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AGENDA 2030-ONU COMO ATO DE LINGUAGEM NEOLIBERAL: EDUCAÇÃO DE QUALIDADE E DESIGUALDADES SOCIAIS
2030-UN AGENDA AS A NEOLIBERAL LANGUAGE ACT: QUALITY EDUCATION AND SOCIAL INEQUALITIES
AGENDA 2030-ONU COMO LEY LINGÜÍSTICA NEOLIBERAL: EDUCACIÓN DE CALIDAD Y DESIGUALDADES SOCIALES
Linguagens, Educação e Sociedade, vol. 27, núm. 54, pp. 326-348, 2023
Universidade Federal do Piauí

Linguagens, Educação e Sociedade
Universidade Federal do Piauí, Brasil
ISSN: 1518-0743
ISSN-e: 2526-8449
Periodicidade: Trimestral
vol. 27, núm. 54, 2023

Recepção: 25 Março 2023

Aprovação: 30 Maio 2023

Resumo: O objetivo do estudo foi apresentar aspectos indiciários de que a Agenda 2030-ONU principalmente em seu Objetivo 4, que trata da Educação de Qualidade, está envolvida em valores e princípios neoliberais. É uma pesquisa qualitativa, de natureza básica, que fez uso da análise de discurso sobre o corpus, destacando-se a análise do conceito de qualidade como um dos objetivos da Agenda 2030-ONU. No artigo se trabalhou a partir das contribuições de Bauman (2015), com suas colocações sobre as desigualdades sociais e Bourdieu (1998, 2001), e os efeitos negativos relacionados à ofensiva neoliberal. Cita-se ainda, entre outros autores, Silva (2015, 2020) e Charlot (2013) no que se refere a uma melhor compreensão dos do neoliberalismo na educação pública, que tem em comum a discussão do conceito de qualidade na educação, enquanto o primeiro refere a qualidade total como neoliberal, o segundo altermundialista apresenta o conceito de qualidade não necessariamente neoliberalista. Baseando-se na fundamentação e posterior discussão, concluiu-se que o conceito de Educação de Qualidade contido na Agenda 2030-ONU é de natureza neoliberal, pretendendo formar empreendedores individuais ao enfatizar a matemática, engenharia e o conhecimento aplicado, incitando a concorrência e mais desigualdade entre as pessoas.

Palavras-chave: Neoliberalismo, Desigualdade social, Agenda 2030-ONU, Educação de Qualidade.

Abstract: The objective of the study was to present evidence that the 2030-ONU Agenda, mainly in its Objective 4, which deals with Quality Education, may be involved in neoliberal values and principles. It is a qualitative research, of a basic nature, which made use of discourse analysis on the corpus, highlighting the analysis of the concept of quality as one of the objectives of the 2030-UN Agenda. The chapter-article was based on the contributions of Bauman (2015) and Bourdieu (1998, 2001), allying with the appropriation of categories of social inequality caused by the effects of neoliberal discourse. It is also cited, among other authors, Silva (2015, 2020) and Charlot (2013) with regard to a better understanding of the neoliberal effects on public education. Based on the reasoning and subsequent discussion, it was concluded that the concept of Quality Education contained in the 2030-UN Agenda is of a neoliberal nature, intending to train individual entrepreneurs by emphasizing mathematics, engineering and applied knowledge, inciting competition and more inequality between people.

Keywords: Neoliberalism, Social inequality, Agenda 2030-UM, Quality Education.

Resumen: El objetivo del estudio fue presentar evidencias de que la Agenda 2030-ONU, principalmente en su Objetivo 4, que trata de la Educación de Calidad, puede estar involucrada en valores y principios neoliberales. Se trata de una investigación cualitativa, de carácter básico, que hizo uso del análisis del discurso sobre el corpus, destacando el análisis del concepto de calidad como uno de los objetivos de la Agenda 2030-ONU. El capítulo-artículo se basó en los aportes de Bauman (2015) y Bourdieu (1998, 2001), aliándose con la apropiación de categorías de desigualdad social provocadas por los efectos del discurso neoliberal. También se cita, entre otros autores, a Silva (2015, 2020) y Charlot (2013) con respecto a una mejor comprensión de los efectos neoliberales en la educación pública. Con base en el razonamiento y la discusión posterior, se concluyó que el concepto de Educación de Calidad contenido en la Agenda 2030-ONU es de carácter neoliberal, pretendiendo formar emprendedores individuales enfatizando las matemáticas, la ingeniería y el conocimiento aplicado, incitando a la competencia y más desigualdad entre gente.

Palabras clave: Neoliberalismo, Desigualdad social, Agenda 2030-ONU, Educación de Calidad.

INTRODUÇÃO

O assalto neoliberal do cotidiano das práticas escolares tem, cada vez mais, buscado se estabelecer como ideologia dominante. Intencionando ser a única forma de oferecer respostas aos mais diversos problemas sociais, portanto educacionais, o neoliberalismo se introjeta nas políticas internacionais, aparecendo como humanista sob um ponto de vista globalizante. Nesse sentido, acredita-se que a Agenda 2030-ONU, com sua noção de Educação de Qualidade, pode ser uma dessas metanarrativas. No objetivo de verificar o modo como isso se exerce a partir de seu discurso, nossa orientação se deu pelo seguinte problema: há indícios de que a Agenda 2030-ONU, principalmente em seu Objetivo 4, o qual trata de Educação de Qualidade, possa estar envolvida em valores e princípios neoliberais?

