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O processo de modernização do futebol na América Latina: uma mirada em muitas perspectivas
El proceso de modernización del fútbol en América Latina: una mirada a muchas perspectivas
The modernization process of soccer in Latin America: a look at many perspectives
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 18, núm. 2, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidad: Semestral
vol. 18, núm. 2, 2021

Recepción: 21 Julio 2021

Aprobación: 11 Agosto 2021


Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivar 4.0 Internacional.

Resumen: Este artículo pretende elaborar un breve análisis sobre el impacto de las intervenciones modernas en el espectáculo futbolístico, especialmente el factor mercantil como determinante en este proceso. Además, presenta la estructura general del Dossier "Soy loco por ti, futebol", que aporta diversas perspectivas sobre el movimiento de modernización del fútbol en América Latina, así como sus artículos, autores y secciones. La primera parte del artículo aborda las reflexiones sobre los cambios provocados por este nuevo escenario, empezando por los aficionados y los estadios, en el caso de Brasil. Este debate se establece desde la perspectiva de dos experiencias concretas: el juego de fantasía llamado Cartola F.C.; y la estandarización estética de los nuevos estadios de fútbol, pensados espacial e identitariamente como "arenas". Por último, se contextualizan los artículos de este dossier al lector, describiendo el ámbito central de cada texto, así como las otras secciones que componen este documento, a saber, una entrevista y una reseña.

Palabras clave: Fútbol, Hincha, Modernización, Dossier.

Resumo: Este artigo tenciona elaborar uma breve análise sobre o impacto das intervenções modernas no espetáculo futebolístico, notadamente o fator mercantil como determinante neste processo. Além disto, apresenta também a estrutura geral do Dossiê “Soy loco por ti, futebol”, que traz diversos olhares sobre o movimento de modernização do futebol na América Latina, assim como evidencia também seus artigos, autores e seções. Para tanto, num primeiro momento, aborda-se as reflexões sobre as mudanças provocadas neste novo cenário a partir do torcer e dos estádios, no caso brasileiro. Este debate é estabelecido sob a ótica de duas experiências específicas: o fantasy game chamado Cartola F.C.; e a padronização estética dos novos estádios de futebol, pensados espacial e identitariamente como “arenas”. Por fim, os artigos integrantes deste Dossiê são contextualizados ao leitor, descrevendo-se o escopo central de cada texto, bem como as demais seções que compõem este documento, a saber uma entrevista e uma resenha.

Palavras-chave: Futebol, Torcer, Modernização, Dossiê.

Abstract: This article intends to elaborate a brief analysis about the impact of modern interventions in the soccer spectacle, especially the mercantile factor as a determinant in this process. It also presents the general structure of the Dossier "Soi loco por ti, futebol", which brings several perspectives about the modernization movement of soccer in Latin America, as well as its articles, authors and sections. For this purpose, in a first moment, the reflections about the changes provoked in this new scenario are approached, starting from supporters and stadiums, in the case of Brazil. This debate is established from the point of view of two specific experiences: the fantasy game called Cartola F.C.; and the aesthetic standardization of the new soccer stadiums, thought spatially and identitatively as "arenas". Finally, the articles that make up this Dossier are contextualized for the reader, describing the central scope of each text, as well as the other sections that make up this document, which are an interview and a review.

Keywords: Soccer, Support, Modernization, Dossier.

Introdução

Apresentar um Dossiê que tem no seu escopo central a interface entre futebol, América Latina e modernização é, sem dúvida alguma, um desafio enorme, mas igualmente prazeroso. Primeiro, porque colocamos em protagonismo temas caros para os estudos das ciências sociais e humanas, promovendo um diálogo plural, necessário e incomum. Em que pese o fato da modernização mercadológica e seus efeitos na estrutura social do continente latinoamericano ser objeto de múltiplas análises nos últimos anos, perpectivar este debate à luz do interior do fenômeno futebolístico representa uma novidade, senão mesmo uma ousada tentativa. Em segundo lugar, pelo intercâmbio extremamente frutívero que este documento produziu, e que as leitoras e leitores comprovarão nas páginas seguintes. Neste sentido, desde já agradecemos imensamente a participação de todos os pesquisadores envolvidos neste projeto, e pela riquíssima contribuição que aqui se materializa.

