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ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS JUVENIS NA CIDADE6
ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS JUVENIS NA CIDADE6
Cadernos do LEPAARQ (UFPEL), vol. 1, núm. 1, 2004
Universidade Federal de Pelotas
Resumo: Apresenta-se a etnografia dos espaços de sociabilidade dos jovens na cidade, a qual figura como uma crônica de Pelotas: a Avenida, a Avenida da Praia do Laranjal e o Bar Farol foram os lugares indicados pelos informantes – jovens de 15 a 19 anos de camadas médias. Na Avenida, observa-se o encontro de uma multidão de conhecidos, onde misturam idades e classes sociais, evidenciando as “marcas de pessoalidade” no convite ao olhar o movimento. Distinguem-se os espaços tradicionais daqueles da moda, referências embora compartilhadas por todos, circunscrevem diferentemente indivíduos e redes sociais na cidade. Onde, ganham centralidade os aspectos de geração e gênero, observando-se o pronunciamento do controle sobre os jovens em um contexto de camadas médias do interior.
Palavras-chave: Cidade, Juventude, Sociabilidade.
Abstract: The ethnography presents the spaces of intense sociability of young people in the city, which figures as a chronic of Pelotas: the Avenue, Laranjal Beach Avenue and Farol Bar. These places were indicated by the informers - young people between 15 and 19 years old come from middle classes. In the Avenue, it notices the meeting with a crowd acquaintances where mix the ages and the social classes, demonstrating the "personal marks" in the invitation to take a look at the movement. Traditional spaces distinguish from fashion spaces. Although everyone shares these references, they constitute differently the people and the social network in the city. Therefore, the generation and gender aspects become important issues in order to observe the pronounced control of young people in a context of interior middle layers.
Keywords: City, Youth, Sociability.
Apresenta-se, neste artigo, a etnografia das formas de sociabilidade dos jovens na cidade com o objetivo de discutir as continuidades e rupturas presentes nas relações geracionais. A cidade é o lugar da investigação, ao invés de seu objeto (DURHAM, 1986). O lugar, conforme Augé (1994) é uma construção simbólica e concreta do espaço que se caracteriza por ser identitário, relacional e histórico. Contém os princípios de sentido de quem o habita, localizando indivíduo e redes sociais em trajetos e territórios. Seus marcos são históricos, evidenciando a dimensão vivencial. É no lugar antropológico que informante e pesquisador se encontram.
A sociabilidade, em sua acepção simmeliana, é conceituada como uma forma autônoma de associação que tem valor por si mesma, em função “do interesse e apreço pela proximidade com os outros e, também, por desfazer a solidão da distância” (VELHO citando SIMMEL, 1986: 13), o que recobre os riscos e as intenções das interações. A sociabilidade se encontra liberada de motivações e interesses específicos para além do fato social.
Recorre-se, novamente a esse autor, em função da correspondência indicada entre juventude e aventura (SIMMEL, 1934), objetivando descrever o “tom” desta sociabilidade entre jovens em Pelotas. A aventura, para Simmel, configura a subjetividade da juventude, caracterizada pelo excesso de vitalidade, pela importância que assume o tempo presente e a intensidade da experiência. A aventura rompe com o mundo ordinário – no caso, com o disciplinamento da escola – apresentando-se como imprevisível, embora guarde, segundo o autor, uma relação de necessidade com o sentido de existir. Com essa proposição, busca-se contemplar a particularidade destas relações sociais nessa idade da vida, em que a intensidade da experiência é compartilhada entre os pares.
Considera-se aqui a discussão da influência do grupo de pares sobre o jovem. Conforme observa Mead (1970), em sociedades modernas8, a referência passa a ser o grupo de pares, marcando-se um distanciamento das vivências geracionais. A experiência de vida dos filhos é tão diversa da dos pais que esses não tem condições de se colocar como modelos de ação para os jovens.
