Dossiê
Recepção: 28 Setembro 2018
Aprovação: 24 Outubro 2018
Resumo:
Este trabalho tem como foco principal discutir as noções de rural e urbano através da temática do trabalho em Cruzeiro dos Peixotos, distrito de Uberlândia ? MG. A localidade em questão, assim como vários outros distritos brasileiros, participa de uma vivência diferente das cidades de médio e grande porte e por vezes, é classificada no âmbito da ruralidade, tanto por sua localização como por seu cotidiano que vive a temporalidade de outro modo. Embora haja esse olhar ?ruralizante? sobre localidades como o distrito em questão, a vivência cotidiana abarca muito mais a vida urbana que a rural, seja pelo êxodo rural, seja pelo crescimento das grandes e médias cidades nas últimas cinco décadas. Sendo assim, Cruzeiro dos Peixotos vive um fenômeno em que, ora é visto e se vê como rural, ora é incontestavelmente urbano.
Palavras-chave: Rural, urbano, trabalho, fluxos, distrito.
TRABAJO Y REPRESENTACIONES DEL URBANO EN EL RURAL: FRONTERAS MUEBLES EN CRUZEIRO DOS PEIXOTOS - MG
Resumen:
Este trabajo tiene como foco principal discutir las nociones de rural y urbano a través de la temática del trabajo en Cruzeiro dos Peixotos, distrito de Uberlândia - MG. La localidad en cuestión, así como varios otros distritos brasileños, participa de una vivencia diferente de las ciudades de mediano y gran porte ya veces se clasifica en el ámbito de la ruralidad, tanto por su ubicación como por su cotidiano que vive la temporalidad de otro modo . Aunque esta mirada "ruralizante" sobre localidades como el distrito en cuestión, la vivencia cotidiana abarca mucho más la vida urbana que la rural, sea por el éxodo rural, sea por el crecimiento de las grandes y medianas ciudades en las últimas cinco décadas. Siendo así, Crucero de los Peixotos vive un fenómeno en que, ahora se ve y se ve como rural, ora es indiscutiblemente urbano.
Palabras clave: Rural, urbano, trabajo, flujos y distrito.
WORK AND REPRESENTATIONS OF URBAN IN THE RURAL: MOBILE BORDERS IN CRUZEIRO DOS PEIXOTOS - MG
Abstract:
This wording has as main focus the discussion of the notions of rural and urban through the thematic of the work in Cruzeiro dos Peixotos, district of Uberlândia ? MG. The locality in question, as well as several other Brazilian districts, participates in a different experience of medium and large cities and is sometimes classified in the rural area both for its location and its daily life that lives the temporality of another way. Although there is this "ruralizing" look at localities such as the district in question, daily living encompasses urban life much more than rural life, rural exodus, or by the growth of large and medium-sized cities in the last five decades. Thus, Cruzeiro dos Peixotos lives a phenomenon in which, sometimes it is seen and seen as rural, sometimes it is incontestably urban.
Keyworks: Rural, urban, work, flow, county.
Introdução: apresentando Cruzeiro dos Peixotos
O presente artigo é, em partes, uma versão do capítulo 2 da minha dissertação de mestrado [2], em que me debrucei sobre o tema da ruralidade e urbanidade dentro de um dos distritos de Uberlândia ? MG chamado Cruzeiro dos Peixotos em correlação com o distrito-sede (Uberlâdia). Cruzeiro dos Peixotos, Martinésia, Miraporanga e Tapuírama e o distrito sede, formam o município de Uberlândia. Cada distrito, excetuando a sede, possui uma pequena vila urbana rodeada por propriedades rurais de posse tanto dos moradores locais como de grandes empresas agrícolas. A sede ou cidade, tem uma área urbana bem superior como podemos ver no Mapa 1.
Cruzeiros dos Peixotos, segundo o Senso do IBGE de 2010, conta com uma população de 976 pessoas, divididas entre vila urbana ? 482 habitantes ? e zona rural ? 494 habitantes. Segundo os dados o distrito em questão é o segundo menor em população, ficando atrás de Martinésia com uma população de cerca de 840 habitantes, divididos entre zona rural e a vila.
Como é possível ver no Mapa 1, as regiões em cinza demarcam as áreas urbanas de Uberlândia e de seus distritos (vilas), e as regiões em branco representam a zona rural do município de Uberlândia. Observando os distritos, percebemos que a região de Martinésia (Ponto 3) é a menor do mapa, tendo uma vila bem pequena, seguida por Cruzeiro dos Peixotos (Ponto 4). Apesar disso, os outros dois distritos (Tapuirama e Miraporanga) são bem mais afastados do distrito sede e contam com uma extensão e, consequentemente, população maiores.
Os distritos de Uberlândia, embora se caracterizem como urbanos em suas vilas, tendem a ser imaginados pelos ?de fora? [3] como um local rural, bucólico, onde o morador da cidade vai procurar a paz do campo. Essas imagens contribuem para uma percepção dúbia dos distritos, e, no caso específico desta pesquisa, de Cruzeiro dos Peixotos. Antes de adentrar nas questões rurais e urbanas propriamente ditas, convido o leitor a conhecer o distrito de Cruzeiro dos Peixotos, começando pela apresentação do Mapa 2.
O acesso à vila do distrito se dá pela Rodovia Municipal Neuza Rezende, que ?nasce? no distrito Industrial, em um cruzamento com o Anel Viário Ayrton Senna. Seguindo diretamente pela rodovia, por volta de 19 km, chegamos à avenida Boa Viagem que dá acesso à sede do distrito. Logo no início nos deparamos com o chamado ?Cruzeiro Novo? (Figura 1), com casas mais novas fruto dos loteamentos do início da década de 1990. Seguindo pela avenida dos deparamos com a Praça Tancredo Neves, onde se localizam a Rodoviária (14), Salão de Festas (13), Correios (12) e ainda, a Cozinha Comunitária [4], a quadra poliesportiva e o cartório.
