Dossiê: Cidade, Mídias, Memória e Cotidiano em Tempos de Pandemia
Recepção: 29 Julho 2020
Aprovação: 30 Outubro 2020
Resumo: Este artigo objetiva caracterizar a cidade como um espaço de produção de memória; relacionar tempo, memória e nostalgia; e identifi- car os objetos digitais no Instagram como mediadores de memória, analisando-os durante a pandemia de COVID-19. Utiliza como metodologia uma pesquisa bibliográfica aliada às análises qualitativas e quantitativas, imagética e textual, das publicações feitas na plataforma Instagram, de março a julho de 2020, e filtradas pela hashtag #tbtrj. Os autores que norteiam o texto são Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Milton Santos, Andreas Huyssen, Massimo Canevacci, Arjun Appadurai e José Van Dijck. Conclui que, na pandemia, as publicações com a #tbtrj representam os lugares de memória da cidade do Rio de Janeiro de forma nostálgica, a partir de uma memória afetiva, projetando um futuro imaginado após a pandemia.
Palavras-chave: Tempo, Memória, Espaço urbano, COVID-19, Rio de Janeiro.
Abstract: This article aims to characterize the city as a space for memory pro- duction; relates time, memory and nostalgia; and identifies digital ob- jects on Instagram as memory mediators, analyzing them during the COVID-19 pandemic. It uses as a methodology a bibliographic research combined with qualitative and quantitative analysis, both imagery and text, of publications made on the Instagram platform, from March to July 2020, and filtered by the hashtag #tbtrj. The guiding authors are Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Milton Santos, Andreas Huyssen, Massimo Canevacci, Arjun Appadurai and José Van Dijck. It concludes that in the pandemic, publications with #tbtrj represents the memory places of Rio de Janeiro city in a nostalgic way, from an affective mem- ory point of view, projecting an imagined future after the pandemic.
Keywords: Time, Memory, Urban space, COVID-19, Rio de Janeiro.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo caracterizar la ciudad como un espacio para la producción de memoria; relacionar tiempo, memoria y nostalgia; e identificar objetos digitales en Instagram como mediadores de memoria, analizándolos durante la pandemia de COVID-19. Articula una investigación bibliográfica combinada con análisis cualitativos y cuantitativos, tanto de imágenes como de texto, de publicaciones reali- zadas en la plataforma Instagram, de marzo a julio de 2020, y filtradas por el hashtag #tbtrj. Los autores que guían el texto son Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Milton Santos, Andreas Huyssen, Massimo Canevacci, Arjun Appadurai y José Van Dijck. Concluye que en la pandemia, las publicaciones con #tbtrj representan los lugares de memoria de la ciudad de Río de Janeiro de una manera nostálgica, desde una memoria afectiva, proyectando un futuro imaginado después de la pandemia.
Palabras clave: Tiempo, Memoria, Espacio urbano, COVID-19, Rio de Janeiro.
Introdução
Espaço e tempo são categorias fundamentais da experiência e da percepção humana, mas longe de serem imutáveis, elas estão sempre sujeitas a mudanças históricas. Andreas Huyssen
Desde março de 2020, o Rio de Janeiro entrou em estado de atenção quanto à COVID-19. Instaurou-se o isolamento social de forma irregular, pois muitas pessoas não puderam parar de trabalhar, principalmente nas camadas mais pobres da população. Aos que puderam trabalhar de casa, surgiu uma nova rotina. Desta forma, o isolamento social trouxe muitas questões que confrontam com a nossa cultura, a nossa memória e o nosso modo de viver em sociedade.
Para uma cidade com o clima do Rio de Janeiro, e com marcos culturais neste âmbito, faz parte do cotidiano sentar a cadeira na beira da calçada, principalmente nos subúrbios, frequentar praças e bares (sem um motivo festivo específico). Como demonstra a literatura “Quando a rua vira casa”, de Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1980), que aborda a apropriação do espaço, onde a rua se encontra muitas vezes como a extensão da própria casa. O mesmo acontece com outros locais que fazem parte de espaços de sociabilidade frequentados por muitos, como shoppings, feiras, praias, entre outros, assim como a visita a amigos e familiares. Entretanto, o isolamento social fez com que essas práticas tão comuns e que integram o cotidiano fossem impossibilitadas de serem feitas.
E, com isso, novas práticas de apropriação desses espaços começaram a ser realizadas sem nunca terem sido experimentadas. Há uma nova dinâmica para lidar com a lembrança e a ausência destes locais, na qual a memória construída nestes espaços fica cada vez mais em evidência.
Neste artigo, buscou-se observar como a lembrança relacionada aos espaços aflora a partir do cenário incerto da COVID-19. O objetivo geral proposto é identificar a relação entre as lembranças, a nostalgia e as memórias afetivas em relação aos espaços urbanos da cidade do Rio de Janeiro. Já os objetivos específicos são caracterizar a cidade como um espaço de produção de memória; relacionar tempo, memória e nostalgia; e identificar os objetos digitais no Instagram como mediadores de memória, analisando-os.
