Resumo: O artigo propõe uma observação de como os objetos e as mercadorias podem revelar informações importantes e ainda contar histórias apresentando fatos desconhecidos da personalidade humana. As histórias, que apresentaremos, foram ocorridas numa comunidade terapêutica de orientação religiosa voltada para o acolhimento de dependentes químicos. Para nossa análise, faremos uso de autores que propõem uma nova perspectiva de como as coisas ou agentes não humanos podem auxiliar numa pesquisa etnográfica e na compreensão dos diversos agentes de pesquisa. Para tanto, vamos recorrer às observações de Arjun Appadurai em ?A vida social das coisas?. Faremos isso no intuito de dialogar com os debates contemporâneos acerca das relações entre bens e mercadorias, antropologia do consumo e cultura material. Também nos utilizaremos das contribuições da Teoria Ator-Rede para problematizarmos a vida material em si mesma, especialmente em um mundo em que as coisas exercem influências e controle direto sobre as pessoas.
Palavras-chave: Drogas,Objetos,Comunidade Terapêutica,A vida social das coisas,A Teoria Ator Rede.
Abstract: The article proposes an observation of how objects and commodities can reveal important information and even tell stories presenting unknown facts of human personality. The stories here presented, have taken place in a therapeutic community of religious orientation aimed at the reception of chemical dependents. For our analysis, we will use authors who propose a new perspective on how nonhuman things or agents can aid in an ethnographic research and in the understanding of the various agents of research. To do so, we will invoke the observations of Arjun Appadurai in "The social life of things". We will do this in order to dialogue with the contemporary debates about the relations between goods and commodities, consumption anthropology and material culture. We will also use the contributions of The Actor-Network Theory to problematize material life in itself, especially in a world in which things exert influence and direct control over people.
Keywords: Drugs, Objects, Therapeutic Community, The social life of things, The Actor-Network Theory.
Artigos
A VIDA ?EMOCIONAL? DAS COISAS E O SIGNIFICADO DOS NÃO HUMANOS. UMA ANÁLISE DO VALOR DOS OBJETOS NA VIDA COTIDIANA DOS RESIDENTES DE UMA COMUNIDADE TERAPÊUTICA.
THE ?EMOTIONAL? LIFE OF THINGS AND THE NOT-HUMAN BEINGS MEANING. AN ANALYSIS OF THE VALUE OF THE OBJECTS ON A DAILY LIFE OF A THERAPEUTIC COMMUNITY RESIDENTS.
A obra ?A vida Social das Coisas ? As mercadorias sob uma perspectiva cultural? Arjun Appadurai, busca refletir e analisar os processos através dos quais as coisas tornam-se mercadorias e propõe uma nova perspectiva sobre a circulação das mercadorias na vida social. Na visão de Appadurai, as mercadorias teriam uma vida social, assim como as pessoas. O autor sintetiza sua perspectiva da seguinte forma: a troca econômica cria o valor; o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas; segundo o autor, concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas e funções de troca e refazer suas trajetórias a fim de compreender seus valores, possibilita a argumentação de que o que cria o vínculo entre troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo ( APPADURAI, 2008, p.15). O autor define mercadoria como objeto de valor econômico e usa as ideias de George Simmel para dar significado a expressão ?valor econômico?. Para Simmel, o valor não é uma propriedade inerente aos objetos e sim o julgamento que sujeitos fazem sobre eles.
Portanto, para Appadurai, as mercadorias são compreendidas como resultado de um processo de atribuição de valor às coisas. Nesse sentido, mais do que determinar que tipo de objeto possa ser classificado como mercadoria, o autor discute o processo de atribuição de valor a esses objetos que os fazem tornassem mercadorias. Um processo, diga-se de passagem, que não pode ser reduzido a razões econômicas, mas que envolve dimensões históricas, sociais, culturais e políticas. Um processo dialético envolve as coisas, os seres humanos e os contextos nos quais estão imersos. Um processo que não é reduzido às particularidades do capitalismo moderno industrial.