Cruzeiro Velho e Cruzeiro Novo são classificações feitas pelos próprios moradores para designar os loteamentos realizados no distrito de Cruzeiro dos Peixotos. Essas classificações são formas de diferenciar os primeiros loteamentos da região, realizados a partir de doações de terrenos de 1000m³. Esse loteamento foi seguido de mais dois posteriores, entre os anos de 1989 e 1992, onde cada um contou com a divisão de lotes de 500m² e 250m² respectivamente. A separação é importante pois, através dela, conseguimos enxergar não só a diferença de arquitetura, mas também, de faixa etária, ocupação, hábitos, entre outros.
Observando o mapa 2, percebemos que a praça está rodeada de bares e mercearias. Esta região agrega uma grande parte das atividades de sociabilidade do distrito, principalmente aos finais de semana em que o distrito recebe um bom número de visitantes.
Seguindo até o fim da avenida, virando à direita temos a Escola Municipal e mais adiante a Igreja que é caracterizada por um grande cruzeiro ? daí o nome do distrito ?, marco fundador do distrito localizado à frente da Igreja de Santo Antônio [5] (Figura 2). No entorno da Igreja, o chamado Cruzeiro Velho (Figura 3), encontramos casas do início do século XX, fazendas e construções bastante envelhecidas e precárias.
O último loteamento realizado pela prefeitura data de 1992 e com o crescimento da população a compra e o aluguel de casas se torna cada vez menos viável, tanto pela oferta quase nula, quanto pelos altos preços dos imóveis, que acabam adquiridos por moradores dos municípios dos arredores e que utilizam o distrito como casa de fim-desemana ou veraneio.
Apesar da imagem do distrito de Cruzeiro dos Peixotos estar ligada ao rural e tradicional no aspecto discursivo, as relações não estão, necessariamente, marcadas por essa lógica, pois os moradores têm acesso a todos os bens e serviços urbanos ? saneamento, luz, internet e transporte público.
Mesmo assim, algumas características tradicionais ainda são muito evidentes como as relações de compadrio, vizinhança e confiança, que abarcam uma rede de relações que ligam os moradores da região como quase familiares. Então, o que vemos no distrito é um processo de transformação ou um lugar mediado, localizado na fronteira entre o campo e a cidade, ou, no que chamo de entremeio. Esse entremeio é, ora mais urbano, com as relações de trabalho, por exemplo e ora mais rural, como nos festejos como a Folia de Reis. Essas negociações de fronteira e identidade serão, em parte, trabalhadas nos próximos tópicos.
Trabalho e seus sentidos
Refletir sobre o trabalho em um local como o distrito de Cruzeiro dos Peixotos exige a observação do cotidiano dos moradores que mantêm uma rotina ora próxima e ora distante do município de Uberlândia, mais especificamente, em seu papel de distrito-sede. É nessa mobilidade de aproximação e distanciamento que percebemos como o local é construído dia a dia pelos habitantes e como o trabalho é, em grande parte, o ponto mais importante de encontro cidade e distrito e, consequentemente, encolhimento de fronteiras.
A ideia de encolhimento e alargamento de fronteiras foi explicitada na dissertação do seguinte modo, as relações dos moradores com a identidade rural e/ou urbana são agenciadas de acordo com necessidades e momentos específicos. Isso significa que nas relações em que a urbanidade é mais presente, as fronteiras simbólicas entre o rural e o urbano caem, como no caso do trabalho. Mas, em momentos de exaltação da ruralidade, como na Folia de Reis, há um afastamento claro dessas mesmas fronteiras e a população assume uma identidade rural bastante afastada da urbanidade. Dessa forma, esse ?vai-e-vem? identitário demonstra que classificar um local como rural e/ou urbano é engessá-lo em uma perspectiva muito mais externa do que interna, já que os moradores não corroboram com uma ou outra classificação estática.
Segundo alguns autores, como por exemplo Silva (2014), constantemente os distritos no Brasil são tratados como locais parados no tempo, romantizados, bucólicos e idílicos. Em sua tese, a autora lida, através da historiografia, com as imagens que se formam dos distritos de Uberlândia, ora pelos moradores, ora pelos ?de fora? e, principalmente pela mídia, que constantemente retrata os distritos de Uberlândia como pequenos refúgios rurais em meio à loucura da cidade. Em sua epígrafe, Silva (2014) transcreve um trecho da fala de uma de suas entrevistadas, a qual tomo a liberdade de reproduzir aqui: ?Porque, hoje, a gente leva a vida quase de cidade grade [...] É como uma cidade grande. É uma cidade grande, apesar de ser pequena! A vida continuando é como na cidade, apesar de não ser cidade. Mas é. Apesar de ser distrito? (SILVA, 2014, p. 6).
Essa fala foi importante para a reflexão de que a vivência cotidiana em
Uberlândia não difere muito da que notei em Cruzeiro dos Peixotos durante o campo, pois ainda faz parte do município de Uberlândia, mas a vivência simbólica é constantemente distanciada e separada, seja pelos moradores de um ou de outro local, então é igual, mas diferente. E nesse jogo de representações e imagens foi necessário pensar no que aproximava o distrito da cidade, deixando-o ainda mais urbano, quebrando, mesmo que temporariamente, a imagem do rural parado no tempo. A partir dessas reflexões o trabalhosurgiu como uma questão que, de certa forma, encolhia as fronteiras simbólicas, e aparentemente, físicas entre as duas localidades.
