Dossiê

Ações afirmativas para pessoas negras na pós-graduação: ausências, propostas e disputas

Luiz Mello[1]
Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil

ISSN: 2527-2551

ISSN-e: 1806-5627

Periodicidade: Semestral

vol. 18, núm. 1, 2021

revista.argumentos@unimontes.br

Recepção: 22 Janeiro 2021

Aprovação: 08 Fevereiro 2021



Resumo: Procura-se refletir sobre ações afirmativas para pessoas negras em cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil, a partir de três perspectivas principais: 1) breve caracterização do debate público sobre o tema ao longo do ano de 2020, marcado por iniciativas anticotas e pró-cotas de representantes dos poderes Executivo e Legislativo, em nível federal; 2) apresentação do perfil de cor ou raça de estudantes de pós-graduação e docentes, com destaque para os altos índices de subnotificação observados no quesito e a predominância de pessoas brancas nos dois segmentos da comunidade acadêmica, entre as/os que declararam sua cor ou raça; 3) análise comparada de três iniciativas pioneiras e/ou exemplares de ações afirmativas para estudantes negras/os, aprovadas no âmbito dos conselhos acadêmicos da Universidade Estadual da Bahia (2002), da Universidade Federal de Goiás (2015) e da Universidade de Brasília (2020). Nossa intenção é contribuir para a compreensão das ações afirmativas enquanto instrumentos importantes na luta contra o racismo e na construção de valores antirracistas, com destaque para explicitar a necessidade de ampliação do número de negras/os com acesso à formação de alta qualidade proporcionada em cursos de pós-graduação stricto sensu, especialmente no contexto de instituições públicas e de cursos gratuitos.

Palavras-chave: Pós-graduação, ações afirmativas, cotas, negros, antirracismo.

Resumen: Busca reflexionar sobre las acciones afirmativas para los negros en los posgrados stricto sensu en Brasil, desde tres perspectivas principales: 1) breve caracterización del debate público sobre el tema a lo largo del año 2020, marcado por iniciativas anti-cuotas y pro-cuotas de representantes de los poderes Ejecutivo y Legislativo, a nivel federal; 2) presentación del perfil de color o raza de estudiantes de posgrado y docentes, con énfasis en los altos niveles de subregistro observados en la pregunta y el predominio de personas blancas en los dos segmentos de la comunidad académica, entre quienes declararon su color o raza ; 3) análisis comparativo de tres iniciativas pioneras y / o ejemplos de acciones afirmativas para estudiantes negros, aprobadas en los consejos académicos de la Universidad Estatal de Bahía (2002), la Universidad Federal de Goiás (2015) y la Universidad de Brasilia (2020) . Nuestra intención es contribuir a la comprensión de las acciones afirmativas como instrumentos importantes en la lucha contra el racismo y en la construcción de valores antirracistas, con énfasis en explicar la necesidad de incrementar el número de mujeres negras con acceso a una formación de alta calidad impartida en cursos de formación stricto sensu posgrado, especialmente en el contexto de instituciones públicas y cursos gratuitos.

Palabras clave: Posgraduación, acciones afirmativas, cuotas, negros, anti racismo.

Abstract: We seek to reflect on affirmative actions for black people in stricto sensu graduate courses in Brazil, from three main perspectives: 1) a brief characterization of the public debate on the theme throughout the year 2020, based on anti-quota and pro-quotas initiatives of representatives of the Executive and Legislative, at the federal level; 2) a presentation of the race profile of graduate students and teachers, with emphasis on the high rates of underreporting observed in this regard and the predominance of white people in the two segments of the academic community, among those who declared their race; 3) a comparative analysis of three pioneering initiatives and / or examples of affirmative actions for black students, approved within the academic councils of the Universidade Estadual da Bahia (2002), the Universidade Federal de Goiás (2015) and the Universidade de Brasília (2020). Our intention was to contribute to the understanding of affirmative actions as important instruments in the "fight against racism" and in the construction of anti-racist values, with emphasis on explaining the need to increase the number of black women with access to high quality training provided in stricto sensu postgraduate courses, especially in the context of public institutions and free courses.

Keywords: Stricto sensu graduate courses, affirmative actions, quotas, blacks, anti-racism.

Introdução

Esse texto foi construído a partir de uma compreensão do fazer sociológico enquanto conhecimento socialmente situado, no sentido proposto por Ilana Löwy (2000), que relaciona sua produção a nossos lugares no mundo, às experiências que vivemos e às vertentes teórico-metodológicas que alimentam a leitura que se faz sobre a vida em sociedade. Nesse contexto, um olhar crítico em relação ao eurocentrismo e ao privilégio branco intrínsecos ao fazer científico ocidental é parte da minha expectativa de que a atuação e a luta antirracistas sejam compromissos prioritários de todas/os que acreditam e trabalham para a construção de uma sociedade justa, haja vista que o combate ao racismo, que afeta destrutivamente a vida de milhões de pessoas negras e indígenas na sociedade brasileira, é um desafio que requer posicionamento político de todas/os, particularmente das pessoas brancas, como eu. O entendimento é de que a presença de pessoas negras em todos os níveis de formação acadêmica e atuação profissional é fundamental no enfrentamento das disparidades socioeconômicas estruturais que nos caracterizam como sociedade, mas especialmente no combate a lógicas de exclusão fundadas em preconceitos de cor ou raça[2], que se utilizam de discursos meritocráticos para, ao mesmo tempo e paradoxalmente, negar e justificar o racismo.

Executivo e Legislativo: afirm(ações)ativas em disputa

O ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, foi demitido em 16 de junho de 2020, 14 meses após o início de uma gestão marcada por muita balbúrdia e confusão[3], no contexto de um governo que está longe de entender a formação escolar, profissional, acadêmica e científica como prioridade nacional e política de estado. Sem pretender me ater ao conjunto das ações do Governo Bolsonaro em geral e do Ministério da Educação (MEC) em particular, que reiteram à exaustão o descompromisso com a educação pública e de qualidade, quero chamar atenção para o último ato administrativo do então ministro antes de sua demissão, seguida do prêmio de indicação presidencial para um cargo de alto prestígio no Banco Mundial: a publicação da Portaria nº 545, que revoga a Portaria Normativa MEC nº 13, de 11 de junho de 2016, a qual “dispõe sobre a indução de Ações Afirmativas na Pós-Graduação, e dá outras providências”[4], e que, em seu art. 1º, estabelece: “As Instituições Federais de Ensino Superior [IFES] (...) terão o prazo de noventa dias para apresentar propostas sobre inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (Mestrado, Mestrado Profissional e Doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas”.

A mesma portaria, em seu art. 3º, atribui à Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior (Capes), do MEC, a incumbência de elaborar “[...] censo discente da pós-graduação brasileira, com o intuito de fornecer os subsídios para o acompanhamento de ações de inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação, bem como para a avaliação de tais ações junto aos programas de pós-graduação”. Estabelece também que as IFES “(...) deverão criar comissões próprias com a finalidade de dar continuidade ao processo de discussão e aperfeiçoamento das Ações Afirmativas propostas” (art. 2º) e que o MEC “(...) instituirá Grupo de Trabalho para acompanhar e monitorar as ações propostas nesta Portaria (Art. 4º)”.

Vale ressaltar que as orientações previstas na Portaria nº 13/2016 não impunham qualquer obrigatoriedade de implementação de ações afirmativas voltadas aos grupos sociais mencionados. Muito menos que isso, apenas especifica curto período de 90 dias, encerrado há mais de quatro anos, para que as IFES apresentassem propostas nesse sentido. Parece não haver dúvida, porém, de que a divulgação dessa sugestão pelo MEC estimulou algumas instituições universitárias a aprovar cotas, em seus cursos de mestrado e doutorado, para estudantes negras/os, indígenas e com deficiência – e também para outros grupos socialmente marginalizados - como mostra amplo levantamento realizado por Anna Carolina Venturini (2019), em sua tese de doutorado.