Antes de fazermos um sobrevoo sobre a estrutura do Dossiê, teço algunas breves considerações sobre o tema e seus desdobramentos. O futebol, ao longo deste último século e meio, se constituiu em um dos mais potentes fenômenos da coletividade humana, dada à sua espraiada penetração nos mais variados espaços da dinâmica social. Estabelecendo relações com aspectos como economia, política, ethos identitário, espaço urbano, grupos sociais, gênero, raça, dentre outros, o chamado “esporte bretão” se consolidou como um dos principais fatos sociais neste tempo. Portanto, se lança assim como um privilegiado objeto de chave de leitura para compreensão da realidade social. Nesta perspectiva, não ficaria, tanto como não ficou, alheio ao processo de rápidas e intensas mudanças promovidas pelo recente evento da globalização/modernização capitaneada e potencializada pelas intervenções mercadológicas.

Sem pretender avançar demasiado nas teorias conceituais que abrangem modernidade/modernização, entendemos este processo como uma “consciência moderna, resultante e estruturante de uma nova política, de uma nova estética, de uma nova ética” (BARROS, 2001, p. 23). Assim pensando, percebemos que o futebol se reconfigurou exatamente a partir desta lógica: uma nova política, uma nova estética, uma nova ética.

A recente experiência de sediar uma Copa do Mundo fez com que o Brasil adotasse sistematicamente esse modelo de gerenciamento do futebol. A dinâmica do futebol-espetáculo e mercadológico se materializou na construção das arenas, mas acontece sub-repticiamente em ações como: maior investimento dos clubes em uma gestão empresarial; sócio-torcedores como política estruturante (o que abala fortemente o sentido das torcidas organizadas); justificativa para ingressos caros (já que o serviço ofertado será de maior qualidade); aposta em mídias sociais e ferramentas virtuais de promoção do clube; retorno financeiro a partir da exploração da marca do clube em produtos oficiais (as lojas oficias físicas e virtuais cresceram enormemente); incremento do retorno televiso através dos programas de pay-per-views. Neste sentido, e para dizer mais de perto do caso brasileiro, ao qual tenho maior proximidade, lanço mão de duas miradas para explorar a análise deste processo/fenómeno: o torcer e os estádios. No caso do torcer, contextualizo a partir da vivência do “gameshow” Cartola F.C., para dizer da reconfiguração da relação torcedor/clube em um panorama dominado pela mercantilização moderna do espetáculo. Quanto aos estádios, invisto na perspectiva de criticar sua padronização estética, tornando a apropriação da experiencia asséptica e pasteurizada.

O Cartola F.C.: uma nova ética do torcer?

O que faz um torcedor cruzeirense vibrar efusivamente com os gols do atacante rival atleticano Hulk? Esta é uma questão merecedora da mais profunda análise, em que pese uma aparente falta de relevância: estaria o torcer passando por uma ressignificação mutante – do fanático para o flanêur[1] – em função de um game que trata exatamente sobre o jogo do futebol? A visão mercadológica teria força suficiente para promover a subversão torcedora? Para obliterar uma paixão?

Tentando alcançar algumas respostas, sou sabedor de que a reflexão questionadora importa mais que o almejo do intento conclusivo. Para tanto, penso ser fundamental olharmos com mais acuidade para o novo modelo de gerenciamento do futebol, cada vez mais espetacularizado pelo empuxo mercantil, e como isso tem provocado um reordenamento da lógica do torcer, dos torcedores e das torcidas.

O processo de mercantilização do futebol brasileiro que se encontra em curso articula-se com uma série de estratégias para atingir suas metas. É, assim, um empreendimento de caráter tentacular, criando canais de penetração no interior de sua estrutura. Tudo isto, aliado ao entendimento do futebol como um negócio altamente rentável, tem ressignificado a cultura simbólica do pertencimento identitário, bem como da própria noção do jogo em si.

É neste cenário, portanto, que a presença do Cartola F. C. se constitui – e vem se constituindo – ao longo da última década e meia. Sobre este produto, podemos entender que é um jogo eletrônico de futebol no estilo fantasy game, ou seja, é um jogo fictício no qual as pessoas montam seus times com jogadores de futebol da vida real, tendo sido lançado no ano de 2004 pelo Grupo Globo de Comunicação.