O fluxo constante entre moradores dos dois locais me chamava a atenção durante os trajetos de ônibus, que nos períodos de ?pico? [6] a quantidade de pessoas no fluxo cidade-distrito e vice-e-versa era muito intenso. Além disso, durante esse período Cruzeiro dos Peixotos se transformava em um bairro distante. Nas viagens aos fins-desemana, o trajeto parecia ser mais longo e, simbolicamente, o distrito já não era tão próximo. Para etnografar esse movimento, um dos moradores que entrevistei me sugeriu fazer essa viagem por algumas semanas, observar e conversar com os moradores.
Para que fosse possível acompanhar os moradores dentro de suas dinâmicas de trabalho, a pesquisa se deu, principalmente, nos horários de retorno do trabalho dentro do transporte coletivo, verificando horários, locais de descida e subida dos ônibus, acompanhamento de conversas e assuntos casuais, conversas informais com o motorista e os moradores.
O período que acompanhei os moradores durou dez dias úteis e foi possível notar uma certa variedade de funções e profissões ocupadas por eles, esses em sua maioria ? técnicos-administrativo na Universidade Federal, atendente de telemarketing, técnicos de enfermagem, professores, ainda estudantes, que participam de um trânsito intenso entre cidade distrito e distrito-distrito, tanto universitários como alunos de ensino médio [7] e técnico (IFTM).
A partir dessa experiência de campo abriu-se a possibilidade de contato com diversos moradores tornando possível perceber, mesmo que de uma forma geral, como e porque o trabalho é fundamental para o estabelecimento das relações entre o distrito e o município, que aparecem nesse quesito como inter-relacionados.
De acordo com os habitantes com quem conversei e/ou entrevistei, a grande maioria das pessoas de Cruzeiro trabalha em Uberlândia. Exceto em casos de moradores que possuem imóveis ou pequenos negócios, ou que são funcionários públicos, não existem muitas ofertas de emprego na vila especificamente. Sendo assim, os moradores têm três opções: mudam-se para Uberlândia, continuam no distrito, mas mantêm o trabalho em Uberlândia, ou optam pelas escassas ofertas de trabalho na zona rural.
O trabalho na zona rural não exige e nem emprega trabalhadores com altos graus de escolaridade, dessa maneira, os moradores com formação igual ou superior ao segundo grau completo, por exemplo, não buscam e também não conseguem vagas em funções ligadas ao setor rural, seja na agricultura ou na ?lida de gado?, então, procurar por trabalho na ?cidade? é a melhor opção, já que para muitos moradores, trocar os benefícios de se morar no distrito, não vale a mudança para Uberlândia, principalmente se pensarmos que o trajeto não é tão longo e é coberto pelo transporte público municipal, inclusive com o mesmo preço exercido dentro dos bairros do distrito-sede.
Logo, o distrito em si não tem a capacidade de abarcar toda a força de trabalho que emerge dentro dele e, mesmo apesar das vagas em fazendas, empresas ligadas à agricultura ou criação animal e pequenos estabelecimentos comerciais, a maior parte dos moradores não é contemplada, inclusive pela diversidade de formações profissionais entre os habitantes distrito. O que demonstra que o distrito é em grande parte dependente do município para aquisição de renda e dar continuidade à vida doméstica fora do distrito-sede.
Em uma tentativa de solucionar problemas como falta de emprego e renda, em 2001 foi fundada a Secretaria de Administração dos Distritos pelo então prefeito Zaire Rezende (PMDB), a tentativa de intermediar e solucionar as necessidades de cada distrito, tornando a secretaria uma espécie de ?subprefeitura? e aumentando a atenção dada a cada distrito isoladamente.
Em 2002, a pasta foi abolida e as questões de renda e empregos relacionadas aos distritos foram direcionadas ao então secretário de Governo, Eduardo Afonso, que deu continuidade aos projetos já existentes. Todas essas tentativas de intermediação dos distritos não trouxeram grandes benefícios a nenhum deles na questão da criação de empregos e surgimento de renda, mantendo as mesmas condições de vida e emprego já estabelecidas
Como citamos acima, mesmo com a distância de Cruzeiro dos Peixotos até Uberlândia de 22 km, morar no distrito não é inviável, desde que se esteja instalado na vila e use o transporte público ou tenha veículo próprio que permite que se more na zona rural sem maiores problemas, o que é comum entre os moradores das fazendas nos arredores.
Ainda que haja uma discrepância numérica de vagas de emprego, existem moradores do município que trabalham no distrito, em especial nas fazendas e empresas de agronegócio na região. [8]
Pensando na questão dos moradores que habitam o distrito e trabalham no distrito-sede, é conveniente levar em conta que esse movimento pendular dos habitantes para trabalhar em Uberlândia é relativamente novo e crescente. Das primeiras gerações de moradores, até a década de 1980, conseguiam viver quase exclusivamente de e em Cruzeiro dos Peixotos, sem depender necessariamente de Uberlândia como fonte principal de emprego, os mais idosos ainda conseguem manter essa relação de quase total afastamento entre um e outro, sendo que não vão à Uberlândia por nenhum motivo, exceto pelo atendimento médico-hospitalar.
É claro que, em relação ao distrito, principalmente para os mais jovens, Uberlândia apresenta muitos atrativos e facilidades do que Cruzeiro dos Peixotos, como locais de lazer, compras e alimentação e, embora tais atrativos não estejam inclusos na questão do trabalho, ter esse acesso aos bens e serviços do distrito-sede também faz surgir interesse pela vida que ele oferece e as ofertas de emprego se encaixam nisso. Agora, em oposição às gerações mais jovens, os idosos não consideram essas ofertas como lazer, bens e serviços da mesma maneira, portanto, a busca de empregos fora do distrito também tem um cunho geracional. Em uma das conversas que tive com moradores idosos do distrito, um deles disse que só ia à cidade para ir ao médico, fora isso, todas as necessidades de compras, ir ao banco ou qualquer outro serviço eram resolvidos pelas filhas.
