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Resumo: O presente artigo objetiva analisar a importância estratégica do continente Antártico à Nova Zelândia e as medidas adotadas pelo país na área de Ciência e Tecnologia para garantir maior conhecimento e jurisdição sobre a Antártica. No momento no qual o planeta passa por diversas mudanças climáticas e crises ambientais, torna-se cada vez mais importante os estudos a respeito dos impactos do aquecimento global e o papel da Antártica na estabilização do clima; tais estudos são ainda mais relevantes às nações da Oceania que, com o aumento do nível do mar, correm risco de desaparecer. Utilizando metodologia qualitativa baseada em revisão bibliográfica, este trabalho analisa os dados disponibilizados principalmente pelo Governo da Nova Zelândia. Apresenta brevemente o histórico das atividades humanas na Antártica, a presença neozelandesa, e a evolução dos estudos e investimentos em Ciência e Tecnologia deste país para melhor conhecimento do sexto continente, questão que também afeta seus assuntos de Defesa. Ao final, conclui-se que, em caso de possíveis conflitos envolvendo esta região, aqueles que detiverem recursos e maior conhecimento sobre a região possuirão vantagens estratégicas.
Palavras-chave: Ciência e tecnologia, Nova Zelândia, Defesa.
Abstract: This paper aims to analyze the strategic importance of the Antarctic continent to New Zealand and the measures adopted by the country in the area of Science and Technology to ensure greater knowledge and jurisdiction over Antarctica. At a time when the planet undergoes various climate changes and environmental crises, studies on the impacts of global warming and the role of Antarctica in climate stabilization become increasingly important; such studies are even more relevant to the nations of Oceania which, with rising sea levels, are in danger of disappearing. Based on the qualitative methodology used in the literature review, this work analyzes the data made available mainly by the New Zealand government. This paper briefly presents the history of human activities in Antarctica, the New Zealand presence and the evolution of studies and investments in Science and Technology of this country to better understand the sixth continent, a subject which also affects its Defense concerns. At the end, it is concluded that in case of possible conflicts involving this region, those who have resources and greater knowledge will have strategic advantages.
Keywords: Science and technology, New Zealand, Defense.
1. Introdução
Um dos países com maior participação na Antártica, a Nova Zelândia ainda possui pouca bibliografia brasileira que compreenda satisfatoriamente a perspectiva neozelandesa em sua projeção territorial no polo sul. O país é um dos doze membros iniciais a assinarem o Tratado da Antártica, acordo que regulamenta e administra todas as atividades daqueles Estados que queiram estar presentes na Antártica, além de reivindicar, desde 1923, a região denominada Dependência de Ross naquele continente1. O Brasil, também signatário e membro-consultivo2 do Tratado da Antártica, destina considerável parcela de recursos para se manter na Antártica, tendo reconstruído sua Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF) em 20203, entretanto carece de literatura voltada para este país da Oceania que reclama uma porção do continente austral para si. Ao se pensar em políticas brasileiras voltadas para a Antártica, é necessário, antes, conhecer as políticas de outros Estados para o polo sul, a fim de compreender como o Brasil pode se inserir da melhor forma na Antártica. O presente artigo busca apresentar brevemente os principais pontos da presença neozelandesa no continente, tendo como variáveis os investimentos em ciência e tecnologia e sua aplicabilidade no setor de Defesa.
Cabe, anteriormente à análise, uma breve conceituação e diferenciação entre os termos “Ciência” e “Tecnologia” que muitas vezes são tratados como sinônimos. Para não tornar tal discussão cansativa, tendo-se em vista que existe vasta produção acadêmica a respeito dessa temática, este trabalho considera os conceitos e definições de Ciência e Tecnologia aqueles trazidos por Veraszto et. al (2009, p. 36) que afirmam:
O conhecimento tecnológico não é algo que pode ser facilmente compilado e categorizado da mesma forma como o conhecimento científico. A tecnologia poderia ser apresentada como uma disciplina, mas sabemos que é mais bem qualificada como uma forma de conhecimento, e por isso adquire formas e elementos específicos da atividade humana. Dessa forma podemos dizer que o caráter da tecnologia pode ser definido pelo seu uso.