A sociedade moderna é caracterizada a partir do pressuposto da heterogeneidade cultural devido ao mundo estar “em contato”, bem como, a partir de uma “fé” na mudança. A experiência geracional, nesse contexto, é vivida como ruptura. Tais conflitos são endêmicos a esta configuração cultural na medida em que entende que o mundo dos adultos não é o mesmo dos filhos.
Tal esquema, conforme Salem (1980) questiona o determinismo da família como agente exclusivo na formação dos jovens. Todavia a influência do grupo de pares, substitui a família nas mesmas proporções. Equivocadamente, pensa-se em uma ruptura radical entre as gerações assentado no pressuposto de que a experiência de vida dos mais velhos não se modifica, sendo imutável frente à vida. Salem (1980) propõe investigar os conflitos geracionais no que eles evidenciam rupturas e continuidades com relação à pauta normativa da família ou das gerações precedentes. Relativiza-se os sucessivos confrontos entre o velho e o novo, reconhecendo as influências recíprocas entre as gerações que não apresentam fronteiras rigidamente traçadas.
Nesse sentido, argumenta-se a respeito da importância da discussão da etnografia dos espaços de sociabilidade dos jovens na cidade. No que permite não restringir a análise às relações entre o grupo de pares, mesmo que proeminentes nesta fase do ciclo de vida. Subverte-se a lógica da fragmentação, esboçada a partir de uma sociabilidade densa, em que as diferentes idades e classes sociais se encontram na “Avenida” para “olhar o movimento”.
A indicação dos lugares observados em Pelotas foi dada pelos jovens investigados, seus freqüentadores. Essas referências, embora compartilhadas por todos, configuram formas diferenciadas de sociabilidade, circunscrevendo indivíduo e redes sociais na cidade. Assim, o passeio na Avenida Bento Gonçalves é o programa do final de semana: – A Avenida é o local que as pessoas se encontram no início da noite, para decidir onde ir depois (Felipe, 16 anos). Outros, porém, dizem não freqüentá-la, por acharem muita exposição; quando vão, é para dar uma volta de carro e olhar o movimento. Ou ainda; Márcia, 17 anos, geralmente vai à Avenida de turma, – Aí a gente vai, dá uma volta e vai em um barzinho. Encosta em um carro e fica conversando ali mesmo. Às vezes, a gente vai com o pai de uma amiga, aí eles ficam dentro do carro, o pai e a mãe dela, e a gente dá uma volta e fica no carro sentada, na frente do carro.
No verão, o movimento se transfere para a praia do Laranjal, o footing é feito na Avenida Augusto de Assumpção, a Avenida da Praia. Na temporada passada (verão, 1998), os jovens se encontravam à noite no Bar Figueira, espaço já tradicional da praia, depois iam ao Pool Bar, uma danceteria. Para outros: – A noite de Pelotas acabou, no verão a opção é o Cassino, lá a noite é agitada. Neste ano de 1999, o encontro no Bar Figueira acontece principalmente aos domingos, à tarde, programação que permanece durante o ano todo. Os bares têm vida efêmera, o Satolep fechou, no mesmo local abriu o Refinaria e o Tulha não é mais o lugar de encontro dos jovens.
A Avenida é um lugar tradicionalmente freqüentado na cidade, localizada na área central de Pelotas é acessível aos passeadores que se encontram nos bares, traillers ou simplesmente circulam de carro, consagra a sociabilidade de uma multidão que se vê em movimento. Nela repercute o que acontece na cidade: o engarrafamento de carros e o pequeno número de passeadores no canteiro central em certa noite, é indicativo da realização do Sambão no Clube Brilhante.
