Dossier
Recepción: 08 Mayo 2019
Aprobación: 29 Noviembre 2019
Financiamiento
Fuente: programa de bolsas “Demanda Social” da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Beneficiario: tese doutoral “Política externa migratória brasileira: das migrações de perspectiva à hiperdinamização das migrações durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff”
Cómo citar: Georg-Uebel R. R. (2020). Perfil da imigração africana no Brasil durante o governo Dilma Rousseff (2011-2016): o caso dos senegaleses e oeste-africanos. FORUM. Revista Departamento Ciencia Política, 18, 91-123. https://doi.org/10.15446/frdcp.n18.79574
Resumen: Este artículo, que es el resultado de una tesis doctoral en el campo de Estudios Estratégicos Internacionales, tiene como objetivo discutir y analizar de manera crítica y cartográfica la migración internacional africana hacia Brasil durante el gobierno de Dilma Rousseff (2011-2016). El texto también analiza el caso específico de los flujos de los senegaleses y otros grupos de África Occidental y su inserción en la sociedad brasileña a la luz de los elementos de agregación social, tratamiento estatal y perspectivas ante la nueva Ley de Migración.
Palabras clave: perfil, inmigración, africanos, Brasil, gobierno Rousseff.
Resumo: Este artigo, que é resultado de tese doutoral no campo dos Estudos Estratégicos Internacionais, tem como objetivo discutir e analisar crítica e cartograficamente as migrações internacionais africanas para o Brasil durante o governo de Dilma Rousseff (2011-2016). O texto também realiza uma discussão sobre o caso específico dos fluxos de senegaleses e demais grupos oeste-africanos e a sua inserção na sociedade brasileira à luz dos elementos de agregação social, tratamento estatal e perspectivas ante à nova Lei de Migração.
Palavras-chave: perfil, imigração, africanos, Brasil, governo Rousseff.
Abstract: This article, which is a result of a doctoral dissertation in the field of International Strategic Studies, aims to discuss and analyse critically and cartographically the international African migration to Brazil during the government of Dilma Rousseff (2011-2016). The text also discusses the specific case of the flows of Senegalese and other West African groups and their insertion in Brazilian society in the light of the elements of social aggregation, state treatment and perspectives in the face of the new Migration Law.
Keywords: profile, immigration, Africans, Brazil, Rousseff administration.
Introdução
O Brasil e a África não só nós temos uma raiz cultural, social e histórica do ponto de vista da nossa nação, acredito que sejamos o país que tenha a maior quantidade de africanos na sua formação, mas também porque somos, fizemos parte de um mesmo grande continente. (Rousseff, 2013)
Com 21 850 imigrantes oriundos da África, o Brasil observou no período de 2011 a 2016 um crescimento de 38 % no estoque comparado entre os governos Dilma Rousseff (2011-2016) e Lula da Silva (2003-2010), e um crescimento de 226 % nos fluxos anuais, se comparados os valores de 2003 e 2016. Ainda que quantitativamente de pouca relevância, a imigração africana[2] provocou uma verdadeira revolução nos debates políticos, acadêmicos e institucionais sobre o papel do Brasil na nova agenda global das migrações, incluindo aí temas correlatos de saúde pública, segurança e defesa e xenofobia.
Durante a realização da 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR), organizada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) e pelo Ministério da Justiça (MJ), que acabou se tornando a única edição, em 2014, os representantes de associações de imigrantes africanos e diplomatas dos países daquele continente foram os que mais se destacaram nas discussões das propostas do que se projetava como a nova legislação migratória brasileira.
Apesar da distância de milhares de quilômetros que separam Brasil e África, além de um oceano inteiro, as relações culturais, étnicas, políticas e econômicas entre ambos são históricas, profundas e estão no cerne da maioria dos embates sociais que hoje acometem a agenda política brasileira. Desde a implementação das cotas raciais – que até hoje levantam controvérsias e debates – nas universidades e concursos públicos até os processos de abertura e reconhecimento das comunidades quilombolas, o papel da imigração africana despertou sensíveis mudanças no trato da coisa pública em relação à afrodescendentes e estrangeiros.
Questões como a formulação de políticas específicas de ingresso para refugiados nas universidades federais brasileiras, a concessão de autorizações especiais de trabalho e a normatização de processos migratórios, perpassaram diretamente pelos fluxos desses 21 mil imigrantes que, diferentemente dos anos anteriores, fizeram parte de mobilidades mais heterogêneas e motivadas por questões políticas, educacionais e resultantes da primeira agenda de Lula da Silva.
Desta maneira, o argumento central do presente artigo está relacionado aos processos migratórios de africanos para o Brasil durante um período de transição econômica e política, cujos migrantes se beneficiaram de uma abertura e atratividade migratória conjugada à própria performance do Brasil no exterior.
É válido ressaltar que a opção pelo estudo da imigração africana decorre de duas frentes: a) o caráter ainda incipiente dos estudos migratórios africanos contemporâneos no país; b) a justificativa que se vislumbra quando analisamos os dados estatísticos oficiais durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, portanto, de 2003 a 2016, que sinalizam para um crescimento considerável e proporcionalmente acima dos demais fluxos oriundos de outras regiões do Sistema Internacional.
