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Recepção: 25 Novembro 2020
Aprovação: 03 Janeiro 2021
Publicado: 01 Março 2021
Resumo: Este artigo apresenta uma compreensão acerca de olhares de professores da Educação Básica da rede pública estadual paulista, participantes de um curso de formação continuada, sobre as possibilidades da Modelagem nas aulas de Matemática. A pesquisa realizada foi pautada no paradigma qualitativo e os dados apresentados são oriundos de um questionário, respondido pelos docentes ao final desse curso. Nossa análise indica que os professores se mostram interessados pelas potencialidades da Modelagem, a partir das vivências realizadas no curso, ancoradas na práxis, em uma perspectiva freireana, mas que é preciso que ações mais próximas às escolas, e mais duradouras, sejam realizadas, para que os docentes se sintam mais seguros em levar atividades de Modelagem para suas aulas. Também revela que é preciso que toda a comunidade escolar se envolva para que práticas de Modelagem possam acontecer nas escolas. Sendo assim, entendemos que tais resultados podem contribuir para refletirmos sobre caminhos para que a Modelagem se faça presente nas aulas de Matemática.
Palavras-chave: Educação Matemática, Modelagem Matemática, Formação Continuada, Educação Básica.
Abstract: This paper presents the understanding of looks of Basic Education teachers of Sao Paulo state educational public schools, participants of a continuous formation course, about the possibilities of Modeling in Mathematics classes. The research was based on the qualitative paradigm and data presented are from a questionnaire answered by teachers at the end of the course. Our analysis indicates that teachers are interested in the potentialities of Modeling, based on experiences made in the course, anchored in praxis, in a Freirean perspective, but actions that are closer to schools and more lasting must be carried out so that teachers feel more secure in taking modeling activities to their classes. It also reveals that the entire school community must get involved so that Modeling practices can happen in schools. Therefore, we understand that such results can contribute to reflect on ways for Modeling to be present in Mathematics classes.
Keywords: Mathematics Education, Mathematical Modeling, Continuing Education, Basic Education.
Resumen: Este artículo presenta una comprensión sobre las visiones de los profesores de la Educación Básica de la red pública del estado de São Paulo, participantes de un curso de educación continua, sobre las posibilidades de uso del Modelagem en las clases de matemáticas. La investigación realizada se basó en el paradigma es cualitativo y los datos presentados provienen de un cuestionario que fue respondido por los docentes al final de este curso. Nuestro análisis indica que los profesores están interesados en las potencialidades del Modelagem, a partir de las experiencias, ancladas en la praxis, en una perspectiva freireana, pero que es necesario que se lleven a cabo acciones más cercanas a las escuelas, y más duraderas, para que los docentes se sientan más seguros en llevar actividades de este tipo a sus clases. También revela que toda la comunidad escolar necesita involucrarse para que las prácticas del Modelagem puedan ocurrir en las escuelas. Por tanto, entendemos que tales resultados pueden ayudar a reflexionar sobre las formas en que el Modelagem debe estar presente en las clases de Matemáticas.
Palabras clave: Educación Matemática, Modelación Matemática, Educación Continua, Educación Básica.
Introdução
A Modelagem Matemática[1], no Brasil, se difundiu por meio de cursos para professores, realizados a partir da década de 1980, o que evidencia um caráter prático (FILLOS, 2019). Desde então, ela tem sido vivenciada e investigada, no contexto da Educação Matemática. Porém, após cerca de quarenta anos de sua presença entre a comunidade de educadores matemáticos, percebemos que ela, quando não é desconhecida, é pouco utilizada nas escolas. Pesquisas como as de Silveira e Caldeira (2012) e de Ceolim e Caldeira (2017) têm tematizado sobre obstáculos e resistências de professores em relação à Modelagem.
No entanto, ao analisarmos a literatura que versa sobre a Modelagem, encontramos também estudos que relatam sucesso em práticas realizadas com professores, o interesse dos estudantes quando desenvolvem atividades, além de vários aspectos que contribuem para que ela esteja presente nas aulas de Matemática (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013; ALMEIDA; SILVA; VERTUAN, 2013; PEREIRA; DALTO; SILVA, 2020; SCHELLER; SANTANA, 2011; GRIMALDI, 2015). Diante desse cenário que, de um lado, evidencia as potencialidades da Modelagem e, de outro, enfatiza as dificuldades e resistências dos docentes, temos nos empenhado em estar e dialogar com professores e futuros professores, em uma perspectiva freireana (FREIRE, 2019a), no sentido de compreender um pouco melhor esse panorama (MALHEIROS; FORNER; BRAGA, 2020). Em particular, olhamos para a realidade do estado de São Paulo, onde nos encontramos e atuamos, que tem suas especificidades, como a política de utilização de material didático em sala de aula (FORNER; MALHEIROS, 2020).
Nesse movimento de pesquisas e práticas, temos nos perguntado, por exemplo: Por qual razão a Modelagem não está presente nas salas de aulas da Educação Básica das escolas estaduais paulistas? Como a Modelagem pode adentrar as salas de aula da Educação Básica das escolas estaduais paulistas? Que Modelagem é possível ser desenvolvida nas escolas estaduais paulistas? Como professores das escolas paulistas compreendem as possibilidades da Modelagem em sua prática pedagógica?
