaio, uma zona permeada de latifúndios, com baixa densidade demográfica, com grande potencial agrícola e que continha em seu interior variadas formas de colonização, como as Colônias Pioneiras, Colônias Militares, Colônias Particulares e as Colônias Oficiais. Nesse contexto também analisaremos brevemente as dinâmicas de mobilidade de centenas de milhares de imigrantes brasileiros para a região que é divisa territorial com o Brasil.

Na parte final da análise nos concentramos no exame desse processo no leste paraguaio para compreender como o modelo agroexportador agrícola contemporâneo opera enquanto um dos principais ocasionadores do problema agrário, bem como a operacionalização dessas características em zonas de fronteiras e próximo delas. Todavia, o modelo fundiário nos leva a perceber e incluir outros espaços no interior do território paraguaio, como por exemplo o Chaco.

Outros acontecimentos importantes incidem nesse contexto e que aparecem como coadjuvante no processo, tais como o projeto energético desenvolvido em conjunto para a construção de Itaipu Binacional, o contrabando provindo de ambos os lados da fronteira, a reformulação de tratados bilaterais, o intenso trânsito humano que se dá na zona de fronteira, criando, inclusive, uma nova denominação social de trabalhadores rurais; os brasiguaios[3]. A segunda metade do século XX marca o estreitamento das relações entre Brasil e Paraguai, com ambos os países figurando com governos ditatoriais. Ao término desse período no Paraguai (1954-1989), o país passa por um momento de transição para a democracia (1989-2003) em que a questão rural acaba sendo posta novamente como moeda de troca em prol da política vigente. É no interior dessas e outras questões que os estudos que envolvem o meio rural surgem com um eixo de análise importante para entender essas relações.

2. Antecedentes político-sociais sobre a questão rural no Paraguai (1800 – 1954)

As principais questões que marcam o papel do Estado em relação à propriedade de terras antes da ditadura do General Alfredo Stroessner (1954-1989), podem ser definidas em quatro fases diferentes, essa resenha histórica é fundamental para o entendimento da questão na contemporaneidade, para a compreensão da concentração fundiária no país.

A primeira fase caracteriza-se antes da independência, com a exploração da metrópole europeia (Espanha) sobre a colônia. Entre 1800 e 1811 o poder imperial da metrópole em decadência sofre as influências de outras potências europeias em relação à produção, comércio e finanças. A crise provoca a estafa da colônia, especialmente pela extração desordenada das suas riquezas, proporcionando lucro rápido e recursos fiscais, essa dinâmica deixou a colônia sem perspectiva de diversificação, crescimento, estabilidade e, sobretudo, impossibilitada de fazer o comércio internacional, se tornando um território neutralizado e dependente dos escassos recursos da metrópole em crise.

Podemos inferir que assim iniciam as contradições entre o sistema colonial em decadência e a dinâmica de expansão que o setor criollo buscava, passando a dominar espaços de controle importante, como a participação em instância administrativa, política e econômica, tudo isso envolvido em um poder material, cultural e social que crescia (Velázquez, 1976). O movimento pré-independente possuía caráter elitista, pois a oligarquia criolla urbana passou a dominar vários setores da colônia, como o exército. O então agente do processo emancipador da colônia não fez questão de estabelecer mudanças na estrutura do que viria a ser o futuro país, permanecendo a mesma estratificação social, ligada a indústria, ao mercado interno e também a terra.

O segundo momento é o período independente e de autogestão, entre 1814 e 1870, essa nova etapa, possui dois modelos diferenciados de gestão tendo como marco divisório o ano de 1840, com o advento de los Lopez, o que distingue os dois modelos é o perfil sócio-político de seus governantes. O modelo que vai até 1840 é baseado em um Estado patrimonialista, agrarista, popular e despótico-ilustrado, com o Dr. José Gaspar Rodríguez de Francia (Pastore, 2013). Este fez com que as leis criadas anteriormente – sobre bases religiosas – fossem modificadas passando a ser de bases nacionais e do Estado. Em 1826, Francia apoiado nas novas leis declara como propriedade do Estado todas as terras do Chaco (região Ocidental), e mais da metade da região oriental (leste paraguaio) com as terras voltando ao poder do Estado. Dessa maneira o governo retomou as terras da ex-metrópole e as que estavam nas mãos de religiosos – jesuítas –, isto é, das grandes parcelas de terras que foram confiadas às instituições eclesiais no regime colonial, as terras das elites criollas também foram retomadas, esses marcavam um setor contrário ao governo Francia que objetivava criar um Estado forte e com patrimônio territorial, na América Latina era possível percebê-lo como um proto-socialismo, ideia inclusive defendida por alguns sociólogos paraguaios.

A autogestão patrimonialista direcionou a formação social paraguaia – em grande medida rural – com estímulo e desenvolvimento público, a prática de ocupação por arrendamentos para criação de gado passou a ser comum, especialmente quando havia o interesse nas terras do Estado que já tinham pertencido a outras instituições como a igreja, por exemplo. As matas constituídas por uma reserva de erva mate considerável eram ocupadas por indígenas e mestiços dos segmentos populares que se proclamavam donos dos direitos naturais do então Paraguai, essas características marcam o Estado como detentor de um patrimônio do povo (Daniel Campos, 1987).

O modelo político em relação a propriedade de terras desenvolvido pelo Estado a partir de 1840, marca-o como patrimonial mercantilista, paternalista e ilustrado. Neste período foram conferidas mais terras em favor do Estado, porem abriu-se negociações na direção da regulamentação da propriedade privada, estes particulares compunham uma oligarquia nativa terrateniente, que abdicaram a autogestão do governo atual e do anterior aproximando-se da oligarquia nativa que estava temporariamente fora do país – Buenos Aires – e que contavam com o apoio de capital inglês. O Estado ampliava a sua política mercantil com uma nova forma de luta pela propriedade de terras, de um lado estavam os negócios europeus e os interessados sucessores que seriam os sujeitos responsáveis pela civilização e cultura do país, e do outro os guaranis e mestiços totalmente desfavorecidos[4], representando o que chamavam de barbárie.

O Estado transformava-se no grande proprietário das terras, negociando seus bens entre os habitantes, a maioria guaranis e mestiços, que eram na verdade trabalhadores meeiros, parceleiros ou arrendatários, pagando por essa forma de aquisição em espécie ao Estado, seja em metais, gado, ou produtos agrícolas primários. O modelo paternalista mercantil desse patrimônio transformou a sociedade paraguaia em eminentemente rural e com pouca distinção social entre seus membros. Uma vez que a minoria da oligarquia nativa e provinda do estrangeiro não estava contida neste círculo.

A terceira fase surge entre os anos de 1870 e 1935, períodos que marcam dois pós-guerras para o Paraguai, e se dividem em dois modelos de administração, entre 1870 e 1903 pelo governo colorado, e entre 1904 e 1935 pelo governo liberal, embora ideologicamente diferentes, ambos são marcados pela preeminência inglesa na tentativa de interferir na formação social do Paraguai, em que o Estado é caracterizado em seus pressupostos teóricos como liberal, com liberdade de mudanças em suas estruturas.

Logo após a Guerra da Tríplice Aliança (1864/1870), evento que marcou a derrubada do Estado patrimonial mercantilista de los López, criando um Estado liberal oligárquico e autoritário, com a privatização do território do país, e em grande medida devolvendo aos antigos donos as terras confiscadas nos períodos anteriores. A partir disso o Estado passou a ser o defensor da propriedade privada, não ponderando anexações, ocupações, ou qualquer tipo de violação, passando a alienar as terras fiscais a partir de 1875. Esta condição estipulou um novo marco nas leis de terras no país, pois houve a necessidade de regularizar as parcelas anteriormente arrendadas, com isso apenas uma minoria rica conseguia fazer com que seus processos de aquisição fossem atendidos, e a grande maioria de meeiros, parceleiros e arrendatários que até então gozavam de certo prestígio do Estado se viram sem condições de fazer a regulamentação das terras em que estavam trabalhando, por que até então o valor pago por eles ao Estado por arrendamento era baixo. Esse processo formou a oligarquia autoritária articulada com base no clientelismo em que a prática de apadrinhamento, compadrio econômico e político foi sustentado pelos partidos políticos que surgiam.