A revogação proposta pelo então ministro, todavia, não tinha qualquer poder de anular ou restringir as ações afirmativas já aprovadas ou que viessem a ser aprovadas por diferentes univrsidades, dada sua autonomia didático-científica e administrativa definida no art. 2017 da Constituição Federal. Mas o ato do ex-ministro deixava uma mensagem clara: ações afirmativas para grupos subalternizados estão longe de ser prioridade para esse governo. E o que antes se pensou ser apenas mais uma iniciativa nefasta de um ministro da educação paradoxalmente anticiência e antiuniversidade revelou-se o atendimento de solicitação do presidente da Capes, Benedito Guimarães Aguiar Neto, como divulgado por Julia Lindner e Mateus Vagas (2020). Em meio ao estupefamento geral, Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 22 de junho, cobrou manifestação da Advocacia Geral da União (AGU) quanto à iniciativa, o que seguramente contribuiu para que no mesmo dia uma nova portaria fosse publicada no Diário Oficial da União, revogando a revogação inicialmente pretendida.

O simbolismo negativo do ato revogatório inicial é ainda maior quando se considera não apenas sua inocuidade no momento em que se deu – o prazo estabelecido para formulação das ações afirmativas em questão extinguiu-se em 2016 -, mas especialmente a insensibilidade de representantes do governo federal ao proporem o fim de uma iniciativa de caráter explicitamente antirracista, como são as cotas por cor ou raça para acesso à educação, exatamente no momento em que nos deparávamos com as massivas manifestações antirracistas em diferentes partes do mundo, em reação aos assassinatos e mortes de pessoas negras nos EUA e no Brasil, como consequência da atuação policial marcada por racismo institucional e estrutural.

Deve ser salientado, por outro lado, que a reação de representantes do Poder Legislativo à revogação da portaria também foi expressiva e materializou-se em 21 projetos de decreto legislativo apresentados na Câmara dos Deputados e cinco no Senado Federal que tinham por objetivo sustar aquela iniciativa, conforme consulta aos arquivos eletrônicos das duas casas legislativas, realizada em 25 de agosto de 2020. A pretensão do MEC de revogar uma resolução que, paradoxalmente, já era inócua em seus objetivos e temporalidade, desencadeou ainda a apresentação de cinco projetos de lei (PLs) na Câmara dos Deputados e quatro no Senado Federal, conforme levantamento realizado nos mesmos arquivos e data antes referidos, que propõem a regulamentação de ações afirmativas nos cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil. Esse conjunto de nove projetos de lei, de autoria de parlamentares de partidos diversos, pretende alcançar seus objetivos por meio de quatro estratégias distintas:

1) Alteração da Lei nº 12.711/2012, de maneira a atribuir aos cursos de pós-graduação stricto sensu a mesma modalidade de ação afirmativa prevista para a graduação, ou seja, reserva de 50% das vagas para estudantes que tenham concluído o ensino médio em escola pública, com subcotas de 50% daquele total para estudantes com renda per capita familiar de até 1,5 salário mínimo; e subcotas, em cada um desses dois subgrupos, para estudantes pretas/os, pardas/os e indígenas e ainda para estudantes com deficiência, em percentuais definidos a partir de representação de tais grupos na unidade da federação em que se encontra instalada a instituição de ensino, nos termos do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tal estratégia está expressa em três proposições: PL nº 3.402/2020 , de autoria de 49 deputadas/os do Partido do Trabalhadores (PT); PL nº 3.489/2020, apresentado por 21 deputadas/os – 14 do Partido Socialista Brasileiro (PSB), cinco do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e dois do PT; e PL nº 3.552/2020, de autoria individual de senador do Movimento Democrático Brasileiro (MDB);

2) Aprovação de lei específica, em formato claramente inspirado na Portaria Normativa MEC nº 13/2016, determinando que as IFES devem propor ações afirmativas em cursos de pós-graduação stricto sensu para negras/os, indígenas e pessoas com deficiência – sem o estabelecimento de critérios específicos. As iniciativas nesse sentido assumem a forma de quatro proposições: PL nº 3.438/2020, de autoria de 49 deputadas/os do PT; PL nº 3.425/2020, de autoria de oito deputadas/os de partidos diversos; PL nº 3.432/2020, de autoria individual de senador do Partido Cidadania; e PL nº 3.427/2020, de autoria individual de senador do Partido Rede;

3) Acréscimo de artigo específico à Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB), de maneira a contemplar conteúdo praticamente idêntico ao da Portaria Normativa MEC nº 13/2016. Essa iniciativa está prevista na forma do PL nº 3.722/2020, de autoria individual de deputado do PT;

4) Aprovação de lei específica, com breve alusão à Lei nº 12.711/2012 como parâmetro, estabelecendo que as IFES devem adotar ações afirmativas em todos seus programas de pós-graduação stricto sensu para negras/os, indígenas e pessoas com deficiência, na proporção representada por esses grupos na população da unidade da federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE. O PL nº 3.434/2020, de autoria de quatro senadoras/es – três do PT e de uma do Partido Republicano da Ordem Social (PROS) -, é o que materializa essa proposta.

Merecem destaque três singularidades das propostas legislativas em questão. Os três primeiros projetos de lei, mencionados no item 1 acima, diferentemente do previsto na Portaria Normativa MEC nº 13/2016 e da maioria absoluta das ações afirmativas para cursos de pós-graduação stricto sensu aprovadas por iniciativa das próprias instituições de ensino, subordinam a reserva de vagas para candidatas/os negras/os, indígenas e com deficiência à exigência de que essas/es tenham cursado o ensino médio em escola pública. Já os três projetos de lei mencionados no item 2, ao praticamente reproduzirem os termos da mencionada portaria normativa do MEC, padecem da mesma falta de clareza e de previsão de parâmetros uniformes para a ação afirmativa proposta, sendo especialmente preocupante a não definição de percentuais específicos de reserva de vagas para os diferentes grupos beneficiários, o que ficaria a cargo de cada instituição. Essa mesma lacuna se faz presente também no projeto de lei mencionado no item 3, sendo a proposição referida no item 4 a única que traz parâmetros claros para a definição de percentuais de reserva de vagas para pretas/os, pardas/os, indígenas e pessoas com deficiência, tomando como referência o critério estabelecido para as cotas por cor ou raça e deficiência, com base no Censo Demográfico do IBGE, como previsto na Lei nº 12.711/2012. Esse último projeto de lei também é o único a prever que as instituições de ensino devem estabelecer ações afirmativas, nos cursos de pós-graduação stricto sensu, voltadas ao ingresso de “pessoas transgênero e integrantes de comunidades tradicionais quilombolas”, ainda que sem especificar parâmetros e métricas específicas para os dois segmentos.

Antes dessas iniciativas parlamentares em reação à revogação da portaria do MEC, o tema das ações afirmativas nos cursos de pós-graduação stricto sensu encontrava pouca acolhida no Congresso Nacional, com destaque para o fato de que, antes de junho de 2020, não havia nenhum projeto de lei com esse objetivo específico em tramitação no Senado Federal, chamando à atenção a ausência desse tema inclusive no PLS nº 213/2003, que deu origem a Lei nº 12.228/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. No caso da Câmara dos Deputados, antes de 2020, a proposição legislativa mais recente – e única em tramitação – relativa a ações afirmativas para pessoas negras em cursos de pós-graduação, sem alusão a indígenas ou pessoas com deficiência, é o PL nº 4.802/2016, de autoria de deputada do PT, o qual se encontra apensado ao PL 1.866/1999, de autoria de parlamentar do PDT, que “dispõe sobre medidas de ação compensatória para a implementação do princípio da isonomia social do negro” – note-se que esse projeto tem escopo muito amplo e importante, mas sem alusão expressa à reserva de vagas em cursos de pós-graduação. Por outro lado, a contemplar os três segmentos populacionais objeto da Portaria Normativa MEC nº 13, o PL nº 2.890/2015, de autoria de parlamentar do PCdoB, dispõe sobre a reserva de 50% das vagas de cursos de pós-graduação stricto sensu de instituições federais de ensino, na seguinte proporção: 20% para candidatas/os negras/os; 20% para candidatas/os carentes oriundas/os da rede privada e pública de ensino superior; 5% para candidatos com deficiência; e 5% para candidatos indígenas e quilombolas. Essa proposição legislativa, é imperativo dizer, foi arquivada em 31 de janeiro de 2019.

