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“Avanço da Maré”, Riscos Ambientais e Estado
Revista TOMO, núm. 36, 2020
Universidade Federal de Sergipe

Artigos

Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 36, 2020

Recepção: 15 Dezembro 2019

Aprovação: 30 Dezembro 2019

Resumo: Este artigo analisa a formação do problema público que conduziu à política denominada defesa litorânea do bairro 13 de julho, em Araca- ju/SE. Especificamente, narra a gênese da construção dos argumentos que sustentaram a retórica do risco iminente, como também as suces- sivas etapas de seu desenvolvimento na agenda pública. Foi realizada a codificação e análise de 83 artigos obtidos em alguns dos principais sites de notícias do estado de Sergipe por meio do software Nvivo 10. Os resultados obtidos permitiram constatar que a utilização de vín- culos e recursos jurídicos se tornou central na dinâmica de execução de tal política, devido ao grau de conflito entre os principais grupos envolvidos. Conclui-se que para melhor dar conta do papel e lugar da judicialização nos processos de execução das políticas públicas é pre- ciso considerar de forma relacional o grau de oposição ou aliança entre os grupos envolvidos na formulação das políticas públicas, suas formas de controle das instâncias estatais e seus vínculos com os atores judi- ciais.

Palavras-chave: Políticas Públicas, Estado, Problema Público, Avanço da Maré.

Abstract: This article analyzes the formation of the environmental problem that led to policy called Coastal defense of the July 13 neighborhood. in Aracaju/SE. Specifically, it narrates the genesis of the construction of environmental arguments that supported the rhetoric of imminent risk, as well as the successive stages of its development in the public agenda. 83 news obtained on some of the main news sites in the state of Sergipe were coded and analyzed using the Nvivo 10 software. The results showed that the use of legal ties and resources became central in the dynamics of the implementation of such policy, due to the degree of conflict between the main groups involved. It is concluded that to better understand the role and place of judicialization in the processes of public policy execution, it is necessary to consider relationally the degree of opposition or alliance between the groups involved in the formulation of public policies, their forms of control of state instances and its ties with the judicial actors.

Keywords: Public Policies, State, Public Problem, Tide Advance.

Resumen: Este artículo analiza la formación del problema público que condujo a la política denominada defensa costera del barrio 13 de Julho en Aracaju/ SE. Específicamente, narra la génesis de la construcción de argumentos que respaldaron la retórica del riesgo inminente, así como las etapas sucesivas de su desarrollo en la agenda pública. 83 noticias obtenidas en algunos de los principales sitios de noticias en el estado de Sergipe fueron codificadas y analizadas utilizando el software Nvivo 10. Los re- sultados obtenidos mostraron que el uso de enlaces y recursos legales se volvió central en la dinámica de la implementación de dicha política, de- bido al grado de conflicto entre los principales interesados. Se concluye que para comprender mejor el papel y el lugar de la judicialización en Wilson José Ferreira de Oliveira; Mayara Silva Nascimento; Moises Cruz Souza los procesos de ejecución de políticas públicas, es necesario considerar relacionalmente el grado de oposición o alianza entre los grupos intere- sados en la formulación de políticas públicas, sus formas de control de los organismos estatales y sus vínculos con los actores judiciales.

Palabras clave: Políticas públicas, Estado, Problema público, Avance de la marea.

Introdução

O presente artigo examina o processo de construção social da “defesa litorânea do bairro 13 de julho”, em Aracaju, Sergipe, como um problema público e objeto da ação estatal. Como tal, pretende não apenas traçar a sociogênese do referido problema, mas, sim, dar conta das sucessivas etapas de seu desenvolvi- mento até o ingresso na agenda pública e no processo decisório. O “13 de Julho”, também conhecido como “Treze”, é um bairro onde se encontram os mais nobres e luxuosos empreendimentos imobiliários de Aracaju, possuindo uma das mais belas vistas da capital e localizado próximo do encontro entre o rio Poxim e o rio Sergipe e dos dois principais shoppings da cidade.

Tal análise teve como um dos pontos de partida a crítica ao conceito de Estado centrado na análise das instituições administrativas e de seu corpo funcional, próprio, sobretudo, da Ciência Política (Carade, 2009) e em grande medida herdeiro de determinadas tradições funcional-weberianas (Souza Lima, 2012). Deve-se dizer, de início, que o estudo das políticas públicas no âmbito acadêmico se constituiu no Brasil nas últimas décadas do século XX como uma subárea da Ciência Política (Souza Lima e Castro, 2015). Enquanto herdeiro do referencial teórico da Ciência Política brasileira, essa perspectiva de estudo das ações do Estado tem sido marcada por uma perspectiva normativa, com uma linguagem formal e estatística, sem adotar uma postura reflexiva que o tratamento etnográfico possibilita (Oliveira, 2015; Souza Lima, 2012).

Nesse sentido, o Estado é concebido nos termos de uma instituição burocrática, com corpos de pessoal técnico bem definidos e de perfil racional. Nesta acepção, a máquina estatal é idealizada como uma solucionadora de problemas públicos, armada com experts aptos a identificar os problemas e a formular soluções. Trata-se de uma visão do Estado como uma instituição burocrática solucionadora de problemas públicos, que está assentada numa longa tradição teórica da Ciência Política, que tem em seus fundamentos uma determinada leitura funcionalista de Max Weber e suas teses sobre a burocracia estatal (Souza Lima e Castro, 2015). Apesar dessa centralidade da Ciência Política no estudo do Estado e das políticas públicas, cabe destacar que tanto a Sociologia quanto a Antropologia têm recorrentemente apresenta- do suas contribuições para a área (Carade, 2009; Cortes, Lima, 2012; Souza Lima, Castro, 2015).

Uma das questões que tem sido negligenciada nessa perspecti- va de análise das políticas públicas é a relação entre a constru- ção social de problemas públicos e sua inserção na agenda e no processo decisório das instâncias estatais. Em contraponto a isso, cabe observar que os problemas públicos, objeto da ação e intervenção estatal, não estão dados de antemão, precisando antes ser formulados e alçados ao público. Essa dimensão da formação da agenda governamental é um tema recorrente na pauta sociológica (Cortes, Lima, 2012), sobretudo quando se compreende que o processo de criação dos problemas públicos é uma construção propriamente valorativa e social, e que a agenda do governo muitas vezes esconde um longo processo de disputa por legitimação entre diversos problemas (Cefaï, 1996; Hannigan, 2009). Acrescente-se a isso que os problemas podem ser construídos e resolvidos mesmo fora da esfera governamental e nem por isto serem menos públicos (Cortes, Lima, 2012).

Essa questão remete à linha de reflexão que nos conduz a repensar o próprio conceito de Estado e suas propriedades. Em outras palavras, essa abordagem tende a colocar em jogo certas funções e propriedades como essenciais do Estado, dada a verificação de formas de exercer a política que não necessariamente passam pela forma dos Estados-nação (Oliveira, 2015). Neste sentido, autores como Souza Lima e Castro (2015) salientam a importância do conceito de “governabilidade”, na acepção de Michel Foucault, como forma de considerar o Estado não como uma instituição com tais e tais propriedades, mas como um tipo de instituição, de grupo ou de ator, que concentre em si ações ou funções que se possam dizer de governo de uma coletividade, que classifica determinado grupo e com isto reconhece sua identidade ou mesmo cria esta identidade.

