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O Tribunal Penal Internacional e a Falta de Imputação de Responsabilidade a Funcionários de Empresas Militares Privadas

Yasmin de Oliveira Guedes
Universidade de São Paulo, Brasil

Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais

Universidade Federal Fluminense, Brasil

ISSN: 2595-699x

Periodicidade: Semestral

vol. 4, núm. 7, 2020

revistahoplos@gmail.com



Resumo: O presente artigo busca compreender a relação entre as Empresas Militares Privadas e o Tribunal Penal Internacional, órgão integrante do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. Toma como base as potenciais consequências de descumprimentos das leis de guerra por parte dos funcionários de ditas empresas. Assim, será abordada a constituição do TPI e do Sistema de Proteção dos DH para demonstrar que há a possibilidade desse tipo de julgamento. Entretanto, mesmo já tendo ocorrido violações do direito humanitário por parte dos funcionários dessas empresas, nenhum deles já foi julgado. Será demonstrado que isso se dá devido à estrutura do regime internacional de proteção dos direitos humanos, que dificulta a imputação de responsabilidade em casos que envolvem Empresas Militares Privadas; assim como pela própria estrutura interna das empresas que torna mais difícil identificar os responsáveis pelas violações. Por fim, o artigo demonstrará que há uma forte necessidade de alterar esse quadro para que a imputação de responsabilidade não fique somente na possibilidade legal.

Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional, Empresas Militares Privadas, Direito Internacional Humanitário.

Abstract: This article seeks to understand the relation between Private Military Companies and the International Criminal Court, part of the Human Rights Protection International System. It is based on the potential consequences of disrespecting the laws of war by PMCs` employees. The constitution of the ICC will be studied, as long as the structure of the Human Rights Protection System in order to demonstrate the existence of the possibility for this type of trial. However, even though violations by PMCs` employees have already occurred, none of the involved people were ever judged. This is because the System`s structure, which makes it difficult for the ICC to do so, as well as PMCs` own internal structure, which makes it difficult identify the responsible parts. There is then a strong need to change this scenario so that the possibility of judging PMCs` employees does not remain only in the legal sphere.

Keywords: International Criminal Court, Private Military Companies, International Humanitarian Law.

1 Introdução

A importância dos Direitos Humanos (DH) tem se tornado cada vez mais evidente devido aos acontecimentos recentes relativos à ascensão de governos de direita com visões extremamente nacionalistas. Eles enfatizam a lógica de que a garantia desses direitos é de competência nacional, sem os Estados terem obrigação de ajudar indivíduos de outras nacionalidades. Esses elementos podem ser encontrados no discurso de presidentes como Donald Trump, dos Estados Unidos, por exemplo.

Entretanto, historicamente, pode-se entender que os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, principalmente os relacionados ao Regime Nazista, evidenciaram a necessidade de que os Direitos Humanos não podem ser deixados somente a cargo dos Estados nacionais. Eles são inerentes aos seres humanos, e não aos nacionais de um Estado em particular. Logo, deveria haver um esforço coletivo internacional para sua garantia.

Assim, discursos como o adotado por Trump devem ser combatidos. Essa questão torna- se ainda mais relevante quando se estuda a garantia de leis de guerra no que tange à atuação de Empresas Militares Privadas (EMPs), uma vez que os Estados Unidos é o Estado que mais utiliza os serviços por elas oferecidos. As leis de guerra, codificadas no que é conhecido como Direito Internacional Humanitário (DIH), dizem respeito ao que pode ou não ser feito por atores na condução de conflitos armados.

Empresas Militares Privadas representam uma categoria de ator que ganhou proeminência com a Guerra do Iraque. Elas desempenham funções que por via de regra deveriam ser feitas pelas Forças Armadas nacionais dos Estados. Uesseler (2008) estima que nenhum Estado seria capaz de manter esforços de guerra por um longo período de tempo sem recorrer aos serviços desse tipo de empresa.

Assim, o presente artigo busca compreender a relação entre as Empresas Militares Privadas e o Tribunal Penal Internacional (TPI), órgão integrante do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. Seu objetivo é compreender as potenciais consequências de descumprimentos das leis de guerra por parte dos funcionários destas empresas dentro do Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos.

Tem como ponto de partida a seguinte pergunta: "Em que medida a estrutura do Sistema Internacional de Direitos Humanos influencia o julgamento de funcionários de Empresas Militares Privadas pelo cometimento de crimes de guerra?”. A hipótese inicial, a ser comprovada ou refutada, é a de que a estrutura do Sistema Internacional de Direitos Humanos influencia o julgamento de funcionários de Empresas Militares Privadas pelo cometimento de crimes de guerra na medida em que contribui para a criação de um ambiente no qual a imputação de responsabilidade por parte do TPI com relação a esses indivíduos é extremamente difícil.

Para tanto, em primeiro lugar, será abordada a constituição do TPI e do Sistema de Proteção dos DH para demonstrar que há, dentro da legislação internacional, a previsão da possibilidade de um funcionário de uma Empresa Militar Privada ser julgado pelo TPI por cometimento de crimes de guerra. Será mostrado que essa previsão se baseia no fato de o TPI ter jurisdição para julgar indivíduos que atendam a certos requisitos – requisitos esses que podem ser encontrados em funcionários de Empresas Militares Privadas.

Em seguida, será abordado o que são as Empresas Militares Privadas e como elas se inserem no regime de proteção dos direitos humanos. Como será mostrado, elas não atuam em um vácuo legislativo, ao contrário do que geralmente é defendido. Como atores de conflitos armados, elas e seus funcionários também têm um compromisso em observar as leis de guerra na condução de suas missões.

