Resenhas
BEZERRA, Marcos Otavio. Corrupção. Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Papeis Selvagens, 2018.
Recepção: 14 Janeiro 2021
Aprovação: 07 Fevereiro 2021
BEZERRA Marcos Otavio.. Corrupção. Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil.. 2018. Papeis Selvagens. 6pp. |
---|
Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional, da UFRJ, Marcos Otavio Bezerra é professor titular da Universidade Federal Fluminense no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais. Pesquisador CNPq desde 2017 e coordenador do NuAP (Núcleo de Antropologia da Política), Bezerra é um importante acadêmico atuante em pesquisas e publicações no que concerne a relação entre Estado e Política.
A segunda edição de “Corrupção. Um estudo sobre poder político e relações sociais no Brasil”, Bezerra retoma sua premiada dissertação de mestrado, publicada sob forma de livro impresso em 1995, onde propõe uma contribuição para “renovar o questionamento sobre visões vigentes sobre a corrupção” (Bezerra, 2018; p. 14), tendo como alvo crítico os limites colocados pelas análises que partem de definições oficiais e normativas do fenômeno e as abordagens moralistas da corrupção, estabelecendo seu foco de análise sob o modo como as práticas corruptoras se articulam no funcionamento cotidiano das relações entre empresas de capital privado e o Estado. De uma forma geral, Bezerra investiga e ilustra, através do relato etnográfico de quatro casos selecionados, o itinerário estratégico percorrido no processo de transformação de interesses privados em interesses públicos, e como empresas privadas passam a produzir articulações dos governos a nível federal, estadual e municipal em causa própria.
O livro conta com sua apresentação feita pelo professor Antonio Carlos de Souza Lima (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ), o qual contrasta a proposta de Bezerra com as costumeiras dicotomias sobre capitalismo/feudalismo, atraso/modernização, autoritarismo/liberalismo e etc. presentes na maioria dos estudos sobre a corrupção na sociedade brasileira. De acordo com Lima, tais polarizações acabam por encobrir fenômenos de maior envergadura. Um segundo ponto de observação ressaltado na abertura prepara o leitor para uma obra que, ainda que aborde temas clássicos da Antropologia Social como parentesco, reciprocidade nas trocas, relações de gratidão, amizade e, acrescentamos, o favor como contraprestação de serviços, possui uma rica interface interdisciplinar com a Ciência Política. Posteriormente a obra é seguida de um prefácio à segunda edição, onde Bezerra além de realizar uma análise atualizada de sua obra original, disserta sobre o crescente histórico de interesse das ciências humanas e sociais, assim como de instituições como a ONU, OEA, OCDE, Transparência Internacional e o Banco Mundial, pelas pesquisas e estudos sobre corrupção em variados países e seus progressos, visando a monitoração e o bom funcionamento de governos; e uma introdução, onde o autor se debruça sobre a questão que envolve sua investigação, interrogando a respeito da lógica e dos princípios sociais que dão fundamento as condutas dos agentes públicos e privados envolvidos em práticas corruptas e corruptoras, a forma como a corrução tem sido tratada no Brasil, com predomínio de agências posicionadas nos campos políticos e jornalísticos e a forma como esta é majoritariamente tratada como instrumento de retórica política nos diferentes espectros sociais que lutam pelo estabelecimento de uma verdade. Assim, propõe o autor, que os casos de corrupção selecionados em sua obra sejam tratados como “casos”, uma vez que estes expressam apenas “uma certa concepção social do que seja a corrupção na sociedade brasileira” (Bezerra, 2018; p. 33) e “são melhor compreendidos se apreendidos como uma espécie particular de constructo social” (Bezerra, 2018; p. 33). Sendo os “casos” “apenas uma amostra de uma realidade bem mais ampla de práticas que recortam o Estado (e a sociedade) e que são passíveis de serem denunciadas como irregularidades” (Bezerra, 2018; p. 34). Sobre a definição de “caso” diz o autor:
“a noção de ‘caso’ (ou “escândalo”) é o fato de que ela é uma das formas sociais através das quais as práticas tidas como de corrupção e os indivíduos nelas envolvidas ganham a cena pública. Como os elementos (pessoas, práticas, instituições e etc.) que definem o ‘caso’ se confundem com os elementos que definem publicamente a corrupção, e importante lembrar que o ‘caso’ é, na verdade, um constructo político, administrativo e legal; o que significa dizer que é o produto de uma série de escolhas e constrangimentos que estabelecem, por exemplo, o quê ou quem será nele incluído (Bezerra, 2018; p. 18).