Nesse sentido, o artigo utiliza em sua metodologia uma pesquisa do tipo quali-quantitativa, documental e exploratória – quanto ao uso dos dados oficiais – e ampara-se nos instrumentos da cartografia temática para a tradução e ilustração das estatísticas, a fim de permitir o debate proposto pelo nosso argumento central e seus conceitos adjacentes. A estrutura da pesquisa, de caráter descritivo, segue os preceitos metodológicos de Gil (2019) e incorpora uma abordagem teórica a partir dos mecanismos de vinculação de Sassen (2007), com a finalidade de discutir os conceitos que propusemos, sobretudo a “imigração de perspectiva”.
Isto posto, analisaremos de forma sucinta e crítica o perfil das migrações africanas para o Brasil durante a administração Rousseff, bem como apresentaremos um breve estudo compilado acerca dos fluxos que mais se destacaram dentre os africanos, o de senegaleses e oeste-africanos, conforme os dados oficiais.
As migrações africanas para o Brasil
O processo migratório de africanos para o Brasil está diretamente ligado à formação étnico-racial da sociedade brasileira, que apresenta elementos da multiculturalidade e da pluralidade étnica desde o período exploratório-colonial português, isto é, desde meados do século XVI até o início do século XX, se considerarmos os resquícios político-sociais do período monárquico, que foi escravocrata até 1888, um ano antes da Proclamação da República.
Neste contexto, autores como Skidmore (1976), Graham (1990), Wade (2010) e Lesser (2013), sustentam que a construção racial do Brasil se faz a partir de um amálgama oriundo da imigração, sobretudo a europeia, branca, asiática e, em menor grau, ibero-americana, e da escravidão negra, além dos povos originários que já habitavam o país. Deste modo, em que pese a escravatura tenha compreendido um processo de mobilidade —forçado—, a mesma se incorporou à formação societal do Brasil, como bem trabalhado pelos autores supramencionados.
Isto posto, é importante salientar que as relações migratórias, étnicas e sociais do Brasil com os países e nações do continente africano, hoje compreendido por 55 Estados soberanos, remontam ao período colonial e escravocrata, anterior ao próprio período das consideradas migrações “históricas” ou “clássicas”; deste modo, apesar de não ser possível inferir uma migração africana como um subtipo de escravatura, averígua-se na história brasileira uma mobilidade humana transatlântica entre a África e o Brasil.
Contando com uma população afro-brasileira, ou afrodescendente, oriunda do processo escravocrata, o Brasil passou a receber fluxos migratórios de africanos, por razões econômicas não-forçadas e de refugiados e solicitantes de asilo, a partir do segundo quartel do século XX, uma vez que até o Estado Novo de Getúlio Vargas vigorava uma política nacionalista de branqueamento da população.
Já nos primeiros anos da redemocratização, na década de 1980, o Brasil recebeu grupos de imigrantes dos países com maior aproximação cultural e linguística, isto é, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Programas de intercâmbio acadêmico e científico entre estes países e o governo brasileiro permitiram um fluxo de estudantes e pesquisadores, que se acentuou durante as décadas seguintes, cujo ápice se deu no recorte temporal do presente artigo.
Outros fluxos migratórios de africanos para o Brasil se deram a partir da década de 1990, com a chegada de grupos de famílias marroquinas, argelinas e egípcias, integradas às tradicionais comunidades de árabes —cristãos e muçulmanos— nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, com uma identificação aos grupos pré-estabelecidos, como de sírios, libaneses e palestinos. Há relatos na historiografia (Seljan, 2018), da presença no Brasil de nigerianos e sul-africanos antes do boom imigratório da década de 2010 (Borges, 2018).
Com relação aos novos fluxos, que são objeto de análise do presente artigo, sobretudo o de oeste-africanos —ganeses e senegaleses com maior destaque—, Uebel (2018) não conseguiu identificar um perfil histórico destas migrações para o Brasil, restando poucas informações quanto às origens étnico-raciais do período colonial-escravocrata que coincidiram com a geografia contemporânea dos Estados nacionais africanos à época.
Apesar disso, destaca-se, conforme será discutido ao longo do artigo, o papel da transnacionalidade destes fluxos estudados, uma vez que se processam por redes e diferentes escalas de atuação. Dessa maneira, não seria equivocado afirmar que as novas migrações africanas encontrarão no Brasil elementos étnicos, sociais, culturais e políticos semelhantes àqueles dos seus países de origem, sejam como consequência das mesmas raízes coloniais, sejam por causa das dinâmicas do novo meio técnico-científico-informacional da globalização do século XXI (Santos, 2000).
À luz destas informações, apresentamos a seguir a figura 1, que representa a evolução dos fluxos anuais de imigrantes africanos com direção ao Brasil —no recorte temporal do presente artigo— e aponta que, da mesma maneira como os fluxos gerais globais, a imigração africana teve um ápice em 2014 e começou a declinar desde então, o que indica outros cenários adjacentes que discutiremos mais adiante no caso específico dos senegaleses e de imigrantes da costa oeste africana.
Os dados do figura 1 apontam a ocorrência de um pequeno crescimento entre 2011, que retoma 2010, o último ano do governo Lula da Silva e de sua agenda voltada à África, e 2013, prévio ao boom de 2014, com o ingresso de 5226 imigrantes naquele ano, muitos beneficiados pela migração semirregular dos vistos da Copa do Mundo, discutidas por Uebel (2018) e que abordaremos mais adiante.