Entretanto, mesmo já tendo ocorrido violações do direito humanitário por parte dos funcionários das EMPs, nenhum deles já foi julgado. Será demonstrado que isso se dá devido à estrutura do regime de direitos humanos, que dificulta a imputação de responsabilidade em casos que envolvem EMPs; assim como pela própria estrutura interna das empresas que torna mais difícil identificar os responsáveis pelas violações.

Por fim, o artigo demonstrará que, para diminuir a vantagem de desrespeitar as normas de Direito Humanitário com base em um cálculo de custo-benefício, é necessária uma reforma no regime. Ela deve partir de acordos internacionais que determinem medidas cujo objetivo seja desmantelar o clima de impunidade e que facilitem as investigações de supostas violações. Essas reformas, além de tudo, contribuiriam para aumentar a legitimidade do TPI frente a críticas acerca dos casos por ele investigados.

2 O Tribunal Penal Internacional

Apesar de as origens do que hoje é conhecido como Direitos Humanos poderem ser traçadas por séculos atrás, o debate acerca do assunto ganhou força somente após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. As ações do regime nazista, principalmente, estimularam a percepção de que a proteção de direitos tão fundamentais à humanidade não deveria ficar a cargo somente dos Estados em suas esferas nacionais. Logo, começou-se a desenvolver o que viria a ficar conhecido como Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2007).

Essa nova lógica levou à estruturação de um regime internacional de proteção de direitos humanos através do estabelecimento de normas e regras que pudessem fomentar uma convergência de expectativas entre os atores. Como Keohane (1982) identificou, existem alguns tipos de objetivos que são melhor alcançados com trabalho em conjunto no longo prazo - e os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial demonstraram que essa característica se aplica à garantia dos direitos humanos.

Outra função importante desempenhada pelo regime é o de disponibilização de informações no ambiente internacional (KEOHANE, 1992). Essas informações são fornecidas pelos Estados, através de relatórios periódicos, assim como através da ação de organizações não-governamentais (ONGs) que também fornecem documentos próprios a respeito da situação dos direitos humanos nos locais em que atuam. Através desses dados, é feito o que ficou conhecido como “naming and shaming” – ou seja, são tornadas públicas as violações encontradas de modo que os Estados nos quais elas ocorreram sofram pressão para mudar a situação (RITTBERGER, ZANGL, KRUCK, 2012).

A prática de “naming and shaming” é fonte de fortes críticas a respeito de sua efetividade. Dyncorp, uma Empresa Militar Privada acusada publicamente de estar relacionada a violações das leis de guerra na Bósnia e Herzegovina (o caso será abordado mais profundamente adiante) na década de 1990, concorreu a um contrato oferecido pelo governo britânico no início dos anos 2000 (WILSON, MAGUIRE, 2002). Casos como esse estruturam o argumento de que a prática de “naming and shaming” não é suficiente para conter violações dos direitos humanos. Como o regime estudado é estruturado, em sua maior parte, com base na lógica de soft power, a capacidade de enforcement das normas pode ser considerada relativamente baixa, uma vez que as punições são fracas ou inexistentes e dizem respeito somente ao Estado e não ao indivíduo particular responsável pelas violações.

O regime internacional de proteção dos direitos humanos envolve três vertentes de proteção: os Direitos Humanos, o Direito Humanitário e o Direito dos Refugiados. As diferenças entre os três ramos são consequências das origens de cada um deles (COMITÊ INTERNACIONAL..., 2004). Os Direitos Humanos são aqueles voltados para os tempos de paz – direito ao voto, liberdade de expressão, condições mínimas de vida, entre outros – e sua origem pode ser traçada até a Revolução Francesa (PIOVESAN, 2007). O Direito dos Refugiados surgiu como uma maneira de garantir direitos mínimos aos indivíduos que foram obrigados a sair de seus países. O Direito Humanitário, que é o abordado no presente trabalho, se desenvolveu como uma forma de proteger indivíduos impactados diretamente ou indiretamente em conflitos armados (COMITÊ INTERNACIONAL..., 2004). Também conhecido como as leis de guerra, o Direito Humanitário ficou codificado principalmente na forma das Convenções de Genebra de 1949.

Na contramão da prática de “naming and shaming”, as Convenções de Genebra estabelecem que os indivíduos responsáveis pelo cometimento de crimes de guerra podem ser julgados pelo judiciário do Estado na qual a violação ocorreu; do Estado de nacionalidade das vítimas; do Estado do acusado; do Estado do empregador do acusado. Quando necessário, a jurisdição para julgamento de potenciais violações pode até mesmo ser universal (GENEVA CONVENTIOS, 1949) – já que as Convenções são universalmente ratificadas.

Ainda contra a lógica de “naming and shaming”, foi criado o Tribunal Penal Internacional (TPI) em 1998. Sua criação se deu no contexto de fortes críticas feitas a outros tribunais penais internacionais, como o de Nuremberg e Tóquio no pós Segunda Guerra Mundial, e os tribunais ad hoc para Ruanda e para a Bósnia. De acordo com muitos críticos, esses tribunais foram criados por vencedores para julgar os vencidos com base em tipos penais que não existiam previamente (PIOVESAN, 2007).