Nesse cenário, não só é importante que nove projetos de lei relativos a ações afirmativas em cursos de pós-graduação stricto sensu tenham sido apresentados no Congresso Nacional em 2020, mas também que alguns deles apontem diretamente para a possibilidade de que a Lei nº 12.711/2012 seja alterada com vistas a também contemplar aquele nível de formação acadêmica. Isso se torna particularmente relevante quando se tem no horizonte que, em 2022, como determina o art. 7º da mencionada lei, “será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Ou seja, em 2022, haverá não só oportunidade para renovação dos objetivos da política de estado, em nível federal, de ações afirmativas para estudantes negras/os e de outros grupos sociais subalternizados em cursos técnicos de ensino médio e de graduação, mas também para que sejam aperfeiçoados seus mecanismos e ampliadas suas metas, com destaque para a importância do estabelecimento de ações afirmativas nos cursos de pós-graduação stricto sensu.

Tal possibilidade se faz ainda mais urgente quando se tem em vista o baixíssimo número de estudantes negras/os – e também indígenas e com deficiência – em nível de pós-graduação no Brasil, como se depreende das informações disponíveis na Plataforma Sucupira, que reúne dados sobre todos os cursos de pós-graduação stricto sensu, coletados e sistematizados pela Capes. Não parece demais lembrar que informações relativas à cor ou raça e à deficiência passaram a ser coletadas no Sucupira apenas a partir de 2017, e somente para estudantes, muito provavelmente em função da previsão estabelecida no mencionado art. 3º da Portaria Normativa MEC nº 13/2016. Desde já vale destacar a prevalência de altíssimos índices de subnotificação do quesito cor ou raça nesse levantamento da Capes, como se verá a seguir, o que dificulta qualquer análise acerca do perfil do corpo discente da pós-graduação brasileira, embora seja evidente a predominância inconteste de estudantes brancas/os entre as/os com informações disponíveis. Lamentável também é a ausência, na Plataforma Sucupira, de informações relativas à cor ou raça e deficiência do conjunto de docentes e técnico-administrativas/os que atuam nos cursos de pós-graduação stricto sensu, sendo possível minimizar essa lacuna, no caso das/os docentes, a partir de dados disponibilizados nos censos da educação superior, realizados anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), vinculado ao MEC[5].

Entre a falta de raça ou cor e a cor ou raça da pós-graduação brasileira

A página da Plataforma Sucupira (www.sucupira.capes.gov.br), sob responsabilidade da Capes/MEC, disponibiliza dados relativos a estudantes dos cursos de pós-graduação stricto sensu do Brasil desde 2004, passando a contemplar informações sobre o quesito raça ou cor apenas a partir de 2017, como destacado anteriormente, o que permite pensar em inúmeras análises por meio da correlação desta variável com outras disponíveis há mais tempo, a exemplo de sexo, idade, grau acadêmico, conceito do curso, grande área de conhecimento, distribuição regional. Tal possibilidade, no entanto, fica bastante comprometida quando se observa o altíssimo percentual de subnotificação relativo à raça ou cor, traduzido nas respostas “Não declarado” (ND) e “Não dispõe da informação” (NDI), que correspondem a mais de 50% do total de estudantes matriculadas/nos em todas as instituições, incluídas as instituições públicas federais e estaduais, que, reunidas, correspondem a 84% do total das matrículas, como se observa na Tabela 1, a seguir. Quando computada em relação as nove grandes áreas de conhecimento a partir das quais a Capes classifica os programas e cursos de pós-graduação, a subnotificação de raça ou cor varia entre 43,3% na área de Ciências da Saúde e 62,1% na área de Engenharias.

Tabela 1.
Estudantes de pós-graduação stricto sensu, por raça ou cor, por natureza jurídica da instituição de vinculação, Brasil.
Raça ou Cor Federal Estadual Municipal Particular Total
Branca 68.396 29,9% 34.765 35,3% 1.056 57,1% 28.472 46,7% 132.689 34%
Preta 7.512 3,3% 2.109 2,1% 12 0,6% 1.048 1,7% 10.681 2,7%
Parda 28.378 12,4% 7.676 7,8% 57 3,1% 4.728 7,8% 40.839 10,5%
Amarela 1.064 0,5% 950 1% 2 0,1% 414 0,7% 2.430 0,6%
Indígena 483 0,2% 132 0,1% 1 0,1% 62 0,1% 678 0,2%
ND* 47.606 20,8% 19.074 19,3% 377 20,4% 8.990 14,8% 76.047 19,5%
NDI** 75.651 33% 33.868 34,4% 344 18,6% 17.194 28,2% 127.057 32,5%
Total 229.090 100% 98.574 100% 1.849 100% 60.908 100% 390.421 100%
Fonte: Construída pelo autor, a partir de dados do Plataforma Sucupira, 2018 (CAPES, 2019). * Não Declarado. ** Não Dispõe de Informação

Para além do número praticamente residual de estudantes indígenas e amarelas/os, salta aos olhos que brancas/os representem 34% do total de estudantes de pós-graduação stricto sensu no Brasil (390.421), o que corresponde a 71% das/os que declararam sua raça ou cor. Tal percentual é levemente inferior ao encontrado por Amélia Artes (2018) para o ano de 2010 (73,2%), em estudo comparativo sobre desigualdades por sexo e cor/raça na pós-graduação brasileira, a partir de microdados dos Censos Demográficos de 2000 e 2010, sem que a autora, em seu artigo, faça qualquer alusão à subnotificação do quesito cor ou raça. Ainda no tocante à Tabela 1, acima, qualquer que seja a natureza jurídica da instituição que oferece o curso de pós-graduação stricto sensu (federal, estadual, municipal ou particular), brancas/os são maioria absoluta entre estudantes cuja raça ou cor está declarada.

Vale registrar que 10,5% do total de estudantes se declararam pardas/os, enquanto 2,7% são pretas/os, o que totaliza 13,2% de negras/os, representando 27,5% das/os que declararam raça ou cor – percentual muito próximo ao encontrado por Artes (2018) – 24,9% de negras/os. Cabe lembrar, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral (PNADCt), do IBGE, referente ao primeiro trimestre de 2020, que negras/os correspondem a 56,4% da população brasileira, ou seja, mais que o dobro do percentual de estudantes matriculadas/os em cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil com raça ou cor declarada como negra (preta e parda) na Plataforma Sucupira.

Nesse cenário, todavia, deve ser ressaltado que qualquer tentativa de compreensão das correlações entre raça ou cor e outros atributos de estudantes de pós-graduação ou características de seus cursos mostra-se frágil, haja vista que a elevada subnotificação compromete o alcance da análise. Por outro lado, em grande medida parece inconteste a prevalência de estudantes brancas/os quando se observa os dados a partir de perspectivas variadas, a exemplo da distribuição por cor ou raça e região geográfica, conforme Tabela 2. Considerando que 48,5% das/os estudantes de pós-graduação do Brasil estão vinculadas/os a instituições situadas na Região Sudeste, a mencionada tabela aponta uma subnotificação de raça ou cor correspondente a 54,9% de matriculadas/os nessa região, com estudantes brancas/os representando 76% das/os com raça ou cor declarada. No caso das regiões Norte e Nordeste os percentuais de subnotificação continuam altos, embora, entre as/os autodeclaradas/os, os totais de estudantes negras/os superem os de brancas/os, lembrando que a proporção de negras/os nessas regiões é bem superior à média nacional, nos termos da mencionada PNADCt 2020: Brasil – 56,4 % no; Região Norte – 80,9%; e Nordeste – 75,4%.