Com base nisso, o artigo se propõe a estabelecer uma descrição dos sucessivos estágios de desenvolvimento do “problema público” na medida em que ele resulta de disputas a respeito da construção de um risco ambiental. A própria representação que se faz da natureza, que o Estado ou qualquer dos diferentes atores considerados como societais ou estatais, etc., detêm de determinados espaços ou fenômenos naturais envolve a construção de modos específicos de ver o mundo. Em certos casos, a construção dos problemas envolve propriamente uma representação determinada de uma localidade, ou de uma população ou fenômeno natural, que consegue se legitimar publicamente ao fim de todo um processo de disputa em certas arenas (Hannigan, 2009). É o caso, entre outros, da construção da seca como um problema no Nordeste e da construção do próprio Nordeste como uma região do Brasil separada do Norte e representada como detentora de propriedades geográficas, climáticas, etc., bastante específicas. Essa representação do Nordeste possui um início, que pode ser demarcado a partir da seca do Ceará de 1877 e os debates que se sucederam. O processo de construção e de legitimação da seca como um “problema público” constitui um ingrediente fundamental para a compreensão de como ela passou a ocupar um destaque central na atuação do Estado nacional, das políticas públicas da federação em relação ao Nordeste, mesmo ainda no início do século XXI (Ribeiro, 2002).

No presente artigo, parte-se da hipótese de que a construção do risco ambiental, que culminou na efetivação do Projeto de “defe- sa litorânea da 13 de julho”, pode ser entendida a partir do que se denomina de “estrutura conceitual das definições do risco” (Hannigan, 2009) e das disputas entre diferentes atores sociais em diferentes arenas, apresentando relevância heurística na compreensão da maneira através da qual tal problema se tornou público. A estrutura conceitual de definição do risco é composta de três elementos conceituais principais. Primeiro, o objeto que é posto como o impositor ou causa do risco. Em segundo lugar, há o elemento do perigo: a definição de qual o perigo (efeito) que o objeto oferece ou quais os perigos. Risco e perigo são conceitual- mente diferentes, uma vez que para um objeto de risco se podem apontar diversos perigos e ainda pode haver consenso quanto ao risco do objeto, mas não quanto ao perigo que ele oferece. Por fim, o terceiro elemento consiste na ligação que alega alguma relação causal entre o objeto do risco e/ou os perigos potenciais.

Esse processo de construção pública de um problema como de “risco ambiental” envolveria a definição e a disputa a respeito da definição destes elementos conceituais. Tal processo de definição e propriamente de disputa se dá dentro de arenas sociais diversificadas, às quais é composta de “palcos” em que agentes atuam e apresentam determinados argumentos no sentido de influenciar as políticas públicas. Essas arenas podem ser a da mídia, administrativa, jurídica, científica, etc. Neste sentido, o artigo pretende demonstrar que o processo de definição e de redefinição do “problema da contenção da maré” implicou a passagem e o conflito entre diferentes arenas, sendo que a are- na judicial se tornou a dimensão principal tanto para a decisão dos conflitos quanto para a efetivação de uma política pública de “defesa litorânea”.

O material utilizado como fonte de informação tem como base a coleta, codificação e análise de 83 artigos obtidos em alguns dos principais sites de notícias do estado de Sergipe por meio do software Nvivo 10. Tais notícias foram organizadas em listas conforme os jornais online dos quais foram retiradas e em ordem cronológica da sua divulgação nos respectivos sites, conforme dia, mês e ano, seguidos do título. Sua posterior análise foi realizada por meio da análise do conteúdo das notícias com base no processo de codificação a partir de uma estrutura conceitual de definição do risco (Hannigan, 2009). A principal árvore de códigos deu conta de destacar os trechos das notícias em que se observavam os elementos próprios, quais sejam, a causa ou objeto do risco, o perigo ou os perigos oferecidos e a ligação de causa e efeito, ligando o objeto do risco e o perigo. Outras árvores deram conta de destacar as arenas nas quais se apresentavam os argumentos; as principais decisões e entraves às ações dos diferentes atores ou instituições, etc.; os argumentos a favor e contrários à referida obra; o aparecimento dos atores, das instituições presentes, bem como de elementos que pudessem ser significativos na apropriação da moldura a partir da qual os eventos eram noticiados. Obviamente os códigos se entrecruzavam, na medida em que, por exemplo, a percepção da estrutura do risco estava incluída na moldura em que era apresentado, para além dos elementos retóricos de catástrofe, tragédia, de solução imediata, etc. Assim, a presente análise surgiu deste processo de codificação – que seguiu a ordem cronológica das notícias –, e das anotações feitas no diário de campo (Beaud, Weber, 2007) – a partir de uma perspectiva etnográfica, no sentido da apreensão reflexiva das concepções e gramáticas nativas concomitantes a este processo (Oliveira, 2015).

De forma geral, os resultados obtidos permitiram constatar que o desenvolvimento do problema do “avanço da maré na 13 de julho” deve ser visto de forma concomitante e concorrente ao problema público que posiciona o próprio projeto de defesa litorânea como causa de possíveis desastres ambientais. O embate entre ambos os problemas, financiados por diferentes instituições estatais, permite delinear as sucessivas estruturas conceituais de definição do risco nas quais tanto as causas quanto os perigos são continuamente apresentados.

De um “Desastre Natural” a uma “Tragédia Iminente”

O primeiro momento diz respeito ao período anterior ao início do ano de 2012. As 83 notícias analisadas foram coletadas a partir das tags “maré”, “13 de julho maré”, “contenção da maré” e “13 de julho”, em alguns dos principais sites de notícias de Sergipe (Ne notícias, Infonet, A8 Sergipe e F5 notícias) e trazem in- formações desde 2007. A frequência de notícias aumenta exponencialmente a partir do ano de 2011 e, a partir de 2012, o tema é predominantemente dominado por informações em torno da avenida Treze de Julho. No ano de 2013, centro dos conflitos mais acirrados, a frequência de notícias em torno da maré cresceu exponencialmente, sendo terminantemente parte da agenda pública. O tema do projeto de defesa do bairro Treze de Julho é predominante em todos os sites de notícias em relação aos problemas causados pela maré em outras localidades. Abaixo um quadro apresentando a frequência de notícias em relação ao ano em cada um dos sites pesquisados.


Fig.1
Distribuição de frequência de notícias em relação ao ano de publicação numa amostra de 83 notícias em quatro dos principais sites de notícias online do estado de Sergipe, de 2007 a 2014

Até o final de 2011, no entanto, a maior parte das notícias pos- suía uma moldura diferente daquelas que adquirirão posterior- mente. Primeiramente, as marés eram vistas como fenômenos cotidianos e chegam a apresentar um aspecto “natural”: “são as marés de março”. O fato de que o nível do mar se eleva no mês de março parece fazer parte do cotidiano e do universo natural e simbólico da cidade de Aracaju.

Nessa fase, a maré é predominantemente emoldurada em termos de “desastre natural”, próprio dos ciclos da natureza. Regiões como Atalaia Nova e, sobretudo, pequenos comerciantes e moradores costeiros são apresentados como vítimas da “fúria do mar”. As causas elencadas para isso são as mais diversas: o aquecimento global, a ação da Lua, o avanço dos moradores e comerciantes sobre o mar, a ação de Deus, etc. Mas o que nos interessa aqui mais propriamente é que o Estado, suas ações ou instituições e possíveis organizações ou atores sociais nunca são trazidos à tona como fatores de causa dos “desastres” (Souza Lima, 2012; Souza Lima e Castro, 2015). Isto até mesmo quando é noticiada a necessidade de estudos ou de medidas nas localidades ou ainda quando, por exemplo, um morador solicita que a Atalaia seja lembrada. Neste caso não fica claro se ela foi “esquecida por Deus” ou pelo “Estado”.

Não obstante isso, a Defesa Civil é um órgão recorrentemente visitado pela imprensa como fonte de informações. Isto dá às molduras um caráter técnico, aliando a informação sobre os desastres e as perdas de moradias, etc., com descrições sobre o nível da maré, bem como com recomendações próximas àquelas oferecidas quando há um engarrafamento no trânsito, por exemplo. O risco que a maré oferece é evidente, é “natural”, não é contestado. Tem um caráter quase “mítico” e sua grande noticialidade na forma de tragédia incontrolada não deixa dúvidas. Mas nesse momento a moldura em torno da maré permite relativizar o fator do perigo e apresentar outros pontos positivos sobre ela, como o de facilitar a navegação no leito do rio, a despeito de as embarcações pequenas precisarem tomar cuidado.

