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Integração Sul-Americana e Política Externa Brasileira: o regionalismo aberto e o pós-liberal
Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais, vol. 3, núm. 4, Esp., pp. 49-66, 2019
Universidade Federal Fluminense

Artigos

Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais
Universidade Federal Fluminense, Brasil
ISSN: 2595-699x
Periodicidade: Semestral
vol. 3, núm. 4, Esp., 2019

UFF/BR

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de analisar a relação entre os modelos de integração presentes na América do Sul nos anos 1990 e 2000, sendo estes o regionalismo aberto e o regionalismo pós- liberal, com a política externa brasileira nos governos de FHC e Lula. Desta forma, iremos explorar estes conceitos e às suas formulações, bem como a sua aplicação nos dois governos. Neste sentido, também se faz necessário identificar o papel do Brasil na integração da região, quais são as ações feitas e às iniciativas lançadas e apoiadas pelo Brasil na América do Sul, ressaltando o Mercosul, Iirsa e Unasul. Também será avaliado no que esses modelos convergem e divergem e analisar o porquê de terem surgido nesses períodos. Com o principal objetivo de analisar os regionalismos, a política externa brasileira e contextualizar estes períodos, a pesquisa contará majoritariamente com uma revisão bibliográfica sobre a integração regional e a política externa brasileira, além de discursos e produções dos presidentes aqui citados.

Palavras-chave: Integração Sul-Americana, Regionalismo, FHC, Lula, Política Externa Brasileira .

Abstract: This paper aims to analyze the relation between the integration models in South America in the 1990s e 2000s, such as the open regionalism and the post-liberal regionalism, in the Brazilian foreign policy of FHC and Lula. Thus, the concepts and its formulations will be explored, as well as its use in this governments. In this regard, it is also necessary to identify Brazil's role in the region's integration and what are the actions taken and the launched and supported initiatives by Brazil in South America, stressing Mercosur, Iirsa and Unasur. It will be also evaluated the similaritys and dissimilaritys and why they arise in those moments. With the main goal of analyzing the regionalisms, Brazilian foreign policy and contextualize these periods, the research mainly contains a literature review about regional integration and brazilian Foreign affairs, besides speaches and textual productions of the presidents mentioned.

Keywords: South-American Integration, Regionalism, FHC, Lula, Brazilian Foreign Affairs .

1. Introdução

O presente trabalho tem o objetivo de analisar os modelos de integração presentes na América do Sul nos últimos anos, sendo este o regionalismo aberto e o regionalismo pós-liberal, sabendo que o primeiro modelo foi construído nos anos de predominância do neoliberalismo com grande apoio da Cepal, dos Estados Unidos e de instituições financeiras internacionais; enquanto o segundo surge com a queda do neoliberalismo e a instalação de governos mais progressistas e inclinados à esquerda. Assim, o trabalho pretende avaliar como o modelo cepalino dos anos 1990 - que favorecia o livre- comércio e a integração regional baseada em troca de mercadorias e redução de tarifas - e o que viria a ser classificado por acadêmicos como Sanahuja como “regionalismo pós-liberal” – que supera o modelo anterior de integração neoliberal para a região e favorece o aparecimento de possibilidades de integração por outras vias - apareceu na formulação da política externa brasileira nos governos FHC e Lula para a região sul-americana. Pretende-se descobrir se houve uma mudança positiva de um período para outro e neste sentido, também cabe assinalar qual foi o papel do Brasil na integração da região nos dois governos. Da mesma forma, intenciona-se realizar, por fim, uma comparação e contraste entre os modelos de regionalismo e os distintos períodos da política externa.

Para isso foi consultada uma bibliografia que versa sobre a integração regional, os diferentes regionalismos, política externa brasileira, além de fontes primárias. Na elaboração desta análise é apresentada uma breve contextualização histórica, as diferenças entre o regionalismo aberto e o pós- liberal, a política externa do FHC, a política externa do Lula e considerações finais.