No processo de troca, no qual o valor é atribuído às coisas estão presentes, entre outras coisas, desejos, demandas, sacrifícios e conhecimentos. Nesse sentido, o autor trabalha com a noção de regimes de valor que são dados no tempo e no espaço. Quer dizer, trata-se de compreender ?os modos como desejo e demanda, sacrifício recíproco e poder interagem para criar valor econômico em situações sociais específicas? (p. 16). Desta forma, o autor defende que as coisas possuem uma história social, um enredo emocional que contribuem para entender melhor o que está por trás de determinado conceito, uma biografia social que pode atravessar diferentes regimes de valor. Os objetos, as coisas, não são mudos, falam e se conversam, comunicam situações, apresentam fatos, contam história, propõe condições. Se for correto afirmar que não há inerência de valor nas coisas, por outro lado, quando compreendidos em seus processos de circulação e de utilização, observamos a história acumulada em suas trajetórias, sendo possível, a partir deles, depreender seus contextos sociais.
A teoria Ator-Rede, desenvolvida por Bruno Latour, John Law e Michell Callon, apresenta um olhar voltado para as práticas cotidianas a envolver ciência, tecnologia e sociedade. Temos a observação dos aspectos humanos e não-humanos que, por sua vez, são também observações sistêmicas. Tal observação nos possibilita pensar, não mais em termos de unidade, mas a partir de um dinamismo processual e sempre constante de associações.
A Teoria Ator-Rede (TAR) provoca os leitores a desenvolverem diferentes olhares. É provável, afirma Law (1992), que a maior parte de nossas relações seja mediada pela materialidade. O que seriam das pesquisas e das interações sociais se não fosse a presença da materialidade? Então, a chamada ordem social também pode ser perturbada. Por isso, a ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos (LAW, 1992, p. 3).
O maior contraste entre a Teoria Ator-Rede e a sociologia, ou a sociologia do social como menciona Latour (2012), é a incursão dos elementos não humanos na análise social. Eles deixam de ser apenas artefatos, cuja significação é atribuída pelo homem e passam a ter agência, ou seja, participam das ações nas situações cotidianas e provocam transformações. Também podem parecer simples, mas não o são. De acordo com Law (1999), a TAR parte da ideia de que entidades (humanos e não humanos) são constituídas e adquirem seus atributos por meio do conjunto de relações que estabelecem com outras entidades, sendo realizadas por e através dessas relações e, por isso, podem oferecer uma dinâmica de observação capaz de ampliar o campo de observação do pesquisador.
Neste artigo, procuramos analisar aspectos de uma Comunidade Terapêutica do interior de São Paulo, a partir de elementos e propostas presentes nos trabalhos citados acima ( Appadurai 2008; Latour 2012; Law 1992). Especificamente, nos interessa o valor emocional das coisas, dos objetos, na vida cotidiana desta comunidade.
Antes de apresentarmos o nosso campo de observação, é fundamental descrevermos de forma objetiva o que é e qual é a proposta de uma Comunidade Terapêutica, modalidade de acolhimento e tratamento para dependentes químicos, objeto de nossa observação para este artigo.
O livro de Frederich B. Glaser: ?As origens da Comunidade Terapêutica sem drogas: uma história retrospectiva? declara que o modelo praticado pelas Comunidades Terapêuticas existe há mais de dois mil anos, descreve uma comunidade de essênios em Qumran, a qual reunia pessoas com ?problemas da alma?. Posteriormente, movimentos registrados na Europa, apresentavam uma clara motivação ética e espiritual, cuja influência é, até hoje, uma parcela considerável de Comunidades Terapêuticas em todo o mundo.
Na década de 40, o psicanalista britânico Wilfred Ruprecht Bion, encarregado de uma ala de reabilitação de um hospital psiquiátrico militar em Londres, desenvolve uma série de estudos sobre a dinâmica de grupo e suas interações. Posteriormente, Bion apresenta o livro: ?Experiences in groups and other papers?, lançado no Brasil em 1975, com o título: Experiências com Grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Esse livro fez com que o nome de Bion se projetasse mais, além dos domínios da psicanálise, pois os ensaios reunidos constituem matéria de estudo e consulta para todos os que se preocupam com a psicologia dos grupos e o comportamento do homem como ser social.