Tabela 2.
Estudantes de pós-graduação stricto sensu, por raça ou cor, por região geográfica, Brasil.
Raça ou cor Região Total
Centro- Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul
Branca 7.337 25,5% 14.830 20,2% 3.865 20% 65.683 34,7% 40.974 51,4% 132.689 34%
Preta 829 2,9% 3.193 4,4% 859 4,4% 4.568 2,4% 1.232 1,5% 10.681 2,7%
Parda 3.176 11% 15.656 21,3% 5.956 30,8% 13.371 7,1% 2.680 3,4% 40.839 10,5%
Amarela 149 0,5% 271 0,4% 162 0,8% 1.460 0,8% 388 0,5% 2.430 0,6%
Indígena 96 0,3% 117 0,2% 129 0,7% 252 0,1% 84 0,1% 678 0,2%
ND* 5640 19,6% 15.432 21% 3.314 17,1% 38.808 20,5% 12.853 16,1% 76.047 19,5%
NDI** 11.527 40,1% 23.833 32,5% 5.078 26,2% 65.182 34,4% 21.437 26,9% 127.057 32,5%
Total 28.754 100% 73.332 100% 19.363 100% 189.324 100% 79.648 100% 390.421 100%
Fonte: Construída pelo autor, a partir de dados da Plataforma Sucupira, 2018 (CAPES, 2019) * Não Declarado. ** Não Dispõe de Informação

Em relação ao sexo, ainda segundo dados da Plataforma Sucupira para 2018, 53,8% de estudantes de pós-graduação são do feminino e 46,2%, do masculino – chamo atenção para a ausência de subnotificação quanto a esse quesito -, havendo prevalência de mulheres em relação a homens em quase todas as categorias de raça ou cor, incluídas as que correspondem à subnotificação, excetuando-se a indígena, onde há um número maior de homens. Entre estudantes com raça ou cor declarada (48% do total), as mulheres brancas são o grupo mais expressivo, seguidas de homens brancos, mulheres pardas, homens pardos, mulheres pretas e homens pretos. Vale o registro de que as mulheres negras (pardas e pretas) correspondem a 36% das mulheres brancas, enquanto os homens negros equivalem a 42,5% dos homens brancos. Note-se que essa hierarquia cruzada de sexo/raça ou cor se repete nos diferentes graus acadêmicos (doutorado, doutorado profissional, mestrado e mestrado profissional), sempre associada a elevados índices de subnotificação de raça ou cor.

Embora a Plataforma Sucupira não disponibilize informações sobre raça ou cor de docentes, a partir de consulta ao Censo da Educação Superior 2018, do Inep/MEC, destaco que a caracterização de cor/raça do conjunto de professoras/es é próxima da de estudantes da pós-graduação stricto sensu, ou seja, alta subnotificação e predominância de brancas/os, tanto no conjunto de instituições de ensino superior (29,6% e 52,9%, respectivamente) quanto nas diferentes categorias, como se observa na Tabela 3, abaixo. Os maiores percentuais de subnotificação e os menores de docentes brancas/os são encontrados exatamente nas duas categorias de instituições responsáveis pela maior oferta de cursos de pós-graduação stricto sensu, no Brasil, como destacado acima: públicas federais (47% de subnotificação e 37,8% de docentes brancas/os) e públicas estaduais (35,7% de subnotificação e 47,2% de docentes brancas/os). Vale o registro de que onde se observa os menores índices de subnotificação é exatamente nas categorias de instituições em que prevalece uma maior presença de docentes brancas/os, o que aponta para uma correlação inversa entre as duas categorias de classificação, ou seja, quanto menor a subnotificação de cor/raça maior o número de docentes brancas/os nas instituições – como se observa na Tabela 3, em especial os percentuais relativos às públicas municipais e as privadas com fins lucrativos. Uma diferença importante entre os perfis de estudantes de pós-graduação stricto sensu e de docentes, por outro lado, é que, entres essas/es últimas/os, homens são maioria nos conjuntos das IES brasileiras (53,7%), das instituições públicas federais (55,8%), das públicas estaduais (52,9%) e das demais categorias de instituições. Sempre segundo dados do CES 2018 (INEP 2019), esse padrão de maioria masculina também se repete nas categorias de cor/raça em todas as categorias de instituições, com percentuais mais altos de docentes do sexo masculino prevalecendo entre indígenas.

Tabela 3.
Docentes do ensino superior, por cor/raça, no Brasil, por categoria.
Categoria Cor/Raça Total
Branca Preta Parda Amarela Indígena DNQD* NDI**
Pública Federal 46.731 37,8% 2.679 2,2% 14.832 12% 1.199 1% 206 0,2% 58.035 46,9% 79 0,1% 123.761 100%
Pública Estadual 25.105 47,2% 1.440 2,7% 6.899 13% 684 1,3% 79 0,1% 18.808 35,4% 167 0,3% 53.182 100%
Pública Municipal 3.778 79,2% 52 1,1% 219 4,6% 106 2,2% 3 0,1% 606 12,7% 4 0,1% 4.768 100%
Privada com fins lucrativos 61.619 57,4% 2.254 2,1% 22.951 21,4% 1.005 0,9% 97 0,1% 18.967 17,7% 414 0,4% 107.307 100%
Privada sem fins lucrativos 71.999 67,3% 1.542 1,4% 11.900 11,1% 879 0,8% 110 0,1% 20.266 19,0% 221 0,2% 106.917 100%
Especial 1.198 61,2% 53 2,7% 428 21,9% 10 0,5% 4 0,2% 261 13,3% 4 0,2% 1.958 100%
Total 210.430 52,9% 8.020 2,0% 57.229 14,4% 3.883 1% 499 0,1% 116.943 29,4% 889 0,2% 397.893 100%
Fonte: Construída pelo autor, a partir de dados do Censo da Educação Superior 2018 (Inep, 2019). * Docente não quis declarar. ** Não dispõe de informação

Quando se compara a cor/raça de docentes que atuam nos cursos de pós-graduação stricto sensu presencial com a das/os que não atuam, o CES 2018 (INEP, 2019) mostra padrões de prevalência de subnotificação próximos. Mas há especificidades que enfatizam que a pós-graduação stricto sensu é marcada por uma presença ainda maior de docentes brancas, haja vista a tendência recorrente de que docentes pretas/os e pardas/os, ainda que minoritários, tenham maior presença no conjunto de docentes que não atua na pós-graduação do que entre as/os que atuam, como se observa na Tabela 4. A título de ilustração, no caso das instituições federais, que concentram 58,6% do total de estudantes de pós-graduação, a proporção de docentes brancas/os que atuam em cursos stricto sensu presenciais em relação às/aos que não atuam é de aproximadamente um para três, enquanto para docentes pretas/os e pardas/os essa correlação é de aproximadamente um para cinco.

Tabela 4.
Docentes que atuam na pós-graduação stricto sensu presencial, por cor/raça, em instituições públicas federais e públicas estaduais, Brasil.
Raça-cor Pública Federal Pública Estadual Brasil
Se atua em stricto sensu Se atua em stricto sensu Se atua em stricto sensu
Não Sim Não Sim Não Sim
Branca 33.185 39,3% 11.132 34,2% 16.432 44,2% 7.442 56,2% 177.413 54,3% 26.976 46,8%
Preta 2.093 2,5% 400 1,2% 1.097 3,0% 264 2,0% 6.821 2,1% 875 1,5%
Parda 11.498 13,6% 2.360 7,3% 5.885 15,8% 556 4,2% 50.790 15,5% 4.378 7,6%
Amarela 850 1,0% 301 0,9% 461 1,2% 199 1,5% 3.183 1,0% 591 1,0%
Indígena 139 0,2% 62 0,2% 60 0,2% 15 0,1% 396 0,1% 91 0,2%
DNQD* 36.706 43,4% 18.242 56,1% 13.152 35,4% 4.659 35,2% 87.446 26,8% 24.637 42,7%
NDI** 64 0,1% 11 - 64 0,2% 99 0,7% 725 0,2% 152 0,3%
Total 84.535 100% 32.508 100% 37.151 100% 13.234 100% 326.774 100% 57.700 100%
Fonte: Construída pelo autor, a partir de dados do Censo da Educação Superior 2018 (Inep, 2019). * Docente não quis declarar. ** Não dispõe de informação

Ressalto também como o percentual de subnotificação de cor/raça entre docentes de instituições federais que atuam na pós-graduação é maior do que entre as/os que não atuam - constatação que se repete para o conjunto total de docentes que atuam na pós-graduação no Brasil -, o que aponta outra vez para a hipótese de que a elevada subnotificação de cor/raça é um forte indicador de que o total de docentes brancas/os, entre as/os sem cor ou raça declaradas, é ainda maior. Tal hipótese parece encontrar amparo também na correlação inversa que se observa, nas instituições públicas estaduais, entre menor subnotificação do quesito cor/raça (ainda que alta – 35,2%) e maior presença de docentes brancas/os que atuam na pós-graduação (56,2%), como especificado na Tabela 4. Tais constatações parecem confirmar que os cursos de pós-graduação stricto sensu, na qualidade de espaço mais elitizado da formação acadêmica no Brasil, são marcados pela ausência não apenas de estudantes pretas/os, pardas/os e indígenas, como apontado nas Tabelas 1 e 2, mas também pela ausência de docentes desses mesmos grupos de cor/raça.