No objetivo de desenvolver tal questão, fez-se uso das contribuições de alguns autores, considerados, no presente artigo, basilares na análise pretendida. Metodologicamente, o trabalho se alicerçou na análise de discurso, pensando no discurso como totalidade de um ato de linguagem específico, conforme afirmado por Charaudeau (2016). Desse modo, cita-se Bauman (2015) e alguns aspectos da análise do autor sobre as desigualdades sociais e sua naturalização como forma de perpetuar situações consideras injustas. Bem como, empresta-se de Bourdieu (1998, 2001) certas ideias mais contundentes em relação à crítica que o autor direciona ao imperialismo neoliberal, e também, as importantes reflexões tecidas por Sacristán (2015, 2013) ao discurso utilitarista, que desde o século XIX, só vem intensificando seus efeitos. Por fim, tem-se Charlot (2013) e suas colocações sobre a ideia de que a Educação de Qualidade é fruto da produção educacional criada pela OCDE, que, por sua vez, é uma instituição ligada a políticas neoliberais; e os estudos feitos por Silva (2015, 2020), voltados a uma melhor compreensão do funcionamento do neoliberalismo educacional na produção de mais desigualdades sociais.

O estudo está dividido em três partes. Primeiramente, buscou-se esclarecer o ponto de vista acerca do conceito de Educação de Qualidade, tendo como base argumentos de autores. Em um segundo momento, foi estabelecido como o texto abordaria a materialidade do estudo. Em terceiro, focalizou-se a análise circunscrita ao corpus elegido – a agenda 2030-ONU e sua ideia de educação de qualidade.

Agradeço o apoio da CAPES na realização desse estudo. Ressalta-se ainda, que essa pesquisa é um recorte de uma Tese, produzida no interior do Grupo de Pesquisa Criança na Mídia: núcleo de estudos em comunicação, educação e cultura, da Universidade Feevale/RS.

O SIGNIFICADO DE EDUCAÇÃO DE QUALIDADE NA AGENDA 2030-ONU

A educação é uma via de mão dupla. Por sua ação, reproduz e produz processos formativos, apresentando aos jovens e crianças o mundo da cultura intermediado por uma certa configuração curricular. Em relação a esse processo, Sacristán (2015) efetua a seguinte indagação: “o que priorizar na educação?”; e faz lembrar que a educação pode ser desenvolvida por diversas narrativas, “contudo, em um nível mais concreto, temos de esclarecer o que buscamos, o que fazemos quando educamos.”. (SACRISTÁN, 2015, p. 17). Conforme a interpretação desse problema, o sentido de educar pode tomar diversas direções, sendo um objeto que aparentemente surge como algo benéfico e a princípio humanizador, democrático e solidário, mas pode orientar o processo educacional em horizontes com menos educação, coletividade, solidariedade, humanização e pluralidade, e paralelamente, para mais competitividade, individualismo, sofrimento e violência simbólica ou material.

Hoje o pensamento e as práticas conservadoras empregam roupagens teóricas ou científicas para empreender contrarreformas que querem refazer a história da sua forma, contando-a de outra maneira. Esquecem seu passado, reconstroem-no e, sem qualquer vergonha, nos anunciam um futuro explendoroso. (SACRISTÁN, 2015, p. 16).

Sabe-se que o pensamento tecnicista/utilitarista pressuposto pela educação mercadológica, se globaliza de forma acelerada por vias de políticas de cunho universalista; ou, para usar uma ideia bourdieusiana, o imperialismo do universal. O que Sacristán (2015) aponta acima pode ser aplicado a esse modo de analisar o que se entende por educação nos dias atuais; como será abordado adiante, afirma-se que há narrativas autodenominadas universais e desenvolvimentistas, sob o manto da teorização científica e democrática (SACRISTÁN, 2015). Tal roupagem teórica apresenta um futuro esplendoroso de progresso e novidade. A educação de qualidade é uma chave-mestra, pois consegue treinar uma massa de indivíduos para suprir as necessidades de determinados princípios, categorias e teorização discursiva da classe hegemônica, em termos de currículo escolar.

Como se sabe, os sujeitos convivem em uma sociedade preponderantemente capitalista (BAUMAN, 2013; BOURDIEU, 1998; SILVA, 2013), na qual se encontra ativa e dinâmica uma lógica neoliberal. Partindo dessa afirmação, reflete-se que há em seu escopo uma forma de praticar educação convergente com seus pressupostos. Uma das organizações internacionais envolvida com questões econômicas e encarregada de produzir materiais educativos – incluindo currículo e a instituição de uma determinada identidade de sujeito –, e cuja afinidade com a economia de mercado é sua finalidade principal, é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Sobre essa organização e seus efeitos na concepção educacional hegemônica, o pesquisador francês Bernard Charlot coloca,

Na área da educação, o lugar mais importante para os países ricos é a OCDE. É o thinking tank, como dizem os norte-mericanos, isto é, o reservatório para ideias. Saíram da OCDE a “reforma da matemática moderna”, a ideia e a própria expressão de “qualidade da educação”, a ideia de “economia do saber”, a de “formação ao longo de toda vida”. A OCDE é o centro do pensamento neoliberal no que tange à educação. Não é de admirar quando se sabe que ela foi explicitamente criada para promover a economia de mercado. (CHARLOT, 2013, p. 52).

Como é possível notar, o autor parece voltar para alguns princípios básicos, os quais integram o ideário da educação contida nas propostas neoliberais. Sendo assim, não se deixa de observar que o conceito de Educação de Qualidade está relacionado diretamente com uma política pedagógica hegemônica, que facilmente pode ser aliada ao mercado. Pois, segundo Sacristán, “o mercado se apresenta como o mecanismo regulador da educação de qualidade.”. (SACRISTÁN, 2015, p. 16, grifo nosso). Para além da percepção de que essa educação de qualidade possa ser compreendida como educação integral, inclusiva, é posta pelo autor como uma noção empresarial utilitarista, de conhecimentos técnicos das matemáticas, engenharias, e linguagens comerciais, em detrimento “[...] das humanidades, a cultura clássica, e as ciências sociais” (SACRISTÁN, 2013, p. 33); assim, o autor não pauta a diferenciação entre educação de qualidade, e qualidade da educação; faz com que também seja relevante ressaltar o conceito de formação ao longo da vida. Segundo Sacristán (2015, p.16), “a ideologia da obsessão pela eficácia mensurável está desgastando a credibilidade do pensamento que especula, critica e descobre”, nesse contexto “O conceito de competência é recuperado e o de formação é enfraquecido para se fazer referência aos ‘benefícios’ pessoais que tem o sujeito educado” (SACRISTÁN, 2015, p. 16).