Em 1953, o psiquiatra sul-africano Maxwell Jones, radicado no Reino Unido, foi considerado o criador do conceito de Comunidade Terapêutica. A proposta de tratamento diferia, em tudo, dos hospitais psiquiátricos então existentes, destinados às pessoas com dependências de drogas. Apresentavam uma estrutura rigidamente hierarquizada e que atuava de modo autocrático. Havia pouca comunicação entre as pessoas dos diferentes níveis e uma passividade dos internos, mantidos na ignorância do que se passava ao seu redor e, principalmente, em relação ao seu tratamento. A proposta de Maxwell Jones, realmente revolucionária, era a de democratizar essa estrutura, diminuindo drasticamente a separação entre os diferentes níveis, estimulando a comunicação entre todos os membros, incluindo todos (inclusive o ambiente) no processo terapêutico, fazendo com que os pacientes participassem das atividades da Comunidade. Reuniões com a participação dos internos, todos com o direito de perguntar e de expor suas ideias, garantiam a manutenção dos objetivos propostos, desta forma, criando o ambiente terapêutico ideal para beneficiar a recuperação do indivíduo, despertando um processo contínuo de reinserção e reeducação sociais. Esse modelo provou-se particularmente eficaz para o tratamento e recuperação da dependência química, alcoolismo e abuso de drogas.
Nosso campo de observação será a Comunidade Terapêutica Ave Cristo, fundada em 29 de agosto de 1.991. A Ave Cristo, como é conhecida, está localizada na zona rural de Birigui-SP, numa área de 50.000 m². As edificações são simples e confortáveis, construídas em módulos que se afastam do estilo hospitalar, dotados de extensas varandas, as quais se distendem por verdejante colina, permeadas de densa vegetação, formada de palmeiras, árvores, fontes e jardins. Os apartamentos são quádruplos; havendo auditório, salas de psicoterapia, sala de TV e vídeo, refeitório, cozinha, oficina, campo de futebol e vasto pomar. A proposta terapêutica apresenta-se em Programa de Acolhimento e Reinserção Social a homens com dependências de drogas, em regime de internação voluntária, com duração de seis a nove meses.
Nestes 26 anos de atividades, a Comunidade Terapêutica Ave Cristo foi palco de diversas histórias. Estima-se, que durante todos estes anos, foram realizados mais de cinco mil acolhimentos de dependentes químicos, pessoas vindas de diversas cidades e estados do Brasil e algumas do exterior. Cada um trazendo seus objetos, suas histórias, seus dramas e um passado conturbado pela triste realidade da dependência química.
Dentre muitos casos, diversos agentes humanos e não humanos, vamos evidenciar cinco pessoas, que através de suas histórias, pudemos constatar o quanto ?as coisas? ou os objetos podem interferir ou mesmo apresentar um campo de análise emocional.
Era uma tarde de inverno, quando chegou a Comunidade Ave Cristo um jovem adulto de 18 anos, com sua avó, responsável pelo acolhimento do neto, sendo que o pai e mãe encontravam-se presos pelo crime de tráfico de drogas. A nobre senhora, de mãos postas, segurava um terço, rezava para Nossa Senhora interceder pela internação do querido neto. O objeto entrelaçado nas mãos calejadas apresentava-se como amuleto sagrado, capaz de unir a matriarca aos representantes celestiais. A generosa avó relatou para os agentes sociais que o terço foi um presente recebido de sua madrinha e que durante toda a vida, o objeto a acompanhou nos momentos mais difíceis e principalmente nas horas que carecia de implorar a Nossa Senhora. Após todas as tratativas legais para o acolhimento, a psicóloga chamou o rapaz, na sala, para uma entrevista inicial, informou-o de todos os procedimentos e normativas da Comunidade Terapêutica e ainda se certificou de que o mesmo queria a internação. Ela perguntou se havia alguma dúvida quanto ao seu acolhimento, ele respondeu: ?Eu posso usar meu boné lá? Porque se eu não puder, eu não vou! Eu nunca tiro este boné?. Diante da observação, e sem imaginar o que representava aquele boné para aquele jovem, a psicóloga respondeu que sim.