Sinais de mudanças, na cor ou (e na) raça, ainda que lentamente

Anna Carolina Venturini (2019), em sua tese de doutorado, mostra o crescimento, especialmente a partir de 2016, de iniciativas de conselhos universitários e coordenadorias de programas de pós-graduação stricto sensu de instituições públicas de ensino que decidiram, no âmbito da autonomia institucional que lhes compete, aprovar ações afirmativas para o conjunto de todos os cursos de uma instituição – o que alcança um número relativamente baixo de universidades - ou para cursos específicos de instituições estaduais e federais, o que se mostra como o padrão mais frequente e numericamente mais expressivo.

Na ausência de uma legislação federal que normatizasse parâmetros para essas iniciativas, o movimento que se observa reproduz o anteriormente realizado em relação a cursos de graduação, que também foram objeto de políticas de ações afirmativas específicas em dezenas de instituições, aprovadas por suas instâncias acadêmico-administrativas superiores, até a promulgação da Lei nº 12.711, em 2012, que unificou grupos-alvo e critérios de elegibilidade em nível federal, sem prejuízo de manutenção de iniciativas outras, próprias a cada instituição, além das políticas específicas em níveis estaduais e municipais, muitas vezes estabelecidas a partir de iniciativas dos respectivos poderes executivo e legislativo locais.

Considerando a diversidade de propostas de ações afirmativas para cursos de pós-graduação stricto sensu hoje existentes no Brasil, mas também o fato de que muitas instituições ainda não possuem ou possuem em escala muito reduzida esse tipo de iniciativa, apresento, a seguir, as iniciativas adotadas por três universidades públicas (uma estadual - Universidade do Estado da Bahia - UNEB; e duas federais - Universidade Federal de Goiás – UFG e Universidade de Brasília - UnB), que parecem referenciais por seu pioneirismo e podem servir de parâmetro na formulação de outras iniciativas institucionais e/ou no contexto de discussão de uma proposta de lei, federal e/ou estadual, que regulamente a matéria.

As cotas em cursos de graduação tiveram sua iniciativa pioneira em 2000, a partir de aprovação de lei pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que previa reserva de 50% das vagas das universidades estaduais para estudantes que tivessem cursado integralmente os ensinos fundamental e médio em instituições da rede pública dos municípios e/ou do estado. No caso da pós-graduação stricto sensu, a iniciativa pioneira foi da UNEB, na forma da Resolução nº 196, de 18.07.02, aprovada pelo Conselho Universitário (CONSU) da instituição, que “estabelece e aprova o sistema de quotas para população afrodescendente, oriunda de escolas públicas, no preenchimento de vagas relativas aos cursos de graduação e pós-graduação e dá outras providências”.

De início, chama atenção o fato de que essa resolução talvez seja a única - ou uma das poucas - que regulamenta, conjuntamente, para os mesmos grupos-alvo e a partir dos mesmos critérios, cotas para estudantes de cursos de graduação e pós-graduação. Se no caso da graduação, a relevância da iniciativa da UNEB, logo depois da UERJ, já era grande por si só, no que diz respeito à pós-graduação o pioneirismo será absoluto e de longa duração, considerando que a mencionada resolução regulamenta cotas para o conjunto de todos os cursos da instituição, o que só acontecerá pela primeira vez em uma instituição federal, em 2015, na forma de iniciativa da UFG, como se verá a seguir.

Em seu formato inicial, a ação afirmativa aprovada na UNEB reserva 40% das vagas para afrodescendentes, entendidas/os como pretas/os e pardas/os nos termos da classificação de cor ou raça utilizada pelo IBGE, egressas/os de escolas públicas, sem especificar se a exigência restringe-se ao ensino médio ou se inclui também o fundamental. Em seu art. 4º, a resolução ainda especifica que a “UNEB implementará programas sociais de apoio e de acompanhamento acadêmico para os estudantes que ingressarem nos seus cursos através do sistema de quotas”. Nesse momento, a iniciativa não faz alusão a outros grupos potencialmente beneficiários (como indígenas, quilombolas ou pessoas com deficiência) e também não especifica um prazo de vigência para as cotas aprovadas.

Uma primeira alteração na política de ação afirmativa da UNEB ocorreu cinco anos depois da aprovação inicial, na forma da Resolução nº 468, de 2007, que passou a contemplar reserva de 5% de vagas para estudantes indígenas, além dos 40% já previstos agora para negras/os (não mais afrodescendentes e sem alusão a pretas/os e pardas/os, como na resolução original revogada), ainda para cursos de graduação e pós-graduação, passando a haver especificação quanto à natureza da vinculação à escola pública (ter cursado todo o ensino médio) e inclusão de critério relativo à renda familiar mensal inferior ou igual a 10 salários mínimos. Em 2009, duas novas alterações pontuais são aprovadas na política de ação afirmativa da UNEB, sempre por meio de decisões de seu conselho universitário: 1) a previsão de que candidatas/os negras/os ou indígenas tenham cursado todo o 2º Ciclo do Ensino Fundamental e o Ensino Médio em escola pública e que tenham renda bruta familiar mensal inferior ou igual a quatro salários mínimos (nos termos do art. 1º da Resolução nº 710, de 31.07.09); e 2) a especificação de que os candidatos autodeclarados indígenas devem apresentar, no ato da matrícula, documento comprobatório de vinculação étnica emitido por organizações indígenas devidamente reconhecidas (conforme art. 1º, da Resolução nº 711, de 05.08.09). Em 2011, mais uma alteração da política de ação afirmativa da UNEB, agora com o objetivo de converter os 5% de vagas reservadas para candidatas/os indígenas, no caso dos cursos de graduação, em sobrevagas, ou seja, um percentual extra, que incide sobre o total de vagas oferecido por cada turma/curso, conforme especificado na Resolução nº 847, de 18.08.11.

As alterações acima apontadas sinalizam um esforço de aprimoramento do programa de ações afirmativas dos cursos de graduação e pós-graduação da UNEB, seguramente hoje um dos mais longevos e inclusivos do país, haja vista que o número de beneficiários passou a ser ainda mais amplo, a partir da alteração promovida nos termos da Resolução n° 1.339, de 28.07.18, que “aprova o sistema de reservas de vagas para negros e sobrevagas para indígenas; quilombolas; ciganos; pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades; transexuais, travestis e transgênero, no âmbito da UNEB, e dá outras providências”, e revoga todas as resoluções mencionadas anteriormente. No formato atual vigente, 40% das vagas de todos os cursos de graduação e pós-graduação da UNEB continuam reservadas para candidatas/os negras/os, com 5% de sobrevagas reservadas para cada um dos cinco outros grupos especificados acima. Chama atenção o fato de que essa resolução - bem como todas as anteriores - não faz nenhuma alusão à necessidade confirmação de autodeclaração de cor ou raça de candidatas/os negras/os, por meio de comissões de heteroidentificação ou qualquer outro mecanismo, ao mesmo tempo em que prevê procedimentos específicos para a confirmação da autodeclaração de candidatas/os de todos os outros grupos beneficiados. Resta dizer que 16 anos após a iniciativa original, o programa de ações afirmativas da UNEB continua sendo de caráter permanente, ou seja, não prevê um período de vigência e mantém muitas das características da proposta inicial.