Toda a discussão demonstra a importância do trabalho rural na região, assim como o fato de ser uma das principais fontes de renda para os moradores até o fim do século XX, e possivelmente, a visão dos ?de fora? de Cruzeiro dos Peixotos como um recanto da ruralidade romantizada pelas canções caipiras de meados do século XX está localizada temporalmente. Passar pelo distrito, principalmente na região do ?Cruzeiro Velho? parece ser revisitar esses tempos passados, pois a população é majoritariamente idosa, mantendo suas casas coloniais, em terrenos grandes, com uma relativa autossuficiência vinda, seja da própria horta, seja dos pequenos animais de corte, da oferta de leite caipira dos vizinhos e de uma relação com a terra muito intensa, pois é dela que se tira o sustento, é a partir desta terra que essa população cresceu e criou seus filhos.
Urbano e rural: agenciamentos ou representações?
Como dito no tópico anterior, Cruzeiro dos Peixotos se localiza entre representações do rural e o urbano que são frequentemente ativadas ou agenciadas pelos moradores, pela prefeitura e, até mesmo pelo IBGE.
Pensar em rural e urbano no Brasil é um exercício que exige muita reflexão e nem sempre chegamos a conclusões adequadas, já que nos esbarramos em diversas classificações pouco eficientes e que muitas vezes descartam diversas características importantes, como a opinião nativa sobre sua posição.
A discussão e a reflexão de classificar até onde vai o rural e onde começa o urbano ? ou vice-e-versa ? não parece sanar as questões levantadas na pesquisa de campo no presente trabalho. Pensar nessa divisão no caso específico que aqui será tratado parece levantar mais problemas do que sanar. Desta maneira, a reflexão sobre rural e urbano aqui problematizada será apenas uma estratégia para demonstrar como categorias opostas podem ser mais problemáticas do que parecem.
Desta maneira, é importante tentarmos buscar uma classificação de distrito para que possamos partir de algum ponto que nos esclareça o porquê da necessidade contínua de classificação de regiões específicas. Assim, a definição de distrito pode ser melhor pensada se retirada da Geografia Humana, sendo assim, as divisões administrativas do município são refletidas de forma interessante por alguns autores da área, o que nos auxilia a pensar de modo objetivo tais separações.
Segundo Pinto (2003), o município é a menor unidade territorial brasileira com governo próprio, é formado pelo distrito-sede, onde acha-se localizada a cidade, que é a sede municipal e que leva o mesmo nome do município e, que corresponde à zona urbana municipal e; também, pelo território ao seu entorno, a zona rural municipal, que pode ser dividida em distritos, cuja maior povoação recebe, geralmente, o nome de vila. (p. 29).
Sendo assim, a divisão administrativa de município e distrito, coloca o segundo em uma posição de zona rural, pois é localizado na zona rural do distrito-sede, mesmo tendo uma vila urbana e em alguns casos de distrito, essa vila se encaixa em características urbanizadas.
Por outro lado, o IBGE traz a informação de que a classificação dos distritos como rural ou urbano é de responsabilidade do distrito, o que leva em conta noções espaciais e tributárias. ? [...] o que continua até hoje definindo a área urbana do município é a Lei do Perímetro Urbano, de competência exclusiva municipal, servindo tanto para fins urbanísticos quanto tributários.? (IBGE, 2001, p.116). Essa ideia é fundamental para compreendermos o motivo pelo qual em alguns municípios as áreas da vila de distrito são rurais e em outros são urbanas. Essa classificação não leva em conta, novamente, as autos definições dos moradores e sim, os interesses do próprio município em arrecadações tributárias.
É importante ressaltar que no caso de Uberlândia, as vilas do distrito são consideradas urbanas, e dispõem de boa parte dos recursos do distrito-sede, como iluminação pública, água encanada, tratamento de esgoto, asfaltamento das rodovias e das avenidas e ruas dos distritos, assim como agencias de correios (não é regra em todos os distritos).
É interessante, nesse sentido trazer à tona os problemas de classificação de regiões rurais e/ou urbanas para a ciência já que determinadas classificações limitam e delimitam o que se enquadra em um aspecto ou em outro. Segundo Abramovay (2000)
A definição do IBGE, para usar a expressão de Elena Saraceno (1996/99), é de natureza residual: as áreas rurais são aquelas que se encontram fora dos limites das cidades, cujo estabelecimento é prerrogativa das prefeituras municipais. O acesso a infra-estruturas e serviços básicos e um mínimo de adensamento são suficientes para que a população se torne ?urbana?. (ABRAMOVAY, 2000. p. 2)
A discussão do autor no texto referido é interessante para pensarmos a situação da classificação de tais localidades, além disso, como observamos, instituições como o IBGE descartam questões culturais, simbólicas e territoriais para assumir o acesso à infra-estrutura que pode ser entendida como urbana. Dessa forma, a definição não passa por parâmetros mais profundos que resultariam numa classificação mais adequada.
O que percebemos aqui é que estabelecer a separação rural-urbano apenas através de uma ou outra classificação torna-se inadequado e insuficiente para a Antropologia, pois a posição adotada pelos moradores e outras características como população, estrutura física, saneamento, entre outros, não são relevantes na classificação legal e nem do IBGE.