Para melhor compreender a temática, é interessante ressaltar os antecedentes e influências desses processos. Assim, nos anos 1980 a maioria dos países latino-americanos apresentou um grande crescimento da sua dívida externa. Para resolver esta situação, instituições internacionais como o FMI e Banco Mundial, juntamente com os Estados Unidos, propuseram uma série de mudanças macroeconômicas. Desta maneira, há em 1989 o Consenso de Washington que marca a chegada massiva da onda neoliberal no continente e recomenda inúmeras mudanças, tendo como principais eixos a desestatização e maior abertura econômica (SOUZA, 2012, p. 112). Nesse contexto, são eleitos governos com plataforma neoliberal nas Américas, com influência do pensamento monetário e o regionalismo aberto da Cepal. A proposta das instituições financeiras e dos países do Norte visava a criação de um “choque de mercado” para o desanimado capitalismo do fim da Guerra Fria . As ideias neoliberais reduziam o papel do Estado, dando a este o trabalho de garantir a estabilidade monetária, enquanto as outras questões o mercado se encarregaria de solucionar (CERVO, 2003).

Já no que tange a política externa, propriamente dita, historicamente, a visão de América do Sul para o Brasil esteve muito focada na Bacia do Prata. No governo JK, esta percepção vai se modificando um pouco, sobretudo com a criação da ALALC e depois a da ALADI (HELENO; LUIZ, 2011, p. 45). O termo América do Sul só passa a ganhar corpo na diplomacia brasileira a partir dos anos 1990, sobretudo com o afastamento do México da América Latina ao se incorporar ao NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) (SANTOS, 2014). Sendo assim, no início dos anos 1990, sob a chancelaria de Amorim, o Brasil propõe a ALCSA (Área de Livre Comércio Sul- Americana) que surge como uma reação diplomática brasileira ao bloco norte-americano - que além de ajudar a iniciar uma fragmentação na integração latino-americana , também passa a deslumbrar alguns vizinhos. No entanto, há uma dificuldade na sua implementação e o projeto é abandonado por FHC.

A América do Sul, apesar de já ter o seu espaço geográfico delimitado, ainda está sendo desenvolvida como conceito. Nesse seguimento, Couto (2010) ressalta que há dois desafios para a integração da América do Sul, sendo o primeiro o Brasil se integrar a América do Sul e o segundo a América do Sul se integrar de uma forma que seja coesa e faça sentido.

2. Regionalismo Aberto x Regionalismo Pós-Liberal

Os regionalismos aqui adotados para explicar as décadas de 90 e a dos anos 2000, são distintos em significado e formação. O regionalismo aberto é uma proposta da Cepal nesse contexto de neoliberalismo continental, globalização e livre-mercado. Historicamente, a Cepal tinha grande influência nos governos latino-americanos, que tinham em boa estima os seus estudos e proposições. Ainda que, nesse momento a Comissão já não tivesse mais tamanho prestígio, é essencial ressaltar a sua condição e o seu papel. No caso do pós-liberal, ele está ligado ao momento de ascensão das esquerdas na América do Sul, sendo conceituado por Sanahuja (2008) para explicar o período da chegada de novas pautas na região e o consequente afastamento do livre-comércio como único pilar da integração regional. Esse termo, então, não é uma proposição de alguma instituição, e sim um conceito criado por um acadêmico para explicar aquele regionalismo existente que rompia com o cepalino e inaugurava um novo modelo.

Sendo assim, o regionalismo aberto é caracterizado como:

(...) um processo de crescente interdependência no nível regional, promovida por acordos preferenciais de integração e por outras políticas, num contexto de liberalização e desregulação capaz de fortalecer a competitividade dos países da região e, na medida do possível, constituir a formação de blocos para uma economia internacional mais aberta e transparente (CORAZZA, 2006, p. 145).

Como proposta da Cepal, cabe ressaltar que a instituição estava nitidamente perdendo sua relevância e se posiciona de forma pragmática com esta proposição, já que incorpora parte do neoliberalismo presente nos países, criando uma similitude com os governos e assim tentaria manter a sua importância. Destarte, essa sua nova ideia era mais neoliberal do que estruturalista desenvolvimentista, perdendo então parte da sua tradição (CERVO, 2003, p. 15).