Nesse sentido, os autores salientam que a Ciência tem seu foco na produção de teorias, por meio de observação de fenômenos que serão analisados de acordo com hipóteses, serão algumas vezes testados/experimentados e, no fim, poderão gerar explicações generalistas. As tecnologias, apesar de surgirem de conhecimentos científicos, são na realidade a transformação da teoria em prática, ao mesmo tempo em que não são apenas os resultados de testes e aplicações, mas sim a concepção e criação destes produtos ou objetos (Idem, p. 19). Para Veraszto et. al., portanto, os conceitos e seus desenvolvimentos em aplicações práticas, demandam grandes esforços socioculturais, pois a concepção de tais tecnologias está intrinsecamente relacionada à cultura das sociedades e não pode existir fora dos grupos humanos. Nesse sentido, ciência, tecnologia e desenvolvimento são conceitos e práticas relacionados e que se retroalimentam; nas palavras dos autores:
A tecnologia, uma vez colocada à disposição da sociedade ou do mercado, passa a ter seu valor determinado pela forma como vai ser adquirida e usada, e quem define esse valor (de bem ou de consumo) é a própria sociedade em desenvolvimento. (COLOMBO & BAZZO, 2002). Sendo o desenvolvimento um elemento dentro de uma cultura, a tecnologia se torna produto da sociedade que a cria. Daí o fato de que, ao ser importada, ela pode levar a uma dominação cultural, pois traz consigo valores de avaliação e eficiência criados em outra sociedade. Na medida em que muda padrões, a tecnologia também cria novas rotas de desenvolvimento. Portanto, trabalhar com tecnologia é trabalhar com algo dinâmico. O que hoje é ponta, amanhã é obsoleto, exigindo novos procedimentos, conceitos e atitudes para inovar. A tecnologia faz parte do acervo cultural de um povo, por isso existe na forma de conhecimento acumulado, e por essa mesma razão está em contínua produção (Idem, p. 38).
Quando se fala em continente antártico, ciência e tecnologia andam juntas, uma vez que a presença dos países na região é atrelada à manutenção de bases científicas em pleno funcionamento, ligadas às universidades e centros de pesquisa dos países, à comunidade científica internacional e outros setores do governo, que estejam de acordo com as cláusulas do Tratado da Antártica. O continente é um dos melhores exemplos do emprego de tais faculdades à área de Defesa4 de um país, sendo impossível dissociar desenvolvimento científico e tecnológico da estratégia e de seu potencial efetivo.
Vale ressaltar que a escassez de fontes relacionadas ao tema não é um problema exclusivo do Brasil, mas também de outros países que disponibilizam dados relacionados à Antártica cuidadosamente selecionados, devido à sensibilidade das informações e do tipo que imagem que o Estado quer passar quando se trata de sua presença no polo sul. A utilização de meios científicos na Antártica tem sua finalidade encoberta pelas cláusulas do Tratado e a justificativa que os Estados encontram para instalarem estações de pesquisa no continente estão vinculadas à ideia de proteção e conservação ambiental, como pode ser visto nos documentos disponíveis nas reuniões do Tratado da Antártica5. No caso dos países que reivindicam territórios na região, cada um apresenta uma visão própria de Defesa e de como a Antártica se insere na mesma, porém o presente artigo se limita a analisar apenas o caso da Nova Zelândia e a forma que o país encontrou de legitimar uma questão territorial ao associá-la à pauta ambiental.