Isso nos leva para um caminho diferente da discussão classificatória, na verdade, nos leva a um passo além ao deixarmos de lado tais conceitos enrijecidos (ou nem tanto), abrimos oportunidades para uma análise mais limpa, menos dependente e aberta para todas as informações que o campo oferece e ofereceu, já que os próprios moradores não se fecham em nenhuma característica específica e nem atendem a expectativas pré-formadas pelos ?de fora?.
Por outro lado, durante uma das entrevistas obtive uma resposta interessante diante desse dilema, sendo que a pergunta foi sobre as classificações rurais e urbanas dadas pelas pessoas de fora, ou como utilizei em outros trechos, dadas pelos ?outros?. Sendo assim,
Eu acho que resolver esse discurso cabe ao morador e não a quem tá de fora, à elite, vamos dizer, midiática. Eu acho que quem se define é a pessoa, eu acho que eu moro na zona rural, eu abro a minha janela e dou de frente pro pasto. Eu tenho galinhas e mais galinhas no meu quintal, eu crio porco, eu vou pra roça direto, então, eu moro na zona rural. (Entrevistado 5, entrevista realizada dia 05 de maio de 2014)
As relações rural-urbano não podem ser, desta maneira, demarcadas de maneira dualista e dicotômica, como se um setor fosse completamente oposto ao outro. Segundo Reis (2006), no caso brasileiro, a dicotomia urbano-rural não se aplica, já que a modernização do campo aproxima, tanto espacialmente, quanto em suas atividades, da cidade. Dessa maneira, a solução teórica que mais se aplica ao Brasil é o continuum. Segundo Silva (1997),
[...] está cada vez mais difícil delimitar o que é rural e o que é urbano. Mas isso que aparentemente poderia ser um tema relevante, não o é: a diferença entre o rural e o urbano é cada vez menos importante. Pode-se dizer que o rural hoje só pode ser entendido como um continuum do urbano do ponto de vista espacial; e do ponto de vista da organização da atividade econômica, as cidades não podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, nem os campos com a agricultura e a pecuária. (p.1)
A globalização originou novas identidades menos balizadas do que antes, as novas disposições ?colocam em crise a capacidade explicativa tradicionalmente atribuída às dinâmicas urbano-rurais como também ao conceito de ruralidade. Há urgência de atualização da definição de ruralidade.? (LIMA, 2005, p. 41). Tal urgência se dá pela simplificação do que essas categorias simulam na contemporaneidade, pois o campo e a agricultura estão abotoados à modernidade, principalmente, por meio dos avanços tecnológicos, tanto mecânicos quanto biológicos, que se dão no contexto rural contemporâneo.
Alegar a zona rural como um espaço de pureza de uma tradição bucólica e/ou idílica não é apropriado na atualidade, pois o tradicionalismo não simboliza mais o rural de forma totalizante, e essa verificação é feita, além da tecnificação do campo, também, pelo processo neo-rural [9] brasileiro, que segundo Giulianni (1990), diferentemente da França, constituiu-se pelo investimento de famílias de posses em novos negócios no meio rural, em busca de uma vida afastada das cidades e mais próxima da natureza, mas em compensação, para tais negócios o emprego de trabalhadores pouco valorizados fizeram do neo-ruralismo brasileiro um processo elitista.
Voltando às discussões específicas de Cruzeiro dos Peixotos ainda no que tange a questão do rural, mesmo que a vila apresente diferenças estruturais e simbólicas do distrito-sede, não dá a Cruzeiro a classificação de rural, já que este ainda se encontra dentro das delimitações urbanas da cidade de Uberlândia, nesse sentido, é uma vila urbana da zona rural de Uberlândia. Dessa maneira, apenas as regiões de fazenda são tidas como verdadeiramente rurais.
Embora Uberlândia e seus distritos sejam separados entre zonas rurais e urbanas nos documentos oficiais [10], Cruzeiro dos Peixotos é considerado urbano pela legislação federal, ainda que o problema de delimitação entre um e outro, não tenha sido sanado, tanto para nas pesquisas do IBGE, quanto para as pesquisas acadêmicas que discutem essa dicotomia.
Levando em conta o Decreto-Lei 331 de 1938, que apesar do seu quase um século de existência ainda é o que se aplica, toda sede do município e seus distritos fazem parte do perímetro urbano, sem levar em conta questões estruturais, dessa maneira, a separação prática rural-urbano ainda é bastante confusa e não dá conta da vivência cotidiana.
Em relação a legislação de 1938, essa leva em conta as demandas territoriais e, portanto, espaciais para separar o urbano do rural. Logo, as relações simbólicas não entram em questão em tais determinações, o que restringe algumas discussões, já que a noção dos moradores e dos ?de fora? [11] não é legitimada a partir de tal definição, o que não anula a classificação do distrito como tradicional ou moderno, pois tais nomeações independem da questão territorial propriamente dita.
A dificuldade de demarcarmos o que é rural e urbano está tanto na legislação defasada, como no discurso da Prefeitura Municipal de Uberlândia [12], que em alguns momentos cita os distritos como ?Distritos Rurais?, mas em seus mapeamentos, divide a população do distrito entre rural e urbano, demarcando a vila como urbana. O que percebo é que o considerado urbano está ligado a uma estrutura, como ruas asfaltadas, rede de esgoto e água organizados, iluminação pública, agência dos correios, zonas eleitorais, características que o distrito abarca, mas apenas na vila, embora a Prefeitura não seja unânime em relação a isso.
No caso do distrito em questão, há também o sentimento de pertencimento que os moradores demonstram em relação à terra, ao território. A sensação e a importância de pertencer a algum lugar foi muito evidente na pesquisa e em uma das entrevistas realizadas isso ficou muito claro, o entrevistado dizia: ?Eu sou um morador de Cruzeiro dos Peixotos, não um Uberlandense, mas um Cruzeirense dos Peixotos?. Essa fala mostra a importância da relação do morador com o local a que pertence, noção inteiramente ligada na relação do morador com o espaço cria uma identidade própria de quem vive ali.