Logo, um dos grandes objetivos da criação do Tribunal Penal Internacional foi trazer mais legitimidade ao julgamento de indivíduos acusados de violar as normas de direitos humanos em ambientes conflituosos (ROME STATUTE, 1998). Havia, também, no ambiente internacional, uma forte demanda por parte de poderes pequenos ou médios para a criação de uma corte internacional que fosse forte e independente (RITTBERGER, ZANGL, KRUCK, 2012). Ademais, a criação de uma Corte Penal Internacional já era prevista desde 1948, quando foi adotada a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (PIOVESAN, 2007).

Estabelecido na Conferência de Roma com 120 votos favoráveis, o Estatuto de Roma, tratado fundador do TPI, entrou em vigor quando alcançou 66 ratificações em 2002 (PIOVESAN, 2007). Composto por 18 juízes (ROME STATUTE, 1998), o tribunal é baseado no princípio da legalidade. Assim, é um órgão que dispõe de “uma justiça preestabelecida, permanente e independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a reconhecem” (PIOVESAN, 2007, p.47).

Com base nessa lógica, o TPI tem jurisdição para julgar indivíduos nacionais de Estados membros cujas ações se enquadrem em um dos seus tipos penais ou indivíduos que tenham desenvolvido tais ações no território de um Estado membro – mesmo que o próprio indivíduo não seja nacional de um Estado membro. Ademais, como parte do sistema judiciário internacional, a ação do TPI deve ser complementar à dos sistemas judiciários nacionais. Isso quer dizer que o TPI só pode ser acionado caso os sistemas nacionais falhem em sua função de investigar e julgar indivíduos acusados de cometimento de alguma ação que se enquadre em seus tipos penais. Um ponto relevante a respeito desses tipos penais é que eles são imprescritíveis (ROME STATUTE, 1998) – ou seja, não expiram. São cinco os tipos penais1 estabelecidos no Estatuto de Roma, entre eles, está o crime de guerra.

Os crimes de guerra são estritamente ligados com o que é chamado de Direito Internacional Humanitário (DIH). Eles envolvem a determinação de práticas que podem ou não ser executadas durante a condução de conflitos (ICC, s/d). O Estatuto de Roma tem uma longa lista do que pode ser considerado crimes de guerra. Estes envolvem atos como ataques deliberados contra civis, ataques a combatentes que se renderam, a utilização de venenos ou armas venenosas, entre outros. Existem, em alguma medida, dois textos que definem o que são crimes de guerra: o próprio Estatuto de Roma, que os define no Artigo 8, e a Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949 (ROME STATUTE, 1998).

De acordo com a Regra 156 do Direito Internacional Humanitário Costumeiro, os crimes de guerra são de natureza séria e perpassam condutas que colocam coloquem em perigo pessoas ou objetos protegidos ou que desrespeitem valores importantes. Eles podem ser cometidos tanto ativamente – quando o indivíduo efetivamente toma parte nas violações, seja na execução ou no comando – quanto passivamente – quando o indivíduo tem ciência de que essas atividades serão desenvolvidas ou estão em curso e, tendo o poder de impedi-las, não o faz (INTERNATIONAL COMMITTEE OF THE RED CROSS, s/d). Essa distinção tem uma implicação crucial: pessoas podem ser responsabilizadas se seus subordinados cometerem tais crimes sob suas ordens ou se, eles agindo de maneira independente, elas tiverem conhecimento e não atuarem de maneira a interromper as violações.

Torna-se, portanto, importante estudar os diferentes atores que podem se envolver em conflitos armados. Apesar de haver distinção no Direito Internacional entre civis e combatentes (GENEVA CONVENTIONS, 1949), quando a possibilidade de imputação de responsabilidade pelo cometimento de crimes de guerra pelo TPI é analisada, não se deve abordar a questão por esse ângulo. Isso porque indivíduos em qualquer lugar do espectro civil-combatente podem ser julgados pelo cometimento de crimes de guerra (ROME STATUTE, 1998). Uma categoria de atores que se tornou crucial, principalmente a partir da Guerra do Iraque, é referente às Empresas Militares Privadas, que serão abordadas a seguir.

3 As Empresas Militares Privadas

Um tipo de ator que tem se tornado cada vez mais relevante em contextos de conflitos armados são as Empresas Militares Privadas (EMPs). Essas são “negócios que comercializam serviços profissionais intrinsecamente ligados ao esforço de guerra (...), incluindo operações de combate, planejamento estratégico, inteligência, análise de riscos, suporte operacional, treinamento e habilidades técnicas” (SINGER, 2008, p.8, tradução própria)2. Elas podem ser contratadas tanto por Estados-parte de um conflito (ou por outros que não o são), assim como por outras empresas privadas, organizações internacionais, milícias, entre outros (DOSWALD-BECK, 2010).

Dados do projeto Data on Armed Conflict and Security (2011)3, que compilou casos de uso de Empresas Militares Privadas de 1990 a 2007 em 32 países que os analistas consideraram como Estados em falência ou falidos4, mostram 280 eventos de contratação5 de EMPs a partir de 2002 (ano no qual o TPI entrou em vigor) em 19 dos 32 Estados. Desses, 10 dos países6 nos quais as ações das EMPs ocorreram são Estados membros do TPI. Isso quer dizer que cerca de 52,6% das atuações se deram em Estados que ratificaram o Estatuto de Roma.