A vida da cidade se esboça através da dinâmica entre tradição e mudanças dos lugares e formas de sociabilidade. Conforme Park (1979), a cidade está enraizada no modo de vida de seus habitantes, a tradição estrutura regiões morais no interior dessa. Determina-se os espaços de sociabilidade pública, bem como o controle das interações. Considerando esta dinâmica: tem-se que o bar Patrimônio fecha na cidade e abre como Farol, no Laranjal. Onde era, no verão passado, o Canto da Lagoa, é hoje o Piratas, no Barro Duro. Os Bares Farol e Piratas concorrem pelo mesmo público de jovens de camadas médias, atualmente o Piratas só lota quando tem programado algum show ou festa, diferente do Farol. O Farol fecha no final da temporada de 99, seus donos abrem na cidade a casa noturna Lancelot, cavaleiro do rei Arthur. No verão seguinte, inaugura como lugar da moda o bar Mapa da Lagoa. Distingue-se os lugares tradicionais na cidade daqueles da moda, bem como, distingue-se cidade e praia, circuitos e ritmos que pautam a eleição da Avenida, da Avenida da Praia e dos Bares Figueira e Farol como os lugares de sociabilidade de jovens na cidade de Pelotas.
A AVENIDA –OLHANDO O MOVIMENTO
Um vaivém circular de automóveis, motos e passeadores congestiona as quatro quadras da Avenida Bento Gonçalves, entre as ruas Félix da Cunha e Osório, na área central de Pelotas. O trânsito é lento e intenso a partir das vinte e duas horas e trinta minutos, no percurso as sinaleiras dos cruzamentos organizam o fluxo dos carros, paradas que servem para olhar o movimento. Não raro, ocorrem pequenas colisões provocadas pelo descompasso entre o arranque do carro que está atrás com o da frente, que continua olhando o movimento. O fluxo de trânsito pela pista da esquerda, próxima ao canteiro, é mais lento. Ao contrário das convenções de trânsito, anda-se mais rápido pela direita. Em noites frias, o número de carros supera o número dos passeadores fazendo o footing, muitos conversam dentro do carro estacionado no canteiro.
Neste canteiro central, junto aos traillers de cachorro quente, os veículos estão estacionados em oblíquo, formam duas filas de carros posicionados de frente para a pista. Os passeadores vão e vem por este passeio central, entre as duas filas de carros estacionados, não raro, desviam dos carros que estão manobrando e das motos aceleradas. Uma cena que se repete a cada final de semana. O tráfego acontece nos dois sentidos, embora o espaço seja estreito para o trânsito em mão dupla. Geralmente quem está no volante são homens, o espaço é congestionado para as manobras, os carros freiam muito próximo dos passeadores, o ruído da aceleração das motos é intenso sugerindo a oportunidade de afirmação da destreza masculina e o reconhecimento social através de um bem de consumo que confere distinção. Ainda, o carro possibilita a experiência do isolamento social em meio à visibilidade do espaço público. É, nesse sentido, "fator de retração da sociabilidade" (SENNET, 1988). Um paradoxo moderno que condiz com a afirmação de não freqüentar a Avenida, mas “só passar”.
O movimento do canteiro é maior do que o da calçada, onde se localizam os bares e restaurantes da Avenida. Esses estabelecimentos geralmente têm grandes janelas proporcionando olhar o movimento; outros, como por exemplo a sorveteria Zum-Zum e a pizzaria Lob´s dispõem de mesinhas na calçada.
Observa-se as figuras de excesso que compõem as relações de sociabilidade entre jovens. É o excesso de carros na Avenida, o barulho das motos acelerando e freando em cima dos passeadores, as caixas de som nos porta-malas dos carros que amplificam a concorrência entre os diferentes estilos de música, o número de garrafas de cerveja sobre o capô dos carros, a atenção no movimento e intensa troca de olhares, etc. elementos que fazem parte do convite a dar uma volta na Avenida.