A pressão do sistema de produção sobre o escolar representa hoje, na prática, a utilidade seletiva do que lhe mais importa como requisito do lema progressista da necessidade de a escola nos preparar para a vida. (SACRISTÁN, 2013, p. 33). Sendo assim, preparar para ou ao longo da vida, é sinônimo de contínuo treinamento técnico, no sentido de fazer operar um sistema econômico burocrático. Isso pois, nesse mundo pragmático e produtivo, o saber não é válido por poder formar as pessoas, mas na medida em que ajuda a produzir coisas e a controlar processos naturais e sociais.”. (SACRISTÁN, 2013, p. 32). A ideologia de validade da ciência na educação originou-se em meados do século XIX, e se consolidou no século XX. Nisso, não seria permitido saber por saber, mas somente saber para aplicar ou produzir algo.

Corroborando com as ideias de Sacristán (2013), Bourdieu (1998) ressalta que a revolução conservadora surge com uma roupagem teórica e científica como forma de ação. Isto é, há um conhecimento bem-organizado que se busca universalizar, objetivando a reivindicação do neoliberalismo. (BOURDIEU, 1998). Verifica-se que o neoliberalismo pode ser entendido como um conjunto de receitas e de programas econômicos oriundo dos anos 1970, estruturado em oposição ao Estado social. (THERBORN, 2012). E mais: o neoliberalismo ambicionava fazer com que o Estado interviesse o mínimo possível na economia, deixando o mercado agir livremente. (SILVA, 2015). Em relação ao neoconservadorismo, diz respeito aos grupos que buscam reafirmar antigos e tradicionais valores da família e a moralidade; o autor fala de um “moralismo e repressão cultural” como obstáculo “ao espaço público de discussão e exercício da democracia” pela “repressão, controle e contenção.”. (SILVA, 2015, p. 26). Conjugado com a retirada do Estado social, as consequências são previsíveis, como a intensificação das desigualdades já existentes. (SILVA, 2015; BOURDIEU, 1998).

Os problemas enfrentados no cotidiano escolar por professores e estudantes, jamais são pensados fora de questões referentes a melhor administração, ou organização das práticas pedagógicas e recursos gerais. A melhor distribuição dos recursos materiais e simbólicos não são cogitados, pois entraria no campo da política e desigualdades; nesse caso, tal distribuição é suprimida para fazer emergir e permanecer as soluções políticas transformadas em técnicas para solucionar os problemas do ensino/aprendizagem. Segundo Silva (2015), esse é o contexto da aparição da qualidade na educação, como respostas técnicas para problemas de políticas sociais. Como essas políticas econômicas, no campo da educação, são impostas/ou negociadas pelas organizações internacionais, elas acabam apresentadas como sendo a melhor solução para a problemática na educação, encaminhando-se a autoridade de uma narrativa baseada na razão. Os mais distintos argumentos são colocados, como ineficiência, métodos e currículos ultrapassados, mas sabe-se, como ressaltou Charlot (2013), que a OCDE está preocupada com uma educação mercadológica. Assim também apontado por Bauman (2015, p.11),

Nas duas décadas que precederam o início da última crise financeira, na grande massa das nações da OCDE, a renda doméstica real dos 10% que estão no topo da escala social cresceu muito mais depressa que a renda dos 10% mais pobres, e a renda real daqueles situados na parte mais baixa da escala na verdade caiu. Por conseguinte, ampliaram-se de maneira radical as disparidades de renda.

Tudo indica que não há motivos para que a OCDE crie algo que seja de interesse daqueles que estão abaixo da escala. Diz Bauman (2015, p. 10): “o abismo crescente que separa os pobres e os sem perspectivas de abastados, otimistas, autoconfiantes e exuberantes [...] é uma razão óbvia para ficarmos gravemente preocupados.”. Percebe-se que a Educação de Qualidade contido na Agenda 2030 estar a serviço de interesses particulares do mercado financeiro; como argumenta Bauman (2015), se os países da OCDE são sempre os mais beneficiados e o conceito de educação de qualidade surge do interior dessa instituição, o discurso não pode ser relacionado a algo de outra natureza.

De acordo com Bourdieu (1998), o mercado internacional do capital financeiro, em uma escala de relações de poder decrescente, tende a reduzir a autonomia dos Estados-nacionais sobre a manipulação de taxas de câmbios e juros, fazendo com que, cada vez mais, as questões sejam resolvidas a partir de instâncias em que participam reduzidos grupos de países. Dessa maneira, como pensar Educação de Qualidade para todos e todas as pessoas, se este é um conceito inventado no contexto de grupos dominantes do capital financeiro e de laboratórios de ideias, organizados em termos de políticas sociais universalizantes? Será que podemos é viável pensar o conceito de Educação de Qualidade, produzido na Agenda 2030-ONU, como envolvido nesses processos financeiros globalizantes?