É importante frisar isso, pois esse fenômeno não mais se repetirá após 2012, quando haverá uma clara modificação da diferença conceitual entre risco e perigo (Hannigan, 2009). Não só o fato de a maré oferecer um risco ser até então enquadrada de forma pouco ameaçadora, como ela ainda pode ser emoldurada lado a lado com seus aspectos positivos. Todavia, já no final de 2011, e sobretudo após 2012, a situação se transforma claramente, de modo que a responsabilidade do Estado passará ao centro do debate ao ponto da acirrada disputa entre diversas instâncias estatais estar no centro da discussão.

O debate sobre a maré se transforma então num palco onde os principais arguidores e interessados são os agentes das administrações estatais. A moldura é então a de um problema intrinsecamente relacionado com as divisões político-eleitorais. Deste modo, são os interesses e as ações dos agentes do Estado que transformam “o problema da maré”, de um problema rotineiro e alheio à política e à competência do Estado, em um problema público de interesse da sociedade em geral, parte da agenda pública e de competência estrita das ações do Estado. Ele constitui, agora, a parte fundamental da narrativa, tanto como a causa quanto como o solucionador inquestionável do referido problema.

Nesse sentido, o ano de 2012 marca o que se poderia entender como um período de transição. Já em janeiro daquele ano, as marés são retratadas como um fator de risco. É senso comum que elas estão aumentando e algumas zonas, com avenidas e casas, podem ser encontradas dividindo o espaço de definição do risco com a “Treze de Julho”, como, por exemplo, Pirambu, Estância e Caueira. Também em janeiro o então prefeito Edvaldo Nogueira vai ao bairro Treze de Julho com uma “equipe multidiciplinar da Emurb” e afirma estar realizando os primeiros estudos técnicos tendo em vista prevenir “possíveis consequências futuras” da ação do mar sobre a pista. Sua retórica é a de um futuro longínquo e busca se afirmar contra a tendência da mídia e de outros atores de já tentarem definir aquele espaço com um local de risco imediato e até de “catástrofe”.

É o que se verifica numa notícia encontrada no NE NOTÍCIAS, de Joedson Telles, em 12 de janeiro de 2012: “Deputado teme tra- gédia na 13 de julho”. O deputado em questão é Gilmar Carvalho e é a primeira notícia encontrada que põe a situação nos termos de uma tragédia iminente. Mas, por fontes da própria página, se verifica que o tema já estava presente nas molduras da mídia há algum tempo. O próprio jornal se coloca, juntamente com alguns outros, como ator decisivo na trama, uma vez que havia reali- zado diversas denúncias e, como tal, despertado a atenção da prefeitura para com o tema.

Nesse momento de transição se verifica ainda a permanência de um discurso de “ausência de risco imediato”, que é o mesmo encontrado em momentos anteriores, sobretudo nas falas da Defesa Civil, mas que começa a perder força. Até o final daquele ano de 2012 há um vácuo no que diz respeito à noticialidade do projeto. Quando as notícias começam a reaparecer, a permanência de uma retórica de ausência de tragédia iminente permanece constante, não só através da Prefeitura Municipal de Aracaju (PMA), mas também através do Ministério Público de Sergipe (MPSE) que realiza estudos e busca promover reuniões tendo em vista o impacto das “ondas na 13”.

O Ministério Público de Sergipe (MPSE) surge como a primeira instituição a tomar para si as funções de Estado e buscar movimentar as demais organizações estatais mediante essas reuniões e estudos para que ações sejam efetivadas. A ação dela pode ser tomada como catalisadora da definição que irá predominar a partir desse momento. Ela não é facilmente identificável a um polo específico do conflito, mas recorrentemente serviu como impulsionador do debate e como revelador público dos conflitos. O efeito de algumas organizações como catalisadoras dos acontecimentos, especialmente no caso do MPSE, prosseguirá até o desdobramento final e efetivação de tal política pública. Também a mídia, como se viu acima, parece ter tido naquele momento o papel de impulsionadora das forças estatais para a ação.

O tema futuramente não mais prosseguirá com a retórica de uma “ausência de risco iminente” (ao menos não pelo lado da Prefeitura Municipal de Aracaju), e sim com a de um problema ambiental com um risco futuro que, juntamente com alguns outros fatores, são reconhecidamente fundamentais para que problemas ambientais possam ganhar espaço na mídia. Neste sentido, observa-se que, além de ter relação com o presente e não com um futuro distante, ele deve ser lembrado por ter uma moldura reconhecida: os apelos da PMA para relembrar a “antiga praia formosa” e para construir o teor de catástrofe iminente devido a posição da pista, ao tráfego, etc.; deve ser defendido por autoridades, políticas ou cientificas; deve ser dramatizado e ter uma agenda de ação bem definida (Hannigan, 2009). Todos esses elementos, como se poderá observar, estiveram presentes nas futuras versões “oficiais” do problema, versões do polo encabeçado pela PMA.

Aqui também os autores do projeto já apresentam um dos principais argumentos da trama, o da necessidade da execução de uma obra não reversível e emergencial. Muitos outros atores de- pois contestarão essa versão, propondo medidas não intrusivas ao meio ambiente, que apenas amenizassem a situação da pista até que se encontrassem outras soluções. O projeto oficial, no entanto, não abria margem a outras medidas e continha já desde o seu início um plano de urbanização dá área com fins turísticos. A retórica de um risco não imediato (futuro) está aqui lado a lado com a retórica da necessidade de uma medida de engenharia permanente. Mas ela não será uma referência constante na agenda pública. Desde o seu início, ao que levam a crer os dados, o projeto nunca foi uma proposta a ser efetivada na gestão do então prefeito Edvaldo Nogueira. Era uma resposta a uma série de reivindicações, mas que desde o começo se destituía de pretensões imediatas, relegando sua efetivação ao próximo mandato.

A apresentação do projeto ocorre em 20 de setembro de 2012. O então prefeito o faz, deixando para que o futuro prefeito dê continuidade aos planos, tendo em vista que o seu mandato logo terminará. O projeto é apresentado entre a declaração do Ministério Público de Sergipe, no mês de agosto de 2012, que afirma que não há risco imediato de queda, mas ao mesmo tempo solicitando ações e a retirada do ponto de ônibus da localidade, dado risco de acidentes. Aqui talvez se encontre a primeira construção da relação entre a causa e o efeito na estrutura conceitual do risco na 13 de julho. Ela é ainda concordante com a posição de então, de que não há risco imediato. A relação estabelecida é entre a água que se insurge contra o ponto de ônibus e o perigo que correm os cidadãos ao fugir das ondas em direção à pista. Mas a relação entre a causa e o efeito do risco das ondas na Treze de Julho só vem a ser mais bem desenvolvida muito tempo depois, por João d’Ávila, professor em Engenharia Química e Engenharia Ambiental e diretor-presidente da empresa Ambientec Soluções Sustentáveis, que foi contratado pela Prefeitura de Aracaju “para desenvolver os estudos químicos e ambientais do local”. Somente lá, no auge do conflito, estudos técnicos, dados numéricos e uma descrição detalhada da relação entre as ondas da maré e os perigos serão oferecidos de forma detalhada e com pretensões científicas.

Se naquele momento (final de 2012) a tentativa de emoldurar o risco como um fenômeno futuro se encontra ainda do lado da PMA, posteriormente será o inverso, pois ela estará à frente das mobilizações para que a obra seja aprovada quanto antes dado o “risco iminente”. A antiga conceituação como um fenômeno futuro e que não oferece risco imediato será apropriada pelo polo da Administração Estadual de Meio Ambiente e Ambientalistas. Ao mesmo tempo, se há uma série de argumentos de caráter administrativos e políticos (ausência de recursos, o curto tempo para o fim do mandato) que sinalizava para a impossibilidade de realização imediata da obra ainda no mandato de Edvaldo Nogueira, no momento posterior, com a eleição de João Alves como prefeito, a PMA concentrará argumentos que atentam para a necessidade iminente da obra, se apropriando do discurso que antes fazia frente ao seu, até então notadamente pelos atores da mídia e do MPSE. Este afinamento de posturas entre a PMA e a mídia, e que se pode atribuir a interesses já bem demarcados, oferece uma base de compreensão bastante fecunda no que diz respeito ao sucesso de construção do problema público do projeto de defesa litorânea. Finalmente o Estado (entendido como a PMA) e a mídia “se juntam”, e isto será decisivo.