Como metodologia foi realizada uma pesquisa bibliográfica alia- da às análises qualitativas e quantitativas, imagética e textual, das publicações feitas no Instagram de março a julho de 2020, e filtradas pela hashtag #tbtrj. Hashtags são palavras ou termos usados para categorizar o conteúdo publicado no Instagram. Como autores norteadores estão Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Norbert Elias, Milton Santos, Andreas Huyssen, Massimo Canevacci, Arjun Appadurai e José Van Dijck.
A cidade como espaço de produção de memória
O enfrentamento da COVID-19 atenuou o quão a relação entre espaço e indivíduos é necessária para o desenvolvimento do seu próprio ser, além de propagar sua cultura, sua identidade e sua memória. Essas relações se constituem de maneiras diferentes, a partir do modo como é dada a apropriação desses espaços por esses indivíduos. Segundo Rogério Haesbaert (1999 apud Chelotti, 2010), essa identidade está relacionada diretamente ao es- paço no qual o indivíduo está inserido. Haesbaert afirma ser esta uma “identidade territorial”:
Identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social. […]. De forma muito genérica podemos afirmar que não há território sem algum tipo de identificação e valoração simbólica (positiva ou negativa) do espaço pelos seus habitantes. (Haesbaert, 1999, p. 172 apud Chelotti, 2010, p. 173).
Portanto, analisar os espaços mediados por esses signos é entender que eles compreendem todas as coisas que estão inseri- das nele, como objetos, bens materiais, imateriais e pessoas. As- sim, não é possível haver dicotomia entre espaços e indivíduos. Segundo Milton Santos (2014, p. 29), o espaço é definido como:
Um sistema de realidades, ou seja, um sistema formado pelas coisas e a vida que as anima, supõe uma legalidade: uma estruturação e uma lei de funcionamento. Uma teoria, isto é, sua explicação, é um sistema construído no espírito, cujas categorias de pensamento reproduzem a estrutura que garante o encadeamento dos fatos. Se a chamarmos de organização espacial, estrutura espacial, organização do espaço, estrutura territorial ou simplesmente espaço, só a denominação que muda, e isso não é fundamental. O problema é encontrar as categorias de análise que nos permitem o seu conhecimento sistemático, isto é, a possibilidade de propor uma análise e uma síntese cujos elementos constituintes sejam os mesmos.
A cidade e os espaços edificados – objetos de nossa análise a partir das publicações da plataforma Instagram – são, portanto, entendidos como locais de propagação desses signos, sejam eles naturais, como a vegetação, relevo e o clima, sejam como as ruas, praças e outros equipamentos urbanos. São nestes ambientes, construtores de memórias, que determinados sentimentos e valores únicos são depositados.
Sendo assim, a cidade é o locus que abriga essas diversidades, onde se propagam culturas e o modo de viver de cada indivíduo. Quando somados dentro do mesmo espaço, são, no entanto, contextualiza- dos de forma coletiva e com laços afetivos relacionados a esses lugares. Assim, a cidade é o local onde as coisas acontecem e, ao considerar que os fenômenos culturais contemporâneos têm a capacidade de ordenar o senso de mundo, compreendemos que as sociedades são organizadas em torno da sua cultura. Ou seja, são as relações de sociabilidade que habitam nesses locais, que mudam conforme grupos, classes, territórios, festividades, entre outros hábitos.
De acordo com Sandra Pesavento (2007, p. 14), a cidade também é o local da “sensibilidade”, onde se revelam as emoções, sentimentos, utopias, desejos, esperanças, medos, entre outros. A autora afirma que a cidade é sensível devido aos sentidos e os significados que a ela são atribuídos. Estas atribuições variam conforme os grupos sociais, os lugares, e as diferentes relações que são criadas no contexto urbano.
Portanto, na cidade ocorrem as apropriações dos espaços, sejam pelos equipamentos urbanos, pelos conjuntos arquitetônicos, entre outros locais. Esses espaços, quando um sentido é dado à sua existência, se transformam em “lugares”. Os lugares porta- dores de significados e de uma memória se configuram como um “lugar de memória” (Nora, 1993).
Para Pierre Nora (1993), a memória é algo vivo, que acontece devido aos grupos que estão vivos, e, portanto, ela está sempre em constante evolução ao longo do tempo. A memória é lembrança e, também, esquecimento, vulnerável a todas as mudanças do decorrer do tempo e, assim, possível de ser transformada. O autor discorre também sobre a memória, contrapondo-a à história. O autor afirma que
A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam [...] se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto (Nora, 1993, p. 9).