Segundo Silva (2015, p.20), “a qualidade já existe – qualidade de vida, qualidade de educação, qualidade de saúde. Mas apenas para alguns.”. O autor entende o conceito de qualidade como elemento relacional e sinônimo de riqueza. Com efeito, uma boa qualidade seria oferecida para alguns poucos, e pouca ou má qualidade para a maioria. Como ressaltado por Silva (2015), esse problema se resolveria na seguinte equação: qualidade na escola privada é redundância enquanto na escola pública é “inócua”, caso não ocorra modificações significativas na estrutura e consequentes distribuições de recursos – entendidos aqui como recursos materiais e simbólicos. Essa interpretação auxilia na compreensão do porquê existe falácia na formação do conceito de qualidade em certos discursos universalizantes, assinalando que o discurso é apreendido segundo categoria sugerida por Charaudeau (2016, p.33): “totalidade de um ato de linguagem particular”. Nesse âmbito, ainda coloca Silva (2015, p.20, grifo nosso),

As escolas públicas não estão no estado em que estão simplesmente porque gerenciam mal seus recursos ou porque seus métodos ou currículos são inadequados. Elas não têm os recursos que deveriam ter porque a população a que servem está colocada numa posição subordinada em relação às relações dominantes de poder (SILVA, 2015, p. 20, grifo nosso).

Ora, se é assim, buscar resolver os supostos problemas da educação versando sobre a importância de mais qualidade, não seria mais do que um remédio paliativo no que se refere ao apaziguar de eventuais reinvindicações acerca da melhor repartição dos bens socialmente produzidos. A retórica de mais qualidade na educação da maioria da população, nesses termos, seria contraditória, caso fosse possível aumentar as gotas de cultura geral nos repertórios do capital cultural de indivíduos da classe popular.

Considerando que as grandes políticas oriundas dos laboratórios internacionais não passam de formas bem-acabadas para veicular ideologias dominantes, quando se trata de educação de qualidade, é mesmo sinônimo de mais educação para o avanço das economias, dos países produtores dos discursos de tais políticas. Talvez, o que Bourdieu (1998) sugere ao discorrer sobre os abusos do poder, metamorfoseado na razão, ajuda a na interpretação da complexidade desse descalabro social com a educação pública. Nos argumentos do autor, “o raciocínio científico, o dos modelos matemáticos que inspiram a política do FMI ou do Banco Mundial, [...] grandes multinacionais jurídicas que impõem as tradições do direito americano ao planeta inteiro, o das teorias da ação”. (BOURDIEU, 1998, p.30). E continua: “esse racionalismo é ao mesmo tempo a expressão e a caução de uma arrogância ocidental.”. (BOURDIEU, 1998, p. 30). Acredita-se que esse ponto de vista não passa pela tangente do que se tem dito sobre o papel da OCDE no que diz respeito à educação. Juntas, essas instituições, a partir de suas produções, buscam impregnar o que Bourdieu (2001) nomeia de “mentalidade calculadora”. Assim, na análise do autor,

[...] a sociedade americana sem dúvida levou a seu limite extremo o desenvolvimento e a generalização do “espírito do capitalismo”, [...] A mentalidade calculadora impregna sem exceção toda a vida e todos os domínios da prática e está presente nas instituições [...] e nas trocas cotidianas (BOURDIEU, 2001, p. 32, grifo nosso).

Segundo essas narrativas econômicas, a ideia de desenvolvimento está diretamente atrelada ao que Bourdieu designa de “espírito do capitalismo”, expressão já utilizada por Max Weber, em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo. E assim, percebe-se, em uma mesma linha discursiva, os conceitos de Educação de qualidade e desenvolvimento conjugados em favor de um senso comum – o monetário. É o caso, por exemplo, da Agenda 2030 estruturada pelas Organizações das Nações Unidas enquanto requisito básico para um suposto progresso e desenvolvimento sustentável, tendo como pressuposto a educação de qualidade como um de seus objetivos. Diante do contexto sugerido, caberia questionar: sustentável para quem? Que significado tem esse signo: qualidade, na educação promovida por tal narrativa globalizante? Bauman (2015) ou Bourdieu (2001, 1998) porventura responderiam que, para aqueles que estão mais bem posicionados na pirâmide social, esta seria apenas uma forma de adentrar no pensamento do senso comum pela cultura escolar.

Ainda, conforme os argumentos de Bourdieu (1998), ao analisar os efeitos perversos do mal-uso da razão em prol de abuso de poder, ele ressalta que tal abuso promove o monopólio de uma racionalidade violenta, que se legitima como suposta justiça universal. Alicerçando-se nisso, seria possível afirmar que os irracionalismos advindos de misérias materiais e simbólicas se devem a um imperialismo arbitrário? Nas palavras de Bourdieu (1998), “a coerção econômica se disfarça muitas vezes de razões jurídicas. O imperialismo se vale da legitimidade das instâncias internacionais.”. (BOURDIEU, 1998, p. 31, grifo nosso). A Agenda 2030-ONU, especificamente seu Objetivo4, poderia ser enquadrada nesse raciocínio? Ou estaria a serviço da Mãe-Terra em um texto neutro que serviria para todos os contextos, e tão-somente bastaria implementá-la, conforme as localidades?

Nesse sentido, se ressalta a importância do que Bauman (2015) diz ao escrever sobre a “crença da desigualdade natural”. De certa forma, o que está em jogo são as relações de poder envolvidas em discursos potencialmente promotores de desigualdade social. O que parece controverso, e ao mesmo tempo contundente, é a capacidade que os sujeitos têm de conviver com violências provocadas pelas desigualdades de toda sorte, e como são encontrados meios de naturalizá-las, gerando, inclusive, conivência, o que amplia e aprofunda seus efeitos. Nas palavras de Bauman (2015, p.76),

Nós fomos educados e treinados a acreditar que o bem-estar da multidão é mais bem promovido zelando, lustrando, esmerando, apoiando e recompensando as capacidades da minoria. Capacidades, acreditamos nós, são por natureza desigualmente distribuídas; por isso, algumas pessoas estão predispostas a realizar o que outras jamais poderiam alcançar, por mais esforço que faça.