Já entre as partes contratantes, 12 dos 15 clientes entre 2002-2007 foram Estados. Dentre eles, 9 são parte do Tribunal Penal Internacional. Uma curiosidade é que o Estado que mais contratou o serviço de EMPs foi o Estados Unidos – todas as vezes para atuar em uma terceira localidade que não o seu território nacional. Somente 50% dos Estados contrataram em algum momento Empresas Militares Privadas para atuarem em seu próprio território. São eles: Croácia, Iraque, Filipinas, Libéria, República Democrática do Congo e Uganda. Já o ator não- estatal que mais requisitou os serviços das EMPs foi a Organização das Nações Unidas (ONU). Essas estatísticas reforçam ainda mais o argumento de Gillard (2006) de que os países nos quais as EMPs atuam têm um papel importantíssimo a desempenhar no que diz respeito ao cumprimento das normas do Direito Humanitário.

Outra questão relevante quando as EMPs são estudadas é sob quais normas do regime internacional de proteção de direitos humanos elas estão submetidas. Existem tratados específicos dentro do DIH que abordam os chamados mercenários, mas não existe tratado algum que regule as EMPs em si mesmas. Entretanto, não seria correto afirmar que estas empresas não estão sujeitas a essas leis (DOSWALD-BECK, 2009). Contrário ao que geralmente é dito, as EMPs não atuam em um vácuo legislativo. Em situações de conflito armado, o Direito Humanitário serve para regular tanto o comportamento das Empresas Militares Privadas quanto as responsabilidades dos Estados que as contrataram (GILLARD, 2006). Entretanto, além de obedecer às leis do Direito Humanitário, as EMPs também estão sujeitas às leis de mercado, uma vez que são, antes de tudo, empresas com estruturas extremamente corporativas (O’BRIEN, 2010). Uma importante consequência desse forte caráter empresarial é a motivação pelo lucro (SINGER, 2001-2002), o que torna mais fácil justificar o cometimento de crimes de guerra se essa for a estratégia que melhor auxilie a conquista de objetivos imediatos (GASTON, 2008).

Apesar de parecer óbvio, um ponto que merece ser destacado é que as empresas militares privadas são, antes de tudo, empresas. Sua estrutura tem um caráter extremamente corporativo: são negócios e como tais competem abertamente no mercado internacional (SINGER, 2001- 2002). Isso quer dizer que, além de se submeterem ao DIH, se submetem também às normas do mercado.

Dada a natureza do serviço que oferece, uma EMP pode tanto atuar em seu território de origem quanto em outros diferentes de sua nacionalidade. Isso somado ao fato de o lado empresarial das EMPs permitir a existência de complexas cadeias de contrato, faz com que o ramo seja marcado por uma forte tendência à subcontratação. As grandes empresas subcontratam empresas menores locais da região na qual devem atuar, que por sua vez subcontratam empresas de recrutamento de um terceiro país, que subcontratam outros indivíduos para a realização do trabalho (TZIFAKIS, 2012). Essa forma de organização faz com que muitas vezes o próprio cliente não saiba quem de fato realiza a atividade contratada.

E, como são entidades privadas, seus contratos também são privados na ordem jurídica. Logo, mesmo que seus serviços sejam voltados para oferecer um bem público, é difícil ter acesso a informações pertinentes, como os gastos totais, o conteúdo de suas missões, entre outros. Até mesmo em suas páginas na internet, não há detalhe algum que seja mais específico a respeito do tipo de trabalho que oferecem (UESSELER, 2008). Isso dificulta ainda mais a apuração das medidas adotadas na condução de missões desempenhadas pelas EMPs.

Ademais, é importante ressaltar que os funcionários das EMPs são frequentemente pessoas que têm alguma experiência com trabalho mercenário. Mesmo que as firmas façam uma análise minuciosa dos currículos de seus potenciais empregados, a dificuldade de monitorar as tropas em operação faz com que seja difícil identificar se a pessoa analisada já cometeu atrocidades que violem as normas do DIH. E, quando o fazem, é possível também que ignorem as violações cometidas em prol da efetividade do candidato (SINGER, 2001-2002). É possível afirmar, assim, que pelo contratante muitas vezes não ter controle direto sobre o desenrolar das operações, o desrespeito às leis de guerra por parte dos funcionários torna-se ainda mais provável.

Além disso, o ambiente empresarial também possibilita que as EMPs se estruturem internamente da forma que seja mais interessante para elas. Somada ao baixo capital necessário para a manutenção das Empresas Militares Privadas, essa liberdade permite que elas se aloquem globalmente de acordo com as suas necessidades. Enquanto pode ser interessante ter uma base em Estados poderosos com alto potencial de clientela e recrutamento, essa localização não é essencial para o funcionamento do negócio (SINGER, 2008). Isso quer dizer que podem ter sedes com diferentes funções nos mais variados países e movê-las através das fronteiras conforme for conveniente (UESSELER, 2008). Ou seja, a obtenção de documentos e informações relativas às Empresas Militares Privadas e suas missões não é simples, uma vez que elas podem simplesmente fechar sua sede em um determinado país se ele aprovar legislações e medidas que não sejam favoráveis para seu negócio.

Outra consequência do caráter empresarial das EMPs é que elas são motivadas, em maior ou menor medida, pela obtenção de lucro. Logo, apesar de as empresas defenderem que existem incentivos para que elas sigam as leis de guerra para que possam manter uma boa imagem no ambiente internacional, é preciso ressaltar também que muitas vezes é melhor para essas empresas ter uma imagem de uma instituição que faz as coisas acontecerem – independentemente de como (SINGER, 2001-2002). Assim, muitas vezes as análises conduzidas se baseiam no que é melhor no curto ou no médio prazo para o desenvolvimento da missão, e não necessariamente nas consequências a longo prazo que as ações das EMPs podem trazer. Com base nesse raciocínio, torna-se mais “fácil” justificar cometimentos de crimes de guerra se essa for a estratégia que melhor auxiliar na conquista de objetivos mais imediatos (GASTON, 2008).