Criado e mantido pelo site Globo.com e promovido pelo canal de TV por assinatura SporTV e também pela Globo, esse jogo de futebol virtual já conta com mais de 5 milhões de usuários cadastrados. Logo na abertura da temporada de 2016, o jogo registrou a sua melhor marca entre times escalados em uma única rodada em 12 anos de história do fantasy game: incríveis 2.723.915 de usuários montaram as suas equipes para a primeira rodada do Campeonato Brasileiro de 2016. A 10ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2017 instituiu um novo recorde, onde 5.540.835 de times foram escalados no jogo.

A disputa do Cartola FC é realizada utilizando todos os jogadores inscritos oficialmente na Série A do Campeonato Brasileiro e suas escalações em súmula, como acontece nos moldes dos fantasy games da NFL e da NBA americanas.

No ano de 2019, com os dados consolidados, a Globo faturou mais de 17 milhões de reais[2], tendo sido a assinatura Pro contratada por 433 mil pessoas. Vale lembrar que o faturamento da emissora com o game não vem apenas da assinatura. O jogo é vendido no pacote comercial da Globo para patrocinadores, custando cerca de R$ 12 milhões. Esse ano (2021), o jogo conta com Chevrolet, Itaú, Casas Bahia e Brahma entre os parceiros.

Tendo virado uma febre (relembrando a “febre esportiva” decantada por Sevcenko[3], quando se referia à mania do futebol no início do século XX), este game é absolutamente revelador do novo contexto do futebol brasileiro. Ao explorar a maior paixão nacional, capaz de mobilizar cada sujeito e uma multidão ao mesmo tempo, o Cartola FC reelabora, a partir do seu interesse econômico, as bases relacionais entre o torcedor e seu clube. De maneira sutil, faz alterar signos e sentidos dos torcedores, fragilizando sub-repticiamente os vínculos identitários e passionais, marca inconteste do pertencimento clubístico.

No caso do esporte (e do futebol especialmente), uma certa dose de fanatismo é fundamental. Como afirma Giulianotti, “os fanáticos são guardiões do futebol, enquanto jogo, e são também participantes quentes em rivalidades ativas com outros clubes, especialmente aqueles de comunidades vizinhas” (GIULIANOTTI, 2012, p. 18). Ou ainda, como diria o diretor de cinema argentino, Juan José Campanella, ao afirmar categoricamente numa passagem do filme O segredo dos teus olhos: “as pessoas podem mudar tudo: de cara, de família, namorada, religião, de Deus. Mas tem uma coisa que não se pode mudar. Não se pode trocar de paixão”.

Sobre Estádios McDonalds

O consumo de bens culturais é uma marca da experiência humana, potencializada pela lógica da modernidade e pelo crescente domínio do mercado sobre a vida das pessoas. Assim, quando comemos um alimento, viajamos a algum lugar, praticamos um determinado esporte ou assistimos a algum espetáculo, realizamos uma experiência cultural, à medida que todas estas vivências são demarcadas por um processo de construção social.

O século XX deixou-nos como triste legado o desenvolvimento de uma política de pasteurização cultural, que homogeniza as produções, tornando-as palatáveis ao consumo massificado das experiências. Nesse campo, a sensibilidade estética torna-se profundamente empobrecida, posto que igualada em níveis exponenciais.

A metáfora do McDonald’s é emblematicamente explicativa nesse caso: seja em Caruaru ou em Tóquio, a experiência de comer no McDonald’s é absolutamente a mesma. O mesmo ambiente, os mesmos ingredientes, o mesmo tempero, o mesmo sabor, o mesmo atendimento.

À constatação de que vivemos largamente uma vida McDonald’s, chama-nos a atenção o fato de essa possibilidade ter atingido em cheio uma prática marcadamente expressiva da cultura brasileira: a frequência aos estádios de futebol.

Antes do advento da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, os estádios eram eivados de significação identitária, nos seus mais variados sentidos: arquitetônico, gastronômico, comportamental, com codificações bastante singulares de apropriação daquele território.

As novas configurações mercadológicas assumem um protagonismo essencial nesse projeto de sociedade. No dizer de Canclini (2015), “o mercado reorganiza o mundo público como palco do consumo e dramatização dos signos de status”. No futebol, ele (o mercado) tem ordenado os modos de consumo, os usos e desusos do espetáculo esportivo.