Durante o primeiro mês de acolhimento, nas diversas atividades, o jovem nunca tirava o seu boné. Certo dia, a equipe técnica organizava uma confraternização na presença de alguns acolhidos e a assistente social perguntou para aquele jovem o porquê ele nunca tirava o boné, quando ele respondeu: ?Foi presente de um ?parça?, este boné me garanti!?. Confesso, que tanto eu como a equipe técnica, não entendemos sua resposta, mas alguns jovens que estavam próximos disseram ?ele ganhou este boné do chefe do tráfico, significa que quem bater de frente com ele, terá problemas?. Neste momento, percebi que aquele boné representava uma segurança e a autoafirmação para o rapaz, sendo uma espécie de salvo-conduto no universo tão difícil da sua realidade cotidiana.
Após seis meses de acolhimento, o jovem do boné recebeu alta para iniciar uma nova fase da sua vida. Durante o período que passou na Comunidade, aprendeu novos valores, fez novos amigos e saiu cheio de esperança... Em sua despedida, a assistente social informou-o de que havia um escritório contábil que precisava de um auxiliar e que caso houvesse interesse da parte dele, ela poderia indicá-lo para a vaga, todavia como era um escritório, ele não poderia trabalhar de boné. Ele olhou-a, atentamente, e disse ?Não tem problema, agora não preciso mais do meu boné, me garanto sozinho!?.
Certo dia, a equipe técnica da Comunidade Terapêutica recebia para o acolhimento um jovem do Estado do Rio de Janeiro, muito educado, estudioso, adorava música, e era um exímio flautista. De aparência frágil, apresentava muita insegurança, medo e perturbação emocional. Nas primeiras entrevistas com a equipe técnica, falava muito da relação com a mãe, demonstrava muito carinho e afeto pela genitora, porém ao ser questionado sobre o pai, respondia que não ?se dava bem com o coronel?. Após algum tempo, a equipe técnica nos informou que a relação com o pai, coronel do exército, era muito conflituosa e que a fragilidade e as preferências do filho com as artes foram o primeiro obstáculo na relação distante entre pai e filho. Após a constatação do uso das drogas, o pai rompeu por completo com o filho, deixando uma ruptura emocional, difícil de cicatrizar.
Durante um almoço na comunidade, a paz do ambiente foi rompida por uma discussão entre dois acolhidos: o jovem flautista do Rio de Janeiro e o ajudante de cozinha que a todo o momento tentava justificar que não havia pegado o garfo do carioca. Após a equipe técnica certificar-se de que havia garfos para todos, questionaram o motivo de tanto destempere. Para surpresa geral, foi informado para a equipe que o jovem flautista, carioca, havia trazido entre os seus pertences um garfo com um brasão das forças armadas do Exército Brasileiro e que, em momento algum, deixava alguém tocar naquele objeto. O jovem carioca somente retomou o equilíbrio emocional quando localizaram o objeto de estimado valor embaixo da pia.
Seguidamente, a psicóloga da Comunidade foi informada pelo jovem flautista que o garfo foi o último presente que recebeu de seu pai, quando ele ainda tinha 16 anos e que o pai tinha expectativa de que ele seria um oficial das forças armadas. Naquele momento, compreendeu-se a importância daquele objeto, sendo que, para aquele jovem, o único vínculo emocional que existia entre pai e filho era um velho garfo do exército.
Era próximo das festividades de fim de ano e a equipe técnica estava organizando um almoço de confraternização entre os acolhidos da Comunidade Terapêutica. Naquela semana, a entidade havia recebido algumas doações: entre alimentos, frutas diversas e alguns fardos de latas de refrigerantes. Naqueles dias, havia chegado à Comunidade Terapêutica um jovem, ainda muito debilitado físico e emocionalmente pelo constante uso do CRACK 2, por isso apresentava muita ansiedade e traços de agitação motora. Na hora do almoço, em especial naquele dia, serviram uma lata de refrigerante para cada residente. Fato nada comum, visto que diariamente, os residentes tomam sucos naturais produzidos com as frutas cultivadas nos pomares da própria fazenda. O jovem novato, que já apresentava certa ansiedade, resolveu deixar a Comunidade Terapêutica, alegava que não conseguia ficar ali e que precisava ir embora. A equipe técnica tratou de envolver o rapaz em especiais argumentações, buscando demonstrar a fragilidade de deixar o programa terapêutico que acabara de iniciar. Não obstante, após todas as tentativas de argumentação da psicóloga e dos demais técnicos, e também pela característica essencial de internação voluntária da Comunidade Terapêutica, o jovem abandonou o Programa Terapêutico. Alguns meses depois, a equipe técnica recebia, novamente, o mesmo jovem para uma nova entrevista e para surpresa de todos, ele confidenciou que naquele almoço, ao receber a latinha de refrigerante, passou a recordar, de forma obsessiva, do momento que fumava a pedra de CRACK utilizando-se de uma lata semelhante daquelas servidas no almoço de confraternização da Comunidade Terapêutica.