A loja drive-thru MacDonald’s é inaugurada em Pelotas em dezembro de 1998, localizando-se na Avenida, esquina Santa Cruz. Na medida em que é incorporada no passeio tradicional como um dos pontos a conferir, faz alterar o trajeto do trânsito dos carros, entre as ruas Félix da Cunha e Osório. Amplia-se o percurso em mais duas quadras, até a avenida Almirante Barroso. O trânsito dos passeadores também aumenta nestas quadras do canteiro. Em noites de maior movimento, os quatro bancos de cimento localizados no canteiro, em frente à loja, ficam ocupados, os passeadores estão à olhar o movimento do MacDonald’s
Grupos de homens e mulheres, jovens, crianças, casais, famílias cruzam o mesmo ponto cinco, seis vezes, vão e vem. Dois rapazes que antes passeavam de carro, estão a andar no canteiro central; outras duas jovens que estavam encostadas em um carro vermelho estacionado no canteiro, passam caminhando acompanhadas de outros dois jovens. O andar exige atenção para desviar dos carros e das motos, caminhar entre outras pessoas que passeiam em sentido contrário, cruzar pelas ruas perpendiculares ao canteiro central, onde o trânsito é intenso, e observar a agitação; caminham como se tivessem o compromisso de encontrar alguém mais a frente, o ritmo se alterna entre passos rápidos e o andar devagar. Geralmente não se caminha sozinho, é comum passear em turma; especialmente as jovens caminham conversando com as amigas. Os casais ganham visibilidade ao passearem de mãos dadas, cruzam por famílias que também passeiam na Avenida.
Na proposição de olhar o movimento os passeadores põem em prática as estratégias de serem vistos e ver os outros, de exibição e controle da vida dos outros. Percorrem um itinerário circular, que traz “o sentido do círculo, de espaço fechado voltado para si” (AUGÉ, 1994: 56). Onde se produzem familiaridades por freqüentar o mesmo lugar ou por conhecer o amigo do amigo, “marca da pessoalidade”. Celebra-se o encontro da multidão em uma cidade do interior, em sintonia com a função do espaço público de “mesclar pessoas e diversificar atividades” (SENNET, 1988). Os termos cidade e civilidade têm, conforme o autor, significado comum: o de estabelecer relações entre estranhos.
Acompanha-se no jornal local, os ritmos da cidade. Nos meses de novembro e dezembro, tem-se o “prenúncio do verão” já estampado nas manchetes, aproxima-se o período em que “a cidade invade a praia”.
A PRAIA DO LARANJAL –O FOOTING, O CALÇADÃO, A CONCENTRAÇÃO NO BAR FIGUEIRA
O passeio à tarde, na Avenida da Praia, para olhar o movimento é motivo para espairecer, é época de férias. Passar a tarde no Laranjal para encontrar os amigos, conversar e caminhar no calçadão, anima para o convívio social. Possibilidade que concorre com a retração das relações à esfera privada que caracteriza a vida urbana moderna (SENNET, 1988; CARVALHO, 1995).
Em contrário, sugere-se a existência de uma interação densa, comunitária, entre uma coletividade numerosa que se encontra no espaço público, de uma multidão que não é aquela anônima, tão pouco indistinta das cidades superpovoadas, sugerindo a sociabilidade na cidade do século XIX, que caracteriza a civilização do café (ARIÈS, 1981). Nos cafés as pessoas se encontravam para conversar, comer e beber, era o lugar do discurso, especialmente para os homens. Observa-se, conforme notação anterior, para além de uma sociabilidade masculina, a adesão das mulheres a esse estilo de vida urbano. Experiência comunicada também aos jovens que passam a partilhar dos ritos que mantém essa sociabilidade.
Nesse sentido, tem-se a Avenida Dr. Antônio Augusto Assumpção como um lugar de manifesta sociabilidade pública, onde os encontros se ritualizam nas constantes cenas de trocas recíprocas de cumprimentos, regra de civilidade posta em prática, entre os passeadores que caminham a pé, no calçadão, misturados em idade e condição social; “marcas de pessoalidade” local (PRADO, 1997). A cabeça se inclina em reverência, impõe-se o sorriso e o olhar para o rosto do outro, órgãos de apresentação de si que condensam a identidade social (BOURDIEU, 1995).