É mister recordar que o custo para efetivar a travessia África-Brasil, exclusivamente via aérea, é elevado e restritivo aos grandes fluxos, como o de latino-americanos, logo, aqueles que migraram para o Brasil, ao contrário do senso comum e do que a imprensa amplamente repercutia à época, eram oriundos de uma classe média africana bem instruída e que pensava o Brasil como a melhor alternativa à União Europeia, Canadá e Reino Unido, ou seja, uma migração de perspectiva[3].
Nesse contexto, dentre os 21 mil imigrantes africanos que escolheram o Brasil como país de destino, encontraremos as mais variadas motivações dentro da perspectiva de escolha, tais como: oportunidades de estudo, emprego em multinacionais brasileiras, perseguições políticas no país de origem, refúgio e inclusive pessoas vítimas de tráfico humano, mas todas essas perspectivas se mostrarão em acordo com a inserção estratégica do Brasil na África, por meio da sua política externa. A tabela 1 a seguir apresenta, assim, o ranking dos países de origem que mais enviaram migrantes africanos para o Brasil durante o período em tela.
Diferentemente do período anterior, agora fica mais evidente a predominância das imigrações de nacionais oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), agregadas por novos componentes: as redes de imigrantes dos países da costa oeste africana (COA), como Senegal, Gana, Nigéria, Benin e Camarões, dentre outros. O “Eldorado brasileiro” que se apresentava era exclusivo para essas nacionalidades e sub-regiões, ao passo em que imigrantes de outras partes do continente africano, como o leste e centro, foram de irrelevante quantidade para o cômputo total.
Os dados apresentados também permitem contestar o exagerado sensacionalismo e ampla cobertura dados pela imprensa brasileira, especialmente a do Rio Grande do Sul, em relação aos fluxos temporários de senegaleses e ganeses durante a Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil. Com manchetes que beiravam ao sensacionalismo barato e apelativo, jornais de grande circulação como o Correio do Povo e Zero Hora noticiavam fatos demograficamente irrelevantes, como a chegada de pequenos grupos de africanos na Rodoviária de Porto Alegre (Uebel, 2016).
Durante a administração Dilma Rousseff, a imigração africana despertou, portanto, também o interesse dos agentes públicos e instituições da Administração Federal, como o MJ, MRE e o próprio judiciário, por meio do Ministério Público Federal e Advocacia-Geral da União, conforme apontou Silva (2013) em sua tese. Sob um prisma quase que realista das Relações Internacionais, o novo governo brasileiro viu-se no centro de um debate que se esboçava desde a chancelaria de Celso Amorim, entretanto, teria maturidade para se concretizar apenas —e apenas mesmo— em 2014, o ano mais propício para se conjecturar uma resposta do governo federal às demandas da população brasileira e da população imigrante, entre ela, os africanos. O mapa da figura 2 a seguir ilustra os países de origem da imigração africana para o Brasil e suas especificidades geopolíticas e geoeconômicas.
Como é possível notar, o mapa anterior concede um destaque para os senegaleses, ganeses e pequenos grupos, porém, relevantes, oriundos de outros países da costa oeste africana. Essa questão está intimamente ligada à nossa argumentação de que a política externa migratória[4] de Dilma Rousseff colheu os frutos da versão de Lula da Silva e concentrou seus esforços mais nas repercussões qualitativas do que nas quantitativas.
Assim, começamos a discussão por meio da imigração permanente —seguindo as terminologias classificativas da Polícia Federal (PF)— cujo número de africanos imigrados no Brasil entre 2011 e 2016 foi de 7820, ou seja, 35 % dos fluxos totais, e que observou uma anticiclicidade: crescimento constante, boom e declínio, conforme demonstra a figura 3:
Embora menores do que os fluxos temporários, como na época da administração Lula da Silva, os imigrantes permanentes de origem africana seguiram a mesma tendência dos fluxos gerais e continentais africanos: um crescimento estável entre 2011 e 2013, um boom em 2014 e um declínio a partir de então.
Ventura (2017) em sua exposição explica que a imigração de profissionais qualificados para o Brasil seria cíclica enquanto durasse o ciclo de crescimento do país, ao contrário de outros países como França, Espanha e Itália, por exemplo, que continuaram a receber fluxos elevados de africanos mesmo durante a crise do Euro em 2012.
Para o caso brasileiro, ocorre uma combinação de duas frentes: 1) as características das próprias migrações de perspectiva; e 2) as redes de informação dos imigrantes já estabelecidos no Brasil. No que se refere às características das migrações de perspectiva, entendemos um conjunto de habilidades e peculiaridades, como a capacidade de antever cenários propícios ou não à migração, o conhecimento da conjuntura do país que será escolhido como destino, e um certo know-how ou experiência anterior em migrar.
Ou seja, os imigrantes africanos que estabeleceram o Brasil como destino tinham conhecimento, ainda que limitado, sobre o país que encontrariam, o que acaba por explicar o declínio dos fluxos anuais a partir de 2014 e o próprio boom daquele ano. Só por esse fato já se tornar injustificável o pleito que muitos optaram por seguir com a solicitação de refúgio; evidentemente era uma migração de perspectiva bem planejada.