Em 1883 houve a consolidação do Estado liberal oligárquico autoritário, com o cercamento das propriedades privadas, repartição e venda das terras públicas. Percebe-se que até 1903 as ideologias partidárias não obedeciam a princípios básicos ou doutrinários, em que os partidos se uniam no atendimento às massas formando colônias de proprietários que os seguiam, esse comportamento é explicado por corresponder a uma função social e econômica, em que um dependia do outro e por isso sentiam-se unidos (Daniel Campos, 1987).

A ascensão do Partido Liberal em 1904 no governo se dá com o auxílio das classes populares do país, mas os ideais do partido voltam-se para o apoio na entrada de migrantes e a aquisição de terras por parte desses estrangeiros, fomentando todo tipo de política pública no interior do país para alcançá-los, o campesino paraguaio que fazia parte das massas populares que os apoiaram para o governo, raramente eram incluídos nas discussões sobre a aquisição de terras. As demandas do setor ficaram capitaneadas pela oligarquia nativa que manejavam a representação política do Partido Colorado através da Associação Nacional Republicana (ANR). Tanto os campesinos como a oligarquia nativa permaneceram em seus núcleos partidários muito próximos politicamente dos interesses ingleses, já que foi esse capital que possibilitou a superação da crise social campesina no contexto.

Os liberais procuraram neutralizar a influência da oligarquia nativa e do capital estrangeiro sobre os campesinos, bem como sair da crise que se anunciava, então promulgaram as leis de colonização das terras do Estado e que não eram sujeitas a reserva ou destinos especiais, bem como, atentam às terras particulares adquiridas já com o mesmo propósito, como possíveis futuros assentamentos campesinos, estabelecimentos de criação de gado, ou mesmo em espaços industriais e de moradia. A tentativa do Estado em desapropriar terras de agricultores estrangeiros e de grandes proprietários que contavam com subsídios estrangeiros e reintegrá-las aos campesinos era barrada na sua própria debilidade prática, uma vez que se criavam leis e decretos para atender casos específicos e que não se aplicava ao restante do país, criando uma verdadeira máquina de jurisprudência e altamente corrupta.

As crises internas no Paraguai, com instabilidade política e sucessivos conflitos sociais e bélicos, internos e externos, são influenciadas com as tensões regionais que ocorriam na Argentina, no Brasil e também no contexto mundial, como os períodos de guerras e entre guerras. A recessão mundial de 1929 influencia diretamente no Paraguai, em 1935 no período pós-guerra do Chaco (1932-1935) a crise interna aumenta e se prolonga, esses fatores debilitaram a chamada oligarquia nativa[5] que era forte aliada do capital estrangeiro no país (Pastore, 2013).

A quarta fase, entre 1935 e 1954, conhecida como o período da crise liberal oligárquica, dividida em três curtos períodos influenciados pelo fraco poder governamental no país. No contexto interno com a debilitação da oligarquia nativa, e com a vitória do país na Guerra do Chaco vários intentos revolucionários vieram à tona, dois são mais expressivos que são as reformas burguesas objetivadas tanto de baixo quanto de cima, ambas frustradas. No contexto externo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), provocou recessão, fortalecendo a hegemonia norte americana, portanto, assistimos no Paraguai o que ocorreu com vários países, uma crise de hegemonia política.

Entre 1936 e 1940 há o reformismo liberal com a ascensão do governo Estigarribia, uma tentativa de revolução de cima em que as condições mundiais tornaram o então embaixador Estigarribia atuando nos Estados Unidos, um político de visão, e com percepção de estratégia militar, entendeu que era a ocasião de tirar benefício do governo norte americano na sua política de segurança mundial. Eleito presidente do Paraguai ainda trabalhando nos EUA Estigarribia conseguiu importantes somas de investimento norte americano, para melhorar a infraestrutura na capital Assunção e ainda manter uma reserva para a manutenção da estabilidade da moeda interna.

Todos os projetos foram desenvolvidos embora o governo de Estigarribia durasse apenas meio ano em clima de boas relações obrigando-o a institucionalizar o autoritarismo constitucional por causa de conspirações golpistas. O governo deste contexto passando por Estigarribia, Paiva e Franco promoveu um desenvolvimento importante ao país logrando as primeiras discussões em torno de la marcha se hace al este. A discussão em torno da questão de terra se deu num campo progressista quando criou o Estatuto Agrário de 1940, idealizado por Carlos Pastore[6].

Entre 1940 e 1948 ocorre o período da contrarreforma de Higinio Morínigo, uma tentativa de revolução de baixo. Morínigo herdou uma situação governamental boa de Estigarribia, destacando o social, o econômico, e a articulação política, porém não deu sequência aos projetos tornando-se um político militar corporativista sem apoio nem consenso, seus mecanismos eram a força e a repressão. Seu governo foi marcado pela substituição de funcionários públicos, inclusive desmantelando o Departamento de Colonización y Reforma Agrária. Criou um conselho superior de reforma agrária para substituir o Departamento. A Revolução de 1947, nascida com o objetivo de revolução burguesa por meio da formação de uma frente populista foi frustrada, assumindo o governo Natalício González em 1948.

Entre 1949 e 1953 período conhecido como populista, de Franco, com mais uma tentativa de revolução frustrada, elaborou indicações importantes em relação à propriedade de terras, em que Robert Petit reergueu a bandeira da reforma agrária, postura um tanto quanto vaga, mas serviu para dar autonomia ao Departamento de Tierras y Colonización, proposto pelo Estatuto Agrário de Carlos Pastores em 1940. Em 1950 Petit declara que as terras de fronteiras do país e que não eram navegáveis, se destinem a formação de colônias, de cidades nativas, declarando-as de utilidade pública ou sujeitas à expropriação, inclusive aquelas de domínio privado (Daniel Campos, 1987).

Nesse período que compreende mais de um século e meio, desde 1800 até a ascensão de Stroessner em 1954, em meio aos mais diferentes projetos políticos e ideológicos que contribuíram para a formação social do Paraguai, se reconhece que houve tentativas no sentido de fortalecer a discussão e a distribuição equitativa de terras. Entre os anos de 1854 e 1881, por exemplo, defendia-se um modelo de reforma agrária no país, neste contexto foram formadas no Paraguai as 105 colônias públicas de terras fiscais que tinham como objetivo proporcionar terra aos pequenos agricultores. Porém, o Estado não teve a preocupação com a distribuição das terras, uma vez que a produção se baseava na criação de gado em grandes extensões, na exploração florestal especialmente da madeira de lei, e na extração da erva mate in natura. Logo, a questão agrária no tocante a distribuição de terra para atender a sua função social foi consentida a outro plano pelo Estado, e as colônias acabaram também se tornando uma espécie de bens fundiários. A repressão militar, os vários conflitos civis e internacionais, e a instabilidade política no país mostram que os interesses eram outros, o latifúndio que se concentrava no país produzia em sua própria forma ainda mais desigualdades e exclusões sociais, pois tinha característica de monocultura e de exploração da mão de obra, o que provocava miséria e distinção econômica, uma vez que não contava com uma política para o setor.

