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Recepção: 19 Janeiro 2023
Aprovação: 23 Março 2023
Publicado: 24 Março 2023
Resumo: Este estudo investiga o ensino de crianças público-alvo da Educação Especial na Educação Infantil. Tem como objetivo compreender e analisar como as pedagogas concebem as crianças com deficiência e viabilizam suas práticas educativas. A pesquisa fundamenta-se teórico e metodologicamente na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, em especial, nas elaborações de Lev Semionovitch Vigotski sobre a constituição social do desenvolvimento humano e suas proposições sobre as condições de possibilidades de desenvolvimento de crianças com deficiência. Ancora-se no método histórico-dialético e nos estudos biográficos ao trazer a narrativa como instância simbólica da linguagem. A construção dos dados foi realizada em uma escola pública municipal de uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, durante o ano letivo de 2022, registradas por meio de entrevistas narrativas com seis pedagogas que atuam na Educação Infantil. Os resultados encontrados apontam que as significações que as pedagogas atribuem as crianças com deficiência são contraditórios, ora revelando significações prospectivas, ora revelando emoções negativas.
Palavras-chave: Educação Especial, Educação Inclusiva, Educação Infantil, Pedagogia, Narrativas.
Abstract: This study investigates the teaching of children targeted by Special Education in Early Childhood Education. It aims to understand and analyze how pedagogues conceive children with disabilities and enable their educational practices. The research is based theoretically and methodologically on the historical-cultural perspective of human development, especially on the elaborations of Lev Semionovitch Vigotski on the social constitution of human development and its propositions on the conditions of development possibilities of children with disabilities. It is anchored in the historical-dialectical method and in biographical studies by bringing narrative as a symbolic instance of language. The construction of the data was carried out in a municipal public school in a medium-sized city in the interior of the state of São Paulo, during the school year of 2022, recorded through narrative interviews with six pedagogues working in Early Childhood Education. The results indicate that the meanings that pedagogues attribute to children with disabilities are contradictory, while some point to positive feelings, others manifest negative emotions.
Keywords: Special Education, Inclusive Education, Early Childhood Education, Pedagogy, Narratives.
Resumen: Este estudio investiga la enseñanza de los niños a los que se dirige la educación especial en la educación infantil. Su objetivo es comprender y analizar cómo los pedagogos conciben a los niños con discapacidad y posibilitan sus prácticas educativas. La investigación se basa teórica y metodológicamente en la perspectiva histórico-cultural del desarrollo humano, especialmente en las elaboraciones de Lev Semionovitch Vigotski sobre la constitución social del desarrollo humano y sus propuestas sobre las condiciones de las posibilidades de desarrollo de los niños con discapacidad. Se ancla en el método histórico-dialéctico y en los estudios biográficos al traer la narrativa como una instancia simbólica del lenguaje. La construcción de los datos se llevó a cabo en una escuela pública municipal en una ciudad mediana en el interior del estado de São Paulo, durante el año escolar de 2022, grabado a través de entrevistas narrativas con seis pedagogos que trabajan en Educación Infantil. Los resultados indican que los significados que los pedagogos atribuyen a los niños con discapacidad son contradictorios, mientras que algunos apuntan a sentimientos positivos, otros manifiestan emociones negativas.
Palabras clave: Educación Especial, Educación Inclusiva, Educación de la Primera Infancia, Pedagogía, Narrativas.
INTRODUÇÃO
A escassez de estudos sobre a Educação Especial na Educação Infantil, as incertezas encontradas por pedagogas sobre o trabalho educativo a ser desenvolvido com crianças em condição de deficiência e a necessidade de ampliar as discussões sobre a escolarização dessas crianças (SOUZA, 2008; OLIVEIRA; PADILHA, 2011; OLIVEIRA, 2012; OLIVEIRA, 2017) me motivaram a realizar esta investigação.
Para tanto, me pautei em investigar o processo de escolarização de crianças público-alvo da Educação Especial. Para elucidar esse processo, o presente estudo tem como objetivo compreender e analisar como pedagogas concebem as crianças com deficiência e viabilizam suas práticas educativas na Educação Infantil.
Como supracitado, meu interesse está na compreensão do trabalho educativo com crianças em condição de deficiência na Educação Infantil. Logo, considero relevante destacar que assumo uma concepção social de deficiência, assim como uma perspectiva de educação que olhe para essas crianças considerando-as como um sujeito ativo, participativo nas práticas culturais e produtor de relações sociais, que se constitui, aprende e se desenvolve por meio de sua interação com o outro, com o meio cultural.
A Educação Infantil é parte integrante da primeira etapa da Educação Básica, sendo assegurada a todas as crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 1996). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação redimensiona a educação dessas crianças em espaços educativos formais, exigindo repensar a formação de professores, os norteadores curriculares, bem com os referenciais de qualidade.
A partir da Lei nº 9.394/96, uma série de documentos foram promulgados com o objetivo de regulamentar a Educação Infantil e subsidiar as instituições que atendem a essa etapa de ensino ‒ Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998); Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2006a); Parâmetros Básicos de Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil (BRASIL, 2006b); Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação (BRASIL, 2006c); Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009); Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010.