A tabela 2 a seguir, nesse contexto, informa o ranking por país de origem desses imigrantes africanos permanentes, bem como a sua divisão por ano e representação no cômputo do estoque imigratório para o período de 2011 a 2016.
Em relação ao período anterior, há uma sensível mudança de posições dos senegaleses e ganeses, que passaram a ocupar, respectivamente, a terceira e quinta posição; anteriormente, ocupavam a quinta e a décima-quarta, o que indica fenômenos novos e justifica em parte o redirecionamento das discussões acadêmicas sobre esses dois grupos nos últimos anos.
Todavia, debalde essa mudança no ranking, há que se observar a liderança isolada das migrações permanentes de angolanos e nigerianos para o Brasil, que em relação ao período anterior, aumentaram expressivamente a sua presença no país —angolanos— ou mantiveram uma participação estável —nigerianos—.
As nacionalidades que reduziram a sua presença migratória anual foram justamente aquelas oriundas dos demais PALOPs em comparação a 2003-2010, um indicativo de que a recuperação econômica de Portugal e a mudança na política imigratória do Canadá, seus principais países de destino, favoreceu a retomada das migrações para ambos, deixando o Brasil como uma alternativa menos preferida, especialmente se considerarmos o declínio da economia brasileira a partir de 2014 com as sucessivas crises.
Deste modo, a mapa da figura 4, elaborado com uso do Excel, colabora na ilustração da origem de tais fluxos de imigrantes permanentes:
O mapa da figura 4 demonstra, por exemplo, que fluxos tradicionais como de sul-africanos e moçambicanos, ficaram em patamares muito inexpressivos na administração Dilma Rousseff, provavelmente também em virtude da retração da projeção da política externa migratória de seu governo para a África como um todo, apesar da epígrafe desse artigo demonstrar uma posição diferente da então presidente. Já o número elevado de angolanos se dá pelo fato das relações históricas entre Brasil e Angola e os intercâmbios nos campos educacionais e científicos, que datam desde o período de redemocratização do Brasil nos anos 1980, causando, portanto, a discrepância entre aquele país africano e os demais no contingente registrado no mapa anterior.
As obras de infraestrutura e a inserção de empresas brasileiras no continente africanos, mormente financiadas com recursos do governo brasileiro, como aqueles do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foram sumariamente impactadas pelos escândalos e denúncias de corrupção no âmbito da Operação Lava Jato, o que acabou por interromper, quase que por completo, as suas operações na África e, por conseguinte, cessar o fluxo migratório de trabalhadores africanos para o Brasil.
Assim, a figura 5 ilustra os principais grupos imigratórios de africanos permanentes no Brasil no período em análise, a fim de contribuir com as discussões até aqui levantadas.
Se antes angolanos e nigerianos dividiam a esfera gráfica, agora fica evidente a predominância da imigração angolana permanente para o Brasil. No contexto das migrações de perspectiva dos angolanos, a situação de crise política, econômica e social naquele país africano foi o fator preponderante para a emigração de muitos dos seus nacionais.
Outra mudança significativa, que já aventamos ao longo dessa seção, foi a presença maior de grupos não oriundos dos PALOPs, a saber: senegaleses, egípcios, ganeses, marroquinos e sul-africanos. De fato, a proximidade linguística e cultural que outrora servira de ponte entre o Brasil e aqueles países não mais era motivo para uma migração cara, cansativa e sem a perspectiva de melhores oportunidades no Brasil de Dilma Rousseff.
Por outro lado, a imigração desses “novos grupos” se justificou, conforme já abordamos, por uma conjunção de fatores, dentre eles, as facilitações oriundas dos vistos para a Copa do Mundo de 2014, que permitiram a admissão franqueada em território brasileiro, ainda que jamais pudesse garantir oportunidades de trabalho ou refúgio, ao passo em que não era a finalidade de tal visto.
Para finalizar e já lançarmos as bases para a discussão sobre a imigração temporária de africanos, os dados acima corroboram a nossa afirmativa de que senegaleses e ganeses, majoritariamente, migravam com uma perspectiva de permanência para o Brasil, amparados nas facilidades do visto supramencionado, entretanto, com a dinamização da crise, se tornou insustentável a sua estadia no Brasil.
Deste modo, apesar de permanentes e não aparecerem de forma significativa nos fluxos temporários, poderíamos classificá-los apenas em uma única categoria: imigrantes de perspectiva. Considerando isso, um dos argumentos deste artigo é que não se pode mais estudar e analisar os fluxos imigratórios no Brasil apenas com as categorias propostas pela PF, permanentes e temporários, e, portanto, se faz necessária a criação dessa nova classificação de imigração de perspectiva que abordamos já em Uebel (2018), além de ser inédita no campo dos estudos migratórios, tanto na literatura brasileira como na estrangeira[5].
Representando aproximadamente 65 % dos fluxos migratórios de africanos, a imigração temporária também acompanhou uma dinâmica de crescimento, boom e declínio, assim como a de permanentes. Em 2016, por exemplo, o cômputo foi menor que os patamares de 2011, indicando que, se a imigração permanente já não era mais vantajosa, a temporária seria menos interessante ainda, nomeadamente para estudantes e profissionais temporários de multinacionais.
A figura 6 a seguir representa esse processo que é partícipe dos fenômenos globais que estamos a discutir.