A terra é sinônimo de moradia, autonomia, pertencimento e isso vem se complicando muito na região de Cruzeiro dos Peixotos. Segundo uma das entrevistas realizadas, o morador explica um pouco a questão da terra
Aqui em Cruzeiro dos Peixotos acontece assim, um fato aqui engraçado... Os jovens chega aqui, porque tem muito tempo que não acontece assim uma expansão, um loteamento... porque o que que acontece... ficou centralizado naquele que já existia, então, por exemplo, eu casei há 23 anos atrás, consegui, hoje eu já tenho filha quase que na idade de casar, e não... se fosse pra elas morar em Cruzeiro elas não daria conta de adquirir um lote ou alguma coisa, por quê? Porque não tem oferta, então o que tem se tornou muito caro, e aí o que que acontece? As pessoas que tem dinheiro que são de outros local, por exemplo, de Uberlândia, chega e compra e a gente fica, na verdade fica sem, sem condições de tá... aí acaba indo pra Uberlândia, porque era pra ter mais gente morando em Cruzeiro dos Peixotos, mas, infelizmente, nós não temos essa política do lugar, e muitos daqueles que não querem ir vai é... agasalhando da forma que pode com os pais, aí vai e constrói uma casinha no fundo, constrói outra casinha do lado e vai... vai criando aquela característica bem de, de cidade maior. Já tem muito isso aqui, pontual, mas se você andar você vai observar esse tipo acontecimento aí. [...]É... e a gente não pode fazer nada porque a nossa constituição dá o direito de propriedade, é direito, é... a pessoa então, você não tem força pra brigar com ele, né? Aí não tem como, a pessoa vai comprar mesmo, vai fazer, um ponto as vezes até mais positivo, porque dá uma cara mais bonita pro lugar, constrói casas, né? Mas em outros, como eu tô te falando, aí é questão pra governo resolver, não é nós que vamos... podemos até ajudar, né, mas não.
No caso do distrito, a conexão com a terra ainda é latente, assim como o pequeno plantio voltado para a alimentação familiar, mas o que tem dificultado a continuidade da vida no distrito é a falta de loteamentos juntamente com o aumento demográfico das famílias, processos que juntos não permitem a construção e a compra de novas casas. Parte significativa das casas não é de moradores fixos do distrito, mas de habitantes de Uberlândia e região que as adquirem e as utilizam como casa de férias ou fim-de-semana. A compra destas por pessoas mais abastadas e dispostas a pagar valores altos, concomitante ao crescimento demográfico e a falta de novos loteamentos faz com que as novas famílias do distrito migrem para a cidade ou se alojem no fundo do quintal dos pais.
Segundo Woortmann e Woortmann (1997), o crescimento demográfico em conjunto com a aquisição das terras sem dono por outros proprietários que não os moradores locais, torna a vida campesina cada vez mais difícil, levando a uma diminuição drástica do sítio e dificultando o plantio para o próprio sustento. [13]
Desta maneira, a dificuldade de aquisição de casas no distrito leva a duas possibilidades, primeiro, com os terrenos muito extensos os filhos tendem a construir pequenas construções ou ?puxadinhos? para que continuem no distrito com suas famílias, por outro lado, os que não têm condições ou espaço físico optam pelo êxodo e se estabelecem na cidade. O primeiro processo é interessante por ser bem característico das comunidades tradicionais brasileiras, e a partir dele tentarei analisar através do parentesco as questões que circundam a organização social do distrito.
Segundo as entrevistas que realizei no distrito, as famílias que buscam firmar-se nos terrenos de seus pais e parentes têm maior relação com a terra e o trabalho masculino, na maioria das vezes sazonal, é um agravante para essa situação, já que a maior parte dos homens do distrito trabalham como auxiliares nas fazendas de grandes indústrias. É importante pensarmos, desta maneira, que não é apenas as relações de parentesco que garantem, ou não, o estabelecimento dos moradores na região.
Sendo assim, o trabalho é um ponto importante na permanência do morador nativo no distrito, como falado acima. Mas, ainda temos a questão do trabalho feminino, muitas vezes realizado na cidade e que garante, na maioria das vezes, a estabilidade da família, já que muitas mulheres se ocupam de trabalhos domésticos em ?casas de família? ou auxiliar de serviços gerais, e como dito mais acima, funções que exigem formação técnica e/ou superior, como enfermeiras, técnicas de enfermagem e professoras, cargos que, oferecem condições mínimas de existência na cidade, o que não é geral, já que algumas famílias optam, ainda, pelo trabalho na cidade e a moradia no distrito. Segundo Silva (2001), mesmo com a falta a situação da diminuição da oferta de trabalho no campo, o êxodo não aumentou, sendo assim
Esses sinais trocados sugerem que a dinâmica agrícola, embora fundamental, já não determina sozinha os rumos da demografia no campo. Esse novo cenário é explicado em parte pelo incremento do emprego não-agrícola no campo. Ao mesmo tempo, aumentou a massa de desempregados, inativos e aposentados que mantêm residência rural (...). Se é verdade que ainda persiste algum êxodo, especialmente na região Sul, ele já não tem força para condicionar esse novo padrão emergente de recuperação das áreas rurais da maioria das regiões do país. (SILVA, 2001. p. 40)
É preciso ter cautela, ao vincular um universo ao tradicional e outro ao moderno, para não cair em teorias etnocêntricas, que colocam o moderno como mais desenvolvido e melhor. Segundo Oliven (2010), alguns autores relacionam o moderno aos altos níveis de educação, tecnificação e industrialização. Esse pensamento não deve ser levado em conta nos dias atuais, já que o campo dispõe de maquinário em grandes latifúndios. Por outro lado, agricultores familiares não necessitam da utilização de grandes tecnologias para o desenvolvimento da produção, já que o trabalho manual satisfaz as necessidades, além de ser eficaz em alguns casos.