Esse momento é decisivo, também, pois é quando as grandes mudanças de posição ocorrerão. Os agentes passam a se posicionar uns em relação aos outros de forma dramaticamente diferente e a se apropriar de molduras discursivas que antes lhes faziam frente. E as razões dessa mudança ainda não estão claras, sobretudo por não poderem ser explicadas apenas pela verificação conclusiva da “necessidade da obra” ou do “risco”, etc., algo impossível de se verificar, tanto pelos princípios do construcionismo quanto pelo campo estritamente técnico ou político, dada a permanência de discursos contrários e legítimos ainda que nem sempre dominantes (Hannnigan, 2009). Mas foi sem dúvida decisivo que a mudança decorre da alteração do executivo municipal mediante as eleições de 2012, uma vez que quebrou aliança entre prefeitura e governo do Estado iniciada na gestão municipal de 2001 quando Marcelo Déda e Edvaldo Nogueira ganharam pela primeira vez as eleições. Posteriormente, em 2007, Marcelo Déda é eleito governador do Estado e Edvaldo Nogueira dá continuidade à gestão municipal, se elegendo posteriormente prefeito e sendo derrotado somente em 2012 por João Alves: um tradicional político local que foi prefeito de Aracaju entre 1974 e 1977, ministro do Interior de 1987 a 1990 e governador de Sergipe durante três mandatos (1983-1987; 1991-1994 e 2003- 2006). Mais à frente, Edvaldo Nogueira será constantemente criticado por não ter dado prioridade à obra. E isto revela a posiçãodiferenciada que a obra assumirá no mandato de João Alves.

Em janeiro de 2013 ainda se verificam notícias que atestam a cotidianidade da maré. A praia de Pirambu também é palco dos seus impactos. Um ator frequente – e que depois desaparece- rá quase que por completo, sobretudo como fonte da mídia – é ainda a Defesa Civil e as características da moldura ainda são bastante técnicas. Todavia, há uma clara mudança no sentido da urgência da obra dado o risco iminente. Neste sentido, está a posição favorável à obra do Ministério Público de Sergipe (MPSE), com a promotora de justiça e meio ambiente Dra. Adriane Ribeiro. Ela ajuizou uma ação civil pública (em dezembro de 2012, posteriormente à eleição de João Alves como novo prefeito) para que a PMA adote medidas emergenciais que impeça o risco de queda. Reuniões já haviam sido feitas pelo Ministério Público, mas segundo a promotora havia omissão por parte da Prefeitura Municipal de Aracaju e da Empresa Municipal de Obras Urbanização (EMURB), além de uma argumentação administrativa com relação aos recursos. Nesse momento a área da Treze de Julho adquire uma atenção especial dado o evento que ocorria sempre no final do mês de janeiro, conhecido como “O Pré-cajú”, e que contaria com veículos pesados passando pela pista avariada pelas ondas. Essa moldura de catástrofe servirá como o evento inicial do processo através do qual a nova gestão construirá a Treze de Julho como um lugar de risco de tragédia iminente.

Em 15 de janeiro de 2013 é publicada uma notícia sobre a ação civil pública do MP e no dia seguinte, 16 de janeiro, o novo prefeito João Alves se pronuncia a respeito de sua ida a Brasília com fins de angariar recursos para a obra junto ao ministro de Integração Nacional, Fernando Bezerra de Souza Coelho. Já aqui a posição da PMA é a de que a obra oferece risco iminente para a população. “Um administrador não pode contar com a sorte”, pontua João Alves. Além disso, a situação de risco iminente é finalmente atestada pelos estudos técnicos da EMURB, que até então se posicionava junto à PMA na posição contrária: a da ausência de risco iminente. Aqui é possível verificar que a mudança da PMA com relação ao risco ser iminente ou não tal- vez estivesse diretamente ligada às prioridades da nova gestão municipal do que como uma forma de resposta a reivindicações que tinham sido feitas por associações comunitárias do bairro ou organizações ambientalistas.

Como se pode observar, a forma de emergência e de publicização do “avanço da maré” como um problema social e político teve nas instâncias do Estado os principais promotores, ao invés de pressões provenientes de associações de bairro, organizações ambientalistas, etc. Neste sentido, pode-se dizer que são as ações internas do próprio Estado, entendido aqui como executivo municipal, e sua nova disposição em levar adiante o projeto, em conjunto com a intervenção do Ministério Público de Sergipe (MPSE), foram os principais catalisadores da mudança na definição do risco que o “avanço da maré” oferece: de algo futuro para algo imediato e urgente, quase em termos de uma catástrofe iminente. Isto é pertinente na medida em que vai con- tra certa compreensão “racional-funcionalista” do Estado como uma administração pública racional, composta por atores também racionais e dispostos numa hierarquia piramidal e acrítica (Souza Lima, Castro, 2015). O que vai se observar no transcurso dos debates e decisões que ocorrerão são conflitos internos às próprias instâncias e organizações estatais decorrentes de oposições político-partidárias, como já temos observado em outros contextos nacionais (Oliveira, 2014). São justamente nessas situações em que o acentuado conflito político-partidário atravessa diretamente as instâncias estatais, impossibilitando a própria continuidade da referida política, que a arena jurídica passa a ocupar um papel determinante, sendo acionada por ambas as partes envolvidas.

O “Risco Ambiental”, o Licenciamento e a Arena Jurídica

O período que se segue ao longo do ano de 2013 é de intenso debate e conflito. Já no final de março se pode verificar argu- mentos contra a obra na Treze de Julho. Este discurso não se ve- rifica com tanta força antes, em que se intensifica e ganha espaço somente agora. É ele que virá a predominar no debate a partir desse período.

O discurso possui, sobretudo, um caráter ambientalista no senti- do da defesa ou preservação do meio ambiente, colocando o Rio Sergipe como possível prejudicado. “Querem matar o rio”, “Lei protege o rio” são alguns dos títulos encontrados. Ao mesmo tempo, outros jornais online se posicionam a favor, acentuando que é necessário que se realize a obra em caráter de urgência tendo em vista os incômodos que a maré tem trazido à região. Quanto a isso, vale lembrar que além do ponto de ônibus ter sido retirado do local no final de 2012, no final de abril de 2013 a juíza Simone de Oliveira Fraga interditou o tráfego na avenida até que a situação da maré fosse resolvida mediante uma tutela liminar favorável ao Ministério Público Estadual. Pela decisão da justiça, a PMA deveria delimitar a área da avenida que apresenta risco e interditá-la até que se iniciasse a obra; também deveriam ser feitas vistorias semanais para acompanhar o progresso dos danos à pista.

O maior impedimento agora não é mais a morosidade da pre- feitura, sua ausência de recursos, etc., mas a “cantinela da ADE- MA”, como pode ser encontrado na matéria “Maré: 13 de julho x Cantinela da ADEMA”, de Cláudio Nunes. Segundo ele, o órgão se recusa a fornecer o licenciamento ambiental, que é de competência e obrigação da ADEMA e é um requisito necessário para que a prefeitura possa prosseguir com a obra dada a possibilidade de ela perpetrar em riscos ao meio ambiente. O órgão (ADE- MA) é então acusado de morosidade e de ter interesses políticos se sobrepondo aos seus aspectos técnicos. Por outro lado, verificam-se estudos que defendem o posicionamento da ADEMA em não autorizar a obra antes dos devidos estudos e propõem a busca por medidas alternativas ao “avanço da maré na 13”, como no título “Querem matar o rio”, de Adilberto de Souza.