Apesar desse declínio, que outrora colocara o Brasil como ator ativo na agenda e rotas internacionais de migrações, o estoque de imigrantes temporários africanos em 2016 era 261 % maior que aquele verificado em 2003, novamente, indicadores muito expressivos para um país que engatinhava na cena migratória global.
Posto isso, o estoque migratório total para o período de 2011 a 2016 foi de 14 026 imigrantes temporários, divididos conforme a tabela 3 a seguir, com o respectivo ranqueamento e distribuição anual.
Apenas cinco nacionalidades tiveram mais de mil imigrantes temporários no Brasil entre 2011 e 2016: angolanos, moçambicanos, guineenses (Guiné-Bissau), cabo-verdianos e sul-africanos, exatamente a mesma composição que o período estudado anteriormente. Os PALOPs também predominaram na concessão de bolsas de estudos de pós-graduação e nas autorizações de trabalho, conforme veremos mais adiante.
Mesmo assim a presença de migrantes dos PALOPs foi menos representativa que entre 2003 e 2011, posto que antes somavam 75 % e agora 64 %; assim como a imigração permanente, parece ficar evidente que novas nacionalidades fizeram parte do conjunto imigratório africano no Brasil, como explica a figura 7.
A predominância dos PALOPs pode ser explicada também pela manutenção dos acordos de cooperação entre o Brasil e aqueles países de origem no primeiro mandato de Dilma Rousseff. No segundo mandato, que foi apenas para conter as convulsões internas e a tempestade do impeachment que se aproximava, a África tornou-se praticamente esquecida para a presidente e para o próprio Itamaraty.
Se durante o governo Lula da Silva a África foi “redescoberta” pelo Brasil e este foi “redescoberto” pelos africanos, na administração de sua sucessora, aparentemente, o esquecimento condicionado foi colocado em prática por um lado, e a então alternativa do “sonho brasileiro” se tornara um “pesadelo” àqueles que migrariam, ou seja, uma migração de perspectiva equivocada.
Para finalizar essa seção, trazemos o mapa da figura 8, que apresenta os países de origem dos fluxos temporários da imigração africana para o Brasil durante o governo Rousseff, conforme segue:
A cartografia temática é sempre muito mais expressiva do que dados brutos, gráficos ou tabelas, como fica evidente no mapa da figura 8. Apenas angolanos, moçambicanos e sul-africanos realmente apresentam uma tendência demográfica e migratória relevante, ainda mais se incorporados à análise global.
Não obstante, nas entrelinhas da cartografia e de seus dados formadores, a big data, como coloca a literatura contemporânea, fenômenos podem passar desapercebidos ao olhar crítico do investigador de estudos estratégicos internacionais, porém, não pela imprensa e pelo senso comum. Estamos a falar, assim, das migrações de senegaleses e nacionais da costa oeste africana, cujas peculiaridades retrataram um panorama quantitativamente irrelevante, mas sociologicamente sobressalente, que analisaremos na próxima seção.
Imigração senegalesa e oeste-africana
A imigração senegalesa e oriunda de outros países da costa oeste africana já foi amplamente discutida e analisada nos últimos anos por autores como Tedesco e De Mello (2015) e Herédia (2015), além de ter sido tema de nossa dissertação de mestrado (Uebel, 2015) com novas informações e atualizações sobre o tema.
Entretanto, é mister que discutamos aqui a relação desse fenômeno com a política externa migratória brasileira e a incursão do conceito de migrações de perspectiva dentro das trajetórias de imigrantes da costa oeste africana, já que temos a forte presença do caráter governamental brasileiro no fomento, ainda que subjetivo, desses fluxos.
Entre 2011 e 2016, cerca de 3.5 mil imigrantes oriundos do Senegal, Gana, Nigéria, Benin, Camarões, Costa do Marfim, Togo e Guiné migraram para o Brasil, além daqueles provenientes dos PALOPs. Apesar de quantitativamente irrelevantes se comparados com os angolanos —não representam nem 50 % da imigração total angolana—, as duas dinâmicas e provocações ao debate da reformulação da agenda de políticas migratórias do Brasil foram extremamente relevantes, bem como as consequências verificadas na sociedade, por meio da xenofobia crescente entre os brasileiros, como na imprensa e sua abordagem sensacionalista.
O mapa da figura 9 a seguir traz a intensidade desses fluxos oriundos da costa oeste africana, além de informações quantitativas sobre esses grupos muito interessantes sob uma perspectiva dos estudos migratórios brasileiros, já que se trata de mais uma imigração peculiar para um peculiar Brasil.
Por que essas migrações foram motivadas por uma agência governamental subjetiva? Primeiro, há que se rememorar que os fluxos oriundos desses países, exceto o de nigerianos, era muito inexpressivo até 2014, quando sofreram um verdadeiro boom, conforme os termos da literatura de estudos migratórios corrente. Ou seja, a imigração de perspectiva só poderia ser influenciada por uma variável externa muito mais forte e que tornasse o Brasil uma alternativa mais atrativa que a União Europeia e o Canadá.
Segundo, e aí inserimos a resposta ao questionamento anterior, é a ocorrência de dois eventos que se complementaram e criaram o ponto de atração aos senegaleses e demais oeste-africanos: a Copa do Mundo de 2014 e a facilitação dos vistos para todas as nacionalidades, fato este que se repetiria nas Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 e facilitaria o ingresso de cubanos, venezuelanos e sírios no Brasil, fato que discutiremos mais adiante.