Numa manhã chuvosa em Birigui, acompanhamos a equipe técnica que recebia para o acolhimento um jovem de aproximadamente 25 anos, que há alguns anos estava escravizado pelo consumo do CRACK, por isso possuía a aparência de um homem de 40 anos, além de magro, triste e com características de uma forte depressão. O jovem envelhecido relatava para a psicóloga que já há alguns anos residia nas ruas e que havia perdido todo vínculo familiar, tinha apenas conhecimento de uma irmã, que desde a morte da sua mãe não tinha mais contato. Foi lhe perguntado a respeito do pai e o mesmo respondeu que havia morrido de desgosto, há pouco mais de 04 anos. Ao relatar a situação da morte do genitor, foi acometido de uma dor intensa e com a voz embargada, tirou do bolso um relógio preso a uma corrente e confessou: ?Este relógio foi a última coisa que meu pobre pai me deu... o pobre ?véio? não tirava do bolso, e eu jurei para ele que iria cuidar até eu morrer. Sabe Doutora, mesmo nas piores noites em que eu precisei roubar para comprar a pedra, eu não "fumei? este relógio. Tive muita fome, tive muito desespero para usar a maldita droga, nem por todo dinheiro do mundo, quebrei a promessa pro meu ?véio?... Um dia, eu estava na praça, e um homem me ofereceu R$ 250,00 reais pelo meu relógio, a doutora sabe, para um doido, 250 mango é uma festa... Eu fiquei muito tentado, aí o bacana falou, R$ 300,00 e o relógio é meu... Já estava pensando na droga que eu ia comprar com tanto dinheiro... Mas, por tudo que é mais sagrado, ouvi a voz do meu ?véio?... Cuida do meu relógio... eu saí correndo e não olhei para trás?...
O rapaz acolhido iniciou seu programa terapêutico, trazendo, na mala, dor, sofrimento, muita esperança e um relógio de bolso, que não só media as horas, mas principalmente, o amor e respeito de um filho, que mesmo nas horas de terror impostas pela fissura da droga, soube ser mais forte e cumprir a promessa para o querido pai.
Era janeiro em Birigui, região noroeste do Estado de São Paulo, uma região conhecida pelo forte calor, na época os termômetros registravam 40 graus na sombra. Foi neste clima aquecido, que a equipe técnica recebeu para o acolhimento um jovem da cidade de Sapiranga/RS, de tradicional família gaúcha. O jovem gaúcho chegava à Comunidade reclamando do forte calor. Na mala, roupas e acessórios pessoais e em especial um objeto que segundo o jovem era uma relíquia de família, cujo valor era inestimável. Tratava-se de uma cuia e uma bomba de chimarrão, que havia pertencido ao seu bisavô, imigrante europeu. O objeto, há décadas, vinha passando de pai para filho até chegar nas mãos do jovem gaúcho. Quando a assistente social perguntou se aqueles apetrechos eram para tomar tereré, o jovem foi acometido de um misto de assombro e indignação. Disse em alto e bom tom: ?Não é para tereré! Gaúcho de verdade só toma a erva quente?.
Precisou de apenas algumas semanas no verão de Birigui para que o jovem gaúcho fosse persuadido. Sob a sombra de um flamboyant, portando sua cuia e sua bomba, já trocava a ?erva quente? pela garrafa de água gelada. Diante da cena, o coordenador terapêutico da Comunidade não pode deixar de comentar: ?E aí gaúcho, o chimarrão virou tereré?? A resposta foi direta: ?Bah... Birigui é a porta do inferno, tchê?.