Para o tratamento e análise dos “casos”, o autor recorreu a um vasto material bibliográfico, contendo desde matérias publicadas em jornais até documentos utilizados pelos órgãos investigativos responsáveis, como polícia e Comissão Parlamentares (correspondência, relatórios, agenda e ligações telefônicas). Ironicamente, destaca-se o relato etnográfico percorrido por Bezerra ao documentar sobre o peso da informalidade e impessoalidade na burocracia governamental, através das dificuldades, enfrentadas pelo próprio autor, para conseguir documentos e material para seu trabalho de pesquisa, e como tais dificuldades são desfeitas tão logo alguma relação de afeto ou proximidade são criadas ou estabelecidas entre as partes.
Bezerra fraciona sua obra em quatro capítulos, donde são analisados os três “casos” de corrupção, todos ocorridos durante a década de 1980, e um pós-escrito, sendo eles o capítulo 1: Relações e Redes pessoais, onde o autor discute os clássicos conceitos de parentesco, amizade, patronagem, critica a noção de relação pessoal e em seu lugar advoga pela utilização da noção de redes pessoais como um conceito de melhor utilidade para os estudos sobre corrupção:
Falamos de rede pessoal uma vez que queremos assinalar aquele conjunto limitado de contatos diretos e indiretos de uma pessoa que se caracteriza por estar fundado em relações de caráter pessoal (Bezerra, 2018; p. 61).
No capítulo 2, O “Caso Valença”, o autor se debruça sobre as denúncias de intermediação de verbas para o município de Valença, no Rio de Janeiro. Ocorrida durante o governo civil do presidente José Sarney, o “caso” teve seu “pico de escândalo” através de relações de parentesco envolvendo Aníbal de Souza Teixeira, ministro do Planejamento, e seu primo. O “caso” permite ao leitor o exame de como municípios acessam verbas federais e as dificuldades burocráticas enfrentadas para a liberação destas, como empresas e escritórios podem atuar na e para a intermediação de verbas e como as redes de relação pessoal podem ilustrar o quanto os agentes que ocupam posições-chaves estão ou podem estar sujeitos às práticas de clientelismo e patronagem.
Já no capítulo 3, intitulado O “Caso Capemi”, ocorrido durante o governo militar de João Figueiredo, Bezerra aborda o fracasso da Agropecuária Capemi, criada apenas alguns meses antes de assinar contrato com o governo federal e que integrava o sistema Capemi[2] (Caixa de Pecúlio dos Militares), na tarefa de extração e comércio de madeiras da área florestal que seria inundada pelo lago da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (PA). Aqui o leitor se depara com exemplos de como operam as redes de relações que unem Estado e empresas privadas, as possibilidades em que negócios são desenvolvidos entre ambos e as variadas formas em que recursos e verba pública são desviados para mãos de particulares. O capítulo 4, O “Caso Coroa-Brastel, também ocorrido durante o governo militar de Figueiredo, Bezerra apresenta ao leitor outra maneira de como redes de relações pessoais adentram na Administração pública e consolidam seus interesses privados. Como colocado pelo autor, o “caso” lança luzes tanto sobre o funcionamento do mercado financeiro como sobre o modo de operação da “máfia das liquidações” no Banco Central em uma série de negócios patrocinados pelos ministérios do Planejamento, Fazenda e Banco Central e a Coroa-Brastel, de propriedade de Assis Paim Cunha. Nesse “caso” não é a relação de parentesco que estabelece contato e afrouxa as regras, mas a boa relação do empresário com o governo. Isso cria uma lógica personalista e passa, então, a credenciá-lo a tal ponto que este consiga exercer influência na implementação de medidas governamentais que favoreçam a expansão irregular de seus negócios privados.