13 anos após a UNEB, a UFG foi a primeira instituição federal de ensino superior a aprovar ações afirmativas para o conjunto de todos os seus cursos de pós-graduação stricto sensu, na forma da Resolução Consuni nº 05, de 24.04.15, que “dispõe sobre a política de ações afirmativas para pretos, pardos e indígenas na Pós-Graduação stricto sensu na UFG”. Vale o registro de que essa resolução antecede em mais de um ano a antes mencionada Portaria Normativa MEC nº 13/2016, que trata da indução de ações afirmativas na pós-graduação, o que foi decisivo, inclusive, para que o pró-reitor de pós-graduação da UFG à época fosse convidado, como representante da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), a integrar o antes mencionado grupo de trabalho instituído pela Capes/MEC, em setembro de 2015, para elaborar propostas que culminaram naquela portaria.

O processo de discussão institucional que levou à aprovação das ações afirmativas em nível de pós-graduação na UFG, bem como suas características principais, são apresentadas em artigo publicado por José Alexandre Diniz-Filho e outros (2017), cabendo ressaltar que o objetivo principal da política proposta foi a reserva de pelo menos 20% das vagas de todos os cursos de pós-graduação stricto sensu para candidatas/os pretas/os, pardas/os e indígenas, sem que haja um percentual de reserva específico para outros grupo subalternizados, a exemplo de pessoas com deficiência, quilombolas ou com baixa renda familiar. O art. 2º, parágrafo único, da resolução prevê que, no caso de indígenas, é necessário que o “candidato apresente a cópia do registro administrativo de nascimento e óbito de índios (RANI) ou declaração de pertencimento emitida pelo grupo indígena assinada por liderança local”, não havendo nenhuma alusão à necessidade de confirmação da autodeclaração de cor ou raça de candidatas/os autodeclaradas/os negras/os.

Em 10.11.17, todavia, a UFG aprovou a Resolução Consuni n

º 32, que “cria as Comissões de Escolaridade, de Verificação da Condição de Deficiência, de Análise da Realidade Socioeconômica e de Heteroidentificação para atuarem nos processos seletivos de ingresso nos cursos de graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG)”, a qual foi modificada, em 19.10.18, por meio da Resolução Consuni nº 16, passando a prever, em seu art. 6º, que “a Comissão de Heteroidentificação poderá atuar ainda nos Processos Seletivos para a Pós-graduação Stricto Sensu e em Concursos públicos de provimento de vagas para Servidores Técnicos Administrativos e Docentes”. Em 25.02.19, por sua vez, foi publicada a Portaria nº 1.049, que “disciplina os procedimentos de composição e atuação da Comissão de Heteroidentificação em face da autodeclaração dos(as) candidatos(as) que acessarem políticas de ações afirmativas na UFG (candidatos negros e indígenas SISU, candidatos negros quilombolas e Indígenas UFGInclui e candidatos negros e Indígenas na Pós-graduação), previstos nos editais específicos”.

Por outro lado, a mencionada Resolução Consuni nº 7/2015 ainda prevê, em seu art. 7º, que os programas de pós-graduação da instituição poderão definir ações e atividades complementares que maximizem a possibilidade de permanência de alunos que ingressarem pelo sistema de cotas, realizando um acompanhamento contínuo de todas as suas atividades no programa, e, nos termos de seu art. 8º, recomenda, mas não impõe, que as Comissões de Bolsa dos programas de pós-graduação considerem a possibilidade de definição de critérios que contemplem candidatas/os aprovadas/os pelo sistema de cotas, observadas as normas dos órgãos de fomento e de acompanhamento e avaliação. Por fim, uma das características que singulariza essa resolução da UFG, além de seu pioneirismo em nível federal por alcançar todos os cursos de pós-graduação stricto sensu da instituição, é a previsão de diferentes mecanismos de aplicação das cotas para os casos de programas de pós-graduação que realizam processos seletivos diversos, a exemplo dos que oferecem vagas por áreas de conhecimento, linhas de pesquisa ou orientadoras/es. A vigência da ação afirmativa aprovada na UFG é de 10 anos, passível de renovação, a depender de avaliação específica.

A relevância da iniciativa da UFG para outras instituições que aprovaram, depois de 2015, ações afirmativas em seus programas de pós-graduação stricto sensu parece inconteste, como aponta Anna Carolina Venturini:

A única comunidade que tem características mais heterogêneas em termos de área do conhecimento e unidade federativa é aquela que tem a UFG como centro. A política da UFG foi utilizada no desenho de universidades de outros estados (UFBA e UFMG) e do programa de pós-graduação de Educação da UFSCar. Ademais, como mencionado acima, o caso da UFG foi utilizado como modelo nas discussões realizadas no âmbito do Grupo de Trabalho do MEC e da CAPES, pois, na visão dos participantes, este era o mais completo e considerava diferentes formas de distribuição de vagas existentes nos processos de admissão à pós-graduação. (VENTURINI, 2019, p. 208).

A UnB, por outro lado, pioneira entre as instituições federais de ensino superior a implantar, em 2004, reserva de 20% das vagas de todos os cursos de graduação para estudantes negras/os, sem qualquer exigência relativa à renda ou à escola de origem, aprovou, apenas 16 anos depois, a Resolução nº 44, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), de 04.06.20, que “dispõe sobre a política de ações afirmativas para estudantes negros/as, indígenas e quilombolas nos cursos de pós-graduação da Universidade de Brasília”, com previsão de reavaliação após 10 anos de vigência. Talvez seja coincidência, mas chama a atenção que a aprovação dessa resolução tenha antecedido em apenas 12 dias a antes referida tentativa de revogação da Portaria Normativa MEC nº 13/2016, provavelmente como represália à expansão das políticas de ações afirmativas para negras/os, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação stricto sensu, exatamente na única universidade federal da capital do país. Aqui vale o registro de que, em 02.06.20, a Câmara de Pesquisa e Pós-graduação (CPP), da UnB, também aprovou a Resolução nº 5, que estabelece a reserva de pelo menos uma vaga para pessoas com deficiência, em cada processo seletivo de cursos dos programas de pós-graduação da instituição. Não há, no caso dessa resolução, qualquer previsão de período de avaliação ou vigência da iniciativa.

A Resolução nº 44/20 estabelece, em seu art. 1º, § 1º, que todos os processos seletivos dos programas de pós-graduação da UnB reservarão pelo menos 20% das vagas para candidatas/os negras/os, além de uma vaga adicional para candidatas/os indígenas e outra para candidatas/os quilombolas. Nos dois últimos casos, a seleção pode se dar tanto por meio do edital geral quanto de outro específico. Nos termos do art. 12 da resolução, as/os candidatas/os negras/os devem ter sua autodeclaração confirmada por uma comissão de heteroidentificação da própria instituição, enquanto candidatos indígenas e quilombolas, além da autodeclaração, devem apresentar carta assinada por liderança ou organização indígena ou quilombola, respectivamente, indicando seu pertencimento étnico (Art.13 e Art.14).

A resolução ainda prevê, em seu art. 15, que a distribuição de bolsas para estudantes de pós-graduação deve priorizar, nessa ordem, candidatas/os indígenas e quilombolas; candidatas/os negras/os optantes da política de ação afirmativa; e demais aprovadas/os. Tanto as determinações relativas à autodeclaração de cor ou raça quanto as que definem prioridade em relação à distribuição de bolsas foram posteriormente regulamentadas na forma de duas outras resoluções específicas: Resolução CPP nº 9, de 21.09.20, que “dispõe sobre a composição e atuação da Comissão de Heteroidentificação e da Comissão Recursal para fins de preenchimento das vagas reservadas no Sistema de Ações Afirmativas nos processos seletivos para os cursos de Pós-Graduação da Universidade de Brasília”, e Resolução CPP nº 11, de 25.09.20, que “dispõe sobre a adoção de critérios para concessão de bolsas de Mestrado e Doutorado por parte dos Programas de Pós-Graduação da Universidade de Brasília”.