Diante dessas perguntas, após a realização de um curso, em 2019, intitulado Modelagem Matemática e atividades para a sala de aula, para professores da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, os participantes responderam a um questionário. A partir das suas respostas, neste artigo, apresentamos uma compreensão sobre os olhares dos professores sobre a Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica das escolas estaduais paulistas. Para nós, entender como os professores estão, a partir de suas vivências e experiências no curso, percebendo as potencialidades da Modelagem, além dos aspectos que podem dificultar sua presença nas escolas, pode contribuir para refletirmos sobre caminhos para que ela se faça presente nas aulas de Matemática.
Para tanto, na sequência discutimos sobre a Modelagem e sua presença na Educação Básica, Modelagem e Formação de Professores, com foco nos empecilhos para que ela adentre às salas de aula. Posteriormente, apresentamos a metodologia e os procedimentos da investigação, assim como descrevemos o contexto do curso onde os dados foram produzidos, para então apresentá-los e analisá-los. Para finalizar, tecemos considerações acerca da importância de ações para além de cursos de formação continuada, para que a Modelagem chegue às salas de aula de Matemática, em particular das escolas estaduais paulistas.
Modelagem na Educação Básica
Consideramos, primeiramente, que é importante ressaltar que compreendemos a Modelagem como uma abordagem pedagógica que parte de problemas abertos, que podem emergir do cotidiano dos estudantes, com o objetivo de compreendê-los por meio da Matemática. Isto é, a entendemos como um caminho para o ensino e a aprendizagem da Matemática nas escolas, por meio de questionamentos, discussões e investigações, ao lidar com situações problemas de diferentes contextos (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013). Porém, é pertinente ponderar que a maneira como a concebemos não é única e que elas se diferenciam por “pequenas sutilezas que fazem com que as definições de Modelagem adotadas por diferentes pesquisadores apresentem aspectos diferenciados” (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013, p. 79).
Entendemos que a Modelagem está diretamente relacionada à problematização, devido ao fato de instigar a elaboração de perguntas e/ou problemas (BARBOSA, 2004) a partir de situações que façam parte do cotidiano do estudante ou que possam despertar neles curiosidade. Além da elaboração, entendemos que o ato de problematizar também está relacionado com o empenho dos discentes sobre a complexidade de uma situação, na busca de uma compreensão para ela (FORNER, 2018). Compreendemos, que “problematizar, porém, não é sloganizar, é exercer uma análise crítica sobre a realidade problema” (FREIRE, 2019a, p. 229). Esta análise ocorre por meio da investigação, que envolve busca, organização e reflexão sobre os dados encontrados (BARBOSA, 2004).
Nas aulas em que a Modelagem se faz presente, a autonomia, a investigação, a problematização e a análise crítica dos dados e resultados são essenciais (MALHEIROS, 2014; TORTOLA; ALMEIDA, 2013). Com seu uso em aulas de Matemática, é possível que aspectos favoráveis ao desenvolvimento do conhecimento dos estudantes sejam desenvolvidos, além de “[...] motivar e apoiar a compreensão de métodos e conteúdo da matemática escolar, contribuindo para a construção de conhecimentos bem como poder servir para mostrar aplicações da Matemática em outras áreas do conhecimento” (ALMEIDA; SILVA; VERTUAN, 2013, p. 30). A Modelagem, neste sentido, é uma possibilidade de proporcionar a discussão de aplicações da Matemática e favorecer a imagem desta disciplina (TORTOLA; ALMEIDA, 2013).
Todas essas possibilidades que a Modelagem pode proporcionar nas aulas de Matemática, são entendidas como fundamentais para a formação dos estudantes, tanto em pesquisas (ALMEIDA; SILVA; VERTUAN, 2013; GRIMALDI, 2015; CAMPOS, 2015) quanto em documentos oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[2], que guiam a Educação Básica no país. Na Base, o conhecimento matemático é considerado como necessário aos estudantes devido à “sua grande aplicação na sociedade contemporânea, seja pelas suas potencialidades na formação de cidadãos críticos, cientes de suas responsabilidades sociais” (BRASIL, 2018, p. 265).
Não somos ingênuos ao ponto de defendermos a BNCC, tampouco de olharmos para ela de modo a não a ler para além de suas entrelinhas, considerando seu caráter opressor (MALHEIROS, FORNER, no prelo). Embora na Base a Modelagem seja mencionada e esteja escrito que há desejo de se formar cidadãos críticos, também por meio da Matemática, isso pouco se efetiva quando se propõe um rol de habilidades e competências a serem alcançadas. O desenvolvimento crítico é deixado de lado, revelando o real desejo dos propulsores da Base.
Consideramos importante mencionar a Base pois ela é o atual documento que direciona a Educação Básica e entendemos que a Modelagem tem potencial para contribuir para uma formação plural dos estudantes, para além do foco em “apenas” conteúdos, o que de fato entendemos ser a essência da BNCC. No entanto, apesar de a Modelagem ser capaz de estimular o “[...] interesse do aluno pela Matemática, relacionando-a com fatos do seu cotidiano ou, de modo mais incisivo, com as necessidades cotidianas de suas comunidades” (MALHEIROS, 2012, p. 5), pesquisas ressaltam que ela ainda não adentrou as salas de aula de Matemática (CALDEIRA, 2015; CEOLIM; CALDEIRA, 2015; SILVEIRA; CALDEIRA, 2012), devido diversos empecilhos, assunto ao qual discorremos na próxima seção.