Outro ponto interessante é que as EMPs não são regidas por nenhum vínculo. A implicação disso é que elas, diferentemente das forças armadas tradicionais dos Estados, não precisam agir com base em conceito algum de segurança e suas missões tampouco são determinadas por meios públicos/legais (UESSELER, 2008). Isso quer dizer que seu código de conduta está mais associado com a ideia de alcançar objetivos, não importando tanto como isso será feito. Isso favorece ainda mais o cálculo de custo-benefício na direção do desrespeito às leis de guerra se a violação facilitar o atingimento das metas.

Assim, é extremamente importante para a garantia do cumprimento das leis de guerra que exista a possibilidade de responsabilizar individualmente os autores de potenciais desrespeitos - possibilidade essa que existe através do Estatuto de Roma. Entretanto, em levantamento realizado em outubro de 2019 no banco de dados de casos do TPI, não existe um único caso relacionado a funcionários de Empresas Militares Privadas7.

4 A relação das Empresas Militares Privadas com o TPI

Como já foi mostrado, as empresas militares privadas não atuam em um vácuo. Na verdade, elas estão sujeitas às normas do Direito Internacional Humanitário e, portanto, estão inseridas no regime internacional de proteção dos direitos humanos. As regras destes deveriam criar, em alguma medida, previsibilidade para a atuação das EMPs. Isto é, tem-se a expectativa de que elas respeitarão estas regras.

Entretanto, este não é sempre o caso. As regras de regimes internacionais são frequentemente alteradas, quebradas e até mesmo distorcidas de acordo com as exigências de cada momento (KEOHANE, 1982). As EMPs não são exceção. Elas também, como atores dentro deste regime, muitas vezes se inserem em contextos nos quais violam as leis da guerra, ou seja, o DIH (GASTON, 2008). É possível, portanto, levantar questões a respeito da responsabilização pelo cometimento de crimes no nível internacional.

Atualmente, dos 27 casos em julgamentos ou já julgados pelo TPI, 18 estão relacionados a crimes de guerra – ou seja, cerca de 66,6% dos processos. Conforme mostrado na Tabela 1 abaixo, todas as violações julgadas ocorreram em países africanos cometidas por pessoas africanas. Isso é reflexo de outra deficiência do TPI e tem sido fonte de fortes críticas ao tribunal. Muitos países africanos têm ameaçado se retirarem do tribunal, alegando que ele representa uma instancia de brancos para julgar negros.

Tabela 1
Frequência de países nos quais ocorreram os eventos relacionados a crimes de guerra julgados pelo TPI (outubro 2019)
Local Frequência
Darfur 5
Congo 3
República Centro-Africana 2
Timbuktu 2
Uganda 2
Bogoro 1
Líbia 2
Ruanda 1
elaboração própria feita com base no levantamento realizado no site do TPI.

Ademais, como nos casos do TPI pode haver mais de um réu em um mesmo julgamento, no total, são 20 pessoas acusadas/condenadas pelo cometimento de crimes de guerra. Todas elas estão de alguma forma relacionadas ao governo de seus países ou a movimentos de oposição, conforme apresentado na tabela abaixo. Ou seja, não há registro de funcionários de Empresas Militares Privadas julgados por cometimentos de crimes de guerra.

Tabela 2
Vínculos dos réus nos casos de cometimento de crimes de guerra (outubro 2019)
Vínculo Frequência
Movimento de oposição 11
Governo 9
elaboração própria feita com base no levantamento realizado no site do TPI.

Isso não quer dizer, entretanto, que não existam registros de possíveis violações das leis de guerra por parte das EMPs. Um exemplo é o caso da AirScan, que auxiliou militares colombianos a bombardear uma vila em 2003 – o que levou à morte de 18 civis (MILLER, apud LEHNARDT, 2007). A Colômbia é um Estado parte do TPI desde agosto de 2002 (ICC, s/db) – o que quer dizer que esse seria um caso em potencial para o tribunal. Torna-se, então, crucial, o estudo do contexto que leva à impunidade dos funcionários das EMPs.

É possível identificar alguns fatores que podem estar relacionados à impunidade acima mencionada. Uma primeira questão interessante é relativa a acontecimentos que se dão nos Estados nos quais há atuação das Empresas Militares Privadas. É comum a prática por parte do judiciário desses Estados de oferecer imunidade aos funcionários de EMPs que atuam em seu território. Esse é o caso, por exemplo, do Iraque, que ofereceu imunidade aos funcionários de boa parte das EMPs que lá atuam no que diz respeito às suas leis nacionais e a processos legais (GILLARD, 2006).

O caso do Iraque é interessante porque foi devido à atuação de Empresas Militares Privadas em seu território que essas organizações ganharam proeminência na mídia, academia, política e etc (GILLARD, 2006). Apesar de o país não ser parte do Tribunal Penal Internacional (ICC, s/db), ele é signatário das Convenções de Genebra e diversos outros tratados e protocolos adicionais relativos às leis de guerra (ICRC, s/d). Isso quer dizer que violações como as que lá foram constatadas, como o caso de tortura e tratamento desumano na prisão em Abu Ghraib, o assassinato de civis em Bagdá, entre outros (ARNPRIESTER, 2017), poderiam ser julgadas pelos judiciários de inúmeros países conforme estabelecido nas Convenções de Genebra.