E retomando a ideia de continuum, o autor demonstra a importância de não utilizar o termo baseado em um olhar evolucionista entre o tradicional e o moderno, pensando na tradição como o início do processo e a modernização o auge.
O autor trata também da importância de se levar em conta que um alto grau de modernização e industrialização não é, necessariamente, marcador evolutivo numa escala social e que juízos como esses, embora recorrentes, estão ligados a uma análise determinista, que leva em consideração apenas um único modelo de desenvolvimento euroamericano ocidental. Análises como essa podem ser consideradas típico-ideais, sendo assim não condizem com a realidade objetiva.
O que a maioria dos teóricos da modernização faz é levar o modelo de Weber além do razoável e transformar o que foi um exemplo específico numa regra universal, caindo assim num determinismo cultural. Não seria então a economia o fator causal da história, mas a cultura: a um determinismo econômico eles contrapõem um determinismo cultural. (OLIVEN, 2010. p. 27)
Por isso, a utilização do conceito de continuumé perigosa e implica precipitações relacionadas a má interpretação do que um determinado conceito pode sugerir. A utilização dele, quando levar em conta termos como moderno e tradicional devem ser prudentes para que não sugiram uma interpretação que culmine no determinismo cultural ou econômico, processo de análise que vai contra a Antropologia pósevolucionista.
O uso do conceito na pesquisa está, portanto, apenas relacionada a noção de continuidade entre rural e urbano, que muitas vezes não pode ser separado já que estão diretamente inter-relacionados no caso de Cruzeiro dos Peixotos e Uberlândia, além da própria ideia de Cruzeiro ?Velho? e ?Novo?. A separação típico-ideal entre um e outro não deve ser utilizada, pois ambos se influenciam mutuamente, já que um só existe como ?contraposição? identitária do outro. A separação rural e urbano aqui utilizada é apenas para fins analíticos e de nomenclatura, não levando em conta separações específicas.
Embora haja críticas e riscos no uso deste conceito ? continuum ? sua utilização será aplicada conjuntamente com as ideias de hibridismo, em uma tentativa de não separar os dois universos simbólicos, que no caso de Cruzeiro dos Peixotos se encontram unidos a ponto de não conseguirmos diferenciá-los com clareza sem uma inserção mais profunda. Essa separação está a cargo, principalmente, dos moradores, que se identificam ora com uma, ora com outra identidade e a utilizam segundo as circunstâncias.
Pelo mesmo caminho segue a ideia de que a Antropologia deve levar em conta a autodeterminação do sujeito como morador da zona rural e/ou zona urbana, e por isso não cabe ao antropólogo e às ciências sociais essa separação e determinação conflituosa. Ao oferecer essa oportunidade e retratação do sujeito, verifica e percebemse as fronteiras simbólicas que cercam e separam as duas localidades, além da obviedade da distância física.
Nas Ciências Sociais e, mais especificamente na Antropologia, para analisar universos distintos opta-se, muitas vezes, pela adoção de análises de quebras e estruturais, ou seja, dicotômicas, no sentido de que dois locais distintos são opostos e complementares o que cria uma relação, mas não necessariamente uma continuidade entre esses dois espaços. Ora, se tomamos por verdade essa dicotomia tão brusca entre duas realidades a priori vistas como opostas como Cruzeiro dos Peixotos e Uberlândia, deixa-se de analisar as relações que se estabelecem entre esses dois universos, que mesmo separados por fronteiras simbólicas não são excludentes, pelo menos, não em tempo integral.
Representações de espaço nas Ciências Sociais são incrivelmente dependentes de imagens de quebra, ruptura e disjunção. A distinção de sociedades, nações e culturas é baseada em uma divisão aparentemente sem problemas de espaço, sobre o fato de que eles ocupam "naturalmente" os espaços descontínuos. A premissa da descontinuidade constitui o ponto de partida para teorizar contato, conflito e contradição entre culturas e sociedades. (GUPTA e FERGUSON, 1992, p. 7).
Dessa maneira, como afirmam Gupta e Fergunson (1992), a noção de ruptura de sociedades aparentemente ?opostas?, facilita a análise em primeiro plano, pois, objetifica as sociedades envolvidas na análise em questão, mas não resolve o problema das relações que são estabelecidas nesse entremeio e das fronteiras passíveis de mobilidade.
As fronteiras simbólicas percebidas entre um e outro locais são constantemente dissolvidas e reerguidas segundo alguns fenômenos, e pensar que o urbano e rural ? se é que essas categorias existem na prática - se aproximam simbolicamente nas relações de trabalho, pois, como já vimos, a escassez de oportunidades dentro do próprio distrito coage parte da sua população a buscar emprego fora do distrito e nesse sentido, as fronteiras entre os dois locais são abrandadas, possibilitando que a aproximação entre distrito/sede seja maior. É interessante pensar o quanto as questões simbólicas afetam as noções espaciais de distância, pois a proximidade simbólica entre um e outro, parece os aproximar fisicamente também.
Essa discussão nos leva à reflexão de que não é conveniente e nem utilitária a separação dicotômica rural/urbano, embora essa separação apareça de maneira analítica e explicativa insistentemente neste artigo. O que torna Cruzeiro rural e/ou urbano está em um conjunto de noções individuais e sociais que dependem de determinadas variáveis, como: a faixa etária, onde e com o que trabalha, nível de escolaridade, gênero, se reside no ?Cruzeiro Novo? ou no ?Cruzeiro Velho?, contato com mais ou menos tecnologias, entre outros. Percebe-se, também, como e quando cada morador se coloca no discurso do urbano e do rural.