Entre o final do século xix e as primeiras décadas do xx as terras de propriedade do Estado foram vendidas para particulares, 95% das terras privatizadas na região oriental do país foram parar nas mãos de grandes proprietários, como por exemplo, a La Industrial Paraguaya S.A. (LIPSA), que adquiriu mais de 2.600.000 hectares, a propriedade cobria grande parte do que atualmente são os departamentos do leste paraguaio de Alto Paraná, Amambay e Canindeyú, se estendendo até o departamento de San Pedro e Concepción. A propriedade de Barthes e C.O. com cerca de 1.125.000 hectares nos atuais departamentos de Alto Paraná e Itapua. Bem como o latifúndio de quase meio milhão de hectares existente no atual departamento de Concepción que pertenciam a La Societe Fonciere, todos localizados na região de fronteira oriental paraguaia divisando com o oeste brasileiro.

Mapa N° 1: Latifúndios nas fronteiras paraguaias em 1920

Fonte: Souchaud, 2008: p. 74.

Na região ocidental a prática de distribuição e venda de terras em grandes porções também marcou os departamentos do Chaco, nesta área se destaca a propriedade de Carlos Casado y Cia com 2.467.277 hectares. Segundo Pastore (2013), na década de 1940, havia na região ocidental 14 propriedades que somavam em conjunto 7.567.457 hectares. Segundo ele.

“El território de este país, de 40.675.200 hectáreas de superficie, dividido en dos regiones, correspondiendo el 60% al Chaco y el 40% a la Región Oriental, estaba destinado en 1957 el 4,1% a la producción agrícola, principal fuente de riqueza, el 29% a la ganadería, el 18,4% a la explotación forestal y el 48,1% sin ocupacón. La Zona Central de la Región Oriental, de 360.870 hectáreas de superficie, eran cultivadas 143.357 hectáreas, divididas en 41.832 chacras”. (Pastore, 2013: p. 412-413)

Na década de 1940, a sociedade paraguaia assistia as transformações no cenário legislativo do país que se alterava após a formulação de antigas leis que foram pensadas em contextos de guerras e entre guerras. Com a nova Constituição Nacional de 1940 e junto a essa os novos mecanismos legais como o Estatuto Agrário de 1940 garantiam a propriedade privada desde que atendesse sua função social, impedia a propriedade para estrangeiros em áreas de fronteiras, e organizava modernas bases de administração unificando a legislação sobre a questão agrária com a criação do Instituto de Reforma Agrária, que tinha como principal função solucionar os problemas existentes em relação à distribuição equitativa de terras, projeto construído por Pastore. Entretanto, as ideias de Pastore enfrentavam resistência, pois a distribuição de títulos provisórios e permanentes de grandes porções de terras haviam se tornado uma prática política antiga e as vendas privadas acabaram institucionalizando o latifúndio privado e em grande medida estrangeiro que prevaleceu em maior escala nas regiões demograficamente menos habitadas, como nas terras de criação de gado, de extração de erva mate, das florestas do norte, no leste e no sudeste, bem como em locais missioneiros ao sul.

Para exemplificar esta situação nos apoiamos na explanação de Pastore (2013) que evidencia que em 1946 haviam 11 propriedades na região da fronteira oriental com mais de 100 mil hectares cada uma, ele continua dizendo que ao todo somando esse conjunto com outras propriedades, havia mais de 5.500.000 hectares[7], que formavam as denominadas obrages[8]. Em 1949 – contexto de publicação de La lucha por la tierra en el Paraguai –, o autor defendia a ideia de que com o passar dos anos, essas grandes porções de terras acabariam virando moeda de especulação econômica e de articulação política, com a terra perdendo sua função social de produzir alimentos, característica da produção rural campesina paraguaia. A previsão de Pastore se confirmou, mais tarde o Paraguai passou a ser um dos principais produtores e exportadores de soja in natura do mundo.

3. Breve leitura da questão rural paraguaia no regime político de Stroessner (1954 – 1989) e da transição (1989 – 2003)

O Estado paraguaio não foi protagonista na discussão sobre a questão da terra para campesino no país, a literatura paraguaia explora esse assunto de maneira convincente. O alvo principal de suas campanhas é o rico, o proprietário, o fazendeiro, o estrangeiro. Na segunda metade do século XX o governo implantou a colonização agrária nos departamentos do leste paraguaio, com a política de la marcha si hace al Este, com um modelo político assumido para essa transformação, tal empenho se dá após alguns resultados no Brasil do programa Marcha para o oeste. Os governos de Brasil e Paraguai estabeleceram um ponto comum de chegada de ambas às marchas que é a pouco habitada região de fronteira oriental do Paraguai com o Brasil.

O movimento procurou equacionar questões que vinham se difundindo amplamente nos dois países, com a fronteira funcionando como uma válvula de escape. Maria Secreto diz que a eficácia do controle interno planejado pelos governos ditatoriais estabeleceu “um papel dinâmico, democrático e nivelador das tensões sociais” (Secreto, 2002: p. 295), ao menos no início. O movimento acima descrito pode ser operacionalizado com base na obra de Frederick Jackson Turner (2004), e, respeitando devidas e guardadas proporções ser aplicado ao contexto analisado, pois reflete a tese de expansão, algo semelhante ao que aconteceu internamente nos Estados Unidos no século XIX, que se propunha a conquista do oeste americano. É possível identificar as forças políticas atuantes nos dois casos, com a humanização das fronteiras, e na mobilidade na frente de expansão e da frente pioneira, conforme destaca José de Souza Martins (2009), quer seja uma fronteira humana.

A exploração tanto do Oeste brasileiro quanto do Leste paraguaio se mostrou propício aos governos enquanto dinamizadora de áreas de trabalho e de equiparação de tensões sociais internas no meio rural, o espaço fronteiriço se torna assim um território demograficamente mais habitado. No Brasil esse movimento acalmou temporariamente e de forma anódina um grande número de pequenos proprietários de terras e de pessoas que estavam ficando sem trabalho na área rural no Sul e no Sudeste do país; e ao Paraguai ele representou a entrada de um contingente de pessoas com experiência no trabalho rural.

As atuações do governo paraguaio na região leste já ocorriam desde os anos trinta, os estudos elaborados por pesquisadores no ano de 1975 na área de abrangência de Itaipu apontam para isso, o estudo gerou uma série de relatórios intitulados Investigaciones Historicas, socioculturales y Arqueologicas del Area de Itaipú, produzidos entre os anos de 1975 e 1979. Segundo consta no relatório, o processo inicia com a planificação da colonização do eixo leste, num primeiro momento com “las Colonias Pioneras de la región Este que corresponden al Departamento de Caaguazú e se acentaron a partir del año [19]35” (Fogel, 1975: p. 89).

No contexto da realização das Investigaciones Historicas, socioculturales y Arqueologicas del Area de Itaipú, na segunda metade da década de 1970, a prática migratória de brasileiros com destino ao Paraguai era grande, como alertam os investigadores sobre a condição do leste paraguaio. Segundo a fonte.

Fragmento N°1: Estudio de los Colonos Brasileños

Fonte: Investigaciones Historicas, Socioculturales y Arqueologicas del area de Itaipu. Tomo 3: 1977, p. 02.

Stroessner proporcionou a abertura das fronteiras internacionais do Paraguai, com isso houve a entrada de estrangeiros - massivamente brasileiros. Durante a segunda metade do século XX e início do XXI, brasileiros e descendentes representaram mais de 6% da população total daquele país[9], nos departamentos fronteiriços esse contingente gira em torno de 90% da população nacional local. A abertura auxilia na compreensão da atual situação no Paraguai, onde há ampla produção agrícola voltada ao comércio exportador, com concentração de terras por parte dos estrangeiros.