Nesse sentido, as reflexões de Nora se aproximam de Ulpiano Bezerra de Menezes (1992), que discorre sobre a vivência da memória em um tempo presente, o que faz com que não seja possível resgatar a memória e, sim, preservá-la. Para o autor, “a elaboração da memória se dá no presente e para responder às solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar” (Ulpiano, 1992, p. 11). Nesse presente que olha para o passado, a rememoração pode ocorrer a partir de grupos que se organizam em torno de algo comum – seja um espaço, objeto, lembrança– que faz com que estas memórias possam ser compartilhadas. Nesse âmbito, as recordações são analisadas conforme o contexto em que elas estão envolvidas e, apesar de construída individualmente, é no coletivo que a memória se estabelece (Halbwachs, 2006). Como, por exemplo, os lugares nos quais passamos, as datas comemorativas, os cheiros das comidas que evocam a lembrança do quando e de quem o fez.
Quando, entre as recomendações para evitar a propagação do vírus estava evitar ao máximo o contato com pessoas, o isola- mento social trouxe, de forma mais incisiva, a ausência, o querer estar e não poder. Locais foram fechados, espaços públicos tiveram limites de circulação e, principalmente, o círculo social se tornou uma barreira. Recordar, seja através de suportes, seja de mediadores de memórias – como as fotografias – ou por meio da própria lembrança, os espaços frequentados antes do isolamento é refletir sobre uma vivência coletiva, na qual estes espaços produtores de memória continuam vivos.
Sendo assim, mesmo que as lembranças sejam únicas e individualizadas, a memória é coletiva. Maurice Halbwachs (2006) cita, como exemplo, as circunstâncias da vida que às vezes nos afastam das pessoas às quais ao longo de tantos anos compartilhamos a mesma vivência. Mesmo que exista uma dificuldade em se manter o contato, o reencontro entre os indivíduos que já partilharam dos mesmos desejos, espaços, momentos em outras épocas se vivifica a partir do intercâmbio de lembranças e do afeto que o grupo possui em comum. Ou seja, são as lembranças em comum que fortalecem os laços e, consequentemente, o grupo (Halbwachs, 2006).
Com o isolamento social, uma prática que tem se intensificado é o uso das ferramentas sociais para elencar a memória coletiva por meio de suportes de memória como fotos, vídeos, entre outros. Isso acontece também com a inserção dos indivíduos em contextos sociais e culturais que permitem o compartilhamento das lembranças em comum.
É muito comum acontecer quando famílias estão reunidas e vez ou outra se recordam do passado, ou quando grupos de amigos que passaram por experiências em comum assim também o fazem. E, em um momento tão único e, ao mesmo tempo, tão delicado enfrentado em sociedade, que é a pandemia de COVID-19, lembranças desses momentos trazem também um conforto, pelo viés positivo das memórias afetivas. Nesse âmbito, Halbwachs (2013) dialoga sobre a rememoração ao afirmar que quando um grupo ou mais de uma pessoa consegue compartilhar suas vivências é possível uma reconstrução com exatidão do momento vivido.
Além disso, todas essas lembranças estão atreladas a um lugar capaz de as fazer eclodir. Como citado anteriormente, esse seria o “lugar de memória”:
São lugares, com efeito nos três sentidos das palavras, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica.
Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. Trata-se de um lugar de memória tão abstrato quanto a noção de geração? É material por seu conteúdo demográfico, funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua transmissão. (Nora, 1993, p. 22).
Portanto, elencamos a cidade como um grande espaço de iminência desses lugares. Apesar da materialidade, como citado pelo autor, a cidade se forma a partir dos signos que se constituem nesses espaços, o que os tornam únicos. Como museus, praças, o cheiro da feira, a vivência na casa de amigos e familiares, por exemplo. A rotina traçada em um momento anterior à pandemia marca nesses locais a nostalgia e o querer vivê-los novamente para estar e compartilhar estes espaços e construir memórias.
Memórias, estas, como discorremos anteriormente, criadas em um passado para se tornarem efetivas no presente. Sendo assim, a cidade como campo material capaz de construir a imaterialidade por meio de bens tão simbólicos presentifica uma situação emergencial que tem potencial para construir novas formas de sociabilidade e laços afetivos, assim como novas maneiras de apropriação dos espaços e criação de memórias.
Tempo, memória e nostalgia
A pandemia provocou a redução (ou o impedimento, em alguns lugares) da circulação de pessoas por diferentes espaços da cidade. Com isso, o enfrentamento de diversos aspectos e desafios tangenciaram o estado de quarentena. Um deles é o tempo. A partir da modificação desse estado, de livre passagem para o de permanência em casa, é possível pensar na alteração da relação entre o tempo e o humano.
