Resumos de livros
A história! Como ela nos relembra e traz sempre para o presente acontecimentos marcantes do passado que continuam a (re)desenhar o nosso futuro, mas que teimamos em ignorar. E é precisamente isso que a presente obra de José Luís Mendonça nos vem, mais uma vez, relembrar. E foi com o objetivo de se desafiar, assim como aos leitores, que o autor nos brinda com Se os ministros morassem no musseque, escrita entre 2010 e 2012, numa adaptação mais simples do seu romance “O Reino das Casuarinas”, um excelente exercício de reflexão crítica sobre aqueles que foram os primeiros 20 anos da Angola independente, um “período crucial da história de Angola” (p. 5), que nos ajuda a compreender como se moldou o sistema económico, político, social, educativo e cultural que rege o nosso quotidiano.
A obra romanceada propõe-se assim a um exercício de memória, que deve prevalecer, aliada a uma erudição inter e transdisciplinar, o que faz com que a sua leitura, análise e interpretação constitua, acima de tudo, um desafio. Ao dedilhar brilhantemente alguns acontecimentos históricos, outros do quotidiano, como o recolher obrigatório por conta da situação de guerra, que enformaram, de certa forma, não só a vida e os modos de vida dos angolanos no geral, mas sobretudo as suas referências e emoções, como nos é retratado pela personagem principal do romance, Primitivo, nome de guerra de um ideólogo da causa angolana, sucumbido ante à “ilustração do pior drama da independência: a negação do homem negro pelo próprio negro no poder” (p. 83), José Luís Mendonça dá-nos assim as primeiras pistas para entendermos como e porquê desconseguimos Angola.
Particularmente interessante é a sua reflexão em torno de questões cruciais que continuam atuais, tais como: a narrativa em torno da raça, uma herança da política colonial que continuou a orientar os desígnios do país - Primitivo era ele próprio “considerado um cabrito” (p. 13) - o aumento do número e “condição de mutilado de guerra” (p. 9), os “trágicos acontecimentos do 27 de maio de 1977” (p. 6), que, entre outras consequências, silenciou “as mágicas vozes do semba, David Zé, Artur Nunes e Urbano de Castro” (p. 52), as referências culturais aos célebres poetas Ernesto Lara Filho e António Jacinto, e, como não podia deixar de ser, à economia nacional, planificada, depois liberalizada mas sempre com a presença do setor informal, garante da sobrevivência diária dos angolanos no geral.
De realçar ainda acontecimentos históricos-políticos que continuam presentes nos debates atuais, como “o acampamento de famílias de eurodescendentes” (p. 24) no aeroporto de Luanda, os conhecidos retornados que partiam em busca de segurança e melhores perspetivas de futuro, a instalação da “nova vaga de revolucionários, maoístas, marxistas-leninistas e comunistas radicais…” (p. 28), a ideologia do movimento de libertação que assumiu a governação do país, de implantação de uma “ditadura do proletariado” (p. 30) e disciplina da “pequena burguesia urbana” (p. 30) e do “lumpen proletariado” (p. 30), narrativa ancorada em passagens dos discursos do primeiro presidente e guia imortal da nação, Dr. António Agostinho Neto, entre outros.
É caso para nos perguntarmos se estamos diante de uma consolidação do projeto de país que queríamos ter, ou apenas em presença de um momento que teima em se perpetuar. E aqui uma vez mais a história, com as suas curvas e contracurvas, a chamar-nos a atenção para as nossas vivências. Trata-se, de fato, de uma fonte de informação que procura acima de tudo despertar em nós reflexões que nos permitam compreender o presente e, acima de tudo, tal como afirma o editor Jesus Domingos (Wassandjuka Ukwakusima) logo nas primeiras páginas, “pensarmos e repensarmos Angola” (p. 4).