É necessário conjeturar o estrago que podem causar essas crenças no que toca as ações de resistência, as quais podem ser destruídas pelo peso das demandas de um mercado financeiro dominado por um pequeno grupo que incita a concorrência, a individualidade e a neutralidade. A naturalização do direito de uns em detrimento de outros, aponta para o que se pode nominar como darwinismo social. Conforme Bourdieu (1998, p.58), “[...] a força da ideologia neoliberal se apoia em uma espécie de neodarwinismo social: são ‘os melhores e os mais brilhantes’, como se diz em Harvard, que triunfam.”.

A imposição do neoliberalismo e o culto do vencedor, e num plano individual, do empreendedor de si mesmo, provoca a piora acentuada da noção de coisa pública mediante a retirada do Estado social. Portanto, a ideologia mercadológica dos ganhos particulares exaltaria o processo do neodarwinismo moral: “[...] o culto do vencedor [...] formado em matemáticas superiores e nos ‘chutes’ sem rigor, instaura a luta de todos contra todos e o cinismo como norma de todas as práticas.”. (BOURDIEU, 1998, p. 145, grifo nosso). Essa situação inclui a “nova ordem moral” (BOURDIEU, 1998, p. 145), relativa ao que se significa como pretensão “[...] a unificação do campo econômico mundial ou a extensão desse campo na escala do mundo.”. (BOURDIEU, 2001, p. 100). Acrescenta-se que na veiculação do texto-discurso, se infere um pretenso interesse de todos e todas, e um senso de necessidade por ser algo perpetuado como positivo para o desenvolvimento e progresso da economia.

As observações aferidas no estudo que Bauman (2015) apontam que, referente a naturalização das desigualdades, o poder discursivo de convencimento acaba resultando em uma convivência com a normalidade da injustiça, colocando a justiça em segundo plano. Isso ocorre porque os indivíduos estariam mais próximos de situações particulares de justiça, e mais acostumados com injustiças. Esse pensamento está entrelaçado com a ideia de “capacidade inata” (p. 76), na qual, através de uma presumível pirâmide social, se afirmaria um arranjo natural de que as coisas são o que são, com alguns poucos podendo atingir níveis mais elevados do que outros devido às suas capacidades.

Mas como Bauman (2015) ressalta, vários aspectos desse pensamento mudaram. Na contemporaneidade, não se tem mais como referência a comparação, a nível de avaliação, para saber se uma determinada situação é, ou não, injusta, sendo que “qualquer forma de vida, não importa quão distante no espaço ou no tempo nem quão exótica, pode em princípio ser escolhida como ponto de referência para fins de comparação com a sua própria e como medida para sua avaliação.” (BAUMAN, 2015, p. 80). Isto é, o reconhecimento de injustiças passou a ser uma questão localizada e subjetiva, ou desregulamentada, retirando, então, o teor normativo da naturalidade para efeito de saber quando uma questão transgrede as “convenções”. Embora se reconheça que as desigualdades são produzidas socialmente, parece que unificar-se contra suas consequências não é uma questão de primeira ordem, fazendo que as desigualdades se manifestem por “[...] outros argumentos aos quais confiar a defesa de sua legitimidade.” (BAUMAN, 2015, p. 82-83). Dessa maneira, segundo o autor, a desigualdade social ganhou uma capacidade de autoperpetuar.

Em busca de se desenvolver e se impor na ordem da cultura por meio de seus textos discursivos, pensa-se que o conceito de Educação de Qualidade, na conjuntura da Agenda 2030, possivelmente integra esse jogo de massificação. Por isso, a importância de os trabalhadores culturais colocarem seus questionamentos acerca de qual sujeito se pretende formar nas práticas do cotidiano escolar. Segundo Silva (2020), com qual sociedade há o comprometimento de colaborar?

De acordo com esse autor, o currículo escolar está diretamente envolvido em questões de poder, saber e identidade. Se houver a concordância de que a Agenda 2030-ONU, em seu Objetivo 4, representa um ideal de educação, e por conseguinte, carrega consigo uma noção de currículo, será possível apreender que em seu conceito de currículo está, também, o propósito de transmitir intenções e noções do que venha a ser o saber legítimo – organizado e decidido por uma determinada seleção, e ambicionando a formação de uma determinada identidade de sujeito. Como alerta Bauman (2015): que as escolhas feitas não sejam aquelas que depõem “[...] contra a dissensão e a resistência” (BAUMAN, 2015, p. 76), diante das desigualdades sociais.

EDUCAÇÃO DE QUALIDADE NA AGENDA 2030-ONU, COMO ATO DE LINGUAGEM NEOLIBERAL

No dia 01 de janeiro de 2016, foi divulgada a Agenda 2030 – orientada pela Organização das Nações Unidas. Em sua configuração juntaram-se autoridades de 193 países, que decidiram sobre a prática de 17 objetivos e suas 169 metas, considerados como pré-requisitos ao que nomearam de Desenvolvimento Sustentável. De acordo com os interesses da presente análise, o enfoque se volta ao Objetivo 4 em particular, intitulado Educação de Qualidade e cujo objetivo se designaria por .assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos.”. (ONU, 2015, grifo nosso). Esse objetivo é composto por 10 metas, e a partir delas, foi realizado um recorte no qual se pretende recuperar o discurso contido em 5 (cinco) metas, tratadas aqui como “totalidade de um ato de linguagem particular.” (CHARAUDEAU, 2016). A seleção das metas 4.2, 4.3, 4.4, 4.6, e 4.c se deu mediante a compreensão de que suas proposições e argumentos se vinculam com o objetivo da pesquisa. Não excluímos que outras metas, inclusive a meta 4.1 estejam igualmente intencionadas à promoção do neoliberalismo, esta meta e outras foram analisadas em outros artigos, constante da tese que mencionamos anteriormente. Concluímos a meta 4.1 por exemplo, apontando que a questão crucial da educação é política e não excessivamente técnica.