Assim como todas as etapas de ensino, a Educação Infantil deve seguir os princípios de uma Educação Inclusiva. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) assume como proposta que a escola deve criar meios, promover e proporcionar condições de atender à diversidade. Seus pressupostos são de que não são as crianças que devem adaptar-se às condições da escola, mas sim a escola que deve oferecer oportunidades condizentes às demandas.
Ainda que se possa observar avanços em documentos e ordenamentos legais para a escolarização de crianças com deficiência; em específico, a questão da garantia de matrícula para elas. Garantir a matrícula e a permanência da criança na escola comum não assegura que sejam disponibilizados meios, possibilidades, oportunidades reais de ensino para o processo de aprendizagem e desenvolvimento (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019; SILVA; MACHADO; SILVA, 2019).
Tal constatação me mobilizou a olhar para o processo educativo de crianças com deficiência na Educação Infantil, colocando-me à escuta de pedagogas que atuam com elas. Desse modo, questões me guiam: quais sentidos as pedagogas atribuem as crianças público-alvo da Educação Especial? Como elas viabilizam suas práticas educativas? Que emoções emanam de suas relações com essas crianças?
Para tanto, apoio-me na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 1995, 2000). O autor desenvolveu a base de seus estudos na constituição social do desenvolvimento humano. A linha argumentativa ancora-se no materialismo histórico-dialético; desse modo, suas proposições são sustentadas pela compreensão da gênese dos processos psíquicos humanos, que ocorrem em condições concretas de vida.
Vigotski se dedicou a compreender o processo de humanização do homem no entrelaçamento entre natureza e cultura. Ele aponta para um desenvolvimento cultural; entretanto, menciona que se opor a um processo biológico não quer dizer que negue ou ignore a estrutura biológica do ser humano; os processos de desenvolvimento humano não se definem apenas pelo aspecto biológico.
O social e o cultural são dois aspectos base de todo desenvolvimento humano, que é caracterizado como um processo de transformação de um ser biológico para um sujeito sociocultural. As funções da natureza da espécie não são desconsideradas na formação humana, mas sim redimensionadas na medida em que o indivíduo estabelece relações sociais, por meio da mediação de signos culturais criados no social, significando-os e internalizando-os (VIGOTSKI, 1995).
O autor deixa evidente a importância da construção de um olhar em que seja possível compreender o homem como pertencente a um meio não apenas natural, mas também cultural. Desse modo, o indivíduo vai se constituindo, sendo produtor de sua existência humana e não apenas alguém inserido no meio ambiente. Para ele, a partir do momento que se apropria de instrumentos culturais produzidos socialmente, o homem torna-se humano.
Assim, podemos entender que o caminho do desenvolvimento das funções psíquicas mediadas resulta das relações sociais, de sua interação com o meio e com o outro. Em outras palavras, o sujeito desenvolve sua singularidade pelo modo como significa as interações e os fatos estabelecidos pelo social. Essa internalização criada pelo sujeito e estabelecida pelo social determinará o homem como sujeito único, singular, pois os processos de apropriação e significação nunca serão iguais para todos os indivíduos (VIGOTSKI, 1995).
Para esta direção, Vigotski (1995) indica a importância do papel da linguagem como mediador semiótico no desenvolvimento psíquico, uma vez que, por meio dela, os conceitos tomam formatos e se organizam. Ela é considerada o principal recurso de significação cultural construído socialmente e, portanto, signo por excelência. Desse modo, este estudo apoia-se também nos estudos biográficos (PASSEGGI, 2018; SARMENTO, 2018), com foco nas narrativas das pedagogas, uma vez que, ao narrarem suas vivências, poderão refletir sobre elas e atribuir sentidos ao que foi vivenciado.
Posto isso, tomo a narrativa com esfera simbólica da linguagem e como mediadora de novas funções psíquicas. A narrativa pode ser entendida como dimensão simbólica da linguagem e constitutiva do sujeito, visto que o ato de narrar é uma atividade tipicamente humana, não inata do indivíduo, mas que vai sendo constituída ao longo de sua vida, nas interações estabelecidas com os outros, por meio de suas práticas sociais vivenciadas (FREITAS, 2019; BARBUIO, 2021).
A partir do exposto, a estrutura que compõe este estudo organiza-se da seguinte maneira. Nesta apresentação introdutória, exponho a temática, as questões que me guiam, e o objetivo a ser alcançado. A seguir, disserto sobre a perspectiva histórico-cultural, referencial teórico que baliza este estudo, com ênfase nas discussões de Vigotski sobre a criança com deficiência. Na sequência, apresento os procedimentos metodológicos e dispositivos utilizados para a produção de dados. Posteriormente, as discussões realizadas por meio das narrativas das pedagogas. Por fim, são apontadas algumas reflexões construídas ao longo do estudo, com o intuito de alcançar o objetivo proposto.
CONSIDERAÇÕES DE VIGOTSKI SOBRE A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA
Neste texto, apoio-me e interesso-me pelos pressupostos da perspectiva histórico-cultural (VIGOTSKI, 1995, 2000), pela forma como ocorre o desenvolvimento humano e os caminhos para a aprendizagem e desenvolvimento das crianças com deficiência. O autor postula “que um defeito não é apenas uma desvantagem, um déficit ou uma fraqueza, mas também uma vantagem, uma fonte de força e capacidade!” (VIGOTSKI, 1997, p. 56, tradução nossa).