As empresas fundiárias paraguaias e o próprio estado continham os planos de colonização, porém, eles eram voltados a venda de terras para imigrantes, praticamente ignorando a condição dos sin-tierras (carperos) do país, por vezes essas empresas reclamam a aplicação da lei que garanta a propriedade privada. No contexto político ambos os países buscam aproximações que são marcadas em torno das grandes obras, como por exemplo, a Estrada Carretera Internacional, a Ponte Internacional da Amizade, o porto franco em Paranaguá, e o início das discussões sobre o Projeto Itaipu, obras que operaram na promoção e desenvolvimento do leste paraguaio, fomentando a ida de milhares de brasileiros ao Paraguai, como veremos de maneira mais enfática adiante. As Investigaciones Historicas, socioculturales y Arqueologicas del Area de Itaipú, apontavam o potencial do leste paraguaio.

Fragmento N°2: Contexto Regional

Fonte: Investigaciones Historicas, Socioculturales y Arqueologicas del area de Itaipu. Tomo 3: 1978, p. 03.

Ao mesmo tempo em que região desperta interesses, com Stroessner houve a supressão dos direitos e das leis que regiam a conduta no país sobre a entrada e a propriedade de estrangeiros em território paraguaio, estabelecendo um Estado ditatorial. Um exemplo é a revisão do Estatuto Agrário de 1940 que sofreu diversas alterações, supressões e incorporações em que as leis se alteravam para favorecer os mais próximos do governo. Na década de 1960 fomentou-se uma série de discussões que vinham na direção de atender o público campesino, que muito mais do que uma proposta para inseri-los no conceito de bienestar rural serviu como pano de fundo para o governo suprimir direitos que constavam do antigo Estatuto Agrário.

As alterações provocaram a mudança de conceito em relação à distribuição equitativa da terra, com a criação do Instituto de Bienestar Rural (IBR) passando da definição de reforma agrária difundida por Carlos Pastore em 1940, para o conceito de bem-estar rural no Estatuto Agrário de 1963. O termo reforma agrária é praticamente excluído do Estatuto de Stroessner, retorna na Constituição de 1967 e é incorporado no interior da ideia de bem-estar rural, o conceito de reforma agrária com a dimensão que ele representa é retomado no Estatuto Agrário de 2002, no período da redemocratização.

A ditadura de Stroessner foi violenta, e quanto às pessoas e ao tema ligado à questão rural foi tão expressiva que nos resultados da Comision de Verdad y Justicia (CVJ, 2008), há um Tomo com mais de 200 páginas com dados recolhidos e analisados que está voltado para as discussões acerca dessa problemática, intitulado de Tierras Mal habidas[10]. As pessoas derivadas da área rural representaram cerca de 25% do total das pessoas perseguidas, presas, torturadas, exiladas, e mortas pelo regime que colocava a seu serviço os meios e as pessoas mais violentas no controle, como por exemplo, o agente Pastor Milciades Coronel, então chefe do Departamento de Investigações, considerado por ativistas de direitos humanos do Paraguai como o mais violento torturador da ditadura. A descoberta dos "Arquivos do Terror" em 22/12/1992 mostrou que ele era o autor de várias violações e que verificava casos in locus.

Pastor Coronel foi um dos responsáveis pela chamada modernização da estrutura repressiva do regime que era baseada em um sistema de arquivamento de dados de inteligência, em uma subdivisão de tarefas especializadas, infiltradas em sindicatos, centros estudantis, nas fronteiras e movimentos políticos, também foi responsável pelo Departamento de Identificação que concedia documentos às pessoas, condição que lhe dava informações e dinheiro. Foi preso em 1989 com o fim do regime de Stroessner, condenado a prisão por seus atos ele morreu na cadeia no ano 2000 (CVJ, 2008). Abaixo, ele aparece empunhando uma arma, junto ao corpo de uma pessoa na zona rural.

Figura N°1: Chefe - Pastor Milciades Coronel

Fonte: Archivo del Museo de las memorias: Dictadura y Derechos Humanos – PY

A CVJ, registrou mais de 20.000 vítimas de violação de direitos humanos, uma média de quase duas vítimas por dia durante 35 anos. Apontou quase 19.000 casos de tortura e afere que cerca de 108.000 pessoas foram vitimadas pelo regime, em geral familiares que sofreram impacto psicológico, ameaças e perdas. Para exemplificar quantitativamente, a CVJ identificou 1.048 mulheres que pertenciam as Ligas Agrárias, Campesinas ou Cristãs, desse montante mais de 100 eram menores de idade, a denúncia mais comum entre as menores, é de abuso sexual cometido pelos denunciados (CVJ, Tomo IV, 2008). Dessa maneira Stroessner foi distribuindo terras e garantindo apoio, em geral de forma equivocada, reconfigurando a face social da área rural no país, prejudicando uma maioria campesina e beneficiando autoridades e/ou amigos.

Tabela N°1: Superfície de terras do Paraguai e condições de adjudicação (1954-1989-2003)

Variáveis Hectares Superfície total de terras do Paraguai 40.675.200 Total de terras Cultivadas 24.000.000 Terras mal habidas adjudicadas entre 1954-1988 6.744.005 Terras mal habidas adjudicadas entre 1989-2003 989.589 Total de terras mal habidas adjudicadas 1954-2003 7.851.295 Total de terras adjudicadas 12.229.594 Total de terras fiscais adjudicadas 4.378299 Total de terras mal habidas na região Ocidental 6.298.834 Total de terras mal habidas na região Oriental 1.507.535 Importar tabla

Fonte: Produção a partir dos dados da CVJ, 2008, p. 25-26[11]

Enquanto Stroessner distribuía terras aos amigos políticos, militares, estrangeiros e altos funcionários do Estado, o segmento rural mais pobre do país foi duramente reprimido pelo regime ditatorial, até o fim do seu governo foram distribuídos 6.744.005 hectares de tierras malhabidas[12] (CVJ, Tomo IV, 2008, p. 25) e/ou tierras fiscales[13]. Não obstante a essa maneira de distribuir terras do Estado às pessoas mais próximas e aos não sujeitos da Reforma Agrária no período da ditadura, o momento que é compreendido como de transição para a democracia, essa prática continua sendo perpetrada, nesse contexto (1989-2003), foram distribuídos quase um milhão de hectares, mais exatamente 989.589 hectares. Stroessner garantiu o latifúndio quando fomentou a manutenção das grandes propriedades, no momento em que propôs mudança apenas trocou-as de mão, excitou a entrada de aproximadamente meio milhão de imigrantes brasileiros, entre eles a grande maioria pequenos proprietários, meeiros, parceiros, parceleiros, arrendatários, posseiros, porcenteiros e bóias-frias que estavam sendo excluídos do processo de modernização agrícola no Brasil.

Os resultados dos planos de governo em relação às Marchas para o Oeste no Brasil, e a Marcha si hacia al Este no Paraguai atuaram em conjunto com um amplo movimento humano espontâneo, especialmente de despossuídos e que viriam em grande medida a formar o grupo de pessoas que em meados da década de 1980 fariam os movimentos organizados de retorno para o Brasil; os brasiguaios. A maneira como as políticas de marcha para as fronteiras de ambos os países se deu não constituiu uma solução para a questão da falta de terra no Brasil e nem necessariamente significou a inserção do povo paraguaio no Leste do seu país. Pois nessa colonização há uma grande parte de proprietários que fizeram a migração demográfica e a migração de capitais, tanto interno quanto externo, perpetuando a questão fundiária no Paraguai, perpassando-a do interesse político, característica marcante até então.

Atualmente esse movimento é legitimado pela grande propriedade privada para produção de exportação, multiplicando os latifúndios, promovendo novos contornos ao cenário rural e a paisagem cultural, com práticas diferentes e modernas de produção agrícola que apresentam transformações cotidianas no espaço fronteiriço. Outra particularidade marcante é a mobilidade humana em que a migração se tornou uma característica da região, e há algumas décadas ocorre de maneira perene nas fronteiras entre Brasil e Paraguai.