Nesse processo, a chegada de novos atores e a exclusão de outros tornam-se marca simbólica. Contudo, o que queremos aqui advogar é a unificação sensorial da experiência de estar no estádio. Se antes, ir ao Mineirão significava ir ao Mineirão, hoje representa apenas ir ao estádio (sem significativa diferença estética/sensória de ir ao Maracanã ou ao Stamford Bridge).

Como esse novo panorama constitui-se no horizonte de nossas paisagens, ou da paisagem de quem se habituou a frequentar estádios de futebol? Que forças atuaram e atuam no sentido de fornecer novas perspectivas, e de mantê-las?

O saudoso Gilmar Mascarenhas já provocava reflexões nesse sentido, desde antes do advento da Copa de 2014. Dizia ele que “esses novos objetos geográficos trazem não apenas uma arquitetura pujante e monumental, alvo de ufanismo e novo cartão-postal em nossas metrópoles. Trazem em si novos conteúdos da urbanização, ao propor e impor suas novas formas de vivenciar a vida pública e o futebol” (MASCARENHAS, 2014, p. 211).

Assim, a ideia de uma franchising – mantendo a metáfora do McDonald’s – é justamente replicar um modelo de negócio, já consolidado no mercado de determinado local, para a maior quantidade de locais possíveis. Logo, a atenção concentra-se na padronização de processos e produtos, pois assim é possível manter o padrão da experiência, garantindo, portanto, a satisfação de um (certo) público e a manutenção da reputação da marca.

A logística dos novos estádios, no processo de arenização deles, segue a lógica do mercado de franquias, replicando, por exemplo, a experiência da marca McDonald’s nesses espaços. O problema aqui é que não estamos falando de um Duplo Cheddar McMelt, mas do consumo de uma vivência profundamente enraizada na cultura brasileira. A padronização estética importada diverge do habitual de uma massa de sujeitos que construíram boa parte de suas histórias frequentando os estádios, provocando nessas pessoas um afastamento dos sentidos da apropriação sensorial da experiência, posto que para elas o estádio possui (ou deveria possuir) uma singularidade e uma marca definidora da apreciação.

Tal processo de padronização acarreta uma mudança gradativa do hábito dos consumidores e até mesmo do público, tendo em vista que os antigos frequentadores dos estádios almejam, a cada ida, reviver as velhas sensações que outrora vivenciaram. Isso tem gerado um sentimento de estranheza e distanciamento, pois ir ao estádio/arena já lhes parece outra coisa do que realmente deveria ser.

Aqui parece-nos indissociável a prática espacial da prática social. Assim como o futebol não é apenas futebol, ir ao estádio não é somente ir ao estádio. Enquanto paisagem simbólica, esses espaços têm sua inscrição formal na configuração do território, mas precisam reproduzir-se através de rituais públicos regulares (COSGROVE, 1998).

E o espaço da hipermodernidade é o espaço constituído pela égide mercadológica. É o mercado, e à ele, que as condições espaciais têm se configurado na contemporaneidade. Assim, podemos pensar que “a mercantilização se aplica efetivamente a determinados ‘pedaços’ do tecido urbano, justamente por que ao grande capital somente interessa determinados espaços, e não o conjunto da cidade” (MASCARENHAS, 2014).

Quando nos referimos ao “Novo Mineirão” ou ao “Novo Maracanã”, estamos admitindo, linguisticamente, que esses lugares já são outros, não mais os mesmos. Assumimos o fosso abissal que se abriu diante de nossos pés, entre o antigo e o novo, o tradicional e o moderno. Agora, neste novo tempo, prevalece a experiência homogeneizada, afastada da emoção e da imaginação estética/sensorial. Nesse contexto,

[…] a apropriação multiplicada de objetos no âmbito do consumo de mercadorias físicas e culturais tem se mostrado um correlato bastante poderoso dessa estratégia de saturar a imaginação. Ela corporifica a percepção difusa e cada vez mais presente de ser “cidadão do mundo”, de pertencer ao movimento planetário. Nesse sentido, o sistema continua a se vender integralmente em cada produto, fazendo a propaganda de si mesmo pelo modo com que cada gadget é um polo condensador bastante potente de informações oriundas de todos os cantos do planeta (FREITAS, 2014, p. 406).