O artigo encontra-se dividido em três partes, sendo a primeira uma introdução à questão antártica, delineando o papel que o continente desempenha no meio ambiente, os interesses estatais que circundam a presença dos mesmos na região, e como o Sistema do Tratado da Antártica molda a interação dos Estados no polo sul. A segunda parte explicita o modo como o sexto continente é visto sob o prisma estratégico e social na Nova Zelândia, contexto no qual se inserem os investimentos em ciência e tecnologia sob a justificativa de preocupações ambientais, principalmente. A terceira parte trata sobre a inserção de recursos destinados à pesquisa científica, ciência e tecnologia, dentro do escopo do Tratado, como investimentos legítimos em Defesa para a Nova Zelândia. Por fim, algumas considerações finais serão tecidas, pensando em como trazer o debate sobre investimentos na área de pesquisa e desenvolvimento aliados à Defesa para o Brasil, utilizando a Nova Zelândia como exemplo. Cabe ressaltar, ainda, que embora existam diversos autores brasileiros que tratem a respeito da inclusão do continente Antártico como parte do entorno estratégico do Brasil (MATTOS, 2014a); que discutam o tratado da Antártica (FERREIRA, 2009); que analisem pesquisas climatológicas (SIMÕES, 2013) ou que comparem as aproximações no espaço gelado entre o país e a Argentina, por exemplo (BALDRIGHI, 2016); nenhum deles analisa exclusivamente o caso neozelandês buscando exemplos de como aplicar tais experiências à realidade brasileira. Nesse sentido, como este artigo não tem como centro de discussão e análise o caso brasileiro em específico, não é possível compará-lo com os demais trabalhos que versem sobre o tema, mas iniciar uma discussão sobre tal questão e pensar em possíveis abordagens sobre outros programas antárticos e sua relação com o desenvolvimento científico de um Estado.
2. O sexto continente
Com 14 milhões de km², a Antártica foi o último continente a ser descoberto pelo homem. É o local mais frio, mais árido e menos habitado do planeta. Tais condições extremas e tão hostis à vida limitam o número de pessoas vivendo no território. Por não possuir habitantes nativos, sua população atualmente é composta por uma pequena comunidade científica e grupos militares que ou vivem nas bases, ou patrulham o território em embarcações adequadas às características do Oceano Austral. É um imenso laboratório para se estudar os oceanos, clima, atmosfera terrestre e impactos ambientais. Por ser um continente cuja formação geológica é antiga, há grandes possibilidades de seu território deter diversas reservas de combustíveis fósseis como o petróleo. Além disso, cerca de 90% das reservas de água doce potável do mundo encontram-se congeladas no continente. (DODDS, 2012). Sua localização no ponto mais austral do planeta permite o trânsito, seja em terra, no mar ou no espaço aéreo, entre os oceanos Atlântico Sul, Pacífico Sul e Índico, tornando a região um espaço estratégico tanto em relação à obtenção de combustíveis fósseis, quanto acesso à água potável e localização privilegiada entre os mares.
Foi na primeira metade do século XX que exploradores russos fincaram suas bandeiras na Antártica, descobrindo o último continente do planeta. Alguns anos depois, sete países reivindicavam partes do local como extensões de seus territórios: Argentina, Austrália, Chile, França, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido. No auge da Guerra Fria e após os desdobramentos das disputas coloniais que levaram à Segunda Guerra Mundial, o medo de um novo conflito de dimensões semelhantes levou à assinatura do Tratado da Antártica em 1959, inicialmente abrangendo 12 países (MATTOS, 2015). Estabeleceu-se um conjunto de regras que garantem proteção ao meio ambiente e cooperação científica, além de agir como um meio de estabilizar os diversos conflitos de reivindicação territorial. Para ser signatário e membro consultivo do tratado, é necessário possuir bases operando no continente, cujas atividades sejam voltadas inteiramente para pesquisas científicas, e que as mesmas estejam acessíveis à comunidade de pesquisadores. Bases exclusivamente para fins militares, uso da força e de armamentos, bem como testes de natureza bélica são permanentemente banidos do continente, uma das condições primordiais e mais importantes do Tratado (TRATADO, 1959). Entretanto, a presença de militares no suporte logístico e na administração dos programas antárticos é comum, como pode ser observado ao longo dos anos com a implementação dos mesmos.