Outro ponto interessante pode ser associado aos dados do Data on Armed Conflict and Security (2011). Como foi mostrado, a atuação das EMPs em Estados falidos ou em falência é expressiva. Uma das características presentes nesses Estados é a desarticulação do sistema judiciário. Assim, como foi apontado por Gillard (2006), é possível que as cortes dos Estados nos quais há a atuação de EMPs não estejam em condições de julgar as potenciais violações.

Esses dois fatores (concessão de imunidade e impossibilidade de julgamentos pelas cortes nacionais) contribuem para a criação de um clima de impunidade. Quando localmente não há a possibilidade de punição em casos de violações de Direito Humanitário, o desrespeito se torna “lucrativo” para as EMPs. Logo, potenciais autores desse tipo de crime se sentem mais livres para cometê-los (RITTBERGER, ZANGL, KUCK, 2012).

Uma consequência da impossibilidade de o judiciário nacional julgar os casos (seja por vontade própria ou por falta de recursos) é a dificuldade de coletar evidências e entrevistar potenciais testemunhas. A cooperação por parte do Estado no qual as violações ocorreram é crucial visto que, na maioria das vezes, evidências e testemunhas estão lá localizadas (GILLARD, 2006).Uma vez que na ausência de provas legais ou factuais do cometimento de um crime por indivíduo ele não pode ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional (ROME STATUTE, 1998), quando o próprio judiciário nacional do Estado se torna complacente em casos de crimes de guerra, é difícil até mesmo iniciar investigações a respeito das violações alegadas.

Em decorrência desse contexto de difícil apuração dos acontecimentos, é importante ressaltar que o cálculo custo-benefício realizado pelos potenciais violadores muitas vezes nem mesmo perpassa a possibilidade de serem punidos por um tribunal internacional como o TPI (RITTBERGER, ZANGL, KUCK, 2012). Esse, entretanto, não deveria ser o caso. Devido ao fato de que a ação do TPI deve ser complementar à do judiciário nacional e que os crimes de guerra são imprescritíveis (ROME STATUTE, 1998), o TPI detém jurisdição para julgar casos nos quais os Estados se mostram incapazes ou sem vontade de fazê-lo (ICC, s/d). Ou seja, apesar das dificuldades enfrentadas, essas não deveriam ser vistas como impossíveis de serem mudadas para permitir a atuação do Tribunal Penal Internacional.

Outro ponto que dificultaria a ação do TPI na apuração de casos envolvendo funcionários de EMPs é relativo à identificação do indivíduo responsável. Como já foi mostrado, é permitido às Empresas Militares Privadas a adoção de complexas cadeias de contratos que complicam a identificação dos autores de determinadas tarefas (TZIFAKIS, 2012). Logo, a estrutura dos contratos adotada pelas EMPs pode dificultar a localização de potenciais autores das violações a serem investigadas pelo TPI (GILLARD, 2006). E, mesmo quando o funcionário é identificado, existe ainda a possibilidade de a própria EMP não desejar colaborar com as investigações a respeito de seus próprios funcionários e de ainda agirem de modo a obstruí-las (TZIKAFIS, 2012).

Um caso emblemático é o da Dyncorp na Bósnia e Herzegovina. Alguns funcionários da empresa foram acusados de estarem envolvidos com tráfico de pessoas. Essas pessoas seriam principalmente mulheres e meninas de cerca de 12 anos de idade. A empresa não só levou os suspeitos para fora da região como também demitiu funcionários que descobriram evidências acerca dos crimes lá cometidos (TZIKAFIS, 2012). A funcionária que ficou mais conhecida foi Kathryn Bolkovac, que acusou a empresa de tê-la demitido injustamente por ter revelado evidências de tráfico sexual que implicavam a empresa. Os acontecimentos relatados por Bolkovac foram transformados em um longa-metragem biográfico intitulado The Whistleblower (A Informante, em português) (VULLIAMY, 2012).

Uma outra implicação da dificuldade de identificar o indivíduo que desempenhou uma determinada tarefa é a sensação de distanciamento entre a parte contratante e o funcionário. Logo, é possível que os clientes não se sintam responsáveis legalmente pelo descumprimento das normas do DIH por parte de funcionários das EMPs. A consequência disso é ainda mais grave se o cliente em questão for um Estado, ator esse que, pelas leis do DIH, é responsável pela garantia do cumprimento dessas normas por parte daqueles que o representam (GASTON, 2008). Logo, essa falsa distância criada entre o Estado contratante e os funcionários das EMPs que atuam de fato pode levar o país em questão a ter pouco interesse em colaborar com investigações a respeito de tais funcionários, já que não se veem responsáveis pelas ações destes.

É importante ressaltar, contudo, que esse entendimento é equivocado. Mesmo quando os Estados contratam um outro ator privado para desempenhar atividades que são tipicamente suas, eles ainda são responsáveis pelas ações de ditos atores. É obrigação do Estado fiscalizá- los e garantir que os mesmos estejam cientes de suas obrigações para com as normas dos direitos humanos. Se um funcionário de uma EMP comete uma violação das normas do DIH, o Estado é responsável, seja por omissão no que tange à fiscalização ou por não garantir que o funcionário conhecesse as normas em questão ou por não ter sido ele mesmo quem treinou o funcionário (DOSWALD-BECK, 2009). E, com base nas Convenções de Genebra, todos os Estados que as ratificaram têm a obrigação de colaborar com investigações de potenciais crimes de guerra (GENEVA CONVENTIONS, 1949). É possível considerar que essa responsabilidade é ainda mais forte caso o Estado que contratou a EMP seja parte do Tribunal Penal Internacional.