Três advertências se destacam em relação a análise de um texto-discurso (ato de linguagem), pensando que “[...] a análise de um ato de linguagem não pode pretender dar conta da totalidade da intenção do sujeito comunicante” (CHARAUDEAU, 2016, p. 62). Nesse caso, o sujeito é a Agenda 2030, que representa um sujeito coletivo. Posto isto, “[...] deve-se, sim, dar conta dos possíveis interpretativos que surgem (ou se cristalizam) no ponto de encontro dos dois processos de produção e de interpretação” (CHARAUDEAU, 2016, p. 62-63), e ainda, segundo esse autor, o sujeito que analisa tem a função de coletor de pontos de vista, ao fazer uso da comparação e extrair constantes e variáveis em sua análise. E assim, segue-se a interpretação do corpus.

NEOLIBERALISMO, AGENDA 2030-ONU E EDUCAÇÃO DE QUALIDADE

De acordo com Bourdieu (1998), o imperialismo busca se legitimar por meio de instituições internacionais. Acredita-se que esse ponto de vista pode ser aplicado ao texto-discurso lastreado na Agenda 2030-ONU, de modo específico ao seu Objetivo 4, quando se trata do ideal de educação. O neoliberalismo, como ideologia dominante que tomou de assalto todas as instâncias da vida cotidiana, não poderia excluir o universo da educação, sendo este um dos elementos-chave de propagação de seus interesses. Além de que, com o seu discurso de qualidade na educação matematicamente produzido, pretende impor um utilitarismo mercadológico em detrimento das conquistas sociais – diga-se de passagem, adquiridos em combate ininterrupto. Um exemplo é o direito a escolarização pública em seus diversos níveis.

Ademais, considera-se que o discurso da Agenda 2030-ONU corrobora com o neoliberalismo, ao enfatizar o conceito empresarial de qualidade na educação (elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (CHARLOT, 2013). Segundo o mesmo autor, isso se atrela ao ideal neoliberal, e pressupõe-se, por consequência, que a noção de Educação de Qualidade proposta pela referida Agenda se utiliza dessa mesma categoria e respectivo sentido dado pela OCDE. Nisso, preocupando-se tão-somente com as demandas do mercado financeiro, o discurso de progresso e desenvolvimento incita a concorrência e a violência que essa corrida instiga, pelo que se pode caracterizar por neodarwinismo social – ou, o culto do vencedor.

É algo que se dá através de um treinamento tecnicista, matematicamente programado, para que o sujeito melhor se posicione entre os demais. Isso pode ser considerado tanto a nível de empreendedores, individualmente, quanto entre países ou Estados. Bourdieu (1998) vê esse cenário como uma luta de todos contra todos normalizada pelo cinismo. Indo além, aponta-se a Educação de Qualidade como instrumento de treinamento para esse tipo de empreendedor eficiente e matemático, tal qual proposto pela Agenda 2030-ONU em seu Objetivo 4. Nesse sentido, concorda-se com Sacristán (2015) no que ele argumenta que é o mercado que regula a educação de qualidade, bem como, impõe e exige, aprofundando mais ainda as desigualdades sociais. Abaixo, na Tabela 1, constam as metas incluídas no Objetivo 4.

Tabela 1 - Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos

4.2 Até 2030, garantir que todos as meninas e meninos tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira infância, cuidados e educação pré-escolar, de modo que eles estejam prontos para o ensino primário;

4.3 Até 2030, assegurar a igualdade de acesso para todos os homens e mulheres à educação técnica, profissional e superior de qualidade, a preços acessíveis, incluindo universidade;

4.4 Até 2030, aumentar substancialmente o número de jovens e adultos que tenham habilidades relevantes, inclusive competências técnicas e profissionais, para emprego, trabalho decente e empreendedorismo;

4.6 Até 2030, garantir que todos os jovens e uma substancial proporção dos adultos, homens e mulheres estejam alfabetizados e tenham adquirido o conhecimento básico de matemática;

4.c Até 2030, substancialmente aumentar o contingente de professores qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional para a formação de professores, nos países em desenvolvimento, especialmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento.

Fonte: ONU (2015, grifo nosso).

Conforme é possível visualizar acima, o discurso pedagógico contido no Objetivo 4 da Agenda 2030-ONU é claramente tecnicista, em uma correspondência com as ideias tecnocráticas administrativas. Inclusive, se evidencia uma concorrência entre o político e o técnico. Observando a meta 4.2, verifica-se um pragmatismo utilitarista; ao encarrilar a educação pré-escolar ao ensino primário, esquece-se que a educação infantil não é propedêutica, contudo, o ponto de vista administrativo e matemático do neoliberalismo deseja que tudo seja previsível e mensurável. Não obstante, aglutina-se o conceito de desenvolvimento com outro conceito empresarial – o de qualidade, ressaltando que a educação-ensino da primeira infância não pode ser oferecida sob uma perspectiva qualquer. Segundo Sacristán (2015), há uma obsessão pelo mensurável na educação, que acaba por deteriorar a criatividade especulativa, o descobrimento e o exercício da crítica. Assim, se o pensamento que orienta a educação das crianças for baseado nessa lógica, na Agenda 2030 não haveria outra forma de pensar a educação das crianças que não aquela que tem como referência o mercado financeiro. Como ressaltado por Silva (2015), o problema dessas meganarrativas é sua referência financista, e não as pessoas. Seria o assalto neoliberal logo na infância.