Com o Protocolo de Proteção Ambiental do Tratado da Antártica, conhecido como Protocolo de Madri, assinado em 1991 e em vigor desde 1998, os 19 países signatários estabeleceram uma moratória de 50 anos, sujeita a renovação, para a exploração comercial de recursos minerais na região. O Protocolo de Madri faz parte do Sistema do Tratado da Antártica (STA), conjunto de acordos relacionados ao polo sul tendo como base o próprio Tratado da Antártica, com cláusulas próprias e encontros específicos, trazendo maior atenção para a questão ambiental, precisamente em uma época onde as mudanças climáticas e impactos ambientais se tornaram assunto em voga, parte da agenda científica.
Entretanto, desde o primeiro momento em que bases de pesquisa foram instaladas no continente, houve suspeitas de interesses meramente políticos e atividade militar na região. A Península Antártica é a região com maior concentração de bases, sendo esse mesmo espaço antártico mais setentrional a área mais disputada, o que torna visível os interesses políticos na região. Ao mesmo tempo em que o Tratado da Antártica cumpre sua função no contexto do Direito Internacional, ele não garante que os Estados signatários o façam (VIEIRA, 2006).
O aumento populacional e as fortes demandas por novas fontes de combustível levam ao questionamento de como tais locais vão buscar essas fontes e qual será o futuro do continente antártico em relação à sua exploração. A cooperação regional é um dos principais mecanismos de assistência no caso de acidentes ambientais no continente antártico, particularmente em ecossistemas vulneráveis e áreas de interesse global. Sob a perspectiva do “véu da incerteza”, no qual os atores envolvidos na busca pela hegemonia continental antártica não têm noção exata de como os outros Estados reagirão (FERREIRA, 2009), o Tratado serve como uma “barganha institucional” que busca amenizar os choques de interesses entre tais atores, buscando equilibrar as reivindicações e sustentar uma base institucional que respeite a igualdade de direito de cada parte envolvida.
A questão ambiental é ainda mais delicada, por se tratar de uma das partes mais sensíveis às variações climáticas na escala global. O Protocolo de Madri permite ao continente que, até 2048, fique livre da exploração de recursos naturais para fins comerciais, mas a constante presença de navios pesqueiros na região não traz segurança em relação à manutenção do tratado por mais 20 anos. A região possui 90% do volume da massa de gelo do planeta, absorvendo a maior quantidade de energia da Terra, diretamente ligada à circulação atmosférica e oceânica, ou seja, o clima em geral (SIMÕES, 2013). Essa interação é ainda mais forte nas regiões de baixa latitude, como no caso neozelandês.
3. A presença da Nova Zelândia
A Nova Zelândia sempre foi um país tradicionalmente muito presente no continente antártico, devido à sua importância e à proximidade territorial entre as duas regiões. Desde o século XIX, promove expedições para estudar o continente gelado. Na última década, graças à escassez de grandes conflitos envolvendo a Oceania, o país voltou suas prioridades para o sexto continente. É um dos países signatários originais do Tratado Antártico de 1959, mesmo ano que instalou sua estação de pesquisa científica, a Scott Base, na Ilha de Ross.