É significativo o fato do discurso contrário à obra e atento aos possíveis danos ambientais não se manifestar no sentido negativo e, como tal, de desconstruir “a maré da 13 de julho” como um objeto de risco. Pelo contrário, não se trata de negar o risco da maré na pista, tão somente de chamar atenção para um outro risco: o dos danos ambientais. Constrói-se, assim, outra moldura, outros referenciais para “o avanço da maré”. A própria ADEMA e, mais à frente, os movimentos denominados generica- mente como “ambientalistas” ou “movimentos sociais” também não tentarão, de forma geral, negar os argumentos do risco imi- nente.

Dito isso, talvez a série de acontecimentos que se segue seja melhor interpretada não mediante a tentativa de se construir um problema público ambiental, por um lado, e a manifestação de posições contrárias a este problema, por outro. O que nos leva- ria a provocar uma série de contra-posicionamentos, etc., como poderia sugerir uma análise no qual o Estado é sobretudo um solucionador de problemas públicos e, funcionalmente, um gestor de reivindicações societais, bem como o único detentor das propriedades de propositor e de solucionador de problemas. Ela pode ser melhor interpretada mediante a compreensão de que há dois blocos político-partidários concorrendo para a definição do “avanço da maré” como problema público. Cada um deles com estratégias distintas, com relações particulares com a es- fera judicial e com compreensões diferentes do problema, tanto no que diz respeito ao que seria o objeto do risco quanto a quais seriam suas causas e perigos.

Uma Definição Científica do Problema

No mês de maio a disputa continua envolvendo as arenas midiáticas e jurídicas. Os principais atores no palco são Genival Nunes e Eduardo Matos, representando, respectivamente, a ADEMA – órgão do governo do estado responsável pelo licenciamento ambiental –, e a EMURB da prefeitura de Aracaju.

As opiniões se dividem. Por um lado, a obra é vista como uma forma de transformar o rio Sergipe num “canal pestilento”, um “tietê”, o que seria um crime ambiental para com as futuras gerações. A própria obra é apontada como solução não mais para a “maré”, mas para este “risco ambiental”. O perigo é o da destruição do meio ambiente e do aumento da poluição na área e a causa se encontra nas ações do próprio Estado, no seu favorecimento à especulação imobiliária, no avanço sobre as áreas costeiras, os assoreamentos em outros lugares sem os devidos estudos, etc. Esse problema, que começa a ser construído e que se manterá de pé, carrega uma característica antes adotada pela prefeitura gerida por Edvaldo Nogueira, que é a de construir o problema através de um risco futuro. Tal narrativa não nega o risco de desabamento, nem o reforça, tão somente sugere a possibilidade de resolvê-lo de outra forma e se põe contrariamente à obra. Posição semelhante é defendida por Genival Nunes na mesma época. Quando se noticia em 05 de julho de 2013 que o

[...] juiz de Direito substituto Eduardo Portela, a partir de um recurso da Prefeitura de Aracaju, vem consolidar o entendimento defendido e justificado didaticamente pelo secretário de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Genival Nunes, de que as obras definitivas de contenção do mar na avenida Beira Mar, no bairro 13 de Julho, só poderão ser realizadas após a conclusão dos estudos ambientais necessários (INFONET - 13 de julho: Decisão judicial consolida entendimento do governo – 07/05/2013).

Nesse momento também outras instituições surgem na arena midiática oferecendo legitimidade e argumentos. Os especialistas pertencentes ao que se poderia denominar de polo societal se mostrarão ativos em ambos os lados. Em 12 de maio de 2013, Luiz Carlos Fontes, do Laboratório de Geo, Rio e Mar (Georioemar) do Departamento de Engenharia de Pesca da Universidade Federal de Sergipe (UFS) se manifesta. É a primeira vez que ato- res da esfera científica surgem para emoldurar o risco de forma detalhada. No que diz respeito aos problemas ambientais, os argumentos que tendem a ser acrescentados são frequentemente provenientes da esfera científica, o que como se sabe tem um papel determinante no sucesso da construção de determinado problema como público (Cefaï, 1996; Hannigan, 2009).

Por outro lado, já em 02 de maio de 2013, é possível encontrar no site da Infonet a notícia “Blog X 13 de Julho = obra e transparência”, que visa esclarecer o posicionamento oficial do blog de Claudio Nunes: ele é terminantemente favorável ao projeto de defesa litorânea. A sua moldura é a de um problema no qual o objeto de risco é a maré. A ADEMA é vista como morosa e tendenciosa e é acusada de não priorizar o licenciamento do local por motivos políticos. É oferecido como recurso retórico o exemplo do povoado Tabocas, em Nossa Senhora do Socorro, como um caso em que, atendendo aos interesses de uma determinada empresa privada, a ADEMA teria oferecido o licenciamento sem maiores transtornos.

Se os atores e argumentos anteriores fossem tomados como uma frente de ataque ao projeto, buscando inseri-lo como objeto de risco na construção de um novo problema – e angariando argumentos de caráter científico para deslegitimar o projeto de defesa –, esta última notícia seria o marco do início do contra-ataque. Nos meses que se seguem, uma série de elementos aparece, certamente não fortuitamente, no sentido de fortalecer o problema público no qual o objeto de risco é a maré e o seu auge será no acionamento de um outro professor e engenheiro: João D’Avila.

A Arena Jurídica

Em 06 de junho de 2013 ocorre a primeira audiência pública de conciliação, no Fórum Gumercindo Bessa, mas não houve con- senso. A ADEMA continua os estudos de danos ambientais e há discussão entre Eduardo Matos da Secretaria de Meio Ambiental e Genival Nunes da ADEMA. O Ministério público estadual, pre- sente na audiência por meio do promotor de justiça Gilson Fei- tosa, diz que pretende se manifestar a respeito e talvez solicitar laudo da Defesa Civil. O Procurador Geral do Município, por sua vez, solicitou à ADEMA liberação sem o estudo, com o compro- misso de realiza-lo durante as obras. Também o engenheiro Ar- mando Brito, agora apresentado como sendo o autor do projeto, fala em defesa da liberação das medidas definitivas.

Ainda em junho, pela primeira vez, o polo PMA-EMURB começa a juntar argumentos e fornecer elementos retóricos de legitimação da obra, fazendo referência à competência técnica de seus estudos. A notícia, sobremaneira interessante nesse início do que poder-se-ia optar por denominar de “contra-ataque” na arena da mídia, se intitula “Beira Mar: Luiz Durval reafirma credibilidade do laudo da Emurb” e começa assim:

Enquanto a Prefeitura Municipal de Aracaju (PMA) se empenha para evitar riscos e danos à população aracajuana, um relatório elaborado pela Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH), da Universidade de São Paulo (USP), pontuou que há um equívoco na interdição de parte da Avenida Beira Mar, no bairro 13 de Julho. No entanto, em resposta ao relatório, o presidente da Empresa Municipal de Obras e Urbanização (Emurb), Luiz Durval, afirmou que todo o trabalho feito pela PMA tem em vista um laudo técnico que aponta o risco (Universo Político, Beira Mar: Luiz Durval reafirma credibilidade do laudo da Emurb, 2013).

Esse laudo técnico também havia sido disponibilizado ao público por Luiz Durval em maio de 2013. O texto da notícia é expressivo na retórica de deslegitimação do laudo oferecido pela USP e que é justaposto a ADEMA, de forma a que as duas instituições são apresentadas como filiadas, sobretudo pois estas afirmações vêm seguidas de uma busca por reafirmar a legitimidade e o papel das organizações ligadas ao polo PMA-EMURB.