Modelagem, Formação de Professores e Obstáculos em Sala de Aula
Antes de iniciarmos uma discussão sobre a formação dos professores em Modelagem e os obstáculos que eles encontram para que ela seja desenvolvida nas aulas de Matemática, entendemos ser importante apresentar nossa compreensão de formação. Em Forner e Malheiros (2020), identificamos a necessidade de criação de um espaço de formação permanente, a partir das ideias de Paulo Freire. Ele entende que o ser humano se encontra em permanente processo de construção e, por isso, é inacabado e está sempre em busca de completude. Ainda sobre formação permanente, Porto e Lima (2016) a entendem, também a partir de Freire, que ela é voltada à reflexão crítica da prática e considera a realidade dos professores, dos estudantes e das escolas, sendo o trabalho docente o centro da formação.
Nesse sentido, concebemos a formação docente como um processo que deve ocorrer permanentemente, ancorado na práxis, concebida como “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2019a, p. 52). Por entendermos que a práxis é o que deve mover a formação dos professores, consideramos que, se ela não acontece da forma como se idealiza, cabe também aos pesquisadores propor encaminhamentos nos quais haja um diálogo mais profícuo entre teoria e prática, pois é na sala de aula que as relações pedagógicas ocorrem de forma mais relevante (FORNER; MALHEIROS, 2020).
Assim, nossa compreensão sobre a Modelagem e suas potencialidades vão ao encontro do proposto em Forner (2018, p. 23) como uma das “abordagens capazes de provocar rupturas do modelo educacional vigente, ao propor ações que intervenham no contexto dos estudantes” e que por meio dela “verdadeiras mudanças e transformações ocorram na vida dos estudantes e no contexto em que eles estejam inseridos”. Por esses atributos, entendemos que a Modelagem pode ser uma materialização da práxis nas escolas (FORNER; MALHEIROS, 2020).
De acordo com Cunha (2017, p. 330), para Freire, se tornar professor é um processo que vai além de um diploma e envolve “consciência de sua condição em ação”, ou seja, acontece na prática, a partir da interação com o contexto e com os estudantes. Freire afirma que “ser um professor tornou-se uma realidade, para mim, depois que comecei a lecionar. Tornou-se uma vocação, para mim, depois que comecei a fazê-lo” (FREIRE; SHOR, 2011, p. 51, grifos dos autores). Nos identificamos com os dizeres de Freire e entendemos que a formação docente em Modelagem deve também acontecer em sala de aula.
Ainda, Freire evidencia que não há educador se não houver uma prática libertadora e aprendizado com os estudantes e, para isso, entendemos que é preciso utilizar o espaço educacional sem ingenuidade, estimulando o pensamento crítico. “O processo libertador não é só um crescimento profissional. É uma transformação ao mesmo tempo social e de si mesmo, um momento no qual aprender e mudar a sociedade caminham juntos” (FREIRE; SHOR, 2011, p. 90). Os educadores se educam e reeducam constantemente, considerando o inacabamento do ser humano (FREIRE, 2019a).
A partir desses argumentos, advogamos a favor da Modelagem enquanto uma abordagem pedagógica que possa conciliar duas possibilidades para a sala de aula: os estudantes adquirirem formas de exercer a criticidade, autonomia e transformação social, ou seja, ler o mundo por meio da Matemática e, ao mesmo tempo, oportunizar aos professores práticas formativas que se dão em serviço e que essa se dê pela interação com seus estudantes.
Mesmo diante desses argumentos e de tantos outros apontados na literatura sobre a Modelagem, inclusive como orientações em documentos curriculares, ainda ela não chegou efetivamente à sala de aula. Estudos têm evidenciado obstáculos por diferentes vieses e é sobre esses que nos debruçamos para que possamos apontar possíveis caminhos de superação.
Considerando os motivos para a não inserção da Modelagem nas aulas de Matemática, a literatura evidencia que um deles diz respeito ao entendimento de professores da não possibilidade de cumprir o currículo escolar quando a utilizam (CALDEIRA, 2015; FORNER, 2018; MALHEIROS, 2016). Salientamos que tais considerações partem de um currículo referido como um rol de conteúdos, materializados em listas e materiais didáticos, que os professores devem cumprir no decorrer de suas aulas. As escolas, geralmente, possuem uma estrutura rígida quanto ao currículo, que é linear e alicerçado com as práticas tradicionais.
Porém entendemos, apoiados em Meyer, Caldeira e Malheiros (2013), que ao desenvolver atividades de Modelagem, é possível que os conteúdos não surjam da forma como está previsto no currículo, mas que outros conceitos, para além do que está posto, possam ser abordados. Consideramos que evidenciar as possibilidades da Modelagem, a partir destas características, é um dos caminhos para que ela chegue às aulas de Matemática.
Um outro aspecto evidenciado como empecilho para a inserção da Modelagem nas aulas de Matemática, pelos professores, é a falta de tempo, tanto para o desenvolvimento da atividade, considerando a questão do currículo, quanto para o seu planejamento. Muitos docentes possuem carga horária de trabalho semanal alta, o que dificulta a elaboração de atividades de Modelagem (CEOLIM, 2015).
Outro motivo para que a Modelagem não se faça presente, está na formação insuficiente nessa abordagem pedagógica e a insegurança dos docentes para utilizá-la. Tal fato acontece, pois a Modelagem pode propiciar um ambiente imprevisível, devido ao fato de trabalhar com temas ou problemas referentes ao cotidiano, ou do interesse dos estudantes.