Nesse sentido, para melhor se estabilizar, todos os homens e mulheres precisariam ter uma formação, ou seja, treinamento, tendo como base o técnico, qualidade e preço acessível. Esse discurso está contido na meta 4.3, denunciando a incitação mercadológica da educação. Interpreta-se que o neoliberalismo, ao afastar o Estado social, intenciona que a educação seja eficiente em produzir técnicos com a qualidade que as empresas exigem. Certamente, em um técnico que tem que gastar seu próprio dinheiro para receber as habilidades e competências como empreendedor de si mesmo, constata-se um impulso ao individualismo. A corrida para ser o melhor e mais brilhante (BOURDIEU, 1998), com um currículo competitivo e merecedor de todos os créditos e privilégios, é a ideologia preponderante desse tipo de narrativa.

Se não fosse essa a intenção, não haveria motivo para discorrer sobre o discurso de Educação de Qualidade, pois, segundo Silva (2015), essa qualidade já existe. O que precisa ficar evidente é que a população frequentadora da escola pública está posicionada em níveis hierarquicamente inferiores no que se refere às relações de poder. Com isso, se chega num contexto já produzido de antemão para a submissão, e regulado no intuito de manter controle e o status quo.

Ainda, de acordo com Silva (2015), o conceito de qualidade é relacional se conecta com a ideia de riqueza. Nisso, tem-se melhor qualidade para o ensino das classes já privilegiadas, enquanto a maioria dos indivíduos fica à mercê da pouca qualidade. É um quadro que permanece inamovível, caso não ocorram profundas modificações estruturais, principalmente, na distribuição material e cultural. Não é algo que acontecerá facilmente, dado que a ideia de qualidade na educação advém da OCDE, a qual, se percebe, estaria mais preocupada com questões de desenvolvimento das economias que compõem sua organização. E, acrescenta-se, segundo Bauman (2015), nas duas décadas que anteciparam a última crise econômica, os países mais ricos membros da OCDE aumentaram em 10% seus lucros, ao passo em que os demais países menos favorecidos, decresceram proporcionalmente suas receitas ou ficaram bem abaixo dessa proporcionalidade.

Já a meta 4.4 não deixa dúvidas em suas pretensões de treinar empreendedores individuais, interligando-se ao culto do vencedor (BOURDIEU, 1998), com altas habilidades técnicas e pronto para competir com outros empreendedores. Quanto a isso, é ressaltada a importância do livre mercado e menos Estado social – esses formados, de acordo com suas condições financeiras (ver. meta 4.3), não precisariam frequentar o que hoje é designado de escola pública. Decerto, a partir dessas intenções, há um discurso forte, e louvável, na defesa da escola pública (GENTILI, MCCOWAN, 2010; COSTA, 2007), tal o perigo que corre a educação pública, conquista dos movimentos sociais; por isso, ataques brutais são desferidos sobre sua permanência e manutenção, já que o neoliberalismo é uma teoria bem organizada e politicamente contrária ao social (BAUMAN, 2015; BOURDIEU, 2001, 1998; SILVA, 2015).

Reflete-se que, possivelmente, a meta 4.6 é aquela que mais busca induzir uma crença infalível na política neoliberal. Sua preocupação com o saber matemático, disfarçado de humanismo com questões menos importante de alfabetização de jovens e adultos, seja, por sua vez, a mais importante; pois seu pensamento administrativo e técnico é o que realmente importa desenvolver no treinamento do empreendedor (ver. meta 4.4). Essa indisfarçada matematização na formação dos indivíduos empreendedores individuais se baseia no que Bourdieu (2001) nomeou de “mentalidade calculadora” devidamente interessada na formação de concorrentes (BOURDIEU, 1998). O significado desse treinamento em matemática se deveria a sua relevância para o desenvolvimento do espírito capitalista, no qual a concorrência, o individualismo e o lucro são visados a todo custo, beneficiando, então, quem pode pagar pelos melhores pacotes de habilidades e competências no mercado financeiro/educacional.

Segundo Charlot (2013), a reforma da matemática moderna foi um dos empreendimentos importantes oriundos da OCDE; como já foi ressaltado, e conforme esse autor, tal instituição também está envolvida no desenvolvimento neoliberal da educação. Por isso os questionamentos no que toca ao interesse pela matemática em detrimento das ciências sociais e humanas – as quais, sabemos da importância fundamental na formação do sujeito crítico e cidadão. Nessa teorização pragmática utilitarista, segundo Sacristán (2013), é recuperado o conceito de competência, enquanto que a ideia de formação é deslocada para compor a formação por competências, ou conformação, visto que a relevância maior estaria nos conhecimentos aplicados, nas línguas modernas (o inglês, por exemplo), e nas matemáticas. Para as humanidades, o foco se restringiria nas ciências sociais e cultura clássica.

A partir desse conhecimento técnico e aplicado, pretende-se formar professores que possam levar adiante o discurso formador de outros técnicos pela educação de qualidade. Novamente, se impõe a lógica de todos contra todos, ao externar a importância de mais qualidade na educação dos sujeitos provenientes de países em desenvolvimento. A referência pode ser observada em torno da economia dos países membros da OCDE, e assim, aqueles países ainda por desenvolver-se até introjetar o espírito capitalista, precisa investir em mão de obra técnico/profissional. Dessa forma, se considera o que Bourdieu (2001, 1998) aponta como a busca neoliberal por se globalizar-se. Tal como as escolas públicas e o atendimento de sua população, o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao entendimento de “países em desenvolvimento, os países menos desenvolvidos, pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países africanos” (ONU, 2015) como mantidos sob subordinação, e por isso, não têm os recursos que supostamente necessitam.

O treinamento técnico de profissionais nesses países mantidos em subordinação, que está bem próximo daquilo que Bourdieu (1998) argumenta como “coerção econômica”, vincula-se aos experts (especialistas em treinar habilidades e competências). Eles estariam apoiados pelas instituições internacionais por serem os sujeitos que sabem das soluções, as quais são continuamente baseadas em respostas técnicas. Mediante essa colocação, entende-se que a problemática envolvida é muito mais de fundo político do que de gerenciamento eficaz de recursos. Se a mão de obra precisa ter qualidade pela formação de professores de qualidade, então a educação de qualidade promovida pelo mercado é a referência desse treinamento. Ou seja, “o mercado se apresenta como o mecanismo regulador da educação de qualidade.” (SACRISTÁN, 2015, p. 16, grifo nosso).