Com a inserção do país no continente Antártico, até 1991, o Departamento de Ciência e Pesquisa Industrial (DSRI, na sigla em inglês) se tornou responsável pelos investimentos e pesquisas no continente antártico. Morten (2017) apresenta a evolução das pesquisas de 1957 até 1991 e aponta que durante as primeiras décadas, as pesquisas não fugiram muito de aspectos relacionados ao meio ambiente, biologia e mapeamento geológico. Entretanto, em 1985 um novo documento foi lançado, “Future Directions in New Zealand Antarctic Research”, que ressaltava a importância de um engajamento cada vez mais ativo nas pesquisas focando em alguns pontos: os efeitos da Antártica na Nova Zelândia e no clima global; a relação próxima da Ilha de Ross com o país; História dos fenômenos de mudanças climáticas; adaptação da vida em condições extremas e fenômenos específicos que ocorrem somente nos polos. Para isso, os investimentos no DSRI aumentaram de $157,212 em 1959/1960 para $3.333 milhões 1988/1989 (RDRC, 1985).
Desde a década de 1980, a preocupação regional da Nova Zelândia e das ilhas menores em seu entorno aumentaram, especialmente com a iminente possibilidade de desaparecimento de seus territórios devido ao aumento do nível do mar causado pelo derretimento das calotas polares, derivado do fenômeno do aquecimento global. Essa situação tem gerado a ocorrência cada vez maior do que se conhece por “refugiados ambientais”, pessoas que deixam seus países pela ocorrência de fenômenos relativos ao meio ambiente que impedem a continuidade da moradia nesses locais (RAMOS, 2011); acredita-se que a Nova Zelândia será o primeiro país impactado pela busca de refúgio causada pelas mudanças climáticas.
Nesse sentido, a busca por maior compreensão dos impactos dessas mudanças se faz cada vez mais necessária e estratégica. Ainda segundo Morten (2017), é possível perceber sucessivos planos de ação para a manutenção e melhoria das pesquisas no continente Antártico, tendo os investimentos em ciência mais do que dobrado de 1997/1998 a 2004/2005. Além disso, os pesquisadores neozelandeses estão dentre os que mais publicam artigos na área e suas diversas descobertas contribuem em eventos mundiais, possibilitando pesquisas conjuntas com outros países. O principal parceiro internacional da Nova Zelândia na Antártica são os Estados Unidos, com o qual compartilha acordos logísticos devido à proximidade de suas bases.
Juntamente com a Austrália, é um dos países que mais contribui para as políticas ambientais na região, sendo um dos membros mais ativos na Comissão para Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártica (CCAMLR, sigla em inglês), buscando constantemente a criação de áreas de proteção ambiental em regiões antárticas próximas ao território neozelandês e ao território antártico reivindicado pelo país. Um dos principais entraves para a criação destas áreas de proteção ambiental são os vetos constantes aplicados por Rússia e China, além de táticas protelatórias que enfraquecem as negociações. O desinteresse de tais países na concretização dos acordos se dá pelo fato de possuírem grandes frotas pesqueiras no Oceano Austral, fonte de recursos alimentícios e potencial de extrativismo energético (BROOKS, 2013). A presença de navios estrangeiros em águas próximas aos territórios reivindicados tanto pela Austrália quanto pela Nova Zelândia é vista como ameaça à soberania dos mesmos, que recorrem à meios jurídicos e diplomáticos ligados a questões ambientais como a CCAMLR para salvaguardarem seus interesses (HEMMINGS, 2008).
4. Ciência e tecnologia aliadas à Defesa
O New Zealand Antarctic Research Institute, em parceria com o Antarctica New Zealand, é o órgão de pesquisa científica da Nova Zelândia. Seu objetivo é a proteção do meio ambiente e pesquisa científica. O desenvolvimento deste ponto é fundamental para os neozelandeses e todos os outros países membro do Tratado Antártico de 1959, visto que o artigo IX determina que:
Cada Parte Contratante que se tiver tornando membro deste Tratado por adesão, de acordo com o Artigo XIII, estará habilitada a designar representantes para comparecerem às reuniões referidas no Parágrafo 1 do presente artigo, durante todo o tempo em que a referida Parte contratante demonstrar seu interesse pela Antártida pela promoção ali de substancial atividade de pesquisa científica, tal como o estabelecimento de estação científica ou o envio de expedição científica (TRATADO, 1959: p. 8).