O novo regionalismo tenta conciliar a interdependência regional resultante do processo de integração com a liberalização comercial, adaptando então, a política de integração com tentativas de aumento da competitividade internacional. Desta maneira, essa nova classificação de regionalismo situa a integração como uma etapa para a liberalização do comércio. Logo, “o ‘regionalismo aberto’ vê o mercado comum latino-americano como meio de superar o modelo de industrialização através da substituição de importações, de diversificar a estrutura produtiva e de diminuir a vulnerabilidade externa (CORAZZA, 2006, p. 145-146)”. Assim,

O Regionalismo Aberto significa que a integração serviria para uma melhor inserção das economias da América Latina no cenário internacional e não apenas na própria região. Essa estratégia seria mais eficiente que a do Regionalismo Fechado que prevaleceu até os anos 1980 que visava diminuir o problema da deterioração dos termos de troca, sendo o mercado regional uma válvula de escape dos bens nacionalmente produzidos e pouco competitivos em termos mundiais. Nesse sentido o modelo partia de dentro e fechava-se na própria região, vista como mera extensão do mercado interno (CEPAL, 1994; HURRELL, 1995 apud BORGES, 2011, p. 22).

A integração do continente passaria a ser sincronizada com uma maior inserção econômica dos países, constituindo em uma etapa para a liberalização comercial (CORAZZA, 2006, p. 145). Em termos práticos, o regionalismo aberto teve seu grande foco na liberalização comercial intra-grupo – prática esta, que entrou no lugar da antiga política de desenvolvimento – dando pouca atenção para outras questões. Como resultado dessa política se obteve uma liberalização desigual e não foi concluída a eliminação total das barreiras não tarifárias. Tampouco a integração comercial conseguiu transbordar para novas propostas (SANAHUJA, 2008, p. 14-15).

Na virada do século, o neoliberalismo e o regionalismo aberto acabam por perder apoio devido à diminuição do crescimento das economias e a elevação da desigualdade sócio-econômica (BRICEÑO-RUIZ; HOFFMAN, 2015, p. 50-51). Com base nisso, pode-se concluir que as iniciativas derivadas da proposta do regionalismo aberto, juntamente com as de cunho neoliberal não foram efetivas para alavancar a economia de parte dos países da América do Sul ou a integração regional. Deste modo, nos anos 2000 começa o fim do ciclo de governos neoliberais que propagavam o regionalismo aberto. A crise desse modelo levou a novas propostas de integração em que se tornava aparente o rechaço ao regionalismo aberto e às políticas do Consenso de Washington, dando destaque às questões políticas, retorno de uma agenda desenvolvimentista e protagonismo dos atores estatais (SANAHUJA, 2008, p. 22-23). Nessa época uma série de presidentes de esquerda/progressistas tomam posse na América Latina, todos com um discurso anti-liberal, no que ficou conhecido na literatura como a “maré rosa”. Esse fenômeno tem certa afinidade com o regionalismo pós-liberal por descrever o seu período político. O conceito da maré rosa

(...) foi apresentado por Panizza (2006) para caracterizar o fenômeno de ascensão de partidos e coalizões que se definem como esquerda ou centro-esquerda a governos nacionais em diversos países da América Latina. A expressão faz referência à ascensão de partidos de centro-esquerda na Europa em meados da década de 90. Apesar das especificidades distintas entre o caso europeu e o latino-americano, a expressão foi mantida e a variável “onda rosa” (PEREIRA DA SILVA, 2011) também tem sido utilizada (NASCIMENTO JÚNIOR, 2017, p. 17).

O pós-liberalismo abandona o pilar do regionalismo antecessor no livre comércio - já que passa a enxergá-lo como um empecilho para as políticas de desenvolvimento dos países sul-americanos e o regionalismo em si ganha a posição de mecanismo auxiliar no desenvolvimento interno e na superação de assimetrias e desigualdades (BRICEÑO-RUIZ; HOFFMAN, 2015, p. 51). Dessa maneira, ainda que ambos os regionalismos versem sobre desenvolvimento, suas táticas são dessemelhantes.

O regionalismo pós-liberal - conforme Sanahuja (2008) - possui entre as suas características e objetivos: uma agenda política, de desenvolvimento e de paz e segurança, maior papel do Estado, criação de instituições e política comuns, cooperação sul-sul, iniciativas para melhorar a infraestrutura regional, ênfase na “integração positiva”, segurança energética, preocupação com a dimensão social da integração, entre outros.