Conforme reportagem vinculada em 2014, e repercutida amplamente na imprensa brasileira, esses imigrantes:
Todos eles entraram no país com visto de turista, concedido com base na Lei Geral da Copa – permite a permanência no país por noventa dias. Segundo a freira Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, que ajuda na organização do abrigo no Seminário Nossa Senhora Aparecida, nenhum africano tinha ingresso para as partidas da Copa do Mundo. “Vieram para trabalhar mesmo, alguns chegaram com a roupa do corpo”, diz ela. (Zylberkan, 2014)
A permanência dos noventa dias garantidos pelo visto de turista da Copa do Mundo, o “visto da Copa”, foi o elemento-chave que permitiu a chegada considerável de imigrantes oeste-africanos no território brasileiro entre 2013 —quando começou a vigência dessa prática— e 2014, ano da realização do evento esportivo nas cidades brasileiras.
Ademais, se analisarmos os dados gerais apresentados nas primeiras tabelas desse artigo, veremos que os influxos de oeste-africanos diminuíram imediatamente após 2014, mesmo com o estabelecimento de sólidas redes de atenção a estes imigrantes, além de associações criadas pelos próprios e suas familiares.
Assim, desponta mais uma característica da imigração de perspectiva: a sua rápida dinâmica e o desacompanhamento ao mesmo passo por parte dos entes públicos. Trata-se de uma imigração que traz consigo um boom, uma rápida inserção e capilarização no país e sociedade de acolhimento e que também, com a mesma velocidade, emigra ou remigra para outros países, caso não logrado o sucesso almejado quando da imigração.
Poder-se-ia afirmar que a imigração de perspectiva, detentora de tais características, seria uma espécie de imigração golondrina, conforme já especificado, entretanto, nem mesmo aqueles categorizados como golondrindos, até então, tiveram dinâmicas de chegada, inserção e saída tão rápidas e perceptíveis por parte dos estudiosos e analistas do tema.
Cabe tomar como exemplo o caso de imigrantes brasileiros na Oceania, que de certa forma seguiram uma dinâmica rápida e um boom, propiciado também por redes sociais e de trabalho nacionais e regionais —argentinos e uruguaios também migraram com certa intensidade para a Austrália e Nova Zelândia—, todavia, ao se depararem com cenários de trabalhos braçais, não qualificados e informais, ao contrário dos oeste-africanos, não retornaram ao Brasil em um primeiro momento.
Outrem poderia argumentar que a imigração de nipo-brasileiros, que também é muito peculiar e temporal, de acordo com os cenários econômicos e laborais de Brasil e Japão, é um caso igual àqueles que estamos a discutir aqui, contudo, olvida-se de um elemento indispensável: a relação familiar, consanguínea e histórica inerente a esses fluxos. Os Oeste-africanos que estamos a discutir não possuíam esses laços prévios com o Brasil e, em sua maioria, não o criaram a partir de sua chegada ao país[6].
Não foi oportunizado o acesso aos dados de concessão destes Vistos da Copa para qualquer nacionalidade, apesar de nossas atuações constantes junto ao MRE e Ministério do Turismo, porém, é possível ter uma estimativa com a informação que segue:
Levantamento mais recente do Ministério da Justiça mostra que foram emitidos 8.767 vistos para ganenses durante a Copa e 2.529 entraram efetivamente no País desde então. Desses, 1.397 já deixaram o Brasil e 1.132 permanecem por aqui. Os pedidos de refúgio encaminhados ao Conare chegam a 180. (Ganenses com visto para a Copa tentam vida no Brasil, 2014)
Os dados, apesar de destoantes daqueles que obtivemos junto à PF, indicam que sim, foi a concessão do Visto da Copa que permitiu a admissão e trajetória desses fluxos no Brasil. Em relação aos fluxos, retomamos o mapa que apresentamos em 2015, agora na figura 10 a seguir.
Além das rotas apresentadas no mapa da figura 10, após a sua elaboração, que foi baseada em informações obtidas com os próprios imigrantes senegaleses —e que também ilustra as rotas dos demais oeste-africanos, com pequenas variantes— outras trajetórias foram descobertas, como essa:
A porta de entrada no país foram os aeroportos de São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e Natal (RN), este último o único destino de voos diretos do país africano para o Brasil. Os demais fizeram conexões em aeroportos da África do Sul, do Marrocos e dos Emirados Árabes até desembarcar no Brasil. Das capitais, seguiram de ônibus até Caxias. (Zylberkan, 2014)
Invocando motivações políticas, que acabaram por não se confirmar a partir de consultas do MJ e dos postos diplomáticos do Brasil na África, os oeste-africanos solicitaram refúgio e asilo político no Brasil antes do vencimento da sua permanência concedida pelo Visto da Copa, o que comprovaremos mais adiante na seção específica sobre o tema. Deste modo, além de ser uma imigração de perspectiva, era foi essencialmente baseada em ambições laborais e econômicas.