Dessa forma, ao utilizar a Modelagem Matemática, o docente se movimenta de um modelo de educação pautado no paradigma do exercício (SKOVSMOSE, 2000), no qual a professora ou o professor ministra aulas expositivas, apresenta os conceitos e técnicas e, em sequência, os discentes resolvem exercícios similares aos exemplos apresentados, para uma proposta mais aberta, que possui certa imprevisibilidade. Nas aulas com a Modelagem o docente deixa de ser o responsável por expor os conteúdos, e
tem que se dedicar mais, deixar de fazer somente o trabalho de transmissor do conhecimento já elaborado e passar a fazer parte do processo junto aos alunos, investigando situações da realidade, indagando-os, provocando reflexões para que cada um possa tirar suas próprias conclusões – isso também exige sair da chamada zona de conforto (CEOLIM, 2015, p. 77).
Nesse sentido, o docente passa a ser um orientador do processo de desenvolvimento do conhecimento pelo estudante (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013). E além da questão da mudança do papel dos professores durante o desenvolvimento de atividade de Modelagem, outro fator apontado por eles para que Modelagem não esteja presente nas salas de aulas é o comportamento dos estudantes frente a uma forma diferenciada de aula. Ceolim (2015) identificou que os docentes que participaram de sua pesquisa consideram que os estudantes estão acostumados com as práticas tradicionais em que o docente é
o centro do processo no ensino na sala de aula, ensino em que predomina, na maioria das vezes, a triste transmissão de conteúdos na qual impõe o ritmo dos exercícios, das repetições, das tarefas e dos movimentos, seguindo o modelo de ensino estruturado pelo sistema educacional vigente (CEOLIM, 2015, p. 116).
A Modelagem, pelas suas próprias características, exige do estudante autonomia e criticidade para solucionar o problema estudado (CEOLIM, 2015). Com isso, para os professores, há uma certa dificuldade em envolver os estudantes, que estão acostumados com práticas mais tradicionais. Eles expressam resistências em trabalhar com atividades de Modelagem, devido ao despreparo do estudante pois “não sabem ao certo o que deve ser feito. Outros reclamam que precisam pensar muito nesse tipo de atividade, o que depõe a favor e não contra a Modelagem em sala de aula” (ALMEIDA; VERTUAN, 2014, p. 9, grifo dos autores).
De maneira geral, as dificuldades ao se trabalhar com a Modelagem perpassam quase
[...] todos os âmbitos constituintes do trabalho docente: preparação das aulas; relação com os alunos; relação com a família dos alunos; estrutura administrativa e pedagógica das escolas; currículo e questões pessoais, como por exemplo, a insegurança diante do novo (SILVEIRA; CALDEIRA, 2012, p.1043).
A partir dos obstáculos e dificuldades apresentados pela literatura, nos questionamos quais seriam as justificativas, na visão de um grupo de professores, para utilização da Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica das escolas estaduais paulistas. O que é necessário para que ocorra o uso de atividade de Modelagem em sala de aula? Os dados da nossa pesquisa, trazem alguns direcionamentos. Antes de apresentá-los, porém, descreveremos a metodologia, os procedimentos metodológicos e o contexto no qual eles foram produzidos.
Encaminhamentos Metodológicos e Contexto
Fundamentada na metodologia de pesquisa qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), a investigação aqui apresentada foi realizada a partir de um curso de formação continuada, intitulado Modelagem Matemática e atividades para a sala de aula e teve como equipe proponente os autores do presente artigo. Como nosso interesse é compreender um olhar dos docentes sobre a Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica das escolas estaduais paulistas, entendemos que o paradigma qualitativo nos ampara, no sentido de que se preocupa com aspectos relacionados ao processo e sua natureza é descritiva (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Nossa investigação também tem como característica principal a busca pela compreensão e interpretação (ALVES-MAZZOTTI, 2001), uma das principais características da abordagem qualitativa. Durante o curso, com devidas autorizações dos docentes participantes, realizamos filmagens e, também, aplicamos um questionário. Cabe destacar que utilizaremos pseudônimos para os nomes dos participantes, para preservar a identidade deles.
Em especial, neste artigo, focaremos nos questionários, com questões dissertativas, que foram respondidos pelos docentes ao final do curso, após as vivências e experiências com a Modelagem. A escolha por eles se deu, pois, consideramos que uma das suas vantagens é a liberdade que os professores podem ter para expor suas ideias e opiniões, que "temem ser desaprovadas ou que poderiam colocá-los em dificuldades" (GOLDENBERG, 2015, p. 87). O questionário era constituído de três perguntas dissertativas, a saber: 1) Como avalia o uso de atividades de Modelagem Matemática em sala de aula na Educação Básica?; 2) O que considera ser necessário para que ocorra o uso de atividades de Modelagem em sala de aula na Educação Básica? e; 3) O que poderia impedir de utilizar atividades de Modelagem Matemática em suas aulas?
Sobre o curso, ele foi realizado na modalidade semipresencial, com carga horária de 64 horas. Destas, 25 horas foram destinadas a encontros presenciais, em que ocorreram discussões sobre Modelagem Matemática, bem como a elaboração, de forma colaborativa, de atividades, com base no contexto dos professores, ou seja, o cenário das escolas públicas estaduais paulistas vinculadas à Diretoria de Ensino (DE) da Região de Limeira. Além disso, 39 horas foram dedicadas às atividades a distância, em que os professores realizaram leituras de textos indicados durante o curso, investigaram a respeito dos temas das atividades e discutiram em grupos sobre a elaboração. Os professores também debateram, tanto nos encontros presenciais quanto nos momentos assíncronos, sobre a possibilidade do desenvolvimento das atividades em suas aulas. Ademais, relatos daqueles que levaram a Modelagem para as suas aulas também foram compartilhados nos momentos presenciais. O curso começou com 26 docentes de Matemática dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, além de docentes, também de Matemática que, na época, realizavam atividades de gestão. Destes, 22 finalizaram o curso, que ocorreu no primeiro semestre de 2019.