Em meio a isso, a prefeitura começa a investir no argumento de que não há risco ambiental, juntamente com a empresa Planave e, depois, a Ambientec do prof. João D’Ávila, para que, assim, a avaliação técnica a respeito dos possíveis danos do projeto se- jam entregues à prefeitura e não mais à ADEMA. Começa-se a desmoronar a construção de uma estrutura do risco, mas o ata- que é realizado apenas por um dos lados. Mais adiante, os Mi- nistérios Públicos também se insurgirão contra a inabilidade da ADEMA. A prefeitura obtém sucesso em se apropriar da cons- trução do problema público do polo ambientalista, negando-o. A ADEMA crescentemente é ausentada do palco da mídia e as obras são autorizadas, até que o Ministério Público de Sergipe e Ministério Público Federal finalmente se posicionem efetiva- mente, não apenas em oposição às ações da PMA, mas também em relação à ADEMA que foi incapaz de exercer seu papel de fiscalizador ambiental.

Isso é importantíssimo para se compreender efetivamente o processo através do qual aos poucos a aliança encabeçada pelo governo do Estado-ADEMA-ambientalistas foi perdendo força, apoio público do judiciário e presença na arena midiática. Isto, pois, (1) os argumentos que teriam sido oferecidos no laudo da USP para descaracterizar o risco de queda não são elencados de forma descritiva, de forma a ter uma retórica efetiva, com dados técnicos, etc.; ou seja, eles não são utilizados para caracterizar uma moldura de ausência do risco. (2) Tão somente Luiz Durval é tomado como fonte, tendo espaço de opinião privilegiado – o que aliás é recorrente da relação entre o Estado (“oficial”) e a mídia (Hannigan, 2009). (3) Não há evidência nos dados das notícias coletadas de recorrência de argumentos ligados a este laudo da Universidade de São Paulo ou da tentativa de legitimá-lo por parte da ADEMA, ou seja, (4) o posicionamento do polo do governo do Estado permanece caracteristicamente na busca por emoldurar um problema público distinto, seja no que diz respeito ao objeto do risco, à causa, etc.

No início de julho de 2013, a juíza Simone Fraga, em resposta ao Ministério Público de Sergipe, que havia ajuizado ação para que os órgãos em questão entrassem em acordo, entende que a de- mora da ADEMA na apresentação de um parecer sobre a situa- ção da Treze de Julho, favorável ou desfavorável ao projeto, está atrasando as obras, pois a ADEMA deveria se pronunciar em 30 dias sobre a concessão ou não do licenciamento ambiental.

Nos dias que se seguem a essa decisão se inicia uma exposição sobre a história do bairro Treze de Julho. A ocorrência desse evento, largamente noticiado pela imprensa escrita e televisi- va, contribui para elevar as características propriamente fun- damentais de marketing na construção de um problema públi- co (Hannigan, 2009). A área da Treze de Julho, se já chamava atenção do público por ser uma área movimentada, de acesso ao centro da cidade, etc. terá agora um outro fator importante: sua importância histórica para a história da cidade de Aracaju. Esse evento constitui um acontecimento importante por parte do polo liderado pela PMA de angariar legitimidade ao proje- to desde o início apresentado como a “defesa” do bairro Treze de Julho diante da força da maré. Agora é uma ameaça não só a uma “área nobre e movimentada”, com risco de que ocorra uma tragédia, mas um apelo quase mítico para que se salve o local da “antiga praia formosa”.

Em 16 de agosto de 2013 as obras de caráter não definitivo são iniciadas, segundo secretário municipal de comunicação social Carlos Batalha. O prazo de 30 dias estipulado para a ADEMA terminaria no dia 18 de agosto de 2013. Os meses de agosto e setembro passam sem notícias relevantes sobre a obra, quando curiosamente, em outubro de 2013, dia 04, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN pede estudo arqueológico da área. A informação é oferecida pelo assessor da EMURB, Ademar Queiroz, e o estudo custaria cerca de um milhão de reais. Chama atenção que esta ação do IPHAN ocorra concomitantemente à referida ação por parte do polo do governo do Estado para evitar a consecução da obra, não fossem as inúmeras manifestações em contrário por parte tanto da mídia quanto do próprio João Alves Filho. As falas explicitamente to- mam ação do IPHAN como uma tentativa de embargar a obra.

Como exemplo, tem-se o blog de Cláudio Nunes, que reaparece nessa exposição. Ele ironiza o pedido do IPHAN noticiando que foi encontrado um “ET na 13 de julho” e chega a apresentar uma fotografia da cabeça do extraterrestre como evidência. Alguns meses depois o próprio João Alves Filho fará menção ao ocor- rido dizendo que a obra gerou tanto debate e controvérsia que “até dinossauro tinha embaixo”.

Fica claro que por detrás da referida ação do IPHAN, como também o evento sobre a história da Treze de Julho, existe a ideia de reforçar que aquele é um espaço a ser preservado da fúria do mar. Tomar a Treze de Julho como um “sítio arqueológico” é ele- var em igual medida o valor daquele território do ponto de vista ambiental e, consequentemente, agregar valor e argumento à perspectiva de que a obra de contenção da maré é um fator de risco. A ação do IPHAN pode, de fato, ser tomada como ação em direção contrária à construção do risco de queda da balaustrada, desde que se reconheça que o seu efeito na mídia foi o contrário. A aliança liderada pela prefeitura municipal de Aracaju em consonância com parcela da mídia não deixaram, mais uma vez, de se apropriar do fato como um recurso em favor próprio.

Esse é um momento de vitória, por assim dizer, da tentativa de se construir o problema do risco de queda da balaustrada e de angariar para si, no palco da mídia, os fatores fundamentais de sucesso de um problema público. Mesmo os eventos em contrário e que poderiam ter sido utilizados como ferramentas para o outro polo foram reapropriados em favor dos argumentos da PMA: tanto o laudo técnico vinculado à USP quanto o possível sítio arqueológico atestado pelo IPHAN. Além disso, e talvez o fator mais decisivo: crescentemente a ADEMA perde espaço, bem como os argumentos favoráveis à necessidade do licenciamento ou contrários à obra. A PMA começa, então, a tomar para si a legitimidade de decidir a respeito dos efeitos ambientais da obra, a despeito da ADEMA e através da arena jurídica.

A Disputa entre as “Administrações”

Em 21 de outubro de 2013 as obras de caráter definitivo são auto- rizadas pela justiça. O laudo técnico apresentado pela PMA e realizado por uma empresa contratada tendo em vista servir de substituto ao laudo que deveria ser oferecido pela ADEMA é aceito.

A decisão foi do desembargador Ricardo de Abreu, que atendeu à solicitação da Prefeitura de Aracaju que apresentou um laudo apontando que a obra é de caráter definitivo e não emergencial (A8 SERGIPE, Justiça autoriza início das obras da balaustrada da avenida Beira Mar, 2013).

Para o desembargador, o laudo oferecido pela EMURB se mostra suficiente para atestar a necessidade da obra de defesa litorânea. Ele também vê a demora da ADEMA como prejudicial, dadas as despesas públicas e também os transtornos que a situação tem causado a população. Assim, não só a ADEMA é apresenta- da como um empecilho, como também é transferida à EMURB a atribuição para decidir a respeito dos riscos que o projeto representa. Se até então a autoridade da ADEMA era inquestionável, no que diz respeito às suas competências referentes ao licenciamento ambiental, a partir desse momento ela não terá mais este papel, sendo o mesmo transferido para a instância da prefeitura.

Mostra-se indispensável a execução de projeto que assegure a edificação de uma estrutura capaz de evitar o avanço do mar e o risco de desmoronamento da calçada e rodovia’, avaliou o magistrado (A8 SERGIPE, Justiça autoriza início das obras da balaustrada da avenida Beira Mar, 2013).

O fato de o risco ambiental constituir um risco futuro, não imediato, é utilizado tanto pela PMA, por intermédio do procurador Carlos Pinna, quanto pelo próprio desembargador, como fator não impeditivo de que os estudos de impacto am- biental sejam realizados simultaneamente à execução da obra, tendo em vista a urgência desta, justificando que isto não equi- valeria à ausência de preocupação da prefeitura com as questões ambientais e, mais especificamente ainda, com o próprio licen- ciamento.