Com base no princípio da natureza social do desenvolvimento humano, o autor expõe suas ideias sobre a constituição de pessoas com deficiência, focalizando e discutindo possibilidades de desenvolvimento e educação desses sujeitos. Seus estudos diante da defectologia têm como princípio central de que o desenvolvimento da criança com deficiência é norteado pelas mesmas leis gerais de todas as pessoas.
De acordo com Vigotski (1997), a condição biológica não é o principal fator para que aconteça ou não o desenvolvimento da criança com deficiência. Em primeira ordem, o impedimento vem do grupo social, em outras palavras, depende de como a sociedade e o meio recebem essa criança. Para o autor, um contexto social com condições desfavoráveis pode acarretar que a deficiência primária se torne secundária.
A deficiência primária é considerada como biológica, orgânica, o que o sujeito já tem consolidado biologicamente, como lesões cerebrais, má-formação orgânica, ou seja, características já apresentadas pelo indivíduo. A deficiência secundária, o autor entende como consequências psicossociais da deficiência, que englobam o contexto cultural ao qual o sujeito pertence, o modo como esse meio social está estruturado e como interfere nesse sujeito (VIGOTSKI, 1997).
Para Vigotski (1997), as consequências da deficiência, dadas pelas condições orgânicas, podem ser alteradas, transformando-se pela relação do homem com o meio, com o outro. Desse modo, a limitação orgânica de uma pessoa com deficiência não determina seu desenvolvimento, o que o faz são suas relações sociais, que, às vezes, configuram-se de forma a não considerar a pessoa com deficiência como partícipe da vida social, coletiva.
Logo, destaca-se como o meio interfere no desenvolvimento das crianças com deficiência. Se a criança com deficiência estiver inserida em um ambiente que recebe pouca ou nenhuma influência social e cultural, isso certamente acarretará um atraso em seu desenvolvimento. Desse modo, a aprendizagem e o desenvolvimento da criança com deficiência estão ligados essencialmente ao social.
O autor fez críticas aos modelos escolares e métodos pedagógicos praticados nas escolas de sua época. Discordando da ideia de que deveriam existir dois modelos de escola, um voltado para crianças com deficiência e outro para crianças sem essa condição, o autor aponta e defende a ideia de um sistema educacional que tenha como objetivo a integração dos princípios pedagógicos da Educação Especial com os da pedagogia geral, criando um sistema cujos princípios sejam os mesmos para todos.
As críticas apontadas por ele, eram de que a escola tinha um olhar clínico para a criança com deficiência, um olhar voltado apenas para o déficit que a criança apresentava. As práticas pedagógicas realizadas tinham como foco trabalhar as funções psíquicas elementares das crianças com deficiência. Baseavam-se em técnicas mecanizadas, repetitivas e treinamentos de atividades, visando a um pensamento concreto, o que acabava gerando um limite no desenvolvimento e na aprendizagem desses educandos (VIGOTSKI, 1997).
Em contrapartida, o autor busca enfatizar, em seus estudos e análises, o objetivo de criar possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem para a criança com deficiência, respeitando os mesmos princípios e linhas gerais utilizadas para as crianças sem essa condição. O autor afirma que, se há impossibilidades de algumas funções, também há possibilidades, ofertadas pelas condições socioculturais.
Ele argumenta a favor de uma prática pedagógica na qual a criança desenvolva atividades que ainda não estejam consolidadas e que não consegue desenvolver sem a ajuda de um adulto ou pares. Desse modo, são atividades que se desenvolvem por meio da interação social, com a ajuda do outro, de modo a possibilitar aos discentes uma constante transformação.
Uma educação direcionada para a criança e não para sua deficiência em si; uma educação que considere os aspectos psicológicos e pedagógicos. Para ele, a tarefa escolar, quanto à educação para a criança com deficiência, é a de introduzi-la em práticas sociais, criando processos compensatórios, que se dão pelas relações intersubjetivas mediadas semioticamente, para que, assim, esse educando possa alcançar sua aprendizagem e seu desenvolvimento (VIGOTSKI, 1997).
Respaldado pela perspectiva histórico-cultural, compreendo que a escola deve partir do princípio de que as crianças com deficiência não fazem parte de uma espécie peculiar de indivíduos, mas sim são indivíduos com algumas peculiaridades. Para Vigotski (1997, p. 12, tradução nossa), “a criança cujo desenvolvimento está dificultado pelo defeito não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus companheiros normais, mas sim desenvolvida de outro modo”, necessitando apenas de outros meios, outras vias específicas e adequadas para seu desenvolvimento.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO
Este estudo, além de fundamentar-se nos pressupostos teórico-metodológicos da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 1995), apoia-se, também nos estudos biográficos (PASSEGGI, 2018; SARMENTO, 2018) e toma como fonte de dados, as narrativas. A opção pelo uso das narrativas partiu da intenção de compreender e analisar como as pedagogas concebem as crianças com deficiência e viabilizam suas práticas educativas na Educação Infantil.
O método biográfico parte de uma vertente de pesquisa que, se utilizada como fonte para produção de dados em pesquisas qualitativas, apresenta enorme relevância para o âmbito educacional, pois, por meio desse procedimento é possível conhecer o narrador, sua história de vida, considerando-o agente de suas interações sociais e culturais (PASSEGGI, 2018; SARMENTO, 2018).