Abana-se com uma das mãos quando o conhecido está longe, e, ao conhecer o amigo de um amigo, os passeadores são apresentados uns para os outros: – Fulano, esta é a ciclana, lembra? Tu já conheces ela. Essa celebração faz parte do footing na Avenida, sem significar a interrupção da atividade, antes a pressupõe. O cumprimento é obrigatório, caso não observado serve ao jogo de constrangimento e vergonha entre homens e mulheres, a interação assume um “tom” jocoso quando, por exemplo, uma jovem passa por um grupo de rapazes, ela olha para o chão e não os cumprimenta, logo ouve-se o comentário em voz alta: – Como é fulana, não cumprimenta mais os colegas.
A constância da troca de saudação em que as pessoas se encontram e se reconhecem, contrasta com a flanerie (BENJAMIN, 1995) descrita pela errância de passeadores que se refugiam na multidão, abandonando-se no movimento, no burburinho da cidade para viver solitariamente. E propõe, ao contrário da idéia de anonimato, a de espetáculo coletivo produzido por estratégias de ser visto e ver, que tem como reverso o controle da vida do outro, matéria de fofoca. Observa-se o movimento: quem está na areia, quem também está caminhando, os carros que transitam na Avenida, bem como, avista-se a agitação dos bares do outro lado. Os olhares se cruzam sutilmente entre conhecidos de vista, de oi, de tantos encontros no Laranjal, redimensionando as redes sociais.
A Avenida da Praia se transforma então em uma passarela para os passeadores e seus carros, em número excessivo, que desfilam devagar, é um acontecimento da crônica da cidade, tal qual a descrição do jornal local:
No Santo Antônio e no Valverde, a Avenida Antônio Augusto de Assumpção – a Avenida da Praia – serviu de passarela para aqueles motoristas que estavam em busca de uma paquera. Com certeza encontraram a namorada certa, tal o número de mulheres bonitas que desfilavam pelo calçadão. (Diário da Manhã - Pelotas, 30.Dez.1998, Caderno Especial de Verão, p. 01).
Nessa convivência, as idades se misturam; adultos, jovens e crianças improvisam diferentes atividades. Aproveita-se para caminhar, as crianças brincam na areia e os jovens se concentram no bar Figueira.
O calçadão demarca o limite da praia, estendendo-se em praticamente toda a extensão dos balneários Valverde e Santo Antônio, do Trapiche ao Shopping Mar de Dentro, respectivamente. Figura como um espaço conjugado à Avenida e aos bares, é o lugar do footing, da “banda”, da caminhada a pé em devaneio. No calçadão não se caminha sozinho, anda-se devagar, conversando: – Ele me perguntou se eu tenho namorado, mas eu só quero ficar com ele, falam duas jovens. O percurso é circular, são várias as idas e vindas em que os passeadores se cruzam, trocam cumprimentos, param para falar com conhecidos, para comer crepe, espetinho, cachorro quente com “refri” nos bares, em meio aos vendedores. As trocas de olhares são rápidas e incessantes entre os jovens, aparenta-se uma atitude coquete que abriga certa cautela de não provocar uma recusa no outro.
A passagem da praia para o calçadão é ritualizada no ato de se vestir, principalmente as jovens vestem, por cima do biquíni, shorts, mini saia e camiseta, por vezes mantém a parte de cima, mas quem geralmente anda de roupa de banho são as crianças e os adultos. Já os rapazes caminham de calção ou bermuda larga, com ou sem camiseta, de chinelo ou pés descalços. Andam entre outros passeadores que freqüentam o Laranjal para fazer o footing. Nesse sentido, distingue-se um estilo jovem em que se sugere o quanto as vestimentas observam as regras de urbanidade, como se o calçadão fosse mais cidade do que praia.
A moda reúne tendências opostas: ao mesmo tempo em que iguala, pode individualizar, implicando-se nos processos de distinção ou imitação (SIMMEL, 1934). Enquanto imitação, coloca-se como fonte de segurança para o indivíduo, convertendo-se em produto de um grupo ao qual o indivíduo passa a pertencer. Assim, distinguem-se os jovens em meio a mistura das idades.