Seria insensato homogeneizar a experiência do tempo, mas podem ser assinaladas algumas percepções, no intuito de iluminar diferenças e questões acerca dessa relação humano-temporal. Essas percepções partem do que foi exposto nas plataformas durante o período de quarentena, dentro e fora do perímetro da coleta referente aos objetos digitais que serão aqui posterior- mente analisados. Para além disso, são frutos da vivência nessas plataformas.
Ao se voltar para dentro de casa, em uma nova configuração de trabalho, de rotina, de relações sociais por meio de telas, em confluência com um estado de medo e preocupação, o passado vira âncora para um presente (e um futuro) instável, inseguro. Como não há a necessidade do deslocamento para o trabalho, criou-se uma janela de tempo que inexistia anteriormente, principalmente em uma cidade como o Rio de Janeiro, cuja média do percurso de casa até o trabalho é de 95 minutos (Lucena, 2020). Mas, não é porque existe mais tempo que ele necessariamente é utilizado, em um sentido produtivista da palavra.
A categoria tempo, por si só, é uma esfera ampla de discussão. Norbert Elias (1998), por exemplo, desenha uma diferença entre divisões temporais que inserem a experiência humana (os conceitos de presente, passado e futuro) daquelas que não a fazem (as datas, as horas, os meses, os anos). O autor complementa afirmando que o primeiro grupo evolui ao longo das gerações, em uma presença simultânea do passado, presente e futuro na experiência humana. E é nessa percepção simultânea que a memória, segundo Elias (1998, p. 61), “desempenha um papel decisivo nesse tipo de representação, que enxerga em conjunto aquilo que não se produz num mesmo momento”, como o entendimento que o antes sucede o depois, por exemplo.
Já Maurice Halbwachs (2006), em uma perspectiva sociológica, entende o tempo como uma representação coletiva. Mudanças nas convenções temporais só poderiam, portanto, acontecer quando acordadas pelo grupo, que percebe que há uma relação de regularidade e simultaneidade. O autor ressalta que essa uniformidade, existente nas convenções temporais no qual o tempo é dividido, recai sobre os indivíduos “o que há de mais complicado nisso talvez seja o fato de me sentir eternamente forçado a considerar a vida e os acontecimentos que a preenchem sob o aspecto da medida” (2006, p. 114-115).
É possível fazer um paralelo entre a citação de Halbwachs e a medida do tempo que pode afligir os indivíduos durante a quarentena frente à incerteza do fim da pandemia e das restrições na circulação pela cidade. Mesmo que o tempo seja calculado da mesma forma há muitos anos, existe a sensação de que durante este período ele está passando diferente, mais arrastado e desconhecido, longe do que as pessoas denominam como cotidiano.
O tempo, por mais coletivo que seja, acaba se individualizando, pois o grupo está subordinado a como cada pessoa entende o próprio tempo. A consciência coletiva (Halbwachs, 2006) nesse caso ainda existe, mas se submete às particularidades dos indivíduos. Em um alinhamento ao pensamento de Halbwachs (2006), a convergência dessas vivências individuais durante a pandemia fará com que se tenha, no futuro, uma perspectiva coletiva de passado, transitando em conjunto pela memória. Futuro esse que se dá, segundo Arjun Appadurai,
[...] by examining the interactions between three notable human preoccupations that shape the future as a cultural fact, that is, as a form of difference. These are imagination, anticipation, and aspiration. [...] We also need to remember that the future is not just a technical or neutral space, but is shot through with affect and with sensation. Thus, we need to examine not just the emotions that accompany the future as a cultural form, but the sensations that it produces: awe, vertigo, excitement, disorientation. The many forms that the future takes are also shaped by these affects and sensa- tions, for they give to various configurations of aspiration, anticipation, and imagination their specific gravity, their traction, and their texture. (Appadurai, 2013, p. 286-287)1.
É interessante pensar nesses três eixos de preocupações – imaginação, antecipação e aspiração – que moldam o futuro como um fato cultural, principalmente quando os articulamos com a memória coletiva de Halbwachs. Nessa convergência individual que resultará na consciência coletiva acerca da época da pandemia, a ideia de futuro é construída pelas vias de um passado rememorado e que oferece certo conforto frente às in- certezas. Imagina-se, antecipa-se e aspira-se com base naquilo que é familiar, acompanhado de sensações opostas às sentidas durante a pandemia, e uma dessas sensações é a nostalgia.
Para Andreas Huyssen (2014, p. 91) “nostalgia tem a ver com a irreversibilidade do tempo: algo do passado deixa de ser acessível. [...] No desejo nostálgico, a temporalidade e a espacialidade estão necessariamente ligadas”. Como exemplo, Huyssen cita as ruínas arquitetônicas como uma combinação de desejos temporais e espaciais provocadores da nostalgia, que ao mesmo tempo que são compostas por um passado que existe nos resíduos, este mesmo passado não está acessível, senão na nostalgia.