Olhadas comparativamente, as três universidades têm em comum a priorização de negras/os, principalmente, e indígenas como grupos-alvo das ações afirmativas propostas para seus cursos de pós-graduação stricto sensu, sendo a UNEB a única que especificou o critério de ter cursado escola pública e possuir renda familiar até um determinado patamar como pré-requisitos a serem atendidos pelas/os candidatas/os às vagas e sobrevagas reservadas. No caso da UnB e da UFG, o marcador principal da política de ação afirmativa é de caráter étnico-racial, com a UnB reservando vaga também para estudantes quilombolas, como faz a UNEB, ambas as instituições adotando vagas adicionais/sobrevagas para integrantes de outros grupos não formados por estudantes autodeclaradas/os negras/os. A UnB, em resolução separada, prevê reserva de vagas adicionais também para estudantes com deficiência, do mesmo modo que a UNEB, só que esta, por meio de um único instrumento normativo, que contempla não apenas pessoas com deficiência, mas também ciganas/os, pessoas com transtorno do espectro autista e altas habilidades, além de transexuais, travestis e transgêneros.

As resoluções das três universidades também fazem alusão à necessidade de suporte acadêmico e institucional a estudantes que ingressarem por meio de cotas nos cursos de pós-graduação, sendo a UNEB a única que não restringe expressamente a reserva de vagas aos cursos de mestrado e doutorado, na medida em que utiliza a expressão “cursos de pós-graduação” (que comporta também cursos lato sensu – especializações), ao invés da expressão “cursos de pós-graduação stricto sensu”, como faz a UFG, ou “programas de pós-graduação” como no caso da UnB.

Por outro lado, a UNEB não prevê comissão de heteroidentificação responsável pela confirmação da autodeclaração de candidatas/os negras/os e tampouco a priorização dessas/es estudantes, nem dos outros grupos-alvo, na definição de critérios para a concessão de bolsas das agências de fomento à pesquisa, enquanto a UnB vai na direção contrária, especificando a criação da comissão de heteroidentificação e priorizando cotistas na concessão de bolsas, não só nos termos da própria resolução que criou o programa de ações afirmativas, mas também em duas outras resoluções específicas. No caso da UFG, não há previsão de comissão na resolução aprovada, mas a universidade determinou que estudantes autodeclaradas/os negras/os, candidatas/os a vagas por meio de cotas em cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu, devem ser submetidas/os à avaliação de uma comissão de heteroidentificação. Na resolução de criação do programa de ações afirmativas da UFG, vale lembrar, recomenda-se, mas não se obriga, que a concessão de bolsas priorize candidatas/os cotistas. Por fim, registro que se a UnB e a UFG estabelecem que as ações afirmativas na pós-graduação serão avaliadas por comissão específica no prazo de 10 anos, a UNEB não especifica qualquer prazo de vigência ou avaliação de seu programa, cuja aprovação inicial ocorreu há 18 anos.

Feitas essas considerações de ordem geral sobre os programas de ações afirmativas das três instituições, quero destacar o perfil de cor ou raça de estudantes de pós-graduação stricto sensu e graduação e de docentes da UFG, da UnB e da UNEB, na Tabela 5, abaixo. Vale aqui o registro de que os perfis de cor ou raça das populações das três unidades da federação (UFs) em que as universidades estão localizadas variam entre si, conforme dados da PNADCt, do IBGE (2020), relativa ao 1º trimestre de 2020: a) Bahia, com 22,5% de pretas/os, 58,5% de pardas/os e 17,9% de brancas/os; b) Goiás, com 7,7% de pretas/os, 57,8% de pardas/os e 33,8% de brancas/os; e c) Distrito Federal, com 10,2% de pretas/os, 48,9% de pardas/os e 40% de brancas/os.

Tabela 5.
Estudantes de pós-graduação stricto sensu, de graduação e docentes, por cor/raça, da UFG, UnB e UNEB, 2018.
Instituição Sexo Cor Total
Branca Preta Parda Amarela Indígena ND* NDI**
UFG Estudante pós-graduação 1551 25,7% 150 2,5% 564 9,4% 20 0,3% 14 0,2% 1.363 22,6% 2.364 39,2% 6.026 100%
Estudantes Graduação 9.025 36,6% 2.214 8,9% 10.294 41,8% 361 1,5% 416 1,7% 2.320 9,4% 10 - 24.640 100%
Docentes 1.052 34,7% 69 2,3% 374 12,3% 27 0,9% 5 0,2% 1.497 49,5% 2 - 3.026 100%
UnB Estudante pós-graduação 1.295 13,3% 177 1,8% 643 6,6% 25 0,3% 37 0,4% 2.453 25,2% 5.103 52,4% 9.733 100%
Estudantes Graduação 13.799 38,4% 3.364 9,3% 13.618 37,9% 591 1,6% 140 0,4% 4.420 12,3% 5 - 35.937 100%
Docentes 1.772 59,8% 72 2,4% 446 15% 64 2,1% 13 0,4% 596 20,1% - - 2.963 100%
UNEB Estudante pós-graduação 106 9,1% 219 18,7% 465 39,7% 4 0,3% 3 0,3% 233 19,9% 140 12,0% 1.170 100%
Estudantes Graduação 2.313 10% 9.316 40,3% 7.008 30,3% 130 0,5% 309 1,3% 4.029 17,4% - - 23.105 100%
Docentes 679 30% 350 15,4% 856 37,7% 12 0,5% 15 0,7% 352 15,5% 3 0,1% 2.267 100%
Fonte: Construída pelo autor, a partir de dados do Plataforma Sucupira 2018 (CAPES, 2019) e do Censo da Educação Superior 2018 (INEP, 2019).

Embora seja seguro afirmar que os perfis de cor ou raça de estudantes de graduação, pós-graduação e de docentes das três instituições não são um retrato fiel das populações das UFs em que estão localizadas, é impossível dimensionar de maneira precisa a correlação entre grupos de cor ou raça nas universidades e nas UFs, haja vista os altos índices de subnotificação do quesito nos três grupos das respectivas comunidades acadêmicas, com destaque para estudantes de pós-graduação da UFG (aproximadamente 62%) e UnB (aproximadamente 78%) e docentes da UFG (aproximadamente 50%), como se observa na Tabela 5. Em contrapartida, chama a atenção que a UnB e a UFG tenham menores índices de subnotificação do quesito cor/raça de estudantes de graduação quando comparadas à UNEB, o que nos permite cogitar a hipótese de que a existência da Lei nº 12.711/12 tem contribuído para uma crescente melhora na coleta e disponibilização de informações relativas a esse quesito, entre universidades e institutos federais, no Censo da Educação Superior do INEP/MEC.

A longevidade da política de ação afirmativa para pós-graduação da UNEB, quando comparada às duas outras instituições, talvez seja uma pista, entre outras possíveis, para compreendermos os menores índices de subnotificação de cor ou raça nesse segmento discente (aproximadamente 32%), embora ainda bastante elevado se pensado em termos absolutos. Por outro lado, o número de estudantes de pós-graduação autodeclaradas/os pretas/os da UNEB supera os da UFG em aproximadamente sete vezes e os da UnB em 10 vezes, enquanto o número de estudantes autodeclaradas/os pardas/os da UNEB é mais de quatro vezes maior que os da UFG e mais de seis vezes maior que na UnB, conforme Tabela 5.

Nesse cenário, a subnotificação do quesito cor/raça observada entre docentes da UnB (20,5%) e da UNEB (15,6%) também é menor que a média nacional para instituições públicas federais e estaduais - 47% e 35,7%, respectivamente -, mas com implicações diferentes nas duas instituições: 59,8% de docentes brancas/os na UnB e 53,1% de docentes negras/os na UNEB. Vale o registro de que o número de docentes pretas/os da UNEB supera em aproximadamente sete vezes o da UnB e o da UFG e que o número de docentes pardas/os da UNEB é três vezes maior que o da UFG e duas vezes e meia maior que o da UnB, como mostra a Tabela 5.

Por fim, em relação aos cursos de graduação, estudantes brancas/os correspondem a aproximadamente 40% do corpo discente da UFG e da UnB, enquanto não passam de 10% na UNEB. No caso de estudantes pretas/os, a polaridade se inverte, com esse grupo correspondendo a 40% do corpo discente da UNEB e menos de 10% na UFG e na UnB. Ainda segundo a Tabela 5, o número de estudantes pardas/os é maior na UFG, seguida da UnB e da UNEB, devendo-se ressaltar que o corpo discente desta universidade é o que possui a mais alta taxa de subnotificação do quesito cor/raça (17,4%) entre as três instituições. Salta aos olhos, por outro lado, o reduzido número de docentes e estudantes de graduação e pós-graduação indígenas e amarelos, nas três instituições.