Como a intensidade foi passageira e estatisticamente irrelevante, se compararmos com os demais fluxos —por exemplo, só o número de portugueses ou norte-americanos que imigraram definitivamente para o Brasil foi 42 % maior em 2014—, o que justificou a sua ampla exposição foram quatro fatores, que abordaremos agora:
1) Exposição midiática excessiva: a abordagem da imprensa brasileira, desde veículos mais conservadores, como a Revista Veja, até mais progressistas, como a Carta Capital, foi baseada em um sensacionalismo exacerbado e misturado com humanitarismo midiático, tradicional da imprensa brasileira. Reportagens especiais semanais, envio de repórteres aos abrigos de imigrantes nas fronteiras brasileiras, notícias diárias com quantitativos irrelevantes, como a chegada de senegaleses em rodoviárias municipais (Quatro haitianos e dois senegaleses chegam a Porto Alegre, 2015), alusão ao risco da disseminação do vírus ebola no Brasil pelos imigrantes (Sanches, 2014) —no mesmo ano ocorrera uma pandemia da doença no mundo— deram a tônica que propiciou a exposição de tais grupos no Brasil, além da sua visibilidade pela cor da pele, negra, e anamnese assimilativa com a crise migratória do Mediterrâneo.
2) Intensificação dos episódios de xenofobia e sentimento de aversão aos imigrantes: não raros foram os comentários jocosos e preconceituosos de brasileiros, inclusive afrodescendentes, nas redes sociais e nas interações presenciais, em relação à chegada dos oeste-africanos no país, aparelhados com a prática racista existente no Brasil e com a exposição midiática supramencionada. Nesse contexto, episódios de agressões físicas a africanos (Senegalês tem o corpo queimado enquanto dormia em Santa Maria, 2015), discursos de ódio de políticos (“Vieram trazer mais pobreza”, diz vereador sobre imigrantes no RS, 2014) e hostilidades de cidadãos comuns (Santos, 2016) —autodenominados “cidadãos de bem”— foram corriqueiros a partir de 2014, e se misturaram às instabilidades, polaridades e maniqueísmos em ascensão no Brasil, dado o cenário político instável, vigente até o momento em que este artigo é escrito. Apesar de outrora ser considerada uma sociedade cordial (Holanda, 1998), a sociedade brasileira demonstrou, lamentavelmente, diversos episódios de intolerância para com imigrantes africanos e haitianos, especialmente, o que serviu de aporte para o despertar de interesse em relação ao tema por parte da academia, posto que, quantitativamente, foram fluxos de pequeno corte e relevância.
3) Tratamento estatal e governamental: a chegada desses novos imigrantes e a conseguinte exposição mencionada nos dois tópicos anteriores provocou também a sensibilidade do aparato estatal e governamental brasileiro, que já se via dentro de um profundo debate em relação aos imigrantes haitianos desde 2010. Nesse sentido, a atuação das políticas públicas foi verificada de duas formas: a) acolhimento e inserção no mercado de trabalho, mormente a cooperação ativa de instituições religiosas, ONGs e órgãos do terceiro setor; e b) endurecimento, acossa e vexação daqueles oeste-africanos que praticaram o comércio informal e irregular, os populares e históricos camelôs, como bem retrata a atuação do Estado policial na figura 11.
4) Ressignificação das fronteiras terrestres: a chegada desses imigrantes pelas fronteiras do Norte do Brasil com a Bolívia, Peru e, em menor grau, com as três Guianas, não apenas redesenhou o papel destas nas relações transfronteiriças, mas também as ressignificou quanto à importância dos fluxos migratórios com direção ao Brasil. Ademais da imigração tradicional fronteiriça e de mercosulinos, nunca o Brasil presenciara fluxos migratórios internacionais nas suas fronteiras terrestres. A normalidade até o século XX era a via marítima e após a Segunda Guerra Mundial a via área. O município de Brasiléia, estado do Acre, fronteiriço com Cobija, Bolívia (figura 12) onde estivemos em pesquisa de campo em 2014 retratou bem o Brasil das novas migrações terrestres, como a dos oeste-africanos. Não apenas a infraestrutura municipal foi repensada, mas também o aparato federal, com o deslocamento, ainda que temporário, de agentes da Polícia Federal, Receita Federal, Itamaraty, MJ e Forças Armadas para o acolhimento desses imigrantes, que já eram de uma segunda onda, posto que a primeira foi dos haitianos.
É possível notar, portanto, como a dinâmica da imigração oriunda costa oeste africana foi determinante para a reorientação e posterior ruptura da política externa migratória de Dilma Rousseff, que arrazoaremos na próxima seção, esta dedicada às considerações finais.
Considerações finais
Na primeira seção do artigo revisamos e apresentamos o perfil das migrações africanas para o Brasil de 2011 a 2016, bem como aprofundamos os nossos conceitos de migrações de perspectiva e política externa migratória brasileira, então com novas agendas, atores e cenários. Depreendemos naquela seção, por exemplo, a existência de um contingente migratório de mais de um milhão de indivíduos, sendo os africanos o segundo maior grupo, apenas atrás de latino-americanos, na proporcionalidade do crescimento dos fluxos migratórios.
Se Rousseff não cumpriu os oito anos de mandato, também é possível inferirmos, conforme discorremos nas discussões deste artigo, que as migrações para o Brasil também quebrariam um ciclo de transição, ao contrário do que se imaginava à época.
Foi justamente na sua administração em que ocorreu a primeira tentativa governamental brasileira de se criar uma política imigratória nacional desde a época do Império, com a realização da COMIGRAR em 2014, e também o fim da agenda de políticas públicas migratórias, com a paralisação do governo Rousseff já no final de 2015, com a abertura do processo de impeachment.