No entanto, mesmo com a decisão, os embates não cessam. Na verdade, vozes dissonantes ainda surgem, como a vereadora Lucimara Passos (PcdoB/SE) do mesmo partido do ex-prefeito Edvaldo Nogueira, que questionou o modo como a obra estava sendo conduzida, com o excessivo acúmulo de pedras no local e nenhuma urgência, contrariamente ao discurso da prefeitura até o momento, o que constitui para ela uma ausência de “transparência da PMA”. É também nesse momento que Carlos Pinna publica mais uma matéria sobre o tema, desta vez salientando os aspectos legítimos da atuação do engenheiro responsável, Armando Bezerra, e se mostrando contra a necessidade de um suposto “estudo de modelagem matemática” e outras exigências muito demoradas e que não consideram a urgência do problema.

Mas o maior trunfo do polo liderado pela PMA surge talvez nesse momento, com o já mencionado “professor” João D’Ávila, permitindo uma nova redefinição da estrutura conceitual do risco. Ele representará agora algo semelhante ao que o Geólogo Luis Carlos Fontes representou num determinado momento já exposto ao polo ADEMA-AMBIENTALISTAS. O que há é a reconstrução da estrutura conceitual do risco, mudando tanto a definição do objeto quanto o perigo. Quanto a isso, as falas de João d’Ávila são muito reveladoras. Como já destacamos anteriormente ele é contratado pela prefeitura mediante a empresa Ambientec e é a primeira vez, ao que parece, que se busca estabelecer fortemente e com viés científico a relação causal entre o objeto do risco e o perigo por parte da PMA. No mandato de Edvaldo, o risco era definido como não imediato. No mandato de João Alves, no entanto, o risco é crescentemente definido como iminente. Isto com relação ao risco de queda da avenida. E essa definição parece crescer conforme cresce o conflito.

Agora, com João D’Ávila o risco iminente não é mais apenas o de queda, mas se passa a investir fortemente no aspecto de poluição. As ondas na pista da 13 de julho passam a ser emoldurada não apenas, como era até então, como um fator de risco por poder destruir a estrutura física da pista, mas por oferecer risco à saúde pública dado o alto índice de coliformes-fecais. O número “assustador” apresentado redefine o perigo da estrutura conceitual do risco, de forma que se apropria de argumentos já antes utilizados por atores que se opunham à obra. Se antes a poluição das águas era tomada como fator de impedimento da obra, ele agora é elencado como um fator a favor: o projeto levaria as águas para longe da pista, com o aterro.

É também João D’Àvila que pela primeira vez “muda” a área da obra do rio Sergipe para o rio Poxim. É uma estratégia interessantíssima, pois pode retirar do palco a arena judicial, dado os argumentos que haviam sido levantados em consideração à área ser do rio Sergipe e, como tal, patrimônio da união, o que impediria a realização das obras definitivas pela prefeitura sem o licenciamento ambiental da ADEMA. E como se verá esse argumento foi de fato utilizado mais tarde por Luiz Durval numa reunião decisiva com a Ordem dos Advogados do Brasil. Isso sem que se leve em consideração a importância que possui o rio Sergipe no imaginário público. Fato atestado pelas inúmeras manifestações em contrário que trazem com argumento, por exemplo, a consequência de que o rio Sergipe, um dos principais rios do estado, possa ser destruído pela obra. A mesma atenção não foi dada ao rio Poxim, nem antes de ele ser elencado como a causa do risco, nem depois. Aqui, fica evidente que mesmo que os fenômenos ecológicos não sejam de origem social, eles são valorados socialmente. Na relação entre a ecologia e a política só se presta atenção e se selecionam eventos naturais na medida em que são significativos para as atividades sociais. João D’Ávila busca então promover uma mudança tanto no objeto do risco quanto no perigo e também na explicitação da relação entre o objeto e os perigos – ambos os perigos – aspecto fundamental na construção da estrutura do risco.

Em 28 de novembro de 2011 há a fala de Iran Barbosa (vereador do PT) em defesa da causa ambiental no caso da maré, sendo mais um vereador se posicionando contra o projeto. Já em 19 de dezembro daquele mesmo ano, ocorre a primeira grande reu- nião do polo ambientalista envolvendo representantes políticos e administrativos, juntamente com determinados movimentos sociais com o fim de constituir uma frente em relação à obra da 13 de julho. O caráter geral de estrutura do risco defendida ali, no entanto, não se transforma. É a primeira e única vez que se en- contra uma notícia que dá nomes, rostos e ideia àqueles que são em geral denominados de “ambientalistas” ou de membros de “movimentos sociais”. A reunião ocorreu na forma de um debate público na sede da Central dos Trabalhadores (CUT). Estavam presentes o Fórum em Defesa da Grande Aracaju, representado por Lizaldo Vieira, membro do Fórum e também coordenador estadual do Movimento Popular Ecológico de Sergipe (Mopec). Também representantes do Movimento Não Pago, da ONG Sílvio Romero, do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA/SE), parlamentares da Barra dos Coqueiros e Aracaju, entre eles a deputada Ana Lúcia (PT). Os debatedores marcaram outra reunião para decidir o que deveria ser feito e uma ação junto ao MPF estava sendo estudada.

A notícia foi encontrada no site da Infonet e foi publicada no mesmo dia em que, mais uma vez, no mesmo site, Cláudio Nunnes comenta a respeito do debate em torno da obra. O título da sua matéria é: “13 de Julho: Foto mostra pequenez da briga”. Ele se posiciona contrariamente ao embargo da obra e tenta com isto, pela primeira vez, aliás, descaracterizar os argumentos de impacto ambiental. Isto é feito após a apropriação da definição do risco ambiental pela EMURB, a despeito da ADEMA, e da aprovação, no judiciário, do argumento da PMA de que não há risco ambiental. A fotografia que é apresentada serve como evidencia de que o trecho da obra é pequeno demais para afetar qualquer coisa no rio e que o verdadeiro crime ambiental foram os 16 milhões de coli- formes fecais por 100ml, tal como trazido anteriormente por João D’ávila. Será preciso que os MPE e MPF tomem para si a definição do risco e redefinam o espaço da Treze de Julho, bem como rio Sergipe e os efeitos da obra no local como assunto de competência da União e não somente do município para que a questão ambiental seja retomada e que se exija novamente argumentos cientifica e tecnicamente mais elaborados.

Entre as “Administrações”: a Justiça

A definição do problema público como ambiental, tendo como objeto o projeto de contenção e não mais a maré, é realizada de forma definitiva pelos Ministério Público de Sergipe e Ministério Público Federal não muito tempo após a reunião apresentada acima. Na verdade, no dia seguinte a ela, em 20 de dezembro de 2013, é noticiado que “a justiça determina a suspensão das obras” na avenida beira mar por conta de ação dos MPs solicitando que União e ADEMA embarguem as obras. A decisão é do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). Cerca de 10 dias depois, uma nova decisão do judiciário é emitida, desta vez aprovando a obra. No mesmo dia, 30 de dezembro, o Ministério Público Federal (MPF) informa que recorreu da decisão do presidente do TRF-5. Em 30 de janeiro de 2014 a prefeitura consegue que a conclusão seja mais uma vez autorizada no judiciário. A sentença foi do juiz Ronivon de Aragão, da 2ª Vara federal, do Tribunal Regional Federal – 5ª Região – que julgou improcedente o pedido de paralisação da obra de contenção do avanço da maré na balaustrada 13 de Julho.

No período dos embates no judiciário não se verificam mais postagens em blogs sobre o tema ou pronunciamentos dos ditos “ambientalistas” tendo em vista estratégias de construção do risco. Também não se verificam do lado da PMA. O final do conflito concernente a primeira fase da obra de defesa da Treze de Julho se passa em terreno completamente judicial. A última tentativa por parte dos contrários à obra, no caso “alguns ambientalistas”, pode ser verificada em 25 de fevereiro de 2014 quando se noticia já no título que “OAB/SE rejeita proposta de impetrar ação contra obra na beira mar”. Pela moldura do evento trazido na notícia, estavam presentes os membros da OAB/SE, Luiz Durval e Eduardo Matos, ambos argumentando a favor da obra.