Essa perspectiva de pesquisa na educação permite ao investigado, na relação com o outro, organizar seu pensamento e atribuir sentido às vivências experienciadas. Nessa relação entre o individual e o social, existente apenas por meio do outro e pela recíproca atividade, a pesquisa com narrativas consiste em compreender o indivíduo, frente ao mundo histórico e social no qual está inserido e quais são os sentidos e os significados que ele atribui às suas trajetórias.
A pesquisa foi desenvolvida em uma escola municipal de uma cidade de médio porte na região noroeste do estado de São Paulo. A instituição oferece nos períodos matutino e vespertino: Educação Infantil – Creche e Educação Infantil – Pré-escola. Em 2022, ano da realização da pesquisa, havia um total de 146 crianças matriculadas, sendo 77 na Creche e 69 na Pré-escola. Das crianças, 7 tinham diagnóstico de alguma deficiência; 3 na Creche e 4 na Pré-escola.
A escola possui uma boa estrutura física, tem 10 salas de aula, sala de recursos multifuncionais para Atendimento Educacional Especializado, 1 pátio com cobertura, 1 quadra de esportes coberta, um pequeno parque, com alguns brinquedos, banheiro adequado as crianças com deficiência ou com mobilidade reduzida. Também dispõe de alimentação escolar para todas as crianças.
Na referida instituição, a Educação Infantil constitui-se por diferentes agentes; gestores, pedagogos, profissionais de apoio. Tendo como objetivo centrar o olhar para os sentidos que as pedagogas atribuem as crianças com deficiência. Nesta pesquisa, as reflexões são ampliadas no diálogo com seis pedagogas pertencentes ao quadro de profissionais efetivos da instituição e que atuam diretamente com as crianças.
Para a realização da pesquisa, tive grande preocupação com a questão ética das participantes, buscando a todo o instante criar um ambiente descontraído e ter um olhar sereno e uma escuta sensível durante a construção dos dados. Inicialmente, antes de entrar no campo de pesquisa, realizei alguns procedimentos éticos; a aprovação da pesquisa pelo comitê de ética; e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado por todas as participantes.
As pedagogas atuam no período matutino e vespertino, estão na instituição pelo mesmo tempo em que foram efetivadas na rede básica de ensino do município. São jovens, com faixa etária entre 24 e 35 anos de idade. Durante a pesquisa, foram bastante sociáveis comigo. Por vezes, tive a sensação de que se sentiam incomodada com o diálogo; todavia, nunca se manifestaram contra isso.
Para o desenvolvimento de construção de dados, foram realizadas entrevistas narrativas com as pedagogas, em data e horário previamente combinados. Bolívar, Domingo e Fernández (2001) denominam as entrevistas construídas a partir de uma metodologia biográfico-narrativa como entrevistas biográficas. Segundo os autores, esse tipo de entrevista é muito semelhante a uma conversa normal entre dois sujeitos, o que se diferencia é que a voz do entrevistador permanece em segundo plano. O entrevistador, nessa situação, fica encarregado de incentivar o entrevistado a narrar suas histórias, experiências ou momentos específicos que contribuem para a pesquisa.
Apoiados nos pressupostos teórico-metodológicos da perspectiva histórico-cultural (VIGOTSKI, 1995) e diante das reflexões sobre o método do Paradigma Indiciário (GINZBURG, 1989), busco fazer uma análise interpretativa e explicativa, olhando para as anotações, os indícios, as pistas que desvelam as atribuições que as pedagogas têm sobre as crianças público-alvo da Educação Especial.
Desse modo, retomo as narrativas das pedagogas, atentando para realizar uma análise cuidadosa, coesa e coerente, respeitando a história narrada e a singularidade do narrador. Para a apresentação e a discussão, selecionei os fragmentos narrativos mais significativos e relevantes para responder ao objetivo proposto. Na seção seguinte, apresento as narrativas das pedagogas, individualmente.
NARRATIVAS DAS PEDAGOGAS SOBRE A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA
Nesta seção, apresento e busco compreender e interpretar o que sentem, pensam e falam as pedagogas sobre as crianças público-alvo da Educação Especial e quais os sentidos que atribuem a elas. Para isso, meu olhar assume “um método interpretativo, centrado sobre resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores, pormenores, normalmente considerados sem importância.” (GINZBURG, 1989, p. 150).
Vanessa: Ah, eu tenho pena, tenho dó... Ah, assim, eu faço o que dá... Às vezes eu deixo elas no cantinho, elas fica olhando com uma carinha... Parte o coração, mas, assim, sei lá... Eu tenho pena, tenho dó, porque como vai ser futuro deles, né? Imagina, podia ser cheio de saúde, ser normal... Tadinhos... As meninas falam que sou pessimista, mas eu não sou, eu sou realista! Elas nunca vão conseguir ter uma vida normal...
A pedagoga Vanessa inicia sua narrativa fazendo importante revelação; afirma deixar as crianças com deficiência isoladas, afastadas das demais sem essa condição. Menciona, ainda, ter um sentimento de pena, se diz conformada em não ter o que fazer. Para compreendermos a significação que ela faz sobre a criança com deficiência é preciso entendermos como é dada a constituição da pessoa com deficiência.