Ainda quanto ao curso, cabe mais elucidações, para entendermos o contexto em que as vivências e experiências se deram e, assim, caminharmos em busca da compreensão dos questionamentos que foram feitos a todos os participantes, que em nenhum momento são isentos, ou seja, desprovidos de imparcialidade. O que nos moveu a oferecer essa formação foram os resultados apresentados em Forner (2018), pesquisa realizada também a partir de um curso, que teve uma recepção e participação dos professores bastante efetivas.
No curso anterior (FORNER, 2018), foi criado um ambiente no qual os participantes puderam confrontar os seus saberes e os ressignificarem, a partir de suas vivências e discussões (FORNER, 2018; FORNER; MALHEIROS, 2020), o que era uma de suas finalidades da proposição e execução. Além disso, a proposta era que os participantes pudessem dialogar e, colaborativamente, elaborar atividades de Modelagem para serem desenvolvidas com suas turmas da Educação Básica. Com essa inspiração, oferecemos, no ano de 2019, mais um curso para professores de Matemática que estavam lecionando em escolas da rede estadual da região de Limeira, SP.
Com esses preceitos, conduzimos o curso com a intenção de mobilizar saberes e esforços no sentido de confrontar a Modelagem com o que se vivenciava nas aulas de Matemática, para dialogarmos em torno do que seria possível ser feito para que esta abordagem pudesse estar mais presente na Educação Básica. Iniciamos propondo a elaboração de atividades a partir dos conteúdos e habilidades que eram próprios do ano escolar no qual os participantes iriam trabalhar, na época do curso. A intenção era de que dialogássemos em torno do que efetivamente estava ocorrendo nas aulas de Matemática e, assim, o que estivesse sendo elaborado pudesse ser aproveitado em suas aulas.
É importante destacar que a proposta do curso era que os professores elaborassem e levassem a Modelagem para suas aulas de Matemática. Para isso, as atividades foram desenvolvidas de modo colaborativo, a partir dos interesses em comuns dos participantes, nos encontros presenciais. Momentos a distância eram utilizados para a busca de mais informações e diálogo entre os participantes, com intuito de refinar a atividade. Após o desenvolvimento das atividades de Modelagem na sala de alguns dos participantes, as experiências foram compartilhadas e debatidas, também nos encontros presenciais.
Cabe evidenciar que essa elaboração não foi uma tarefa tão trivial, visto que os professores das escolas públicas paulistas fazem uso de um material prescrito, que o torna veladamente impositivo, fato constatado e discutido em Forner (2018). Essa constatação fez com que adotássemos uma postura mais cuidadosa, no sentido de que as atividades a serem elaboradas deveriam sutilmente ser atreladas ao material curricular que está presente nas escolas estaduais paulistas. Estes se resumem ao Caderno do Aluno e do Professor, que são entregues bimestralmente aos estudantes e contêm aulas por disciplina e ano escolar, estruturadas em sequências didáticas, denominadas situações de aprendizagem.
Em um misto de perplexidade e desafio, desenvolvemos todo o curso discutindo atividades que estavam propostas no material e elaborando outras tantas, aliando a Modelagem com o que ali estava posto. Desse movimento é que foram constituídas as perguntas propostas no questionário, e sob essas reflexões ali apresentadas que discutimos o contido neste artigo, que tem por objetivo ser mais uma contribuição em torno de desvelar potencialidades da Modelagem para as aulas de Matemática.
A partir da produção dos dados contidos nos questionários, foram realizadas triangulações (ARAÚJO; BORBA, 2004), que buscaram compreender os olhares dos professores para atividades de Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica das escolas públicas estaduais paulistas. Foram feitas leituras das respostas dos questionários, a procura de temas que evidenciassem um olhar dos professores sobre a Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica, os quais serão apresentados e discutidos na sequência.
Olhares para Modelagem nas aulas de Matemática da Educação Básica
Ao final do curso de formação continuada, mencionado anteriormente, foi solicitado que os docentes preenchessem um questionário. Entendemos ser importante destacar que a maior parte dos participantes desenvolveu atividades de Modelagem durante o curso, as quais foram elaboradas e discutidas de forma colaborativa.
Entre as respostas dos professores surgiram diferentes temáticas, como por exemplo a relação com o uso da Modelagem voltado para a aprendizagem Matemática, conforme mencionado por Mariana:
Mariana: Vejo uma metodologia para tornar a aprendizagem da Matemática mais contextualizada, concreta e dinâmica, mostrando aos alunos a sua aplicação.
O uso da Modelagem relacionado à aprendizagem também foi mencionado por Carolina e Célia:
Carolina: Muito importante, pois através das atividades de Modelagem, os alunos, aprendem na prática e sem perceber, ou seja, de forma descontraída.
Célia: Acredito que a Modelagem ajuda muito na aprendizagem e desenvolve o interesse deles na Matemática.
Outra docente que pontua a respeito da aprendizagem é Angélica, que ainda destaca sobre provocar no discente uma curiosidade:
Angélica: É um meio de provocar no aluno a curiosidade e a vontade em aprender matemática, tendo em vista o “desgaste” e falta de interesse, a modelagem aparece como uma “luz no fim do túnel”.