De acordo com Patrick H. Hutton (2016), a memória se modifica com o tempo, de testemunha da história, passando por uma nostalgia idealizada, até chegar ao esquecimento. Mas, para o autor, a memória – entendida por ele como um recurso da imaginação humana – pode se libertar deste padrão na direção de revitalizar a experiência do presente. Mas, será que é possível fazer surgir na pandemia (algo que não foi vivido até então no contemporâneo) outro padrão de presente que não aquele ancorado na nostalgia de um tempo já vivido, idealizado como melhor do que o atual? Se o ponto de partida é a cidade, parece impossível fazer um descolamento das lembranças com esse futuro imaginado, antecipado e aspirado.
Para Massimo Canevacci (2004), é no conjunto de recordações que o relacionamento com a cidade é restabelecido. Aqui, o autor trata da importância do afastamento do local para poder estudá-lo. Pode-se associar, ainda, o Rio de Janeiro à cidade polifônica de Canevacci (2004, p. 17) em que a “cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam”.
Assim, considerando que a quarentena também provocou o distanciamento geográfico nessa cidade polifônica, o papel da lembrança, de uma memória nostálgica que relembra o que está espacialmente inacessível, se fortalece. Lembrar é a ação possível de ser exercida sobre a cidade na impossibilidade da presença. Desta forma, “as memórias biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis” (Canevacci, 2004, p. 22).
Os objetos digitais no Instagram como mediadores de memória: as publicações com a hashtag #tbtrj no Instagram
Antes de descrever a análise, é importante apresentar dois conceitos basilares. O primeiro deles é o de “objetos digitais”. Existem muitas definições para esse termo, mas será utilizada a de Miguel Ferreira (2006) que os entende como um fluxo composto pelos objetos físico (hardware), lógico (software e algoritmos), conceitual (formas digitais identificáveis pelos seres humanos, como a lixeira que corresponde ao ato de descartar arquivos que não se quer mais) e experimentado (como cada pessoa o interpreta individualmente).
O segundo conceito é o de objetos digitais como “mediadores de memória”, oriundo de José Van Dijck (2007). Para a autora, os objetos mediadores de memória no âmbito digital funcionam tanto como cenários documentados do que aconteceu quanto reconstruções criativas, inclusive de novas memórias.
Nesse cenário tecnológico, os objetos digitais seriam uma ferra- menta para o manifesto das memórias dos indivíduos, fazendo emergir novas práticas culturais e sociais a partir do cruzamento entre as mídias digitais, a memória, a comunicação e as identidades, como afirma Van Dijck (2007). Para ela, as memórias pessoais só podem existir em relação à memória coletiva, pois é no alinhamento entre ambas que cada pessoa ressignifica o passado, o presente e o futuro de si em relação aos outros.
Para que pudessem ser identificadas no campo as diferentes relações entre pessoas e lugares durante a quarentena, foi realizada uma análise qualitativa e quantitativa das publicações no Instagram que apresentassem a hashtag #tbtrj. A sigla tbt se refere à expressão em inglês ThrowbackThursday que marca que na quinta-feira serão publicadas imagens e/ou vídeos que reme- tem a alguma lembrança. O Instagram foi escolhido por ser uma plataforma digital (Van Dijck, Poell, De Waal, 2018) com foco
nas imagens e popular no Brasil, estando no quarto lugar em utilização (We Are Social; Hootsuite, 2020). O recorte feito foi temporal, com conteúdos publicados de março a julho de 2020 utilizando a hashtag #tbtrj, e geográfico, filtrando as imagens que retratavam a cidade do Rio de Janeiro. Foram analisadas as imagens e legendas, bem como a geolocalização das postagens, da seguinte forma:
1. Coletamos os objetos digitais no Instagram, publicados de março a julho de 2020, com a busca pela hashtag #tbtrj no campo de pesquisa da plataforma;
2. Listamos os lugares identificados da cidade do Rio de Janeiro nas publicações, demarcados por meio da geolocalização, da legenda, da fotografia ou vídeo, ou do reconhecimento pela imagem (por exemplo, pontos turísticos conhecidos, como o Cristo Redentor);
3. Categorizamos os lugares identificados;
4. Quantificamos as publicações por categoria;
5. Analisamos o conteúdo da publicação (imagens e textos).
Apesar de alguns lugares não poderem ser identificados nas publicações, foram mapeados 40 lugares na cidade do Rio de Janeiro e 100 publicações no total (20 em cada mês).
A Figura 1 apresenta geograficamente os pontos citados nas publicações. A mancha rosa demarca as áreas interligadas desses pontos. O esquecimento de áreas como a Zona Norte – que contempla pontos turísticos clássicos como a Quinta da Boa Vista, a Feira de São Cristóvão e a Cadeg, por exemplo – e a Zona Oeste distante da faixa litorânea mostra que os lugares transitados são basicamente de praia e turísticos, mas principalmente no eixo Centro-Zona Sul.