Atravessando o calçadão, os jovens se concentram na mureta do bar Figueira, de frente para a Avenida, que funciona em uma casa antiga, construída em 1950, e adaptada para restaurante: Dá uma beira aí?, o rapaz pede um lugar para sentar a uma jovem. Observam-se jovens, adultos e crianças no ambiente do bar, uma área aberta onde estão colocados mesas e bancos de pedra sob duas figueiras, enquanto que quem está sentado na mureta não tem a obrigação de consumir algo. Há muitas garrafas de cerveja sobre as mesas.
Mesmo durante o ano, o Bar Figueira é o programa dos domingos de tarde. Márcia, 17, também freqüenta o lugar:
– “Quando eu fui, eu fui na Figueira e no Farol. No verão assim em geral, agora no ano, no domingo”.
P: “Só no domingo...”
– “Tem mais movimento, eu acho. A gente encontra mais gente conhecida”.
P: “Tu dá volta no calçadão?”
– “Sempre, aí a gente fica na Figueira e dá outra voltinha...”.
Á tardinha, quando o sol baixa, é hora do cooper no calçadão, os corpos se retesam, não estão mais relaxados pela cadência do passeio. O ritmo se altera, a caminhada agora é rápida e constante, não se para ou se diminui a marcha para conversar com alguém. O tênis impera. Nesse momento, o número de pessoas no calçadão diminui, está escurecendo.
Neste ponto, distingue-se o trajeto dos passeadores entre as Avenidas da praia e da cidade. Na praia do Laranjal, o calçadão está localizado na lateral desse espaço, possibilitando ao olhar uma amplidão maior; ver a lagoa, quem está na praia, com quem se cruza no calçadão e para o vai-e-vem dos carros. Da mesma forma, diferem as temporalidades, o circuito do Laranjal se cumpre no dia, com uma caminhada de ritmo lento, em devaneio, em que dela fazem parte muitas paradas, pausas, para conversar com um conhecido. O movimento ao qual se convida a olhar é devagar, os corpos estão relaxados e as idades misturadas. Enquanto que, na Avenida da cidade, o passeio ocorre no canteiro central e o olhar está circunscrito pelo percurso dos carros. Configura-se como um espaço fechado que parece limitar o olhar. A noite se consagra como um regime de tempo demarcado pelas idéias de prazer (MAFESSOLI, 1984) e aventura. Nesse sentido, observa-se que o ritmo do passeio é mais intenso, os corpos dos passeadores parecem tensos como se estivessem atrasados para encontrar alguém logo mais à frente. Muitas são as figuras de excesso que povoam essa experiência. E, observa-se uma segmentação maior entre as idades, que se explicita através do mercado de bares da cidade. Vide os mapas:
O BAR FAROL – LUGAR DAMODA NO VERÃO DE 99
Na temporada de 1999, um novo bar assumiu o posto de ponto de encontro obrigatório dos jovens em Pelotas: o Farol é indicado como local de pesquisa necessário. Este bar pertence aos mesmos donos de um outro bar, o Patrimônio, que existia na cidade. Com isso, o bar se integra à estratégia de constante renovação de pontos, visando garantir a idéia de “bar da moda”.
Virgínia, 18, é freqüentadora do Farol:
– Agora, no verão, eu tenho ido no Farol, que abriu lá. Geralmente quando eu saio, eu saio lá. Sexta e sábado, eu vou prá lá e domingo de tarde eu vou prá Figueira. Até pelo fato, eu moro aqui, então eu não costumo sair lá na cidade. Fica difícil, o pai tem que buscar a gente e levar. Então, eu não costumo sair muito. No Patrimônio, eu fui umas duas vezes só.