Em 2010 foi lançada a Estratégia Científica neozelandesa 2010-2020 focada na Antártica e no oceano austral. Tal estratégia envolve o maior conhecimento sobre o continente, impactos das mudanças climáticas no local, ecossistemas marinhos e sua conservação. É importante ressaltar que o financiamento de pesquisas é feito pelo governo (através de projetos próprios ou junto às Universidades) e também por algumas agências da iniciativa privada nacional; em 2013, um evento acadêmico realizado pelo Instituto de Pesquisa Antártica da Nova Zelândia (NZARI, na sigla em inglês) uma dessas agências privadas, fomentou discussões para os cinco anos seguintes, ou seja, até 2018, que resultaram em um documento enviado ao Governo como uma proposta de Livro Branco para a Antártica (NZARI, 2013).
Assim, a partir de 2013, a Nova Zelândia passou a publicar suas visões estratégicas nestes documentos. O Livro Branco de Defesa neozelandês de 2016 teve como foco seu programa antártico; já a edição de 2018, apesar de ser menos enfática que a anterior, mantém a abordagem sobre o território, sublinhando sua responsabilidade na manutenção da presença civil no continente, o constante patrulhamento em sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE) – a zona da Nova Zelândia na região antártica é a maior do mundo, com uma área de 405 milhões de hectares – juntamente com o desenvolvimento de seu aparato militar propício para tal atividade; proteção do meio ambiente e da pesquisa científica e manutenção da soberania neozelandesa em determinadas áreas antárticas e próximas, como as áreas de proteção ambiental, especialmente os santuários livres de atividade pesqueira. A questão da presença civil é uma das mais ressaltadas pelos documentos de defesa da Nova Zelândia, primeiro pela óbvia necessidade de garantir a segurança dos cidadãos neozelandeses que fazem a travessia dos oceanos até chegar ao continente e passam por longos períodos trabalhando na região; segundo porque manter tais cidadãos na região é uma forma de se afirmar como potência presente na Antártica (NEW ZEALAND GOVERNMENT, 2018).
A segurança cibernética e a coleta de informações estratégicas foram temas constantes nas últimas edições do Livro Branco de Defesa nacional, tendo a Antártica como uma de suas prioridades na edição de 2016, apesar de apresentar pouco desenvolvimento sobre o tipo de estratégia a ser adotada. Entretanto, na edição de 2018, o continente não é citado dentro do escopo, deixando o foco para o terrorismo cibernético (Idem).
É clara a intenção da manutenção da reivindicação de soberania da Dependência de Ross, região sob aclamação neozelandesa desde 1923 e reforçada com a instalação da Scott Base. Essa presença conta com um forte suporte da infraestrutura militar do país, que segundo o livro branco vai ganhar novos navios quebra-gelo e suporte da Força Aérea da Nova Zelândia (NEW ZEALAND GOVERNMENT, 2016a).
No ano de 2016 o Ministério das Relações Exteriores, por meio da pasta Antarctica New Zealand, lançou o documento Statement of Intent 2016-2020, ressaltando os planos para o continente durante os quatro anos seguintes. Apesar de pouco diferir do que foi apresentado no Livro Branco de Defesa de 2016, o documento enfatiza o orçamento adicional de $16,7 milhões apenas para suporte logístico das atividades científicas. O aumento de verbas para a ciência, se pautando no aspecto de cooperação científica do tratado, é uma forma de garantir que a presença estrangeira na região não envolva ações militares e econômicas, de modo a impor sua hegemonia e defender seu entorno marítimo. O país tem total entendimento dos riscos que corre com a exploração estrangeira tanto em mar, quanto em solo antártico, graças à grande influência climática e ecossistêmica que aquele continente possui em seu território, e à ameaça da posição estratégica de bases e navios no continente próximo (NEW ZEALAND GOVERNMENT, 2016b).