Quando ampliamos as possibilidades para investigar, observar e ainda conhecer o universo das coisas, as quais envolvem nosso campo de pesquisa, estamos adentrando numa rede de possibilidades, que vão do concreto para o abstrato, do real para o imaginário, do humano para os não humanos, do ser para as coisas.
É através desse uso das coisas, que nossos agentes se apresentam, mostram-se, revelam-se. E as coisas, nestas relações sociais, vão compondo condições de limitar ou aproximar, assim como um garfo que propõe unir como um elo o que restou de uma relação conflituosa entre pai e filho. É o objeto que serve de ponte, como sintetiza Mary Douglas e Baron Isheewood em O Mundo dos Bens: ?Os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes? ( DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.36).
Teria maior riqueza um relógio de bolso usado, cujo preço monetário não chegaria a R$ 300,00; mas, envolto da promessa de fidelidade do filho, esse, apresenta nas entranhas da alma a dor e a decepção de não corresponder às expectativas do querido pai e olha para aquele objeto como a única coisa que de concreto que o aproxima de seu velho genitor. Percebe-se que o valor demonstrado apresenta coerência com a assertiva de Mary Douglas: ?O ponto de vista do antropólogo é de que as coisas cuja posse significa riqueza não são necessárias por elas mesmas, mas pelas relações sociais que elas sustentam? ( DOUGLAS, 2007, p.19).
Através das relações sociais e emocionais, as coisas se tornam mercadorias e passam a imprimir valor não financeiro, mas valores emocionais, valores sociais, como propõem o Antropólogo Antônio Braga, enquanto pesquisava os Fluxos Migratórios e fluxos de mercadorias entre o Interior do Piauí e a cidade de São Paulo:
?Considera-se mercadoria as coisas que são objetos de uma relação de troca: onde há mercadoria há uma relação de dar algo e receber algo em troca (seja de imediato, ou posteriormente, e de forma nem sempre preestabelecida). Logo, uma das capacidades intrínsecas de uma mercadoria é estabelecer algum tipo de vínculo entre duas ou mais pessoas. O que implica dizer que uma mercadoria é um objeto concreto em torno do qual se estabelece uma relação social, um vínculo social?. (BRAGA, 2011, p.233).
São objetos, coisas, mercadorias que ganham valores, quando se observa as histórias cujas mercadorias nos revelam, que um simples boné, num processo inicial de produção, não tenha a oportunidade de acumular uma biografia idiossincrática como define Arjun Appadurai: ?Se considerarmos que algumas mercadorias têm ?histórias de vida? ou ?carreiras? em um sentindo significativo, então, torna-se útil observar a partilha de conhecimentos em diversos momentos de suas carreiras? ( APPADURAI, 2008, p.61).
É impressionante como uma mesma lata que foi objeto da caridade, de nobre atitude, do processo de doação, para a alegria do almoço de confraternização, também foi o ?gatilho da memória? para um novato retomar as terríveis lembranças do seu consumo. Podemos afirmar que a lata está na memória coletiva dos usuários de CRACK, que ao se aproximar do objeto, reconstrói, instintivamente, o hábito do consumo. Assim, como a lata de refrigerante, tão presente no consumo do CRACK, a folha de papel de seda, usada para manusear o cigarro de maconha e ainda um simples espelho de bolsa para utilização da cocaína são objetos que de forma inconsciente, interligam, aproximam e despertam a memória coletiva dos dependentes químicos. O termo memória coletiva é original do sociólogo francês Maurice Halbwachs o qual o define da seguinte forma:
?Memória coletiva é o processo social de reconstrução do passado vivido e experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade. Este passado vivido é distinto da história, a qual se refere mais a fatos e eventos registrados, como dados e feitos, independentemente destes terem sido sentidos e experimentados por alguém. Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo?. ( HALBWACHS, 2013, p. 39).
Desta forma, procuramos aqui ampliar a condição de pesquisador, interpretar que os agentes não humanos: as coisas aproximam o investigador do universo íntimo de seu pesquisado. O boné, o garfo, a lata de refrigerante, o relógio de bolso e a cuia revelam mais do que se possa imaginar, apresentam uma vida social e emocional de quem muitas vezes perdeu a capacidade de contar sua história, ajuda a entender sentimentos que por ora fora esquecido pela dor de quem teve a vida sequestrada pela dependência das drogas.