O apelo estético dos pontos turísticos e de um certo valor de status que eles conferem (como, por exemplo, subir na Pedra da Gávea e o status de aventura, de boa forma física, de ultrapassar obstáculos) também são pontos que podem ter influenciado na decisão de quais imagens publicar sob a hashtag #tbtrj. A hierarquização de investimentos em determinadas partes da cidade faz com que se tornem excludentes as que estão fora deste eixo (centro-zona sul). É uma problemática que enfrentamos no Rio de Janeiro, e, a partir das análises, ficou mais evidente a necessidade do investimento em outros locais.
Nessa relação também é capaz de se observar a memória e a identidade, pois estão atreladas ao ambiente em que o indivíduo habita; onde muitos não se identificam com o próprio território e procuram atrativos distantes do seu local de origem. Portanto, o investimento em outras áreas da cidade, como as Zonas Norte e Oeste, é capaz de aflorar o sentimento de pertencimento com o seu local. Inferimos que é possível que esses locais esquecidos não representem uma ausência de memória afetiva, mas, sim, a ausência de incentivo da circulação de turistas (e até mesmo de moradores da cidade do Rio de Janeiro) e de investimento por parte do poder público.
A Figura 2 mostra o número de publicações por local. Os três locais mais fotografados e filmados foram o Cristo Redentor/ Corcovado, com 12 publicações, o Morro da Urca/Bondinho/ Pão de açúcar, com oito publicações e, empatados, a Barra da Tijuca e a marcação mais ampla, Cidade do Rio de Janeiro, com seis publicações.
No mapeamento de hashtags referentes à pandemia foi possível verificar que muitos termos remetem à angústia de um tempo que não tem uma data marcada para terminar. Verbos como “passar”, “acabar”, “esperar” denotam essa ideia. Já outras hashtags estão embasadas em uma positividade com foco no coletivo, como é o caso da #forcamundo (força mundo). Apesar da hashtag principal usar a expressão tbt, percebe-se que o dia de postagem apenas às quintas-feiras foi flexibilizado. A modificação na relação com o tempo e o isolamento social tem homogeneizado os dias, fazendo com que a nostalgia se fortifique e o registro das lembranças apareçam independente do dia em que a postagem é realizada. Desta forma, mais do que remeter à quinta-feira, a hashtag #tbt se torna uma âncora de lembrança, individual e coletiva.
Além das hashtags, saudade é uma das palavras mais usadas, tanto em publicações de moradores da cidade do Rio de Janeiro quanto de visitantes, como mostram os exemplos a seguir e a Figura 4:
Exemplo 1: Mood de hoje: saudades sol e mar #tbtrj #bar- radatijuca (foto de uma mulher na praia da Barra da Tijuca); Exemplo 2: Estamos distantes e com a saudade enxergamos com os detalhes. A vida é linda. #tbt #avidaéboa #enjoythe- life #tbtCARNAVAL #tbtRJ (foto de uma mulher fantasiada para o carnaval); Exemplo 3: #TBTRJ - Fazem exatamente 12 anos, ainda estava na casa dos 20 e poucos anos. Vejo que mudei quase nada fisicamente, pouca coisa aparentemente. Depois daí cheguei a ir pro Rio mais umas duas vezes. Sinto saudades dessa cidade maravilhosa e de alguns amigos que lá conquistei. (foto de um homem na praia de Copacabana).
Os emojis (também conhecidos como emoticons, são os desenhos utilizados digitalmente para representar ações, objetos e emoções) são muito usados, principalmente como reforço à mensagem. Por exemplo, emojis de sol, coração, praia, biquíni, máquina fotográfica. O tempo é outro ponto muito citado nas publicações, seja tanto por meio da própria palavra (Exemplo 4), seja por outros tipos de marcos temporais, como as estações do ano (Exemplo 5) e marcos históricos (Exemplo 6):
Exemplo 4: Quanto mais o tempo passa mais eu me impres- sionou com a beleza desse lugar (fotografias tira- das no Morro da Urca, que mostram a Urca e a Enseada de Botafogo);
Exemplo 5: Demora não verão Amanhã já é outono então vamos nos cuidar gente!! (imagem da praia de Ipanema e ao fundo o Morro Dois Irmãos);
Exemplo 6: Pouco de História Nesse #TBT A Rua do Lavradio foi aberta em 1771 pelo Marquês do Lavradio, que assumiu o Vice-Reinado em 1769. A ideia era fazer uma via que servisse de caminho e passasse entre os Arcos da Lapa e o emergente Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes). #tbt- cultural #TBTRJ #meurio #queroviajar #quarentena #ficaemcasa #vamosnoscuidar #forcaMundo (fotografia de uma mulher em frente à Rua do Lavradio).