Todas essas possibilidades nos trazem a um cenário de que trabalhar para e com a terra é uma ocupação que está envelhecendo e morrendo junto com a população de locais como Cruzeiro dos Peixotos, poucos são os jovens que querem dar continuidade a fazendas e sítios de pequenas produções, isso talvez esteja equiparado ao aumento populacional e a diminuição de ofertas de terra, o que possivelmente resultaria na diminuição de população de locais como Cruzeiro dos Peixotos enquanto há o aumento populacional das grandes cidades.
A importância de delimitarmos essa questão não está em definir o trabalho rural, mas em marcar um ponto de partida, que esteja além desta especificidade, mas que corrobore com a compreensão da construção da representação e identidade do distrito, pois, como antropóloga, não o considero rural, mas mais como um local que se utiliza ainda de algumas referências do rural em momentos muito específicos.
A perspectiva de trabalho sobre a qual me debruço aqui foi observar, sobretudo no trânsito entre distrito e sede, em uma circulação diário de troca de informações, costumes, modo de vida, experiências, e que tornam os moradores que participam desse movimento diário um sujeito que traz experiências e novidades da cidade para a casa ? isso não compete apenas ao trabalhador, mas em muito aos meios de comunicação e aos jovens ? e leva para o trabalho a vivência do distrito, que guarda em si, ainda, um certo tradicionalismo em algumas esferas sociais.
Existe um hibridismo periódico em relação ao que se é, se faz e se utiliza dentro do distrito. Pois, alguns produtos adquiridos no distrito são de origem rural e caseira, como o leite caipira, a venda e a troca de produtos ?caipira? [14], como galinhas, ovos e leite fazem parte de um sistema de dádiva bem característico, em que o que se produz é socialmente dividido, inclusive em níveis interdistritais (Martinésisa-Cruzeiro).
Talvez, essa troca de produtos não pareça importante aqui, ou não esteja ligada diretamente no tema do trabalho, mas sem dúvida, exemplifica como as relações de trabalho urbano seguem paralelamente a uma determinada ligação à terra e ao que ainda é vivido do rural, que apesar de não existir da maneira tipicamente idealizada, como já discutimos, está presente em alguns costumes e modos de vida. Isso não significa que criar galinhas, distribuir ovos e ter um pequeno curral em casa seja sinal de uma vivência rural, mas é um ponto de proximidade com a terra e o que ela oferece, relações essas que estão presentes tanto na cidade quanto no campo.
Levantando a questão do trabalho é importante pensar como ele cria pontes que aproximam a relação distrito/sede e como essa relação de certo modo mantem a população de Cruzeiro dos Peixotos no distrito, sendo assim, o que me parece visível é que Uberlândia oferece empregos, saúde, educação e transporte, auxiliando, mesmo que indiretamente, mas que o distrito oferece qualidade de vida.
Segundo os moradores entrevistados, a relação com o trabalho no distrito é conflituosa, pois, por um lado há falta de oferta e por outra aparece pouco diversificada, pois abrange as empresas locais, como o Frigorífico Luciana, que emprega alguns moradores, as empresas de soja, como a Valoriza e a Cargil que empregam para cargos na agricultura, e a pedreira, que é responsável por grande parte dos empregos gerados no local, é interessante ressaltar que a empresa é de posse de famílias influentes dentro do distrito, como a família Camim.
Além de cargos assim, o comércio é um pequeno foco de renda para alguns moradores que os possuem, a maioria dos comércios e bares são negócios familiares que não empregam outros moradores, sendo assim, não criam números significativos de empregos.
Outro foco de renda importante no distrito está nas fazendas e sítios de pequenos agricultores que plantam, participam de feiras, criam animais para abate, entre outros. Esse grupo de trabalhadores na maioria das vezes moram nas fazendas e têm um contato menos frequente com a comunidade da vila.
As feiras acima citadas , apesar de não serem a maior fonte de ganhos para os produtores rurais, auxilia bastante na renda mensal destas famílias, entre os feirantes, encontramos uma família que é do distrito de Cruzeiro dos Peixotos e que comercializa pastéis, coxinhas, galinhada, arroz com carne suína e batatas recheadas na chamada Feira do Produtores Ruraisque se diferencia das Feiras Livres comuns, pois é aberta apenas para os pequenos produtores de Uberlândia e região, sem a presença de revendedores, como no caso das feiras livres. Essa ação nasceu em uma tentativa de auxiliar essas famílias e incentivar a permanência das famílias nas zonas rurais, ao mesmo tempo em que valoriza os produtos orgânicos e a produção geral dessas localidades tidas como típicas da região e do estado de Minas Gerais, como o requeijão, o queijo minas, as quitandas e os doces de compota.
A relação dos moradores do distrito com o trabalho tem a tendência de se modificar de acordo com a diferença geracional como de localidade, pois a busca por melhores salários e melhores condições de vida leva, principalmente os moradores mais jovens a buscar uma formação melhor.
As relações de trabalho entre Cruzeiro dos Peixotos e Uberlândia aproximam as relações entre esses dois lugares, fazendo com que o distrito estabeleça cada vez mais relações com a sede do município, a ponto de se tornar quase um bairro de Uberlândia quando pensamos nas relações de trabalho. Mas, como disse no início do artigo essas fronteiras são móveis, e a aproximação de Uberlândia dá lugar ao afastamento simbólico por meio de representações religiosas populares em um âmbito ruralizado, e nesse momento não é distrito quem vai à cidade, e sim, a cidade que vai ao distrito.
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Notas
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