4. Modernização da agricultura no Brasil, desterritorialização e migração para o Paraguai

É importante definir o contexto espaçotemporal em que se insere a migração brasileira para o Paraguai, para compreender a dinâmica da expansão da fronteira agrícola e da luta pela terra. A fronteira como demostrado até aqui, foi alvo de disputas e lutas pela terra desde antes da independência. Essa área é historicamente instável demográfica e economicamente, com trocas de mercadorias sem regularidade e mudanças na dinâmica populacional. A migração de brasileiros para o Paraguai até a década de 1960 foi menos expressiva, do que após 1970 com a modernização da agricultura. A partir desta década, o avanço da fronteira agrícola na região Sul do Brasil, através da chamada revolução Verde e a entrada de monoculturas da soja, milho e a expansão da pecuária, levou milhares de empresários e trabalhadores brasileiros para o leste paraguaio, nos departamentos limítrofes com o Brasil.

Para Haesbaert e Bárbara (2001), no Paraguai as extensas áreas de mata e terra-roxa atraíram os colonos brasileiros, especialmente do Sul, em busca de novas áreas para a agricultura. Pequenos produtores cruzaram os rios Paraguai e Paraná estabelecendo colônias com o avanço da migração. Como vimos com a Marcha se hace al Este, a partir dos anos 60, veio se somar ao interesse de empresários brasileiros que, principalmente com a expansão da soja, buscavam terras férteis e baratas para plantar. “Foi assim que se desencadeou a devastação florestal do leste paraguaio, hoje quase completamente tomado pelas grandes lavouras de soja e povoado por cerca de 350 mil brasileiros” (Haesbaert; Bárbara, 2001: p. 7).

No Sul do Brasil as transformações técnicas criaram, na década de 1970, um processo de desterritorialização por meio da formação de um contingente de ex-proprietários transformados em assalariados, delineando expropriação, desenraizamento e migração. No Paraná, esse período se caracterizou pelo fechamento da fronteira agrícola que vinha se desenvolvendo desde a década de 1940 com migração de sul-rio-grandenses e catarinenses (Mondardo, 2011).

Para Magalhães et al. (1984, p. 2004), a modernização da agricultura se manifestou com a introdução de novas relações de trabalho, na medida em que esta implicou a constituição do trabalho rural assalariado e, portanto, o desaparecimento das formas que o antecederam: colonato, parceria e arrendamento. Essas categorias foram as mais vulneráveis dentro do processo, pois se constituíram basicamente no contingente que migrou da zona rural.

Para Feres (1990), no final da década de 1970, a modernização tecnológica fez sentir exatamente o seu preço para os pequenos produtores, resultando na desterritorialização: o pequeno produtor, não podendo enfrentar os custos dos investimentos, entra na espiral de empobrecimento acelerado, terminando por ser expelido do processo de produção com a perda da terra pelo endividamento e/ou por não conseguir mais acompanhar a modernização, portanto, arrasadora, perversa e seletiva. Este processo já se fazia sentir, em 1978, no Sudoeste paranaense, “quando o Cadastro do INCRA acusava uma queda de 6,5% do número de estabelecimentos rurais” (Feres, 1990: 523). Com isso, verifica-se a redução da população rural e o aumento da urbana e seu desdobramento imediato, havendo a migração para outros estados brasileiros e até mesmo para outros países, como, por exemplo, Argentina e Paraguai.

De acordo com Magalhães, com o processo de modernização da agricultura ocorreu um movimento migratório de gaúchos (migrantes do Sul do Brasil) para fora das fronteiras estaduais, destinando-se também às terras paraguaias.

“Ocorrendo somente ao final da década de 60, numa segunda etapa desse processo, afluem os migrantes originários do Sul do Brasil, principalmente das regiões Oeste e Sudoeste do Paraná. Os imigrantes de ambos os fluxos, os chamados brasiguaios, eram, em sua maioria, desprovidos de posses e, via de regra, se inseriram na estrutura de produção agrícola paraguaia como agregados, parceiros, arrendatários ou assalariados”. (Magalhães, 1996: p. 48)

As informações quantitativas de imigrantes brasileiros no Paraguai são díspares e fragmentadas. Uma das estimativas é apresentada por Salim (1995), e permite uma aproximação da questão, pois, para a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, durante os anos 70.

“Os brasiguaios povoaram cerca de um quarto do território paraguaio. Entre 1972 e 1977, esses imigrantes foram constituídos por 63% de paranaenses, 18% de catarinenses, 12% de gaúchos de 7% de mineiros e nordestinos. Em 1975, eles eram 40 mil no Paraguai. Em 1982, subiram para 250 mil, espalhados nas 24 principais colônias. No governo do presidente Figueiredo atingiram a cifra recorde de 500 mil” (Salim, 1995)

Zaar (2001: p. 10) afirma que, segundo os dados apresentados pelo Ministério de Relações Exteriores do Brasil.

“Viviam no final da década de 1990, na República do Paraguai, 459.000 brasileiros. Os dados de Censos mais recentes se referem a 98.000 brasileiros em situação legal e a imprensa vem trabalhando com uma cifra de 350.000 não regularizados. Estes brasileiros, legalizados ou não, representam oito décimas partes dos habitantes do Estado do Alto Paraná e seis por cento da população total do Paraguai e são responsáveis por oitenta por cento da soja produzida naquele País”.

Podemos dizer que o fluxo migratório mais intenso para o Paraguai teve origem, em parte, no estado do Paraná, demonstrando o lado expansionista e também perverso da modernização da agricultura difundido, concreta e abstratamente, sob a égide do projeto econômico e político do governo militar. Assim, a partir da década de 1960 o fluxo gaúcho foi retomado e fortalecido, quando o fechamento da fronteira agrícola nesta região do país promovido pela concentração das terras e a divisão excessiva dos minifúndios, direcionará a expansão desta fronteira para o Paraguai. O leste do Paraguai se destaca pela fertilidade agrícola. Nessa área deu-se início ao mesmo processo de devastação ambiental do Sul do Brasil, com o desmatamento para as lavouras.

A facilidade de aquisição das terras pelo baixo preço estimulou a migração de sulistas que formaram, no primeiro momento, pequenas, médias e grandes propriedades. É importante ressaltar que nessa mobilidade gaúcha para o Paraguai deslocaram-se sujeitos de variadas classes sociais, de fazendeiros a sem-terras. Esses últimos já sofriam o processo de desterritorialização no Sul do Brasil e migravam em busca de terras para a sua reprodução enquanto camponeses/agricultores familiares. Foi desse modo que muitos sulistas, notadamente, minifundiários, foram atraídos, de acordo com Mondardo (2018), pelo baixo preço das terras nas décadas de 1960 até 1980, fertilidade do solo e baixos impostos, incentivaram a migração de sulistas para os Departamentos de Amambay, Concepión, Alto Paraná e Canindeyú. Um fazendeiro gaúcho afirmou que na década de 1970 “a terra do Paraná pra cá [Paraguai] era de vinte por um” (Fazendeiro “gaúcho”, Dourados - MS, 26/01/2012).

Essa frente de colonização e exploração teve na região de Santa Rita e adjacências a primeira concentração de sulistas na produção agrícola. Santa Rita é um município paraguaio com presença densa e marcante de migrantes brasileiros que chegaram a partir da década de 1970. Está localizado em uma zona que originalmente possuía extensas florestas e terras férteis. Em 1990 foi emancipado, por influência do crescimento econômico do agronegócio e das influências políticas dos brasileiros. É importante ressaltar que a colonização oficial nessa região para a chegada de brasileiros não se deu sem conflitos. O Estado Paraguaio durante o governo de Stroessner promoveu a remoção compulsória de camponeses e de comunidades indígenas (Souchaud, 2002; 2007).