Em maio de 2017, por ter sido entendido como prioridade científica, foi aprovado o orçamento de financiamento pelo Fundo de Investimento em Ciência Estratégica cujo projeto é uma nova Plataforma Científica6 para a Antártica. O propósito é compreender o impacto do sexto continente ao ecossistema da Terra, e como isso pode mudar em um mundo com o aumento da temperatura global de
Em maio de 2017, por ter sido entendido como prioridade científica, foi aprovado o orçamento de financiamento pelo Fundo de Investimento em Ciência Estratégica cujo projeto é uma nova Plataforma Científica6 para a Antártica. O propósito é compreender o impacto do sexto continente ao ecossistema da Terra, e como isso pode mudar em um mundo com o aumento da temperatura global de + 2°C, conforme estabelecido no Acordo de Paris; e, ainda, salvaguardar os benefícios estratégicos da atividade científica da Nova Zelândia na Antártica e otimizar o valor e o impacto da ciência antártica e das despesas relacionadas à esta (ANTARTICA NEW ZEALAND, 2017). Para a realização de tal projeto seráo disponibilizados $49 milhões durante sete anos, que financiarão pesquisas em território antártico ou sobre o mesmo (NEW ZEALAND GOVERNMENT, 2017).
5. Considerações finais
A Nova Zelândia passou a reafirmar sua postura de vigilância perante o continente antártico, de modo a aumentar os investimentos para a patrulha na região e envolver mais cientistas em seu instituto antártico. Cooperar com os Estados Unidos na região pode significar uma frente mais agressiva diplomaticamente em relação à Rússia e China, principalmente, países com maior quantidade de navios pesqueiros na região.
Ao destinar valiosos recursos financeiros, tempo, material e especialistas empregados no setor tecnológico e científico, o país ao mesmo tempo cumpre suas obrigações legais em relação ao Tratado e constrói o casamento ciência-tecnologia-desenvolvimento, tão caros ao setor de defesa. Por ter sua operabilidade administrada por militares, não é distante a noção de que as bases científicas poderiam facilmente ser adaptadas para bases militares em situações de exceção, principalmente porque as forças armadas são a principal instituição capaz de operar em ambientes extremos como o sexto continente. Os investimentos para infraestrutura são minimamente pensados de modo a se adequar a diversas situações, dessa forma, todos os setores são beneficiados com o programa. Adentrar na problemática ambiental significa para a Nova Zelândia encontrar um ponto de interesse comum entre Estado e população que justifica a aplicação de recursos na região.
É interessante para o Brasil manter boas relações com a Nova Zelândia para futuros diálogos em casos de conservação ambiental, tanto no continente quanto em suas águas, especialmente após todos os esforços legais e estratégicos que o país desempenhou para manter sua posição vigilante na região. Mas também é interessante compreender como o país se insere na região e em que nível se dá o esforço político para tal, e como os investimentos na área de ciência e tecnologia também são investimentos em pesquisa e desenvolvimento na área de Defesa, uma vez que o Tratado da Antártica alia todas essas esferas. Desse modo, as políticas implementadas em setores estratégicos ganham robustez e maior complexidade.
Os pontos de interesse no continente foram desenvolvidos conforme os outros países diminuíram temporariamente seus interesses antárticos. É importante ressaltar que, em caso futuro de escalada de conflito na região, as nações da Oceania que detêm bases no polo sul terão maior vantagem tecnológica sobre a Antártica, graças a seus esforços contínuos para manter certo status quo regional. Nesse sentido, o aumento dos investimentos e a constante realização de pesquisas visando à melhor utilização do continente podem gerar conhecimentos de uso dual e, se “saber é poder”, os Estados detentores de projetos sólidos, análises robustas e tecnologias adequadas estarão muitos passos à frente num possível cenário de tensão regional.
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Notas
<https://www.mfat.govt.nz/en/environment/antarctica/>. Acesso em: 01 de fevereiro de 2020.