As fotografias também aparecem como objetos mediadores e suportes de memória afetiva declarados por meio da legenda em uma das publicações (Exemplo 7):
Exemplo 7: As fotos são cartões de embarques para retornar a momentos que já se foram, mas que continuam especiais em nossos olhos. #tbt #tbtrj #familiafeliz #amor- maior #prasempre #vidajuntos #throuple #trisal #boys #instaboy #throuplelife #trisalgay #polylove #loveislove #love #gay #trisalbrasil #trio #poliamor #amor #amordetres #gaybrasil #divulgaçãoinstagram #instaboys #ins- tagay #gayman #gaybrasil #lgbtqia #husbandandhusband #lovegay #vidadetrisal (foto de três homens em frente ao Museu do Amanhã).
O passado, em que se podia andar livremente, também é reme- morado nas publicações. Em uma delas (Exemplo 8), o usuário faz uma referência a um programa em formato reality show de- nominado The Circle, no qual pessoas são confinadas em apartamentos individuais e só podem interagir por meio de um sistema de voz e tela chamado The Circle. Em outra publicação (Exemplo 9), uma fotografia de três pessoas em frente a um espelho remete a essa impossibilidade de sair de casa com os amigos, nova- mente com a palavra saudades.
Exemplo 8: Circle atualizar status estou vivendo um eter- no #circle #tbtrj (foto de uma mulher em uma bicicleta na ciclovia da praia da Barra da Tijuca);
Exemplo 9: Tbt de quando a gente saia de casa pro rolê !!!! Saudades, bons tempos!!! #tbtbaladadeverao #tbtrj #rj #er-rejota #021 #riodejaneiro #verao2018.
As publicações se desdobram entre o desejo de voltar a frequentar espaços da cidade, que não podem ser visitados por conta da quarentena, e o viajar, o deslocamento para outros lugares, por parte dos turistas que visitaram a cidade do Rio de Janeiro. A partir desse passado rememorado por meio desses objetos mediadores de memória, como o futuro pode ser imaginado?
Futuro imaginado: a nostalgia como perspectiva pós-pandêmica
As análises realizadas no presente são frutos de lembranças já vividas, como observa Ulpiano de Meneses (1985, p. 14), “a memória é filha do presente”. Entretanto, considerando ser também sujeita a mudanças, se não houver uma referência do passado não é possível compreender o presente e, tampouco, o futuro. Portanto, considera-se que a análise nos dá um suporte para compreender os anseios de um futuro pós-pandêmico. Além da geolocalização, as legendas se tornam uma forma de expressão que dialoga em conjunto com a imagem, os desejos de tempos anteriores, opostos, mas que se complementam, em uma perspectiva entre passado e futuro. A menção da saudade do lugar é a memória vivenciada em uma urgência pelo fim da pandemia.
O passado, por si só, está acessível no presente apenas por meio de suportes de memórias, sejam eles patrimoniais, tecnológicos, históricos, seja a própria oralidade na transmissão de saberes. Se pensarmos que os objetos digitais são suportes e mediadores de memória (Van Dijck, 2007), as publicações aqui analisadas trazem uma fração dessas âncoras de lembranças. Mas, mesmo como uma fração, são espelhos coletivos, sociais e culturais, de uma época que deixa como rastros pegadas informacionais em formato de fotos, vídeos, textos, em plataformas digitais como o Instagram.
As hashtags citadas e analisadas poderiam fazer menção ao ambiente de trabalho, onde muitos passaram a trabalhar de casa, assim como estudos, objetos, entre tantas outras formas de elencar a memória afetiva por algo, alguém ou lugar. Entre- tanto, interessante pensar que, majoritariamente, as pessoas possuem essas lembranças vinculadas a espaços como praia, trilhas e mirantes. Há pontos em comum ao mencionar esses lugares, possuindo como base a metodologia de análise do es- paço observada por Milton Santos (2006, p. 2), que considera que o espaço é uma “instância da sociedade”, e que a “essência do espaço é social”.
De acordo com esse pensamento, é possível afirmar que há desejos em comum ao compartilhar esses espaços, além da configuração física que por ele é categorizada. Neste âmbito, observa-se que a grande maioria dos lugares pelos quais as pessoas expressaram suas lembranças é aberto e possui uma relação direta com a natureza, ou seja, remetem a lugares a céu aberto.
Como afirma Sandra Pesavento (2007), a cidade é o local das expressões sociais, culturais e artísticas. São esses os lugares de memória (Nora, 1993), espaços capazes de provocar as mais diversas sensações. As memórias afetivas, que despontam em cada lugar, como é possível visualizar nas legendas, mostram uma relação de afeto e saudades. Entretanto, o saudosismo não fica restrito somente aos moradores da cidade do Rio de Janeiro, que a acessam com mais facilidade. Durante a análise foi possível identificar relatos de pessoas de outros locais que se expressam, sejam turistas assíduos, sejam viajantes que estiveram na cidade pela primeira vez. Isso demonstra a unicidade desses locais capazes de produzir tantas recordações. Estas que, em seu conjunto, como apresenta Massimo Canevacci (2004), restabelecem um relacionamento com a cidade.