Logo, com base no que foi apresentado, é possível concluir que a atual estrutura do regime internacional de proteção dos direitos humanos, aqui trabalhada na forma do Tribunal Penal Internacional, cria um ambiente de impunidade que pode favorecer o cometimento de crimes de guerra por parte das EMPs. É, assim, essencial que seja feita uma reformulação dentro do regime de modo a facilitar o julgamento de funcionários de EMP envolvidos em crimes de guerra pelo TPI.

Uma medida que poderia ser adotada em um primeiro momento é a inclusão nas leis do Direito Humanitário da proibição da concessão de imunidade em casos de desrespeito às leis de guerra. Esse seria um meio essencial para a eliminação do ambiente no qual se acredita que é possível violar as normas sem enfrentar as consequências e, logo, mudar os valores do cálculo de custo-benefício feito pelas empresas e seus funcionários. Assim, não seria tão “vantajoso” do ponto de vista empresarial descumprir as leis de guerra. Essa adição poderia se dar, por exemplo, por meio de um Protocolo Adicional às Convenções de Genebra.

Um outro ponto que também ajudaria é o estabelecimento de acordos para que a coleta de evidências possa ser feita por terceiros quando o Estado no qual a violação ocorreu não tiver meios de fazê-la. Ela poderia ser realizada através da concessão de privilégios temporários no que diz respeito à ação de agentes internacionais para a coleta de informações e localização de potenciais testemunhas. Isso diminuiria o peso das investigações dos Estados envolvidos (que geralmente não possuem muitos recursos para conduzi-las). Logo, ajudaria a diminuir o clima de impunidade e tornar mais arriscado o descumprimento do Direito Humanitário.

Uma medida interessante, mas que envolveria um esforço maior, seria a adoção de uma legislação específica a respeito da atuação de Empresas Militares Privadas em situação de conflito. Entretanto, isso perpassa o debate de regulação de agentes privados, o que não é amplamente aceito no ambiente internacional devido, principalmente, à lógica capitalista de que os mercados devem se autorregular. Esse é justamente o argumento das EMPs, que defendem que elas têm fortes incentivos para seguir as leis de guerra, existindo, até mesmo, um próprio código de conduta que foi adotado por diversas empresas – o Código Internacional de Conduta para Provedores de Serviços de Segurança (INTERNATIONAL CODE..., s/d). Entretanto, o aprofundamento da adoção de uma legislação internacional é um assunto muito detalhado e complicado para ser abordado em completo no presente artigo – de modo que deve ser, por si só, assunto para estudos posteriores.

Além disso, apesar de o Direito Internacional Público ser estadocêntrico, tem havido um movimento para que os indivíduos também sejam vistos como atores relevantes no ambiente internacional. Um exemplo disso seria o próprio Tribunal Penal Internacional, que torna os indivíduos atores jurídicos no ambiente internacional ao julgá-los como órgão não pertencente a Estado nacional algum. Junto com esse movimento, que reconhece a importância de outros atores que não os Estados no ambiente internacional, seria possível defender o reconhecimento de pessoas jurídicas (empresas) como atores relevantes. Isso quer dizer que elas poderiam ser vistas como atores jurídicos e, portanto, passíveis de serem julgadas por diversas cortes internacionais.

Uma outra questão interessante que gira em torno da possibilidade de as EMPs serem reconhecidas como atores jurídicos no ambiente internacional diz respeito à nacionalidade das mesmas. Foi demonstrado que o TPI tem jurisdição para julgar indivíduos nacionais de Estados membros ou aqueles que, mesmo não o sendo, tiveram ações que corresponderam a um de seus tipos penais em território de algum Estado membro. Um questionamento então pode ser feito: um funcionário trabalhando para uma EMP nacional de um Estado membro, mesmo que ele mesmo não o seja e nem tenha cometido violações em território de Estado membro, poderia ser julgado?

A Aegis Defense Services é uma empresa britânica que atuou no Iraque; o Reino Unido é membro do TPI desde outubro de 2011. Ao ser reconhecida como pessoa jurídica no ambiente internacional, a empresa estaria mais fortemente ligada às normas do DIH devido à possibilidade de ser internacionalmente responsabilizada. Suponha-se que um funcionário iraquiano da empresa, atuando no próprio Iraque, venha a cometer um crime de guerra. Poderia ele ser responsabilizado, uma vez que atua para um agente britânico e deve respeitar as normas estabelecidas pela empresa? Estudar essa possibilidade e seu estabelecimento no ambiente internacional também pode ser altamente vantajoso na reestruturação do regime de direitos humanos e, por conseguinte, auxiliar na atuação do próprio TPI.

A possibilidade de as Empresas Militares Privadas enfrentarem julgamentos no ambiente internacional e serem condenadas por violações das leis de guerra, somada à existência de uma regulação específica para sua atuação, contribuiria profundamente para diminuição do clima de impunidade existente atualmente. Associada a uma melhor implementação da possibilidade já existente de seus funcionários serem responsabilizados no ambiente internacional, uma regulação específica potencialmente aumentaria as chances de respeito às normas e regras do DIH.

Isso não quer dizer que somente a adoção das medidas aqui apresentadas levaria automaticamente ao julgamento de funcionários de Empresas Militares Privadas por parte do TPI. Não basta somente que as medidas legais existam, como foi mostrado ao longo do artigo. A existência somente da previsão legal de responsabilização por si só não garante que os acontecimentos serão devidamente apurados. O conteúdo dessas medidas legais tem também que se expressar na realidade dos conflitos armados, sendo associado a práticas como as que foram apresentadas, como a facilitação de obtenção de evidências e testemunhos por meio da permissão temporária de atuação para agentes internacionais dedicados a apurar supostas violações das leis de guerra.