De acordo com Kassar (2000, 2010), a constituição da pessoa com deficiência se dá pelas condições culturais nas quais o indivíduo está inserido. O modo de significar, dar sentido, interpretar de cada sujeito passa pelos significados atribuídos pelo outro perante suas ações. Para a autora, esse significar do outro está na gênese do comportamento e do pensamento de cada sujeito, que, assim, vai se constituindo imerso em um mundo simbólico, em que a linguagem propicia a constituição.
Outro ponto que chama atenção é o fato dela dizer que não há o que fazer. Em minha concepção, no âmbito escolar o professor é o principal responsável pelo processo de escolarização das crianças. Nessa direção, Vigotski (1997) afirma que o responsável por conduzir e proporcionar o ensino-aprendizagem da criança com deficiência pode facilitar ou dificultar esse processo. Segundo o autor, a priorização do defeito limita as possibilidades de desenvolvimento. Portanto, há a necessidade de proporcionar mudanças nas práticas pedagógicas, rompendo com as atividades reprodutivas e minimalistas que atrasam e impedem o desenvolvimento da criança.
Dando sequência em seus dizeres, a pedagoga explicita uma narrativa carregada de estigmas, de concepções pré-estabelecidos sobre as crianças público-alvo da Educação Especial. A historicidade dessas crianças mostra algumas peculiaridades no modo como vem se constituindo. Amaral (1995) tece importantes reflexões acerca da concepção da deficiência e do modo como a compreensão da deficiência impacta sua constituição. Para a autora, devemos ter um olhar minucioso para os elementos culturais e sociais para observarmos a constituição do sujeito, que, em primeira instância, depende da maneira como o adulto interpreta a criança com deficiência.
A autora entende que o estigma, aliado aos estereótipos e preconceitos, cria barreiras que dificultam ou impedem a inserção de pessoas com deficiência em suas relações sociais (AMARAL, 1998). Para ela, os fatores individuais e sociais constituem nossas ações diante de uma pessoa ou grupo. O preconceito parte da elaboração psíquica dessas relações com determinados sujeitos. O estereótipo passa a ser a caracterização de uma pessoa ou grupo que sofre o preconceito; em outras palavras, “é a concretização/personificação do preconceito.” (AMARAL, 1998, p. 18).
Em vista disso, compreendo que a maneira como o educador possa a vir olhar para a criança com deficiência incidirá no modo como essa criança se constituirá no âmbito escolar. Se o educador olhar para a criança com deficiência por uma ótica prospectiva, visualizando possibilidades, tenderá a ver caminhos de trabalho e agir de modo a ensinar essa criança. Por outro lado, se esquecer de olhar para a criança em si e focalizar apenas o déficit que ela apresenta, possivelmente não será capaz de pensar práticas educativas que a leve a se desenvolver e a aprender.
Larissa: Professor, eu acho que é preciso tentar, fazer acontecer, se esforçar, ter vontade de fazer atividades diferentes com elas, ter um pouco mais de atenção, cuidado... Não cuidado, no sentido de cuidar, é ter carinho, ser afetiva, ter afeto por eles... Eu acredito muito em uma educação pautada no afeto, eu acho que o afeto faz toda a diferença no ato de ensinar...
Inicialmente, observa-se na narrativa da Larissa, que ela destaca a importância em buscar novos meios, possibilidades, caminhos alternativos para o processo educativo das crianças com deficiência. Tendo em vista a fala da pedagoga, compreendo que a escolarização de crianças com deficiência necessita de algumas mudanças por parte dos professores e de suas práticas pedagógicas. É preciso uma prática que vise à desconstrução de atividades simplificadas e segregadoras, assim, objetivando promover tarefas que contemplem as potencialidades e as singularidades de cada criança (VIGOTSKI, 1997).
Nesse sentido, corroboro com o pensamento de Drago (2011, p. 89): “parte do sucesso da inclusão depende do trabalho pedagógico adequado às diversidades dos discentes no cotidiano escolar.” Ademais, vale ressaltar as palavras de Góes e Laplane (2002, p. 99): “não é o déficit em si que traça o destino da criança. Esse ‘destino’ é construído pelo modo como a deficiência é significada, pelas formas de cuidado e educação recebidas pela criança, enfim, pelas experiências que lhe são propiciadas.”
Para Góes (2008), as tarefas escolares devem ser direcionadas para atividades culturalmente significativas para a criança, buscando elevar os níveis do pensamento e o processo de significação. A autora afirma: “o trabalho educativo precisa ser orientado para o domínio de atividades culturalmente relevantes, para a elevação dos níveis de generalidade do pensamento e para capacidade de significar o mundo.” (GÓES, 2008, p. 40). De acordo com ela, se o professor não atuar de maneira intencional para levar essa criança para o mundo da significação, esse discente não conseguirá desenvolver um funcionamento psíquico mediado.
Na sequência, Larissa ressalta a importância do afeto para o processo de ensino e aprendizagem. Na obra de Vigotski (2010), o afeto é visto como inerente à condição humana, sendo fonte de explicação para condutas e regulador dos comportamentos humanos, tendo sua fonte no social, por meio das significações. O autor ressalta que as emoções compartilhadas nas relações sociais entre professor e a criança no contexto escolar atuam como mediadores entre elas e o meio. Ele destaca que a educação transforma e promove mudanças nas crianças, ressaltando que essa transformação ocorre quando são tocados afetivamente, “são precisamente as reações emocionais que devem constituir a base do processo educativo.” (VIGOTSKI, 2010, p. 144).