Trata-se de “lugares de memória” capazes de tecer essas representações por meio das lembranças que se criam no presente ancoradas nas ações do passado. Tendo em vista a situação emergencial durante a pandemia de COVID-19, que impossibilita o acesso a esses lugares, essa criação se dá de uma maneira que dificilmente será vista em um outro momento. A tecnologia, alinhada às plataformas digitais, tem sido um suporte essencial, seja para visitas guiadas a museus de forma online, seja até para guias de turismo que têm realizado materiais para trazer conhecimento a respeito de centros históricos e outros pontos turísticos. No âmbito individual, as publicações evocam as memórias coletivas que foram compartilhadas nos mesmos espaços, em que a partir de imagens e textos a esperança de voltar a frequentar esses locais de maneira física, em locus, se expressa.
Divulgar momentos específicos do passado através da representação fotográfica e textual em meio à pandemia de CO- VID-19 mostrou que a saudade é elemento frequente nas publicações e, por consequência, a nostalgia (Huyssen, 2014), pois existe uma inacessibilidade de um tempo que já passou. Um período inédito, como este de quarentena, modifica a relação das pessoas com o tempo. O cotidiano sofre uma alteração tal que não é mais ele o responsável principal por embasar e construir uma ideia de futuro.
Se a memória é um recurso da imaginação (Hutton, 2016), e esta é uma das três preocupações humanas que moldam o futuro, ao lado da antecipação e da aspiração (Appadurai, 2013), parece que é dessa relação que parte uma espécie de esperança a res- peito de um futuro pós-pandêmico. É como se trouxesse conforto pensar que a sociedade será a mesma, que o futuro seria igual ao passado do qual se sente falta. A nostalgia é uma âncora diante da incerteza do futuro. É pensar que o que já se conhece se repetirá. As pessoas, os aromas, as conversas e os momentos serão replicados, equivalentes aos tempos passados. Ou até melhores.
Fala-se de um novo normal como contraponto. Normal, palavra esta que por si só é homogeneizante e conflitante. O que é normal? Para quem? Homogeneização que não cabe em seres humanos, muito menos em uma cidade tão plural, polifônica e de sobrevivências díspares como o Rio de Janeiro. Falar de um normal só cabe no lugar da memória e da nostalgia de cada um, em uma categoria próxima de um familiar imaginado, quando reconhecimento de algo que pertence à esfera das lembranças e vivências particulares. Em proximidade afetuosa, os lugares em que a falta é sentida carregam mais do que sua geolocalização e arquitetura. Sem o público que o frequenta, o lugar se limita às suas – não menos importantes – riquezas e particularidades arquitetônicas, bem como sua localização no espaço urbano. Mas, sem os observadores, sem os frequentadores, falta a voz de quem rememora esse local a partir do estímulo que este espaço demarcado na cidade provoca, sobrando espaços vazios de lembranças.
Considerações finais
Quando se trata de tempos de indefinição, as memórias afeti- vas podem ser um mecanismo de autoproteção e esperança.
No caso da pandemia da COVID-19, o ato de lembrar se torna uma espécie de ferramenta para a imaginação de um futuro pós-pandêmico em relação aos espaços da cidade, além dos laços de sociabilidade que são efetivados nestes lugares. A análise das publicações com a hashtag #tbtrj mostra que essa ponte entre passado e futuro pode ser feita por meio de objetos digitais no Instagram que, por sua vez, mediam essas memórias.
E, ao serem compartilhadas a partir dos indivíduos, elas se in- serem no imaginário coletivo dos “lugares de memória”. Desta forma, concluímos que durante a pandemia as publicações com a #tbtrj representam os “lugares de memória” da cidade do Rio de Janeiro de forma coletiva e nostálgica, a partir de uma memória afetiva, projetando um futuro imaginado após a pandemia.
Refletir sobre essas relações sem uma tentativa de distanciamento – mesmo estando nós, imersas nessa mesma realidade
– foi um desafio, mas muito necessário como registro e olhar de uma época. Transitar pelas representações digitais dos “lugares de memória” da cidade do Rio de Janeiro por meio de uma hashtage do georreferenciamento tornou possível visualizar a mancha territorial que representa as regiões cariocas mais lembradas com saudosismo Mas é importante salientar que essa análise capta apenas uma porção de toda a complexidade e atenção que a temática merece. Por fim, consideramos este artigo um fragmento espaço-temporal de vivências, lembranças e culturas polifônicas durante a COVID-19 e que tem como potência ser material de comparação de estudos para após a pandemia. Assim, sendo um registro do passado quando o futuro pós-pandêmico for presente.
Referências
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Notas