A partir das falas das professoras é possível perceber que potencialidades da Modelagem, destacadas na literatura (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013), foram evidenciadas. Entendemos que aspectos como contextualização, interesse e curiosidade podem contribuir para que o aprendizado aconteça e que a Modelagem é um caminho para que esses elementos estejam presentes nas aulas de Matemática.
Sobre a curiosidade, nos debruçamos sobre Freire (2017) e o termo curiosidade epistemológica. Para ele, ao sermos epistemologicamente curiosos, produzimos conhecimento e não apenas armazenamos, de forma mecânica, informações na memória. A ideia de curiosidade, na obra de Paulo Freire, aparece em contradição à educação bancária (FREIRE, 2019a), pois ele buscava uma educação libertadora, que não castre a curiosidade dos educandos, na qual ela, que se manifesta também na forma de perguntas, é fundamental. Além disso, o conceito de curiosidade epistemológica se relaciona com o conhecer em uma perspectiva crítica, algo que é muito presente na Modelagem.
A curiosidade pode estar relacionada com o interesse, de acordo com Hermínio e Borba (2010). Eles fazem uma ampla revisão de literatura, evidenciando que a ideia de interesse está bastante presente nas pesquisas sobre Modelagem, tanto com relação à escolha do tema para o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem, que deve ser de interesse dos estudantes, quanto na ideia de que a Modelagem pode despertar o interesse dos discentes para a Matemática. Amparados em Dewey (1978) e Schutz (1979), eles apresentam um quadro teórico que tematiza a noção de interesse e concluem que ele não é apenas interno, é também socialmente condicionado. Neste sentido, está também relacionado com o contexto em que o estudante está inserido, algo que os professores devem estar atentos.
Sobre a ideia de contextualização, em um estudo realizado por Nunes, Nascimento e Sousa (2020) acerca das pesquisas sobre Modelagem desenvolvidas na Educação Básica, os autores evidenciaram que ela se destaca como uma de suas potencialidades. A possibilidade de relacionar a Matemática com outras áreas do conhecimento pode contribuir, de acordo com os autores, com rompimento de práticas de ensino de Matemática sem conexões com outras áreas do conhecimento. “Tais pesquisas também apontam para a possibilidade de reflexão social, econômica, política e ambientais por parte dos estudantes” (NUNES; NASCIMENTO; SOUSA, 2020, p. 251).
Considerando a relação entre o pensamento freireano e a Modelagem, para Forner (2005, p. 49), ela existe “[...] quando se parte de uma situação contextualizada, trabalha sobre ela, estimula-se o diálogo para chegar a uma resolução, estabelecendo inclusive uma discussão válida sobre os resultados apresentados”. Ou seja, a possibilidade de ler o mundo pela Matemática (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013) passa também pela contextualização em sala de aula. Nesse sentido, entendemos que a contextualização é importante e que pode ser um caminho para a relação entre diferentes áreas do conhecimento e a Matemática, além de poder contribuir para que a interdisciplinaridade aconteça na sala de aula (MALHEIROS, 2004).
Além de avaliarem o uso da Modelagem como uma possibilidade para o ensino e a aprendizagem nas aulas de Matemática, alguns docentes também pontuam como um meio de modificar a imagem da Matemática, como Sheila e Ana:
Sheila: Acredito que ajudaria muito os alunos verem a Matemática com outro olhar.
Ana: Seria de grande ajuda para desmitificar que a Matemática é difícil.
Sobre a Modelagem ser um caminho para modificar a imagem da Matemática em sala de aula, pesquisas como a de Burak e Martins (2015, p. 109) evidenciam que como ela está relacionada à curiosidade e ao interesse dos estudantes, ela pode dar “início à formação de atitudes positivas em relação à Matemática”. A pesquisa de Honorato (2016) também revela que futuros professores entendem que a Modelagem pode possibilitar que questões de qualquer natureza, do cotidiano dos estudantes, sejam investigadas, compreendidas e debatidas por meio da Matemática. Com isso, segundo eles, o interesse pela disciplina pode emergir de modo mais natural, além de que, o papel da Matemática na sociedade passa a ser evidenciado e valorizado.
O trabalho realizado por Rehfeldt et. al. (2018, p. 118) também salienta que, a partir do desenvolvimento de uma atividade de Modelagem, os estudantes “aprenderam a valorizar mais a Matemática e criaram interesse e curiosidade acerca dela”.
Um outro aspecto destacado pelos participantes do curso foi a mudança nas aulas de Matemática, a partir do desenvolvimento de uma atividade de Modelagem:
Camila: Aula fica mais dinâmica. Alunos se interessam mais pela disciplina e onde acontece o aprendizado.
A percepção da professora Camila se deve à proposta do curso, ancorada na práxis. A docente percebeu uma maior dinamicidade em sua aula, o que entendemos como relacionado à participação e interesse dos estudantes em atividades de Modelagem, além dela salientar o aprendizado de seus alunos.
O potencial motivador foi uma outra possibilidade da Modelagem, evidenciada a partir das respostas das docentes:
Regina: Necessário, levando-se em conta a falta de interesse dos alunos. (...) o uso de estratégias que visam motivar e instigar, como é a modelagem, faz-se indispensável.
Cássia: O uso da modelagem ajuda o professor a atingir os alunos de uma forma mais ampla, a participação e interesse é maior, com essas atividades o aluno aprende no concreto conteúdos que aplicados na forma convencional não foi totalmente compreendido. Transformar as aulas em momentos mais agradáveis.