É importante reforçar que em âmbito legislativo o Estado paraguaio anulou a lei que proibia a compra de terras por estrangeiros nos 50 km de sua faixa de fronteira em 1967. Como já assinalamos, a medida visou facilitar e ampliar a entrada de migrantes, com a implementação na segunda metade do século XX, de obras de infraestrutura, como a criação da cidade de Presidente Stroessner (1957), que passou a ser chamada de Ciudad del Este (1989); construção da Ponte Internacional da Amizade (1962); abertura da Ruta Nacional que passou a ligar Ciudad del Este a Assunção, conectando com a BR-277, no estado do Paraná e com o Porto de Paranaguá, onde o Paraguai atuava; assinatura do Tratado de Itaipu (1973) e do Tratado de Amizade e Cooperação (1975).

Concomitante ao processo de modernização agrícola, a formação da represa de Itaipu desterritorializou pequenos agricultores da região Oeste do Paraná. Durante a década de 1970, a partir do I e do II Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, foi assinado o Tratado de Itaipu entre as Repúblicas do Brasil e do Paraguai, em 23 de abril de 1973. Este previa o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná, pertencentes aos dois países. Esse tratado bilateral viabilizou a construção da Hidrelétrica Binacional de Itaipu. O reservatório inundou 1.460 km² de áreas lindeiras ao Rio Paraná. Destes, 835 km² foram do lado brasileiro, e 625 km² do lado paraguaio. A construção da barragem e do lago expulsou milhares de agricultores familiares – colonos, em sua maioria – localizados às margens do Rio Paraná. Germani (1982), utilizando dados da Binacional Itaipu, afirma que 42.000 brasileiros foram expropriados e indenizados, sendo que destes 38.000 eram residentes na área rural.

Neste mesmo cenário há a emergência dos brasiguaios na fronteira (Sprandel, 1996), embora o termo surge em acepção da luta pela terra, especialmente de migrantes sem-terra que retornavam do Paraguai em meados da década de 1980 e se reterritorializavam em acampamentos às margens de rodovias ou em áreas do Movimento de Sem Terras brasileiro. Com o passar do tempo, o termo ganhou outros sentidos, se manifestando em território brasileiro e paraguaio, em ambos os lados da fronteira internacional. A predominância das ações se dava na luta pela terra, mas também ocorriam/ocorrem outros conflitos, como a permanente negociação identitária, a luta pela manutenção da memória, nas manifestações culturais, e em determinados momentos de maior incidência ganhou até a conotação de condição de classe, como sendo os megaempresários brasileiros do agronegócio.

Sobre esse processo “transidentitário” dos brasiguaios, Haesbaert e Bárbara (2001) afirmaram que:

“(...) em meados da década de 80, quando famílias de brasileiros sem terras chegaram a Mundo Novo (MS), oriundas do Paraguai, ativaram a identidade “brasiguaios” como uma estratégia de homogeneização interna do grupo migrante e diferenciação frente a outros movimentos sociais já atuantes no Brasil (o MST, por exemplo). O principal objetivo desses camponeses ― ao enfatizar sua nacionalidade e seu sofrimento no Paraguai ― era sensibilizar a opinião pública e pressionar o governo do Brasil para conseguir assentamento em território brasileiro. Porém, atualmente, para setores a imprensa (como a revista Veja e o jornal Folha de São Paulo), a identidade “brasiguaios” abrange todos os brasileiros que vivem no Paraguai. Ela serviria para definir desde o brasileiro sem-terra no Paraguai, que hoje volta para o Brasil, até os brasileiros que continuam no Paraguai “lutando pela terra”. Declarações, reforçadas pela imprensa, de que está ocorrendo um “clima de limpeza étnica” contra todos os “brasiguaios”, ou de como o Paraguai seria um novo Kosovo” (nas palavras de um vereador de San Alberto), fazem crer que, supostamente, a mobilização dos camponeses sem terras paraguaios (que tomaram a praça central e a prefeitura de San Alberto em 1999) são os principais responsáveis pelo retorno apressado ao Brasil de centenas de “brasiguaios”. Na maioria das vezes, porém, para os representantes das classes dominantes, a identidade “brasiguaios” é tida como estigma para aquele que a carrega. Os “brasiguaios” que retornam ao Brasil são tidos como os fracassados, os miseráveis, os sem-terra, incapazes etc. Não resta dúvida que os camponeses sem-terra paraguaios, mesmo que de forma velada, têm mobilizado sua identidade nacional, utilizando de forma estratégica o sentimento de pertencimento ao território do Paraguai para fortalecerem sua resistência frente à presença de agricultores brasileiros (chamados genericamente de “imperialistas” em San Alberto). Porém, em um Paraguai ainda recentemente democratizado, contraditoriamente, à medida que os camponeses sem terras atuam, parecem reforçar ainda mais a hegemonia dos grandes agricultores de soja, ou seja, de uma pequena fração, altamente globalizada, dos imigrantes brasileiros que residem no Paraguai”. (Haesbaert; Bárbara, 2001: p. 9-10)

Com o acirramento desses conflitos, eram recorrentes os assassinatos de camponeses, de carperos[14], brasiguaios e de indígenas na faixa de fronteira do Paraguai, 50 km do limite internacional, mas que se projeta enquanto zona de conflito fundiário até aproximadamente 250 km da capital Assunção. A fronteira revela uma antiga disputa pela propriedade da terra no Paraguai, país marcado pela desigualdade social, pela disputa de recursos naturais. No contexto latino-americano, o Paraguai, desde a década de 1970, com a migração brasileira de colonos da região Sul do Brasil, a expansão e implantação do agronegócio, a mobilidade de fazendeiros sulistas, em sua maioria, tem desencadeado conflitos fundiários, ambientais e identitários. É comum ler em jornais locais na fronteira entre os dois países, que o “Paraguai está sentado em um barril de pólvora”, tendo em vista a violência, os assassinatos, confrontos e conflitos oriundos entre camponeses, sem-terras e fazendeiros.

A chamada Liga de Carperos, organização de camponeses sem-terra, protagonizaram ocupações de fazendas durante o governo do Presidente Fernando Lugo (15/08/2008 à 22/06/2012) em áreas de plantações de soja do Alto Paraná, Departamento paraguaio com grandes extensões de propriedade dos chamados brasiguaios, ricos agricultores brasileiros instalados na região mais fértil do Paraguai há cerca de 40 anos. O então presidente Lugo foi acusado de ser padrinho dos carperos e estimulado as ocupações num movimento dos sem-terra paraguaios que buscavam retomar as áreas invadidas por fazendeiros brasileiros que expandiram do Brasil para o Paraguai as suas plantações de soja. Devido a esse apoio aos movimentos sociais, dentre outras questões, no dia 22 de junho de 2012, o presidente foi destituído do cargo pelo Senado, depois de um rápido julgamento político, sendo substituído pelo vice-presidente Federico Franco. Lugo declarou que considerava o impeachment como um golpe devido seu governo assumir ser progressista em meio a uma onda crescente do neoliberalismo.