Ou ainda,
– As minhas férias não começaram ainda, eu quero ver, não sei, se eu conseguir, no Farol. Porque umas quantas pessoas comentaram que é bom. Não sei, vamos ver dá... (Dulce, 17)
O bar Farol está localizado na continuidade da Avenida Augusto de Assumpção em um trecho sem pavimentação, à beira da Lagoa dos Patos, no balneário Costa Verde. Funciona em um chalé rústico. Na entrada, um pequeno pontilhão antes da porta, onde se encontram os seguranças e uma funcionária entregando os bilhetes de consumação. O interior do bar se divide em dois ambientes: o da casa, uma área fechada, e o do pátio, onde tem uma armação de madeira estilizando um farol que funciona como quiosque de venda de bebida. Na casa, o balcão do bar ocupa uma das paredes laterais, mesas e cadeiras estão dispostas por toda área fechada, salvo a pista de dança ao fundo e os largos corredores de circulação. Um dos corredores, dada a sua centralidade, serve como extensão da pista de dança entre as mesas, bem como, faz a ligação com a porta de entrada, localização estratégica para o controle de quem chega. O pátio é de areia de praia, o lugar é claro em relação a casa onde quanto mais próximo do balcão mais escuro; não existem cadeiras e mesas, a maioria das pessoas permanecem de pé, conversando em roda ou olhando o movimento. Invariavelmente o espaço se segmenta e o pátio é ocupado pelos freqüentadores mais jovens. No transcorrer da noite a casa se transforma em pista de dança, grupos conversam e dançam no corredor, entre as mesas, a música orienta o fluxo do movimento do pátio para a casa; além do trânsito para fazer o reconhecimento de quem está no Farol. Descrevem-se as situações que compõe a noite do Farol, eventos que acontecem no instante de um olhar, fragmentos de festa, em que se busca evidenciar aspectos da sociabilidade entre homens e mulheres.
Aos poucos o bar lota, na medida que a noite avança chegam mais jovens. Os homens aglomeram-se próximo ao balcão, no corredor central, perto da porta. Os freqüentadores chegam em grupos. Já o estar sozinho na noite denuncia a intenção de encontrar alguém, conforme conversa de dois jovens sobre “aquele cara”: – É diferente quando a gente sai assim, na parceria. Quando eu namorava a Claudia, eu saía e via os caras assim chegando no bar e dizia: Olha o cara. Esse aí tá caçando! Hoje, agora, sou eu que estou nessa situação. Todo mundo deve dizer: Olha aí o palhaço caçando! Risos. Apresentam-se os riscos da exibição no espaço público, o controle da vida por parte dos outros.
Mesmo assim, é comum a cena do rapaz sozinho com um copo de cerveja na mão, olhando o movimento; enquanto elas estão sempre em grupo. A mesma cena se repete: são cinco jovens, todas vestindo preto, que ocupam uma mesa. Elas falam alto, riem, gesticulam muito com as mãos, cantam e dançam sentadas. Levantam-se duas a duas para dar uma volta, trocam alguns olhares, e permanecem sentadas a noite toda. Outras jovens circulam pelo bar, estando sempre acompanhadas pelas amigas. Salienta-se a cumplicidade entre as jovens, exibem-se no público usando a parceria das amigas para chamar a atenção dos rapazes. Essa mediação dissimula a intenção de ”estar procurando alguém”, afinal estão na companhia do grupo de amigas. Enquanto que as preocupações masculinas são de outra ordem: – Vamos sair daqui, porque aqui não vai render!