Essas reformas, além de ajudarem na melhoria do respeito às normas e regras do Direito Internacional Humanitário, serviriam também para aumentar a legitimidade do tribunal. O TPI nos últimos anos tem sido alvo de críticas a respeito dos casos por ele julgados. Assim, aumentar a capacidade do tribunal de julgar funcionários de EMPs ajudaria o tribunal a aumentar seu número de casos e tornar sua ação mais legítima.

4 Considerações finais

O presente artigo visou ao estudo da relação entre as chamadas Empresas Militares Privadas e o regime internacional de direitos humanos, abordado na forma do Tribunal Penal Internacional. Partiu do ponto de que nenhum funcionário de EMP já foi julgado pelo TPI, mesmo havendo registros de casos de desrespeito às leis de guerra.

Foi abordado, em primeiro lugar, o que é o regime em questão, assim também como o TPI está inserido dentro dele. Um dos pontos trabalhados foi sobre a existência da possibilidade de julgamento de funcionários de EMPs pelo tribunal em casos de violações das chamadas leis de guerra. Essa possibilidade existe devido ao fato de o TPI ter jurisdição para julgar indivíduos, sejam eles civis ou combatentes, que estejam envolvidos em violações ocorridas nos territórios de Estados membros ou que sejam eles mesmos nacionais de Estados membros.

Em seguida, o artigo buscou mostrar o que são as Empresas Militares Privadas. Foi adotada a perspectiva de que elas são organizações privadas que desempenham funções que normalmente são executadas pelas Forças Armadas nacionais. Além disso, foi mostrado que elas não atuam em um vácuo legislativo e que têm obrigação de respeitar as leis de guerra. Mesmo assim, existem registros de desrespeito às normas do DIH por parte de funcionários de EMPs.

Entretanto, nenhum deles já foi julgado pelo Tribunal Penal Internacional. O artigo, então, passa a abordar pontos que podem contribuir para o cometimento de crimes de guerra por parte desses funcionários e dificultam a atuação do TPI. Foi demonstrado que existe um clima de impunidade que favorece a adoção de cálculos de custo-benefício que visam somente à obtenção de objetivos de curto prazo por parte das EMPs, desconsiderando potenciais consequências relativas à adoção de ações que caracterizam crimes de guerra.

Além disso, a coleta de evidências por parte do TPI é dificultada pela situação em que muitas vezes se encontra o judiciário dos locais nos quais as violações ocorrem. Ademais, as próprias EMPs adotam medidas que dificultam a obtenção de informações e identificação de indivíduos responsáveis pelas violações. Nesse contexto, foi corroborada a hipótese de que a estrutura atual do regime de Direitos Humanos contribui para a criação de um ambiente no qual é difícil para o TPI imputar responsabilidade aos funcionários de EMPs.

Por último, o artigo mostrou que uma reforma do regime seria uma opção possível para diminuir o clima favorável ao desrespeito, mudando os valores a serem usados nos cálculos de custo-benefício feitos pelos funcionários e até mesmo pelas próprias Empresas Militares Privadas. Um caminho para realização dessa reforma seria a adoção de tratados que proibissem a concessão de imunidade para os tipos penais do TPI na esfera nacional. Medidas como essas, além de ajudarem no que tange ao combate ao cometimento de crimes de guerra, auxiliariam também no aumento da legitimidade do tribunal, que tem sido alvo de críticas a respeito dos réus que costuma julgar.

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Notas

1 De acordo com o Estatuto de Roma (1998), o crime de genocídio corresponde a ações que sejam tomadas com o objetivo de destruir um grupo específico. O crime contra a humanidade diz respeito a atos que fazem parte de ataques sistemáticos e generalizados contra qualquer população civil. Já o crime de agressão foi definido como planejamento, preparação, início ou execução de um ato de agressão que seja uma violação à Carta da ONU e pode ser cometido por quem exerce controle sobre o Estado política ou militarmente (PIOVESAN, 2013). O quinto tipo é o crime de guerra, que será abordado de maneira mais aprofundada ao longo do artigo.
2 Business organizations that trade in professional services intricately linked to warfare (…), including combat operations, strategic planning, intelligence, risk assessment, operational support, training, and technical skills.
3 Os dados estão disponíveis em: www.conflict-data.org/psd/Data_Download/index.html.
4 O projeto identifica Estados em falência com base em três variáveis da Political Instability Task Force (PITF): MAGAREA, relacionada ao controle territorial da violência; MAGFAIL, que diz respeito ao controle do território disputado; e MAGVOIL, relativa a quanto o Estado é contestado no território em questão (PITF apud BRANOVIĆ, 2011).
5 Esse número não reflete a quantidade de EMPs que atuaram nos 32 países. Ele diz respeito à combinação país contratante das EMPs; país de atuação das EMPs e o ano em que a atuação aconteceu.
6 São eles (ano entre parênteses corresponde ao ano de adesão ao TPI): Colômbia (2002); Croácia (2001); Afeganistão (2003); Bósnia e Herzegovina (2002); Geórgia (2003); Libéria (2004); Nigéria (2001); República Democrática do Congo (2002); Uganda (2002) e Peru (2001).
7 O levantamento foi feito com base nos casos disponibilizados no site do Tribunal Penal Internacional em outubro de 2019. Casos disponíveis em: www.icc-cpi.int/Pages/cases/aspx.
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