No contexto latino-americano, em relação à land grabbing (corrida/dominação global de terras), no Paraguai contemporâneo é possível afirmar que a verticalização de ações corporativas no mercado de terras, retrata o processo de deslocamento espacial e setorial de investimento do capital financeiro e agrícola para o mercado de terras. Verificamos que esse movimento de expansão sobre as terras no Paraguai, ocorre hoje sob o controle de um pequeno grupo de empresas que está estruturando-se financeiramente e organizacionalmente para a obtenção de rendimento econômico a partir das práticas de especulação fundiária. Se em um primeiro momento (décadas de 1970, 1980 e 1990) essa área de fronteira internacional atraiu a participação no mercado de terras da região pelo baixo preço das mesmas, atualmente tem-se observado a elevação substancial delas, tornando-se centro de disputas entre grupos e setores de investimentos ligados ao agronegócio. Com isso ocorre um processo marcado pela mobilidade de capital, mas se reveste de modernidade, que se utiliza por meio da despossessão (Harvey), do roubo, da fraude e da violência no estágio neoliberal do capitalismo nesse processo de expansão territorial.

Nesse processo, de acordo com Mondardo e Azevedo (2019), merece destaque a ação da BrasilAgro que possui fazendas no Nordeste brasileiro, particularmente localizadas em Bahia, Maranhão e Piauí. Esse grupo configura-se na contemporaneidade como a primeira imobiliária agrícola trasnacional que avança seus domínios além do território nacional, isto porque, tem ampliado sua ação junto ao Paraguai, especialmente em Boquerón, área onde incorporou mais de 141 mil hectares. Em sua especulação em escala global, para além das fronteiras nacionais, “do Chaco paraguaio ao Nordeste brasileiro”, são mais de 15 propriedades sob o controle da empresa que vem obtendo lucros extraordinários com a exploração da terra (Bassi, 2018).

Segundo Bassi (2018) somente na safra 2017/18 a empresa faturou 54 milhões de dólares. Essa atuação demonstra uma nova forma de explorar a terra baseada em um sistema conhecido como pool de siembras que consiste em adquirir terras como ativo financeiro e, a partir disto, um grupo de investidores responsável pela compra passa a produzir commodities, tais como: soja, milho, cana-de-açúcar, pastagens, eucalipto, dentre outros, de tal sorte que em seguida vende-se a fazenda em operação e reinicia-se o processo em outra. Trata-se de uma das maneiras mais velozes de valorização e revalorização de terras por meio de negócios na seara do agronegócio globalizado em seu processo de expansão territorial na chamada “República da soja”.

Figura N°2: República da Soja: propaganda da Syngenta no Paraguai

Fonte: Bassi, 2018.

5. A tensão entre territorialidades na fronteira do Paraguai com o Brasil: o conflito entre brasiguaios e carperos

A entrada de brasileiros no Paraguai ocorreu por dois principais motivos, devido a construção da hidrelétrica, pois necessitou muitos homens, pesquisas mostram em torno de 40 mil homens (Germani, 2003), alguns destes, após a construção da obra, migraram para o país em busca de terras e de trabalho, pois levou-se em conta que o preço de terras no Paraguai era mais barato que no Brasil; o outro é que com a construção da hidrelétrica, alguns agricultores do Paraná, tiveram suas propriedades inundadas pelo lago da barragem e receberam indenizações insuficientes para a compra de novas terras no Brasil. Embora os dados que a Itaipu dispõe sobre a migração de pessoas das áreas de alagamento mostre que a maioria desses agricultores permaneceu morando no Paraná, nos anos posteriores há uma nova migração desse contingente, a partir dessa nova migração a Binacional não acompanha mais os dados do primeiro momento, perdendo de vista a dinâmica migratória que o alagamento causou.

Segundo Zibechi (2012), estudos demonstram que os “brasiguaios são responsáveis por 90% da soja paraguaia, quarto maior exportador do mundo, com 2.800.000 hectares cultivados, e asseguram que eles possuem 55% da terra cultivável no país”. (p. 255). E que “os brasileiros possuem 13% da área do Paraguai e pouco mais de 20% da terra arável. Mas são deles a melhor terra agrícola e pecuária”. (p. 257). Nesse processo de expansão territorial da agricultura brasileira o Paraguai é considerado como uma extensão da área de produção agrícola brasileira, e isso desencadeou inúmeros conflitos envolvendo carperos, indígenas, camponeses e fazendeiros brasiguaios, além de migrantes pobres brasiguaios. Lugo procurou resolver o conflito de terras sem repressão, deixando a questão nas mãos da Justiça. Mas sem intervenção da polícia, as ordens judiciais para desocupar as terras não eram cumpridas. Foi um conflito de terra que desencadeou a queda de Lugo. No dia 15 de junho de 2012, um enfrentamento entre policiais e sem-terras, no interior do país, resultou na morte de 17 pessoas. O Congresso acusou Lugo de mau desempenho e o submeteu a julgamento político. Uma semana depois do massacre, ele foi destituído e substituído pelo vice, Federico Franco, político conservador do Partido Liberal Radical Autêntico.

Em 2012, carperos ocuparam fazendas de um brasileiro, naturalizado paraguaio, megaempresário do agronegócio e que ficou conhecido como rei da soja. Como dizem “no Paraguai o rei da soja é Paraguaio”. Sobre a vitória de Lugo nas eleições e conflitos na luta pela terra, Zibechi (2012) afirma que:

“Lugo venceu as eleições em 20 de abril e se tornou presidente em 15 de agosto de 2008. (...) fez como bispo que apoiava os camponeses em luta pela reforma agrária. Durante a campanha eleitoral prometeu recuperar a soberania energética e dar terras aos camponeses. O clima de euforia popular com que chegou à presidência impulsionou uma onda de ocupações de terra, especialmente nos departamentos fronteiriços de Itapúa, Alto Paraná, San Pedro, Concepción, Amambay e Canindeyú. Estes ricos campos atapetados de soja, redutos da agricultura familiar e da potente tradição camponesa paraguaia, que nutriu a candidatura bem sucedida de Lugo. Mas estas terras são agora de brasileiros. (...) O brasiguaio mais famoso se chama Tranquilo Favero, o maior produtor individual de soja do Paraguai, com pelo menos 40 mil hectares, 40 mil cabeças de gado, 1.500 trabalhadores e terras em 13 dos 17 departamentos do país. Favero nasceu no Paraná e se instalou no Paraguai, em 1968, durante a ditadura, em um momento em que a terra valia dez vezes menos do que em seu país natal. A maior parte de suas terras está nos departamentos que fazem fronteira com o Brasil, e foram ocupadas por diversas vezes pelos movimentos camponeses. Em outubro de 2008, cinco semanas após Lugo tomar posse, cerca de quatro mil camponeses se mobilizaram na frente de uma das propriedades de Tranquilo Favero, derrubaram as cercas e ameaçaram queimar um de seus 30 silos”. (Zibechi, 2012: p. 254-255)

Alegavam que os títulos de propriedade dos produtores brasileiros eram falsos. Segundo movimentos sociais ligados à reforma agrária, e as fontes provindas da CVJ, terras do estado foram vendidas de forma irregular no Paraguai desde o início do governo Stroessner. Os brasiguaios dizem que compraram as terras de boa-fé e que investiram tempo, trabalho e dinheiro para torná-las produtivas.

Os carperos, alegam que os documentos de posse das terras onde estão os fazendeiros brasiguaios são falsos ou adulterados, resultados de processos de grilagem e expulsão. Essas fazendas foram adquiridas ilegalmente, pois teriam sido usadas para fins de reforma agrária e não de compra pelos brasiguaios. Por isso, lutam pela revisão dos títulos das propriedades rurais adquiridas pelos brasiguaios nos últimos 40 anos. Estima-se que esse processo engloba aproximadamente 10 mil fazendeiros brasiguaios que possuem terras na região de fronteira com o Brasil, como em Itapúa, Alto Paraná, Canindeyú, São Pedro, Caaguazú, Guairá e Caazapá.