A motivação está presente em parte da literatura sobre Modelagem (NUNES; NASCIMENTO; SOUSA, 2020; REHFELDT et. al., 2018) como uma possibilidade de envolver os estudantes nas aulas de Matemática. Ela já era mencionada por Blum (1995), além de outros aspectos como a facilitação da aprendizagem, a utilização da Matemática em outras áreas do conhecimento, desenvolvimento de habilidades gerais de investigação e exploração e a compreensão do papel sociocultural da Matemática como elementos que podem ser favorecidos pela Modelagem em salas de aula. Entendemos que o fato de os participantes terem elaborado as atividades, durante o curso, e as levado para suas aulas, fez com eles percebessem essas potencialidades da Modelagem, como a motivação. Por isso insistimos que a práxis é um caminho profícuo para que os professores da Educação Básica possam vivenciar, discutir e refletir sobre a Modelagem, a partir de seus contextos e realidades.
Concebemos que a motivação, o interesse e a curiosidade estão relacionados à ideia de partir do cotidiano dos discentes, considerando seus saberes e experiências, em atividades de Modelagem. Neste sentido, o tema a ser desenvolvido em uma atividade deve, sempre que possível, fazer parte do cotidiano do educando, para que ele possa, de certa forma, se identificar com o trabalho a ser realizado e possivelmente compreender, dentre outros, o papel da Matemática na sociedade. Tais ideias convergem para o que Freire (2011a, p. 32) sugeria, ao questionar:
Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde da gente?
Além de mencionarem as potencialidades da Modelagem, os professores participantes do curso também dissertaram a respeito do que é preciso para que a Modelagem adentre às salas de aulas da Educação Básica. A formação e a contribuição da comunidade escolar foram evidenciadas pelos docentes:
Mariana: Formação para os professores da rede e vontade dos docentes em mudanças de estratégias metodológicas.
Angélica: A formação, a troca de ideias e o apoio de toda equipe escolar e extra escolar é, digo, são fundamentais. O empenho de nós, docentes, primordial.
Sérgio: Interesse do professor e alunos e talvez envolvimento da equipe escolar quando necessário.
Entendemos que a formação, conforme mencionamos anteriormente, deve ser permanente e ter a práxis como seu aspecto orientador (FORNER; MALHEIROS, 2020), pautada no diálogo e na problematização. Esse processo deve denotar um movimento, que pode ser descrito como a transição entre a consciência ingênua e a consciência crítica, em um processo de conscientização, que “implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (FREIRE, 2001, p. 30).
Para Freire (2001), a conscientização é um compromisso histórico no sentido de uma inserção crítica, pelo sujeito, na história, com o objetivo de mudar o mundo.
A conscientização não consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (FREIRE, 2001, p. 30).
Considerando esse movimento de conscientização, entendemos que há diferentes possibilidades de trabalho com a Modelagem em sala de aula, evidenciando sua diversidade e dinamicidade. E, a formação permanente dos professores, que defendemos e buscamos efetivar, pode contribuir para esse processo de conscientização, a partir da práxis. E isso, a nosso ver, é muito difícil de acontecer quando não há apoio da comunidade escolar. Tal aspecto é apontado por Silveira e Caldeira (2012) como um dos empecilhos para que a Modelagem chegue às salas de aula. O envolvimento da comunidade escolar, em particular da gestão, é fundamental para que abordagens pedagógicas como a Modelagem possam chegar nas escolas.
Compreendemos, inspirados em Freire (2019b) e na gestão que ele teve à frente da secretaria municipal de Educação da cidade de São Paulo, que a escuta e o diálogo entre todos da comunidade escolar fazem da escola um espaço mais democrático e humanizado. Para ele, as escolas deveriam ter autonomia e ser centros de reflexão, que permitissem a formação constante do educador. Evidencia também que “a escola precisa ser um espaço vivo democrático, onde todas as perguntas sejam levadas à sério, espaço privilegiado da ação educativa e de um sadio pluralismo de ideias” (FREIRE, 2019b, p. 63, grifos do autor).
Em se tratando do educador, algumas professoras mencionam que é necessário a disposição para o uso da Modelagem em sala de aula.
Cássia: O perfil do professor, pois como muito pouco conseguimos criar aulas de Modelagem. Querer mudar!
Marta: Considero necessário que o professor esteja disposto a trabalhar um pouco mais e conheça bem sobre o assunto para poder orientar bem a turma.
Ana: O professor estar disposto a realizar, pois é trabalhoso, mas o resultado é gratificante.
A fala das professoras nos remetem a um olhar no qual o professor é, ou seria, o único responsável pelas mudanças que podem vir acontecer em sala de aula. Entendemos que a vontade do professor pela mudança é fundamental e reconhecemos sua liberdade de cátedra mas entendemos que, há outras questões que são bastante complexas e que dificultam a presença da Modelagem nas escolas. São o modelo de escola que temos, no caso do estado de São Paulo, a obrigatoriedade de se cumprir o currículo a partir da utilização de um material didático, a alta carga didática docente, avaliações externas, dentre outros aspectos, que dificultam o movimento dos professores pela busca de outras possibilidades para suas aulas.