Com ampla maioria dos conselheiros entendendo que neste momento seria extemporâneo e sem a presença de elementos técnicos que substanciassem a ação, a Ordem se manifestou favorável a continuidade da obra (A8 SERGIPE, OAB/SE rejeita proposta de impetrar ação contra obra na beira mar, 2014).

Os argumentos apresentados pelos representantes são os mesmos formulados e já destacados aqui pelo professor e engenheiro João D’Ávila. O rio é mais uma vez trazido como sendo o Sergipe e não o Poxim, como queriam os ambientalistas. Além disso, como fator a favor da necessidade da obra, é apresenta- do o elevado índice de poluição dos jatos de água que as ondas trazem à avenida. O fato evidencia a importância de João D’Ávila na construção bem-sucedida do problema ambiental da defesa litorânea da Treze de Julho, na medida em que conseguiu realizar a explicitação da estrutura conceitual do risco mediante uma argumentação de caráter científico e técnico (Hannigan, 2009).

Conclusão

As análises das políticas públicas têm sido amplamente do- minadas pela ênfase na ação do Estado, entendida como suas agências e instâncias burocráticas. Quando muito, tais perspec- tivas salientam os conflitos interadministrativos como fatores importantes para a compreensão do processo de emergência e de formulação de projetos e programas governamentais. Recen- temente, alguns trabalhos têm salientado a importância de se considerar a ação de organizações e movimentos sociais como dimensões relevantes na análise das formulações de políticas públicas, o que nos conduz a pensar tais políticas como resulta- do das relações entre sociedade e Estado. Esse foco na dimensão societal acaba, por vezes, minimizando as dinâmicas próprias das agências e instâncias estatais. Por outro lado, a ênfase na dimensão estatal deixa de lado as mobilizações e ações desen- volvidas por organizações e atores sociais diversificados.

Ainda que permaneça muito residual, as tentativas de articular os processos de formulação e implementação de políticas públicas com as dinâmicas político-eleitorais constitui um passo importante para a ruptura da dicotomia “Estado versus Sociedade” neste tipo de análise. Isso porque evidencia o quanto a formulação e a execução de políticas públicas são impactadas pelas alterações políticas e eleitorais, desde clivagens político-ideológicas vinculadas às dinâmicas próprias do processo eleitoral até as que dizem respeito mais amplamente à esfera da política partidária (Oliveira, 2014). Ao tomarmos como objeto primeiro de análise o próprio processo de construção social do objeto da política estatal, foi possível observar o quanto essas dimensões estão profundamente interligadas e se retroalimentam.

Desse modo, os resultados obtidos permitiram constatar que a construção do “avanço da maré” no bairro Treze de Julho como um problema público envolveu um longo processo de definição e redefinição que resultou no seu posicionamento como causa de possíveis desastres ambientais. Neste processo, algo que dizia respeito, inicialmente, a um fenômeno natural que fazia parte de normalidade do ano e das estações, se torna um problema de grandes proporções devido ao seu caráter de ameaça e risco ambiental. O embate entre os diferentes problemas foi promovi- do por diversas instituições, ao mesmo tempo em que permitiu delinear os sucessivos quadros conceituais de estruturas fundamentais do risco, nos quais tanto as causas quanto os perigos e as relações causais se contrastam. Neste sentido, ela nos mostra algo relativamente antigo na forma de utilização do “referencial ambiental” nas políticas públicas: ou seja, como ele constitui um instrumento importante para legitimar as intervenções do Esta- do em determinado setor e, principalmente, como um recurso importante nas lutas e conflitos em jogo (Oliveira, 1995).

Mais propriamente, tal desenvolvimento parece poder ser dividido em três grandes momentos principais: primeiramente, há o desenvolvimento concomitante e concorrente de dois problemas ambientais com estruturas diferentes e que, inicialmente, não se confrontam ou se opõem. É o que se poderia chamar de um “conflito frio”. Os dois problemas se constroem a partir do impasse a respeito da ausência de liberação do licenciamento ambiental por parte da ADEMA. Já o segundo grande momento se inicia quando um dos polos encabeçado pela Prefeitura Municipal de Aracaju promove uma transformação substancial na estrutura do risco (tanto na causa do risco quanto no que constitui o perigo), ao mesmo tempo em que assume para si o direito legítimo, com base em ações na arena jurídica de decidir qual seria o principal risco e quem teria competência para licenciar a obra. Neste momento, a aliança liderada pela PMA ataca e nega a existência de risco ambiental, de forma que consegue retirar a presença da ADEMA do palco, que era quem tinha a competência legal para licenciar ou não tal projeto. Por fim, o terceiro grande momento se inicia quando o Ministério Público Federal e Ministério Público de Sergipe tomam para si a posição que antes estava com a ADEMA. Eles o fazem também através da arena judicial e com uma estratégia semelhante a que foi anteriormente utilizada pela PMA: buscam reconstruir a estrutura do risco no qual o próprio projeto de contenção é o objeto.

Dentre as condições que propiciaram a emergência do “avanço da maré” como um problema público está a alteração no exe- cutivo municipal decorrente do processo eleitoral de 2012 que elegeu João Alves Filho como prefeito da cidade de Aracaju. Tal mudança quebrou a aliança que até então tinha se estabelecido entre o governo do Estado e a prefeitura de Aracaju desde 2006, quando o então prefeito Marcelo Deda que governava o município ganhou as eleições para governo do Estado, deixando seu vice, Edvaldo Nogueira, no município. Este concluiu o mandato e foi reeleito, estabelecendo uma relação de proximidade entre as duas esferas estatais. Com a eleição de João Alves ao governo da capital se quebrou esse tipo de relação e a prefeitura se tornou uma esfera de concorrência entre dois grupos cuja origem remonta ao regime autoritário iniciado em 1964: de um lado, um grupo político cujo ingresso nos postos do Estado ocorreu em aliança com os que estavam no comando do Estado; de outro, um grupo que neste mesmo período estava na oposição e que inicia a ocupação nas instâncias administrativas e estatais no início dos anos 2000. Sem dúvida, isso constitui uma das condições principais para a compreensão do que levou o executivo municipal a mudar sua posição em relação à gestão anterior, de Edvaldo Nogueira, de investir na obra e na crescente construção do risco dos efeitos da maré.

Desse modo, o embate em torno do “avanço da maré” constitui um catalisador do confronto entre esses dois grupos com base na utilização das duas esferas estatais que estavam sob seu domínio. Todavia, tal conflito traz à tona outro ator estatal e a mobilização de uma arena distinta: o judiciário. Quanto a isto, constitui um importante achado desta pesquisa o papel da arena judicial na resolução dos conflitos entre diferentes setores da administração do Estado: a esfera municipal e estadual. Também no que diz respeito aos conflitos político-partidários que envolvem as disputas e competição entre diferentes níveis administrativos, salienta-se o fato de que é a arena judicial que se coloca como a esfera decisiva para a resolução desse tipo de conflito. Tal como já observamos em outro estudo (Oliveira, 2013), a utilização de vínculos e recursos judiciais se tornou central na dinâmica de formulação e de execução da política de defesa litorânea do Treze de Julho. Isso comprova que os atores judiciais passaram a ocupar uma posição destacada na formulação de políticas públicas. Todavia, pode-se dizer que o uso de recursos e da arena judicial está estreitamente ligado ao grau de conflito e de disputa entre as diferentes instâncias do Estado conforme sua vinculação com os diferentes grupos políticos em oposição e concorrência.

Tal investigação evidenciou que é preciso considerar o grau de oposição ou aliança entre os grupos envolvidos na formulação das políticas públicas, suas formas de controle das instâncias estatais e seus vínculos com os atores judiciais para melhor dar conta do papel e lugar da judicialização nos processos de execução das políticas públicas. Tais dimensões e suas diferentes for- mas de combinação constituem aspectos importantes para uma melhor compreensão das relações entre sociedade e Estado nas dinâmicas de implementação de políticas públicas.

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