Avaliando os efeitos dessa ideologia dominante no cotidiano, Bourdieu (2001, 1998) convida ao enfrentamento coletivo de toda e qualquer forma de violência, material e simbólica, que tem sua origem nesse imperialismo. Segundo o autor, há uma intenção de internacionalização desse pensamento como modo de vida, e por conta disso, ele deve ser combatido no mesmo nível. Todavia, as dificuldades encontradas são de natureza complexa processo de enfrentamento desse tipo de narrativa. Relembra-se que Bauman (2015) fala da naturalização das desigualdades pelos indivíduos, em razão de que, enquanto sociedade, as pessoas são educadas para se acostumar com esses cenários.

Para o autor, os sujeitos aprendem a zelar pelo direito de uma minoria privilegiada, chegando ao ponto de concordar com os privilégios no que se dá o reconhecimento da existência de capacidades inatas as quais uns poucos as possuem. Contudo, hoje, essa naturalização ocorreria por outros vieses (BAUMAN, 2015), ajudando a perpetuar as desigualdades. Se antes havia uma normalidade naturalizada que servia de referência para reconhecer situações de injustiças, na contemporaneidade, isso não ocorreria mais, se tornando uma questão subjetiva de comparação em que as fronteiras já não são tão nítidas. Isto é, ficou a critério de cada um avaliar se uma determinada situação é ou não injusta, fortalecendo o individualismo e o distanciamento do unir-se em prol do bem comum.

Nesse contexto, parece oportuna a fala de Sacristán (2015), que remete à importância da reflexão sobre os objetivos da prática da educação. Salienta-se, assim, a necessidade de não ampliar e aprofundar ainda mais as desigualdades existentes (BAUMAN,2015), bem como, não agir em contrariedade com a capacidade de dissensão e resistência. Mas, qual a compreensão que os trabalhadores culturais da escola pública estão tendo em relação ao sujeito-educando que lhes foi confiado? Nas palavras de Silva (2020, p.15),

erá a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas?

Esperamos seja aquela provocadora da dissensão e resistência solidária, contra as desigualdades sociais, como sugerem Bauman e Bourdieu. O caminho sugerido por esses autores, como desafios a serem superados, é sempre por meio de uma racionalidade que contempla as decisões coletivas, oriundas de discussões públicas; os interesses e necessidades dos grupos e indivíduos são a referência, e não as finalidades financeiras; essa questão é discutida no âmbito da educação como possibilidade de considerar as dimensões que cercam a formação do sujeito, para além de um único horizonte instrutivo. Como ressaltado por Sacristán (2013), é preciso formar o sujeito da educação para a cidadania, na cidadania; essa premissa transborda os interesses escusos do neoliberalismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito do presente artigo foi apresentar aspectos indiciários de que a Agenda 2030-ONU, principalmente em seu Objetivo 4, o qual trata de Educação de Qualidade, está envolvida em valores e princípios neoliberais. A discussão centrou-se no conceito de Educação de Qualidade, que surgiu do interior da OCDE e foi reutilizado pela Agenda 2030-ONU, segundo a interpretação aqui desenvolvida, com o mesmo significado criado pela citada organização, que, destaca-se, é orientada pelo mercado financeiro. As próprias reformas educacionais de cunho internacional são estruturadas nesse espaço reconhecido como laboratório de ideias, do qual faz parte uma minoria de países-membros.

Com isso, a narrativa de qualidade na educação (Agenda 2030-ONU) é só uma das formas do imperialismo neoliberal a se propagar, como solução técnica, administrativa e matematicamente produzida, a fim de orientar os rumos da educação dos países subordinados. É nesse contexto que se vê a produção e compartilhamento do discurso político contido na Agenda 2030. O pensamento utilitarista que busca distribuir através da formação de experts (chamados de professores) tem o aval dessas metanarrativas globalizantes, e com efeito, antecipa-se que essa forma de treinamento dos indivíduos – a qual visa muito mais o empreendedorismo –, vá ampliar e aprofundar ainda mais as desigualdades entre as pessoas. Afinal, ela ativa uma arena perigosa em que se normaliza a luta de todos contra todos, valorizando a concorrência e a busca por ser o melhor e mais privilegiado. Isso piora no que o neoliberalismo enquanto teorização e política, almeja colocar em prática o tecnicismo em detrimento das conquistas e dos movimentos sociais, expondo receitas treinadoras para se tornar um vencedor. Alicerçando-se em argumentações de autores e reflexões, entendeu-se que é nesse panorama que a Agenda 2030 está envolvida, assim como sua ideia de educação de qualidade.

Alega-se que essa pesquisa faz parte de um desenvolvimento mais amplo de estudo. O objetivo, visando pesquisas futuras, é expandir tal análise, pautando-se na crença da necessidade da reflexão e do estudo sério dessas narrativas, que através de uma roupagem teórica preocupada com questões humanitárias, acabam por produzir e distribuir formas autoritárias. Assim, a intenção é dar continuidade à pesquisa acerca das relações de poder entre neoliberalismo, Agenda 2030-ONU, e educação de qualidade. Sugere-se que educadores façam o mesmo por meio da produção de um material de base crítica, que favoreça a ampliação e entendimento desses discursos globalizantes, os quais, sem serem neutros e puramente técnicos, são políticos. Por fim, conclui-se que não é preciso ambicionar necessariamente o crescimento econômico, mas, pensar na distribuição igualitária dos recursos materiais e simbólicos, ressaltando, nisso, o desenvolvimento social.

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