O som é alto e trepidante, a noite inicia com um show de música ao vivo de bandas locais, toca Jorge Ben, Oswaldo Montenegro, Djavan, Renato Russo, JQuest: “Encontrar alguém, encontrar alguém que me dê amor...”, música oferecida pelo vocalista da banda para aqueles que estão sozinhos, para aquele cara que disse que vinha ao Farol e veio, mas ainda não encontrou alguém. A partir das duas e trinta da manhã, passa-se para o som mecânico, quando as luzes da pista de dança se acendem, por vezes, acontece um segundo show na noite, de pagode. Os freqüentadores têm que se aproximar para conversar, falam um no ouvido do outro, pois a música é alta e se mistura às vozes em um burburinho. As falas não cessam nos intervalos:
– Eles ainda não entraram, devem estar lá fora. Quando o bonitinho chegar vamos disputar ele a tapa. – Quem é o bonitinho? – O Cláudio. Ele é bom para curar dor de cotovelo, tu estás como eu há quinze dias atrás. No teu caso acho bom dar uma voltinha para procurar o bonitinho, conversam quatro jovens atrás de nós. A beleza é importante, porque “cura” ficar com um homem bonito.
Na passagem da casa para o pátio, as falas dos freqüentadores se misturam: – Estou com sono, preciso calibrar. – O carro no final de semana é fundamental; falam outros dois jovens; – Fulana, e teu namorado? – Ele não veio – Não acredito, que bom. Comentários que indicam alguns dos componentes da festa: bebida, carro, parceria. Um rapaz se aproxima para cumprimentar uma jovem, prontamente é apresentado para a amiga dela: – Marcos, essa é a Taís. Conversam sobre férias, a jovem vai para Garopaba, pois acampando é mais fácil de conhecer pessoas, além do que diz não precisar ter qualquer preocupação com roupa: – É só usar calça pescador e uma blusa, esqueço até do batom; em contraponto comenta que prestou vestibular também na FURG9, a última prova foi na sexta feira. Outras amigas se agregam, a conversa é interrompida para a troca de cumprimentos, e continuam falando sobre férias e vestibular; uma delas pergunta a um rapaz sobre as suas namoradas, onde elas estão? Em um outro grupo, de quatro jovens, uma delas comenta que o seu coração disparou ao ver o fulano ali no bar.
Muitos casais circulam pelo bar, transitam de mãos dadas com certa discrição. Observa-se dois jovens conversando, as trocas de carinho são rápidas. O abraço dura o tempo em que a mão dele desliza até o quadril dela, rapidamente se afastam e voltam a olhar o movimento do bar. As cenas de beijo duram pequenos instantes até que um conhecido se aproxime. Conversam em grupos, cumprimentam quem chega, os conhecidos que estão nos outros grupos: – E aí, beleza? Uma jovem abana para um amigo que vem em sua direção, dão-se três beijos e ele apresenta a namorada.
Da mesma forma, a moda é indicadora dos novos padrões de beleza, desqualificando conceitos passados, traz a satisfação de marcar um consenso de grupo em que figuram distinções sociais (RIVIÈRE, 1997). As mulheres se produzem para sair à noite, quase todas vestem preto ou marrom; sandálias de salto, ou modernas plataformas; os cabelos são escovados quando não lisos, usam batom e mochila; vestem calça de cintura baixa, calça corsário, blusa de alças ou de um ombro só. A roupa masculina é a calça de brim, camisa xadrez ou camiseta pólo e sapato. Através das roupas, insinua-se o jogo coquete, distingue-se a sensualidade e produção da indumentária feminina com a sobriedade e despojamento das roupas masculinas.
O final das férias é noticiado pelo jornal local, como a época em que os “veranistas retornam para a cidade. O movimento no Laranjal volta a ser de fim-desemana, mantendo-se assim pelo menos até o mês de abril, quando ainda é quente. E, antecipa-se o projeto dos donos do Farol, de um novo empreendimento que certamente dará o que falar na movimentação noturna da cidade” (Sociedade. Diário Popular; 07.março.99). O tempo da moda é breve, efêmero, por valorizar o presente. A moda acompanha a lógica da sedução ressaltando a dimensão da estética (LIPOVETSKY, 1989). Na celebração do novo e da individualidade, o gosto aparece como flutuante, ilusoriamente essa situação propõe a autonomia do indivíduo face ao objeto, embora seja essa uma forma de distinção social.
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Notas
Autor notes