As falas das professoras também nos reportam a ideia do processo de ser professor (CUNHA, 2017). Inspirada nas obras de Paulo Freire, a autora evidencia que a docência se constrói, a partir de um processo que envolve a sua consciência em ação. “O exercício profissional é que constitui o sujeito professor na medida em que essa constituição exige a reciprocidade de seus alunos e do contexto em que atua” (CUNHA, 2017, p. 335).
Sendo assim, compreendemos que a práxis, nos moldes do curso que propusemos, pode contribuir para que a disposição em levar a Modelagem para as aulas de Matemática possa acontecer. Para isso, a formação dos professores é fundamental (FORNER; MALHEIROS, 2020). Formação essa que, a nosso ver, deve partir do contexto e realidade dos professores, e juntos buscarmos possiblidades de superarmos as dificuldades e obstáculos existentes.
Outro aspecto apontado pelos professores sobre possíveis dificuldades para que a Modelagem esteja presente nas aulas de Matemática está relacionada com o currículo. Sobre tal fato, Anália e Sara enfatizaram que:
Anália: Diminuição do currículo, há muitas habilidades para serem trabalhadas durante o ano, para que se possa levar o aluno a pensar, a trabalhar a Matemática leva-se mais tempo [com a Modelagem]. [...] Não vejo nada a não ser a exigência do cumprimento do currículo.
Sara: Apesar de estarmos atrelados ao currículo, a modelagem é como um norte para mim, pois traz um renovo, uma nova metodologia para atingir os alunos.
Sobre isso, temos denunciado em nossos textos o que acontece nas escolas públicas estaduais paulistas com relação a obrigatoriedade de utilização dos materiais didáticos (MALHEIROS, 2014; 2016; FORNER, 2018; FORNER; MALHEIROS, 2020) e os empecilhos a mais que esse modelo impositivo causa, considerando a presença da Modelagem nas aulas de Matemática. Não concordamos com tal imposição, mas entendemos que evidenciar possibilidades de aliar o que está presente no currículo com a Modelagem pode contribuir para que os professores a levem para suas aulas de Matemática. Compreendemos que esse movimento se relaciona com as ideias de otimismo crítico, de sonhar, de ter esperança (FREIRE, 2011b; 2019c). Para Freire, a escola pode e deve ser mudada, pois ela pode contribuir tanto para a manutenção quanto para a transformação social (FREIRE, 2011a) e “não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 2019c, p. 126).
Neste sentido, entendemos que buscar mudanças a partir do rompimento do que está posto nas escolas, por meio da presença da Modelagem nas salas de aula, mesmo que inicialmente aliada ao material didático de uso obrigatório, pode contribuir para que a escola se torne aquilo que almejamos, um espaço democrático, de formação e transformação social.
Considerações Finais
A partir de um curso de formação para professores da Educação Básica, ancorado na perspectiva de práxis freireana, e de um questionário respondido por eles, ao final de suas vivências, apresentamos, neste artigo um olhar dos docentes sobre as possibilidades da Modelagem nas aulas de Matemática. Discorremos sobre as potencialidades dessa abordagem pedagógica, discutimos sobre nossa compreensão de formação, inspirados em Paulo Freire, que deve ser permanente e ancorada na práxis (FORNER; MALHEIROS, 2020), assim como discorremos sobre obstáculos para que a Modelagem chegue às aulas de Matemática.
Cabe evidenciar que mesmo analisando e refletindo sobre situações que se deram nas escolas públicas estaduais paulistas, que têm características específicas, estabelecemos elos de convergência entre práticas e pesquisas acerca da Modelagem presentes na literatura nacional, pois alguns obstáculos enfrentados pelos professores da rede pública do estado de São Paulo são relatados em estudos de outros contextos. O mesmo pode ser dito das potencialidades da Modelagem.
Nesse sentido, os dados nos mostram que os docentes evidenciam potencialidades da Modelagem, tais como a curiosidade, o interesse, a contextualização, a motivação, além de presumirem que ela pode contribuir para que estudantes percebam a Matemática de forma diferente. Isso nos remete a importância do conhecimento matemático para a leitura do mundo (MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2013). Em uma entrevista sobre Educação Matemática, Freire menciona que “a vida que vira existência se matematiza” (FREIRE, 1995) e, com isso, enfatiza a necessidade de educadores desmistificarem a Matemática ensinada na escola. Freire (1995) acreditava que as professoras e os professores devem despertar os estudantes para que eles se assumam enquanto matemáticos e, entendemos que, a Modelagem pode ser um caminho para tal.
Apesar de evidenciarem as potencialidades, os professores indicaram aspectos que podem dificultar a prática da Modelagem nas escolas. Entre elas estão a necessidade de cumprir o currículo, a necessidade de apoio de toda a equipe escolar, além da disposição para o trabalho com a Modelagem. Entendemos que esses elementos fazem parte do processo de mudança que almejamos para as escolas, em particular nas estaduais paulistas, e ambientes permeados pela práxis podem ser um caminho para que elas se efetivem.
Pelas potencialidades apontadas no transcorrer deste artigo, e enfatizados nesta seção, advogamos a favor de uma Modelagem que seja transformadora para os estudantes e para os educadores, que ao mesmo tempo colabore na formação do cidadão crítico e, também, supere algumas das barreiras que existem no ensinar e no aprender Matemática na Educação Básica. Para isso, reforçamos a necessidade de ouvir todos aqueles que participam da escola, sejam eles gestores, educadores e alunos, além de considerarmos o contexto escolar como lócus de formação, e que esta aconteça a partir da práxis.
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Notas
Ligação alternative
https://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/rencima/article/view/2925/1486 (pdf)