Marques e Carvalho (2019) buscam compreender a relação entre afeto e aprendizagem na relação professor-aluno. Para as autoras, uma interação, uma conversa que motive e valorize-os, mobiliza funções psíquicas como a vontade, a motivação para a aprendizagem. Em contrapartida, elas visualizam que a falta ou a escassez de interação entre professor-aluno os desmotivam a participarem das aulas, reduzem a confiança e capacidade que eles têm para aprender.
No contexto educacional, o professor é o principal mediador na interação entre a criança e o conhecimento sistematizado. Acredito que a qualidade dessa mediação tem impacto direto sobre o processo de ensino e de aprendizagem, podendo direcionar a criança ao sucesso ou ao fracasso escolar. Assim, penso que, se o educador observar as relações que vão se estabelecendo com a criança, tendo um olhar atento, sentindo e percebendo como cada compreende a realidade, conseguirá promover vínculos afetivos e atividades que as envolva-as, de modo a afetá-las.
Lúcia: A gente tem que tentar, tem que ensinar, fazer eles fazerem! O Renan, todo mundo falava que ele não ia jogar bola, eu fui, eu comprei a bola com guizo... Agora, ele escuta a bola, ele vai atrás, ele consegue jogar! A Lara ficavam falando que a menina era antissocial... Como assim, antissocial? Ela tinha um pouco de dificuldade em ficar perto das pessoas, ela chorava, gritava, mas falar que a menina é antissocial é demais, né?
A narrativa de Lúcia destaca-se pelo olhar prospectivo que ela tem sobre as crianças; evidenciando suas potencialidades e não seus déficits. Nessa direção, Barbuio (2021), Barbuio, Camargo e Freitas (2019) apontam que, quando as ações pedagógicas voltadas ao público-alvo da Educação Especial são orientadas para um olhar que vai além de seu comprometimento biológico, é possível proporcionar a participação dessas crianças nas aulas. Ademais, ressaltam a necessidade de estratégias de ensino que acolham as singularidades delas, de modo a possibilitar condições e práticas de trabalho que visem as relações sociais e atividades significativas.
Ainda para os autores, a intervenção, quando realizada de maneira efetiva, prospectiva, com atividades pedagógicas e intervenções adequadas, proporciona meios e condições para que todos participem, aprendam e interajam com seus pares. Ainda, segundo eles, se os professores atuarem de maneira intencional, com o olhar voltado para as potencialidades das crianças em condição de deficiência, é possível que a participação delas se intensifique nas aulas.
Ao discutir as possibilidades de aprendizagem, Góes (2002) menciona que a escola não pode ficar presa aos limites pré-estabelecidos decorrentes da deficiência, tampouco pode exercer atividades restritivas, repetitivas. A autora aponta para uma educação que envolva as crianças nas relações do mundo, ou seja, no ambiente social, coletivo. Para ela, “a peculiaridade da educação especial está em promover experiências que, por caminhos diferentes, invistam nas mesmas metas gerais, o que é indispensável para o desenvolvimento cultural da criança.” (GÓES, 2002, p. 7).
A pedagoga Lúcia faz importante observação para a aprendizagem e desenvolvimento da criança com deficiência; a coletividade. Em Vigotski (1997), encontra-se a tese intitulada de “coletividade como fator de desenvolvimento das funções psicológicas superiores da criança normal e anormal.” (VIGOTSKI, 1997, p. 139, tradução nossa). O autor defende o pensamento de que a coletividade é fonte de desenvolvimento das funções psíquicas mediadas. Ademais, ressalta que o distanciamento da coletividade dificulta o desenvolvimento dos sujeitos e a constituição das funções psíquicas mediadas fica incompleta.
Para o autor, a convivência, o estar na coletividade, a colaboração do outro, são fatores primordiais para o desenvolvimento da criança com deficiência. O autor adverte para um ensino pautado nas potencialidades, e não nas limitações da criança, destaca o importante papel do professor nessa tarefa, ofertando caminhos adequados e favoráveis para seu desenvolvimento e aprendizagem. Pontua: “para o pedagogo, é importante conhecer a peculiaridade do caminho pelo qual deve conduzir a criança.” (VIGOTSKI, 1997, p. 17, tradução nossa).
Portanto, é inserida na coletividade, no convívio social, que a criança com deficiência encontrará meios favoráveis para o desenvolvimento das funções psíquicas mediadas. Desse modo, as relações partilhadas com adultos e pares são indicativos de desenvolvimento. Conforme o autor, “o desenvolvimento da personalidade da criança se manifesta sempre em função do desenvolvimento de seu comportamento coletivo.” (VIGOTSKI, 1997, p. 220, tradução nossa).
Débora: Os pais não ajudam, chegam gritando, parece que estão desovando um objeto, não é assim, é uma criança, não um objeto... A gente conversa com a família, mas é difícil... Eu até entendo os pais, porque ninguém sonha em ter um filho com deficiência... Eu também sou mãe, a gente sonha com nosso filho correndo pra lá e pra cá, crescendo, estudando, se formando, trabalhando... Eu sei que não é fácil, mas, se Deus quis assim, a gente precisa aceitar, entender e fazer o melhor por eles...