Durante esse período de 2011 a 2016, além desses dois pontos de inflexão, outros fatores contribuíram para que as imigrações internacionais alcançassem uma visibilidade até então não vislumbrada, mas que já se desenhava no último ano da administração Lula da Silva. Essa visibilidade pode ser definida pela inserção social dos imigrantes, midiatização da sua chegada e integração e também por questões étnico-raciais atreladas à xenofobia social.
As imigrações em massa de senegaleses e oeste-africanos, além da criação do Programa Mais Médicos, que fomentou a imigração laboral de médicos de diversas nacionalidades, criaram um ambiente de rediscussão da política externa migratória brasileira no seio do governo Rousseff. Depois dos governos de Pedro II e Lula da Silva, foi a administração Rousseff que mais atenção deu às questões migratórias em sentido amplo, interministerial e multitemático.
Esse cenário, por fim, criaria as bases para a renovação também da legislação migratória, então vigente desde a ditadura civil-mil afitar, com o Estatuto do Estrangeiro. É nos últimos momentos do agonizante governo de Dilma Rousseff que a tramitação da nova Lei de Migração passa a ganhar fôlego no Congresso Nacional, de forma totalmente modificada e recortada pelo futuro chanceler de Michel Temer, o então senador Aloysio Nunes Ferreira.
De um país que observava o crescimento dos fluxos imigratórios africanos, rapidamente as migrações de perspectiva transformaram o Brasil em um país de emigrações de estrangeiros e remigrações internacionais. O projeto de uma política imigratória de referência acabou por se transformar em uma Lei de Migração moderna, porém, modificada quanto aos seus princípios humanitários e multiculturais e promulgada por um presidente não eleito, impopular e avesso ao que vinha se discutindo no campo governamental das migrações desde 2003, ou seja, um expoente da ruptura; por este motivo, nossa análise quantitativa se concentrou até 2016.
Deste modo, podemos afirmar que o ponto de ruptura da política externa migratória brasileira foi 2014, o ano que, em seu começo, prometia uma reestruturação legal migratória, com as conferências regionais sobre migrações e refúgio e que deveria culminar na aprovação da nova Lei de Migração —não a aprovada em 2017—, acabou findando com o ano de um governo reeleito, mas que acabou não se sustentando, como bem registra a História.
Logo, o período de crescimento dos fluxos imigratórios de africanos durante a administração Rousseff pode ser explicado como uma combinação resultante das ações da administração anterior com outras questões que fogem da ação direta e objetiva do governo brasileiro —mas subjetivamente capitaneadas por este—, constantes na questão dimensional que já abordamos, mas aqui retomamos: 1) a participação do país em missões humanitárias na África; 2) o Programa Mais-Médicos; 3) os programas de cooperação e concessão de bolsas de estudo e pesquisa; 4) a propagandização do país pelas redes migratórias e internacionais do trabalho como uma alternativa aos Estados Unidos, União Europeia e demais destinos tradicionais.
Postas essas questões, é possível concluir, portanto, que as migrações internacionais de africanos para o Brasil, em geral, durante o governo Dilma Rousseff, 2011 a 2016, foram motivadas por tais fatores: a) continuidades de fluxos imediatamente anteriores; b) posição do Brasil como alternativa facilitada e imediata se considerados os destinos tradicionais na Europa e América do Norte; c) migração subvencionada a partir de um plano de inserção estratégica. Como característica de ruptura enquadram-se os fluxos de europeus, norte-americanos, asiáticos e também de parcela de africanos. Essa questão está intimamente ligada à nossa argumentação de que a política externa migratória de Dilma Rousseff colheu os frutos da versão de Lula da Silva e concentrou seus esforços mais nas repercussões qualitativas do que nas quantitativas.
Considerado isto, podemos afirmar que o Brasil, apesar de todos os tensionamentos políticos, institucionais, econômicos e sociais que sentiu desde 2014, alcançou um novo patamar na forma de tratar a questão imigratória africana. Assim, nesse âmbito, emerge mais uma característica da imigração de perspectiva: a sua rápida dinâmica e o desacompanhamento ao mesmo passo por parte dos entes públicos.
Trata-se de uma imigração que traz consigo um boom, uma rápida inserção e capilarização no país e sociedade de acolhimento e que também, com a mesma velocidade, emigra ou remigra para outros países, caso não logrado o sucesso almejado quando da imigração, conforme os dados recentes já apontam em seus direcionamentos, e que abrem uma agenda de pesquisa futura sobre a emigração africana a partir do Brasil na transição dos governos progressistas recentes para uma administração de viés ultraconservador e anti-imigração.
Agradecimientos
Pesquisa resultante da tese doutoral “Política externa migratória brasileira: das migrações de perspectiva à hiperdinamização das migrações durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff”, defendida em dezembro de 2018 no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. A pesquisa foi financiada com recursos do programa de bolsas “Demanda Social” da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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Notas
Información adicional
Cómo citar: Georg-Uebel R.
R. (2020). Perfil
da imigração africana no Brasil durante o governo Dilma Rousseff (2011-2016): o
caso dos senegaleses e oeste-africanos.
FORUM. Revista Departamento Ciencia Política, 18, 91-123. https://doi.org/10.15446/frdcp.n18.79574