Por extensão, congelamos nossa sensibilidade nas diversas apropriações culturais que temos feito. Ou, pior, construímos uma outra sensibilidade, marcada por novos valores e sentidos. A liquidez das experiências, como nos alertava Bauman, parece agora muito mais uma realidade inquestionável do que uma teoria explicativa da dinâmica social.

O futebol, enquanto demarcador da vida social do brasileiro, não escapa aos movimentos tentaculares do mercado. O espetáculo esportivo cada vez mais reclama a urgência de novos modelos do seu consumo, voltados agora a um público bastante específico, programado pelos novos tempos a uma sensibilidade asséptica, ordeira e normatizada. Em troca, a garantia de um produto igualmente asséptico, ordeiro e normatizado.

Em suma,

[…] o que o capital e a cultura globalizados precisam, no registro micrológico das mentalidades, liga-se ao aprisionamento sistematicamente reiterado do sujeito em cada gozo de anular a diferença entre sua insignificância e a totalidade social devido ao modo com que esta é materializada na forma de um fetiche, particularmente o da informação enriquecida do componente e da chancela de uma comunidade planetária. Nesse momento, mais uma vez, o indivíduo, ao comprar uma mercadoria, trabalha para todo o sistema, ratificando o valor que foi vendido como legitimação deste produto. Os indivíduos prolongam sua condição de objeto da indústria cultural, como o disseram Adorno e Horkheimer, quanto também se comprazem em serem seus porta-vozes e funcionários (FREITAS, 2014, p. 407).

Este processo é um caminho sem volta? Podemos afirmar o êxito de seus intentos? Ainda é cedo para constatações tão definitivas, mas temos vislumbrado importantes focos de resistência a esse projeto modernizador (mais um). Torcedores vinculados ao modus operandi tradicional de torcer insistem em abrir trincheiras de combates.

O fim dessa história é ainda incerto, e está por ser escrito. Mas engana-se quem pensa que o modelo de franchising é sucesso garantido. Nem mesmo as maiores franquias podem garantir êxito aos seus franqueados, e isso inclui o McDonald’s. Diante disso, enfatizamos que a experiência estética importada que temos visto nas arenas não tem considerado as históricas singularidades dos estádios que faziam de cada ida, de cada partida assistida, um acontecimento único.

Paralelo à pasteurização cultural dos estádios, estamos assistindo (de camarotes) ao nascedouro de um novo tipo de torcedor brasileiro: o burguês da classe média que adquire o ticket do jogo pela Internet através do programa sócio-torcedor, senta na cadeira marcada, tira selfie na hora do gol e no intervalo se levanta para ir à lanchonete da arena, retornando com um Duplo Burger Bacon nas mãos.

Sobre o Dossiê

Mas e na América Latina como um todo, de que maneira este movimento está se dando? Qual o impacto causado por esta nova estruturação organizacional do futebol nos demais países latinoamericanos? Esta é a proposta deste Dossiê: apresentar às leitoras e leitores reflexões pertinentes a estas questões, produzidass por pesquisadores de cinco países: Argentina, Brasil, Equador, México e Uruguai (apresentados em orden alfabética).

No primeiro artigo, intitulado Fútbol, pasión y política en los hinchas militantes del Club Atlético River Plate, o pesquisador argentino Rodrigo Daskal discute o tema a partir de uma análise histórica/sociológica, apresentando as particularidades dos hinchas militantes do Club Atletico River Plate, e de como a identidade torcedora tem sido impactada por este novo ordenamento, notadamente nas duas últimas décadas.

Em seguida, temos o artigo nominado “Revolução com espírito empresarial”: a criação do Clube dos 13 e a modernização do futebol na Folha de S. Paulo. Os pesquisadores brasileiros Sérgio Settani Giglio e João Manuel Casquinha Malaia Santos elegem um objeto específico para anunciar os primeiros movimentos desta nova fase do futebol: a criação do Clube dos 13, no ano de 1987, e seu embate com a CBF. Para tanto, se apropriam de uma análise de discurso das matérias jornalísticas veiculadas pelo periódico Folha de São Paulo, e entremeiam uma série de críticas e considerações, promovendo um rico e esclarecedor debate sobre o tema.