Em sua narrativa, Débora revela uma angústia sobre os modos de tratamento que recebe por parte dos familiares das crianças; discussões, brigas, gritos. Dainez e Freitas (2018), problematizam discussões acerca da relação entre a pessoa com deficiência e o meio social. Para as autoras, a forma historicamente produzida de significar apenas o déficit do indivíduo ainda é presente na sociedade nos dias atuais, de modo que a deficiência impacta a ordem social, pois a sociedade não está organizada para essas pessoas. Com isso, a forma como esse sujeito é visto, compreendido, constituído perante a sociedade pode influenciar sua inserção e participação social, tornando-se um fator de impedimento para o desenvolvimento dessas pessoas.
Machado, Londero e Pereira (2018), Anjos e Morais (2021) e Souza e Souza (2021) abordam as relações estabelecidas entre crianças com deficiência, seus familiares e a escola. Para os autores, ao receber a notícia do diagnóstico da deficiência, os pais se abalam, entram em estado de negação, luto, o diagnóstico impacta a família, a expectativa, os sonhos, o ambiente familiar passa a ficar desestabilizado. Ainda, destacam que os pais notificam ter dificuldades ou problemas de relacionamento com os filhos, apontando falta de conhecimento, dificuldade em conseguir orientações, problemas financeiros, entre outros fatores. Nas relações que permeiam a família e a escola, as pesquisas mostram que existe uma lacuna a ser preenchida entre criança, escola e família; os pais alegam ter pouco ou quase nenhum suporte por parte da escola.
Seguindo por sua narração, a pedagoga apresenta certo conformismo, mas mostra um olhar prospectivo com o processo educativo das crianças com deficiência. Nessa direção, Vigotski (1997) apresenta indicativos para a melhoria nas condições de ensino e aprendizagem para a criança com deficiência ao apresentar a ideia de uma educação social. Uma educação norteada pelas possibilidades que a criança com deficiência apresenta, e não por seu déficit. Isso só é possível de se realizar no âmago das relações sociais; ou seja, essas possibilidades só se concretizam se o grupo social se voltar para o que há de positivo na criança e não para seus aspectos negativos.
Para o autor, a educação social de uma criança em condição de deficiência seria construída e organizada com os mesmos padrões de uma criança sem essa condição. Ele afirma que não é possível sanar a deficiência eliminando sua causa, mas é possível atenuar a deficiência diante de uma educação social, uma educação que contemple todos. Para ele, apenas a educação social pode suprir a ausência de um déficit, sendo ela o único caminho cientificamente válido para a educação da criança com deficiência.
Regina: Eu sou a favor de colocar eles na escola especial... Porque, aqui não funciona, eles não conseguem, num vai, num vão conseguir, num adianta... É melhor deixar eles na especial, pelo menos lá fica tudo igual, tudo no mesmo nível... Faz aquelas coisinha básica de sempre, e assim vai... Eu até queria ajudar eles, mas num adianta, num vão conseguir...
Na opinião da pedagoga Regina, as crianças com deficiência deveriam frequentar instituições especiais; ela alega que na escola regular essas crianças não conseguem aprender e se desenvolver. Em sua historicidade, a criança com deficiência é sempre posta em posição de desconfiança, de alguém que pode menos, que não tem condições de aprender e se desenvolver. Nesse sentido, Vigotski (1997) aponta que é necessário romper com o pensamento de que a deficiência significa menos, de que o déficit é um fator impeditivo para o desenvolvimento da criança com deficiência.
O autor direciona-se para uma ideia de compensação social, em que a fonte de desenvolvimento para as pessoas com deficiência está nas relações sociais, ou seja, na possibilidade dada a essas crianças de ter acesso ao que é da cultura humana por meio das relações sociais, mediada pelo outro, por signos e instrumentos. Isto é, pela mediação semiótica, a criança tem possibilidades de aprender e se desenvolver; conforme expõe o autor, “o que decide o destino da pessoa, em última instância, não é o defeito em si mesmo e sim as consequências sociais, sua realização psicossocial.” (VIGOTSKI, 1997, p. 19, tradução nossa).
Dainez (2017) argumenta que o desenvolvimento de pessoas com deficiência ocorre por meio das relações sociais, pela relação com o outro, pelo uso de instrumentos simbólicos. Para a autora, os modos como as atividades socioculturais são estabelecidas têm impacto direto no desenvolvimento desses sujeitos. Ou seja, dependendo da maneira como os campos semióticos são utilizados, o contexto será propicio à compensação social ou promoverá barreiras para a formação desse indivíduo.
A sequência narrativa de Regina é carregada de significações; ela afirma que as crianças com deficiência não apresentam possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem; sua narrativa dá indícios de uma fala cercada de conceitos. Freitas, Monteiro e Camargo (2015), apontam que os docentes têm consciência de que são os responsáveis pela aprendizagem dessas crianças; entretanto, revelam conflitos em seus discursos. Seus dizeres mostram que possuem baixa expectativa sobre as possibilidades de aprendizagem dos educandos e apontam para concepções sobre a deficiência baseadas em estigmas e preconceitos.