O pós-escrito é a novidade trazida pela segunda edição da obra de Marcos Otavio Bezerra. O autor inova na metodologia ao abordar práticas de corrupção, nesse caso a CPI do Orçamento, também conhecida como CPI dos Sete Anões, a partir do ponto de vista da empresa, a saber a Construtora Noberto Odebrecht (CNO) e suas atividades durante os anos 1990-1993. Assim como nos dois últimos “casos”, temos uma empresa privada que adentra o Estado e passa a exercer controle e influência na elaboração de políticas e concessão de contratos públicos em causa própria. Para a reconstrução do ponto de vista da Odebrecht, Bezerra recorreu não apenas a matérias publicadas pela imprensa e documentos reunidos pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, mas também a documentos que remetem a interação dos funcionários da empresa com membros do Executivo e Legislativo e dos governos federal, estadual e municipal. Se por um lado esta nova abordagem indica igualmente as dificuldades colocadas pela burocracia estatal e dos interesses e valores políticos dos agentes públicos disponíveis a colaborar. Por outro lado, ela também aponta as estratégias utilizadas pela empresa para assegurar a viabilidade de seus negócios dentro da Administração pública, como, por exemplo, ilustrado pela necessidade de construção de departamentos voltados para a elaboração e desenvolvimento de estratégias de conquista, manutenção e ampliação de suas redes de relação pessoal. O “caso” dos “Sete Anões” revela “também o modo como a empresa concebe e contribui para a produção de um funcionamento específico do Estado e da política” (Bezerra, 2018; p. 231),
A obra de Marcos Otavio Bezerra se mantém atual e tem certo pioneirismo no Brasil, pois dialoga diretamente com o que, atualmente, importantes acadêmicos estrangeiros têm tratado por captura do estado (state capture) desde o início do século XXI. A Captura do Estado (Hellmann, Jones, Kaufmann e Shankerman, 2000; Hellmann e Shanerman, 2000; Hellmann, Jones e Kaufmann, 2000; Hellmann e Kaufmann, 2001; Salamanca, 2008) é aplicável a uma falha sistêmica que ocorre em um país onde arranjos de accountability não funcionam[3]. Dessa maneira, agências públicas encarregadas da aplicação da lei, assim como funcionários do próprio governo, maximizam riqueza, poder e impunidade em benefício de grupos e redes particulares. É, também, entendida como uma bem organizada atividade institucionalizada, que faz uso tanto do funcionamento já existente das instituições estatais legítimas, quanto também se utiliza de mudanças legais para alterar o desenho institucional das mesmas. De maneira que, estas, passem a servir melhor os interesses de seus captores, sendo caracterizadas pelo considerável ganho de controle sobre o Estado por poderosos atores econômicos privados, que utilizam de sua prática para fins de extração de vantagens particulares.
Ao rejeitar o que podemos chamar de “tradição moralista e normativa” dos estudos sobre corrupção, Marcos Otávio Bezerra oferece uma nova alternativa para a pesquisa e estudo do fenômeno. No entanto, há algo que precisa ser ressaltado e deixaremos, também, uma questão no ar para instigar aqueles que têm interesse em pesquisas sobre o tema, pois os “casos” de corrupção, conforme colocado pelo autor, são casos de corrupção política desenvolvidos e travados no campo político. Se a política não se define pelos seus fins, mas pelos seus meios, sendo esses meios o monopólio do uso legítimo da força física (Weber, 1982), até que ponto a corrupção política praticada, através da captura do estado ou da domesticação e produção do estado, não denota quem, de fato, governa um Estado ou um território?