No terceiro artigo, os pesquisadores equatorianos Santiago Salazar e Jacques Ramírez analisam as torcidas organizadas sob o prisma de dois países latinoamericanos: Comômbia e Equador. No texto intitulado “Hinchas organizados: ¿barras bravas o barristas sociales? Una mirada desde Colombia y Ecuador”, os autores analisam o chamado “bairrismo social” enquanto uma nova possibilidade de compreender o fenômeno das “barras bravas”, destacando o seu papel identitário na conjuntura das sociabilidades públicas urbanas.

Avançando, apresentamos o quarto artigo: Un club mexicano de futbol, sus recursos y la relación con un grupo organizado de aficionados en el contexto del 2015 al 2021: La Máquina de Cruz Azul. Neste texto, o pesquisador mexicano Sergio Fernández González elabora uma mirada etnográfica sobre a relação do clube de futebol mexicano, Cruz Azul, com uma de suas torcidas organizadas, investigando as particularidades construídas no interior deste sistema relacional.

No capítulo intitulado La modernización en el fútbol uruguayo: tensiones surgidas en torno al deterioro de los clubes y al profesionalismo en la segunda mitad del siglo XX, temos o historiador uruguaio Gastón Laborido apresentando uma perspectiva historiográfica do futebol no Uruguai, analisando o processo de modernização que se tem apresentado desde a segunda metade do século XX, e em especial nos últimos anos.

O Dossiê ainda é composto pelas seções Entrevista e Resenha. Na primeira, trazemos a fala do sociólogo argentino Pablo Alabarces, em uma entrevista com riquíssimas contribuições ao debate do processo de modernização na América Latina e sua interface com o futebol. Já na seção Resenha, a pesquisadora brasileira Sarah Teixeira Soutto Mayor apresenta uma detalhada análise do icônico livro do historiador argentino Julio Frydenberg, intitulado Historia social del fútbol: del amateurismo a la profesionalización.

Convidamos as leitoras e leitores para um mergulho profundo nas páginas a seguir. Entendemos que este Dossiê apresenta um original valor contributivo, ao propor (e materializar) um debate tão urgente e necessário. As Ciências Sociais não podem se furtar à apropriação de um objeto tão caro ao cotidiano dos latinoamericanos, especialmente como uma possibilidade de dar voz e visibilidade à crítica do impacto causado pelo novo ordenamento/gerenciamento do espetáculo futebolístico, determinado pelo capital e seus tentaculares alcances.

Por fim, agradecemos mais uma vez a aqueles e aquelas que contribuíram para a concretização deste documento, com o gentil aceite e rica participação. O jogo continua, mas a esperança de um futebol que alcance igualmente a todos, essa é imorredoura…

Referências

COSGROVE, Denis. A geografia está em toda a parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, R.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 92-122.

FREITAS, Verlaine. A construção da experiência estética em tempos da globalização da sociedade. Constelaciones: Revista de Teoria Crítica, n. 6, dez. 2014, p. 405-413.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; Gênese Andrade. 4. ed. 7. reimp. São Paulo: EDUSP, 2015c.

GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. In: Recorde: Revista de História do Esporte. Volume 5, número 1, junho de 2012.

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.

MASCARENHAS, Gilmar. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, n. 1, nov. 2014, p. 52-65.

Notas

[1] Utilizo aquí duas categorias explicativas da taxonomia de torcedores proposta pelo sociólogo britânico Richard Giulianotti. A taxonomia completa refere-se a quatro tipos de torcedores, a saber: fanáticos; seguidores; fãs e flaneurs. Para mais detalhes, consultar o artigo: “Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol” (GIULIANOTTI, 2012).
[2] Naquele ano este foi o valor referente com as assinaturas Pro do jogo. O valor desta assinatura era de R$39,90. Em 2020, o valor da assinatura Pro passou a ser de R$49,90. Provavelmente, a arrecadação será ainda maior em 2021.
[3] Termo utilizado pelo historiador brasileiro Nicolau Sevcenko para dizer do crescente interesse pelas práticas esportivas no país na transição do século XIX para o XX (SEVCENKO, 1998). Sobre isso ver: SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3.

Notas de autor

1 Doutor em Estudos do Lazer. Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Brasil.

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