Por outro lado, os brasiguaios afirmam que são vítimas dos carperos, que invadem suas terras, saqueiam suas lavouras e roubam o gado. Os fazendeiros brasiguaios reivindicam segurança jurídica em respeito à propriedade privada, e garantia da permanência dos colonos brasileiros ou brasiguaios em suas terras no Paraguai. Um dos fazendeiros que entrevistamos contou um pouco sobre esse processo conflituoso que vive em suas terras no Paraguai:

“Então vinha gente do interior do Paraguai, eram tudo meio lento, um pessoal que não sabia trabalhar, mais eram sério, era gente boa. Hoje não, hoje o interior do Paraguai são mais malandros do que (...). Porque aquele tempo eles vinham pra trabalhar e eles respeitavam o patrão, hoje não existe mais isso ai. Hoje com esse novo presidente do Paraguai as invasões de terra que eles fazem, e eles tem o apoio, isso tudo no Paraguai o menos ladrão é receptador – os paraguaios, esses campesinos, esses povo aí. Eu tenho fazenda lá, o que eu passo o que eu sofro ali, porque tem vizinho lá, ele compra tudo, então manda fazer uma cerca eles empreitam pra fazer uma cerca, não fazem o trabalho, eles pegam levam o arame, pra fazer a cerca tem que levar o arame, mas se sobra alguma coisa é trocado por pinga lá com o vizinho, nos cochos dos animais que tem um depósito de sal desaparecia o sal, mas aparecia, depois apareceu na região dele apareceu porque era só aquela marca, só nós que comprávamos na região, só nós que comprávamos, aparecia na região dele”. (Entrevista: Pecuarista brasiguaio, Dourados – MS, 15/12/2012)

Além da disputa fundiária, os paraguaios na fronteira estão perdendo a predominância econômica, política e cultural, pois a influência dos fazendeiros brasiguaios na região é muito grande. Os brasiguaios são acusados de territorializar a cultura brasileira como a própria moeda, eleger políticos que representam este grupo e seus interesses, criam escolas e ensinam na língua portuguesa e tornaram-se donos das melhores terras que é o principal recurso natural da região. Por sua vez, com isso, os carperos além de colocar em risco sua identidade nacional, estão sendo segregados em espaços inferiores, e acusam os brasiguaios de não se integrarem a cultura paraguaia. Nesse conflito, os brasiguaios falam que seus filhos sofrem discriminação nas escolas paraguaias, bem como com a intimidação das autoridades da imigração e policiais (Albuquerque, 2010).

A questão dos brasiguaios envolve dois aspectos: o processo migratório e o aspecto fundiário da propriedade de terras. Existe um grande número de brasiguaios que estão sem documentação e com a situação migratória não regularizada. O processo da regularização fundiária está atrelado a regularização migratória dos brasiguaios. A situação migratória irregular inviabiliza a regularização fundiária na fronteira. Além disso, o país não conta com uma política efetiva de cadastramento rural e de georreferenciamento das propriedades da terra. Isso faz com que a irregularidade jurídica e social prevaleça, deixando evidente o problema da terra no Paraguai. Embora a questão deste conflito tenha que ser tratada de maneira bilateral entre os países, os carperos lutam pela reforma agrária, enquanto os colonos brasileiros e fazendeiros brasiguaios reivindicam a segurança jurídica e a permanência em suas áreas. Por isso, é importante deixar claro que esse conflito territorial é fundiário e agrário e não diplomático.

Atualmente um local de conflitos agudos entre brasiguaios e carperos tem sido Ñacunday, localizado no departamento do Alto Paraná, a 95 km de Foz do Iguaçu. Os sem-terra reivindicam parte das terras que estão hoje em posse de brasileiros, como de megaempresários brasiguaios, afirmando que houve ilegalidades no processo fundiário. Na região do Alto Paraná, os camponeses reivindicam 167 mil hectares de terras, localizadas na faixa de fronteira com o Brasil. Alegam que se trata apenas de uma parte dos quase 300 mil hectares de propriedades cuja titularidade nunca saiu das mãos do Estado. Terras públicas que teriam sido usurpadas por grileiros brasileiros. Segundo o governo paraguaio, os problemas apontados pelos produtores rurais decorrem de uma tentativa de reforma agrária malsucedida e que envolveu transações irregulares de títulos e marcações de terra equivocadas. Com isso, não é incomum que uma propriedade rural possua vários títulos, cada qual figurando com outro proprietário, ocasionando assim a sobreposição territorial de escrituras rurais em relação a uma mesma área, essa constatação dá margem para que os conflitos se acirram ainda mais, pois cada pessoa interessada e possuidora de tal escritura entende que o documento emitido de forma irregular possui legitimidade, fomentando ainda mais os conflitos.

6. Considerações finais

A situação fundiária paraguaia possui seus dilemas desde o início do movimento de independência, perpassando por diferentes modelos de mandos e de mandatários políticos, que pouco, ou nada fizeram para inserir o campesino paraguaio na discussão sobre a questão de terras, prática essa que lhe permitiria a própria independência econômica, fortalecendo assim os caracteres identitários, as manifestações culturais, promovendo o espaço social e de cultivo no país.

Com o passar dos tempos essa situação se agravou ainda mais, com uma classe política dominante corrupta e com a atuação de governos, modelos e longos períodos ditatoriais em que os povos da terra acabaram sendo os agentes históricos com maiores chances de serem perseguidos, presos, torturados e mortos. O saldo da ditadura é muito bem expresso nos informes da Comisión de Verdad y Justicia do Paraguai, onde podemos ver ainda como e para quem eram destinadas as concessões de grandes parcelas de terras mal habidas, ou seja, para pessoas que não eram sujeitos aptos para a aquisição. No final do século XX, após 35 anos de ditadura e quase 7 milhões de hectares de terras distribuídas aos amigos mais próximos, Stroessner saiu do poder. Na transição para a democracia na passagem do século XX para o XXI com um período aproximado de 14 anos, quase 1 milhão de hectares de terras ainda são distribuídas aos não sujeitos da reforma agrária no país.

Sendo assim, o Paraguai se configura com vastas extensões de terras sem paraguaios, e uma extensão ainda maior de paraguaios sem terras. Atualmente, segundo as estatísticas da Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos (DGEEC), o país produz um montante de 9.000 famílias rurais de paraguaios por ano que migram para as periferias das grandes cidades paraguaias, fazendo com que o Paraguai seja um dos países latino-americanos marcados profundamente pela desigualdade social.

Segundo dados da Cepal (2014), a pobreza no Paraguai atingiu em 2013, 40,7% de sua população de 6,466 milhões de habitantes, dos quais 19,2% estão abaixo da linha de pobreza em situação de indigência, e apresenta incidência superior da pobreza de 45% na sua linha de base de pobreza. Contraditoriamente, em 2013, o Paraguai cresceu 13,9%, sendo um dos países que economicamente mais cresceu no mundo, fazendo com que sua fama de Tigre Guarani, pela transformação econômica, aumentasse ainda mais.

Por isso o Paraguai tem sido visto na contemporaneidade como terra de oportunidades. O país se transformou economicamente em um dos principais destinos de investidores na América do Sul. A simplificação tributária, estabilidade econômica, custos competitivos e mão de obra mais barata fazem o espaço paraguaio terra fértil para produtores rurais e agroindústrias brasileiras. Contudo, é sabido que o Paraguai ainda é extremamente dependente do Brasil, sobretudo em matéria de infraestrutura logística para escoamento da produção como estradas, pontes e portos. Apesar destes dados considerados positivos sobre o processo de expansão territorial da agricultura moderna é importante termos a clareza da incidência brasileira no Paraguai, nos últimos anos os fazendeiros de soja, empreendedores rurais, empresas multinacionais ligadas ao agronegócio e a pecuária tem sido responsáveis diretos pelo crescimento econômico do país. Nessa reprimarização da economia paraguaia, o principal destino das exportações tem sido a China.

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