Claro que os perfis e as considerações acima apresentadas não têm o objetivo de avaliar a efetividade e o alcance de cada um dos programas de ações afirmativas nas três universidades, mas, antes de tudo, ressaltar as singularidades de cada proposta, no contexto da distância temporal entre as iniciativas, bem como do fato de que são duas instituições federais e uma estadual, instaladas em UFs com perfis de cor ou raça específicos. Chama a atenção, porém, que a UnB, a despeito de ter sido a primeira universidade federal a implantar cotas para estudantes negras/os em seus cursos de graduação, não conseguiu igual pioneirismo no caso dos cursos de pós-graduação, ao mesmo tempo em que a UNEB durante mais de uma década foi a única universidade pública a prever cotas para estudantes negras/os em todos os seus cursos de pós-graduação. A expressiva presença de pessoas negras, em particular pretas, no conjunto da população do estado da Bahia, bem como no corpo docente da UNEB, talvez seja um elemento importante para a compreensão de tal pioneirismo, mas seguramente não o explicam por inteiro, considerando que outras UFs também possuem elevado percentual de população negra, especialmente parda, e nem por isso, até hoje, tiveram iniciativas similares.

Para continuar pensando

No momento em que finalizo esse texto, nove meses após a identificação dos primeiros casos de Covid-19 no Brasil, o mundo é muito diferente de quando a pandemia teve início, considerando mais de 62 milhões de casos e 1,5 milhão de mortes, além do aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas em larga escala. Se a esperança era de que um mundo pós-pandêmico seria mais solidário, igualitário, justo e sustentável, o cenário que se desenha hoje é de radicalização das lógicas de organização da vida em sociedades fundadas nas desigualdades estruturais, com destaque para o sexismo, o racismo e o classismo.

No campo das relações étnico-raciais, com a Covid-19, os conflitos se aprofundaram em escala planetária, em decorrência não só da maior limitação à livre circulação de pessoas (especialmente migrantes clandestinos e refugiados), mas também pela evidenciação dos privilégios dos grupos dominantes que se reafirmaram no contexto pandêmico. As/Os doentes e as vítimas fatais das doenças produzidas pelo coronavírus estão na base da pirâmide de desigualdades sociais marcadas por renda, cor ou raça, sexo, escolaridade, local de moradia, entre outros eixos de opressão, para além da noção medicalizada de grupo de risco relacionada a comorbidades prévias e idade.

Além disso, os conflitos mais especificamente de ordem racial passaram a ocupar um lugar central na agenda política nacional e internacional, não só em função da ampliação dos casos de violência contra pessoas negras e de situações de racismo em geral, mas também, no Brasil em particular, pela crescente visibilização de uma histórica resistência organizada de movimentos negros e de aliados antirracistas contra a opressão racista estrutural. Se a tentativa de revogação de uma portaria que pretendia estimular instituições federais de ensino a adotar cotas em seus cursos de pós-graduação stricto sensu, como visto anteriormente, causou forte reação dos movimentos negros e de diferentes setores da sociedade, outras iniciativas importantes, ao longo de 2020, mostram como os debates sobre a questão racial parecem ter assumido outro patamar no Brasil, explicitando as conexões entre antirracismo e ações afirmativas, para além do âmbito – ainda fundamental – das cotas para acesso de pessoas negras e indígenas a cursos técnicos de nível médio e de graduação. Nesse sentido, vale ressaltar cinco iniciativas:

a) decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, em 25 de agosto, determinou que os partidos políticos devem destinar a candidatas/os negras/os e brancas/os, de maneira proporcional, os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão;

b) abertura de inscrições, em 18 de setembro, para programa de trainees destinado exclusivamente a candidatas/os autodeclaradas/os negras/os, promovido pela Magazine Luiza, uma das maiores redes varejistas do país;

c) aprovação, em 22 de outubro, pelo Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de resolução que disciplina a implementação da reserva, para candidatas/os negras/os, de 20% de vagas de concursos para docentes, conforme determina a Lei nº 12.990/2014;

d) aprovação, em 27 de outubro, pelo Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de resolução que reserva 20% das vagas dos cursos de pós-graduação lato e stricto sensu para estudantes negras/os; e

e) anúncio, em 30 de outubro, de que todas as grifes participantes da São Paulo Fashion Week (SPFW), principal evento de moda do país, devem contar em seus desfiles com 50% de modelos negras/os e/ou indígenas;

A despeito desses sinais de mudança, não há dúvidas de que o racismo estrutural ainda é marca da sociedade brasileira e está especialmente explicitado na desproporção entre brancas/os e negras/os no conjunto de estudantes de pós-graduação stricto sensu e de docentes das instituições federais de ensino. A cadeia explicativa parece óbvia: brancas/os, desde sempre até muito recentemente, foram maioria absoluta nos cursos de graduação; brancas/os desde sempre e até hoje continuam maioria absoluta entre estudantes de pós-graduação stricto sensu; se nada for feito para reparar as injustiças raciais e o racismo institucional, brancas/os continuarão a ser maioria absoluta entre docentes de nível superior, especialmente nas instituições federais, indefinidamente. Tal constatação também se expressa na desvalorização do quesito cor ou raça nos levantamentos de informações realizados pelo Inep (estudantes de graduação e docentes) e pela Capes (estudantes de pós-graduação stricto sensu), materializada na forma de altíssima subnotificação, não encontrada em nenhum outro atributo de identificação coletado.

Ao longo dos próximos anos, resta saber se continuaremos a contar apenas com iniciativas isoladas de instituições públicas de ensino que aprovam programas de ações afirmativas em nível de pós-graduação para estudantes negras/os ou se haverá condições políticas para que o Congresso Nacional aprove lei que regulamente a matéria em nível federal, como já fez em relação aos cursos de nível médio e de graduação, na forma de subcota étnico-racial, bem como no tocante ao acesso ao serviço público. Sem dúvida, conhecer as experiências existentes e exemplares, com as da UNEB, da UnB e da UFG, entre outras, parece um caminho fundamental para a definição de parâmetros para uma política de formação de profissionais negras/os altamente qualificadas/os, o que significará um importante passo no combate ao racismo, a partir da articulação entre políticas antirracistas e ações afirmativas.

Referências

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VENTURINI, Anna Carolina. Ação afirmativa na pós-graduação: os desafios da expansão de uma política de inclusão. Tese (Doutorado em Ciência Política). Centro de Ciências Sociais. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 325p, 2019.

Notas

[1] Professor Titular de Sociologia Faculdade de Ciências Sociais Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. E-mail: luizman@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4387-8158.
[2] Não há uniformidade na maneira como é identificada a variável cor ou raça nos diferentes estudos populacionais e registros administrativos realizados por órgãos governamentais brasileiros. Nesse texto, utilizo a forma consagrada nos levantamentos realizados pelo IBGE, que é “cor ou raça”, a não ser quando faço alusão expressa a dados do Censo da Educação Superior, realizado pelo Inep/MEC, ou da Plataforma Sucupira, sob responsabilidade da Capes/MEC, que utilizam as expressões “cor/raça” e “raça ou cor”, respectivamente.
[3] “Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”. Essas foram as palavras do então ministro da educação, quando havia assumido o cargo há 22 dias, em entrevista ao Jornal O Estado de São Paulo, publicada em 30 de abril de 2019.
[4] Esta portaria normativa tem como fundamento as propostas apresentadas pelo Grupo de Trabalho da Capes/MEC, instituído por meio da Portaria MEC nº 929, de 14 de setembro de 2015, para analisar e propor mecanismos de inclusão de estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas e estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, em programas de mestrado e doutorado e em programas de mobilidade internacional.
[5] Para técnico-administrativas/os, os censos da educação superior do Inep não contemplam a variável cor ou raça, restringindo-se a sexo e escolaridade, por instituição.
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