Kelly (2012) aborda e discute o processo escolar de crianças com deficiência por dois olhares: a visibilidade e a invisibilidade desses sujeitos. Para a autora, as crianças com deficiência são sujeitos visíveis por terem seu direito de frequentar um espaço institucional, ter o reconhecimento de seus direitos, ter sua matrícula assegurada pelos órgãos públicos, por frequentar a escola e as aulas. Entretanto, são sujeitos invisíveis devido a suas impossibilidades; a partir das particularidades apresentadas por sua condição, a criança está ali, posto na escola, mas não é visto, ele ocupa o lugar de uma pessoa invisível.
Pela narrativa da pedagoga, as crianças com deficiência estariam inseridas no lugar de sujeito invisível, como apontado pela autora? Elas frequentam a escola, porém não são enxergadas, são consideradas crianças sem possibilidades, reconhecidas apenas por um corpo marcado pela deficiência (SOUZA, 2013; SOUZA; SMOLKA, 2009), reconhecidas por aquilo que não tem e não por suas possibilidades. Como mencionado, as leis garantem que essas crianças sejam um sujeito visível, mas, na prática, por meio de sua narrativa, a pedagoga os coloca como um sujeito invisível. Sobre isso, Kelly (2012, p. 152) reflete que “as pessoas com deficiência vão sendo gradativamente invisibilizadas, como não é possível bani-las, opta-se por simplesmente não vê-las.”
Bárbara: Eu sou a favor da inclusão, mas o problema é que a gente não tem muita estrutura, olha só aqui... As paredes estão caindo, bebedouro enferrujado, mesa quebrada, material precário, não tem incentivo, as condições de trabalho não ajudam... Outra coisa, eu fico meio assim, porque eu não tenho muita experiência... Por exemplo, eu me formei faz 3 anos, na facul eu tive só uma disciplina de Educação Inclusiva, e bem fraca... Então, a gente fica meio assim, com receio, medo...
Já a pedagoga Bárbara menciona ser a favor da Educação Inclusiva; entretanto ela aponta alguns empecilhos para que esse processo ocorra – falta de estrutura da escola, condições de trabalho, entre outros. Nessa direção, Fiorini e Manzini (2018), Greguol, Malagodi e Carraro (2018), Santos, Souza e Santos (2020) investigam os entraves apontados por professores para o processo de escolarização de crianças com deficiência. Para os autores, os fatores de impedimento mais destacados são: condições de trabalho; ausência de apoio de gestores; carga horária de trabalho elevada; ausência de estrutura das escolas e de materiais.
Historicamente, a educação da pessoa com deficiência ocorreu em paralelo ao ensino comum, fomos nos constituindo com essa marca de segregação, de que as crianças com deficiência devem estudar em instituições especializadas. A política de Educação Inclusiva produziu muitos avanços, mas não houve um investimento na mudança da cultura escolar, das condições de trabalho do professor; logo, as críticas ao docente podem existir, mas precisam ser feitas no contexto das condições e das contradições que imperam no cotidiano das escolas públicas do Brasil.
Continuando por sua narrativa, a pedagoga faz importante revelação; a falta de experiência, a insegurança, o medo, a angústia em lidar com as crianças com deficiência. A pedagoga alega que durante seu processo formativo não obteve respaldo suficiente sobre a temática. Nesse sentido, Amaral e Monteiro (2019), ao discorrerem sobre a temática da formação inicial em seu estudo, evidenciam uma escassez de disciplinas que contemplam a Educação Especial, afirmando que as discussões que incluem o tema nos cursos de licenciatura são mínimas e que essas formações, quando são disponibilizadas, ocorrem a partir de ações localizadas.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Iniciei este estudo com o propósito de compreender e interpretar o que as pedagogas falavam, pensavam e sentiam acerca do processo educativo de crianças com deficiência na Educação Infantil. Para tanto, voltei minha atenção para suas narrativas, buscando compreendê-las na relação com o contexto que as cercava.
O estudo teve como objetivo compreender e analisar como as pedagogas concebem as crianças com deficiência e viabilizam suas práticas educativas na Educação Infantil. Com a intenção de sistematizar os achados, entendo como necessário sintetizar os indícios encontrados, de modo a facilitar a compreensão dos fatos abordados.
Os sentidos que as pedagogas atribuem as crianças com deficiência são contraditórios — ser a favor/contra a Educação Inclusiva; incluir/não incluir a criança; visualizar possibilidades de trabalho/não visualizar. Essas significações parecem estar relacionadas ao modo como estas crianças estão sendo compreendidas e enxergadas.
Acredito ser papel da escola disponibilizar meios de trabalho que correspondam às peculiaridades e ao desenvolvimento das crianças público-alvo da Educação Especial. Entendo, também, que as práticas pedagógicas das pedagogas que atuam com essas crianças precisam privilegiar as relações sociais, compreendendo que o caminho para o desenvolvimento delas está no grupo social, disponibilizado por meio das/nas práticas culturais.
As discussões realizadas neste estudo mostram a pluralidade de suas contribuições para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças público-alvo da Educação Especial na Educação Infantil. Embasados na perspectiva histórico-cultural e nas narrativas dessas pedagogas, penso ser necessário ter em vista uma concepção de educação que promova as crianças com deficiência oportunidades não apenas de estar no meio social, mas de atuar nele, como protagonistas, como sujeitos capazes de aprender e se desenvolver.
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