Nesse momento são criadas novas instituições e relançamento de outras. O Mercosul passa a ter e fortalecer ênfases políticas e sociais com o Mercosul Social, Focem (Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul) e Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul. Em relação às novas instituições, os destaques são a Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) e posteriormente a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) que possuíam um programa diverso para a integração e cooperação.

É importante ressaltar que o conceito de regionalismo pós-liberal serve para explicar a ascensão dos governos de esquerda com um discurso anti-neoliberal , como exemplificado na maré rosa, no início do século. Assim, como Sanahuja escreve em 2008, ele se propõe a analisar aquele momento específico de predominância desses governos e de reprojeção do regionalismo sul-americano. Esse termo perde certa validade a partir dos nos 2010, onde começa a ser observado menor intensidade nas relações sul-americanas e possivelmente tem o seu fim quando governos de centro ou direita ascendem ora por via eleitoral, ora por golpes de Estado.

3. Política Externa para a América do Sul em Fernando Henrique Cardoso

Na década anterior, ao final do governo Sarney foi iniciada mudanças para absorver as ideias liberais e a globalização (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 31). Nos anos 1990, com o fim da Guerra Fria, a sociedade internacional estava passando por uma reestruturação e assim surgia uma nova agenda a partir dos “novos temas” políticos que foram ganhando maior peso - como economia, comércio, ciência e cultura. Com base nisso, os formuladores da política comercial, junto com o empresariado, entenderam que o Brasil obteria mais ganhos com uma abertura, o que tornaria o país mais competitivo, de modo que não ficaria para trás no sistema internacional e de comércio (Ibid., p. 33).

Cervo (2002), ao falar das relações exteriores do Brasil, elabora três paradigmas, sendo eles o do Estado desenvolvimentista (1930-1989), Estado normal (anos 1990) e Estado logístico (anos 2000). Para este trabalho é interessante ressaltar o “Estado Normal”, vigente em boa parte dos países latino- americanos nos anos 1990, na política externa de FHC e atrelado a ideologia neoliberal.

(...)[o Estado Normal] envolve três parâmetros de conduta: como Estado subserviente, submete-se às coerções do centro hegemônico do capitalismo; como Estado destrutivo, dissolve e aliena o núcleo central robusto da economia nacional e transfere renda ao exterior; como Estado regressivo, reserva para a nação as funções da infância social (CERVO, 2002, p. 6-7).

O Estado normal levou à adoção acrítica de uma ideologia imposta pelos países centrais e à eliminação de ideias relacionadas aos interesses nacionais. A adesão do modelo econômico proposto, combinado com privatizações (inclusive de setores estratégicos) que culminou em venda de empresas brasileiras para estrangeiras e as medidas liberalizantes, tornaram o país mais servil aos países do norte e ainda mais dependente de capital externo. No entanto, ao destacar essas novas medidas é importante ressaltar que acreditava-se que a estratégia desenvolvimentista anterior teria auxiliado no endividamento, na instabilidade da moeda e na estagnação da economia, sendo necessária sua substituição (Ibid., p. 7-8).

Sua política externa fez um esforço para fortalecer as instituições e as regras internacionais para o aprimoramento do multilateralismo. Assim, a busca pela autonomia brasileira se circunscrevia nos limites da participação em organismos internacionais (TOLEDO, 2014, p. 7). Em 1992, o chanceler Celso Lafer caracteriza as relações exteriores do Brasil na busca “de relações externas universais, sem alinhamentos ou opções excludentes, com vistas a preservar a autonomia [pela integração] do país na sua atuação internacional” (MELLO, 2000, p. 92 apud VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 33). O governo de Fernando Henrique Cardoso, com início na metade dos anos 1990, também buscou essa “autonomia pela integração ”. De acordo com as ideias da diplomacia brasileira à época, o país se tornava mais ativo no cenário internacional, participando da regulamentação das relações internacionais e cuidando de estabelecer um ambiente propício para o desenvolvimento econômico brasileiro. Neste momento o Brasil irá buscar o status de global trader ao tentar diversificar as suas relações externas (conciliando o aspecto regionalista) e assim buscar ganhos na liberalização comercial multilateral (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003). É interessante ressaltar a conexão entre o universalismo e o regionalismo;

[...] o universalismo dos anos noventa se expressa primordialmente no regionalismo: é nesta área que o Brasil encontrou seu principal espaço de reafirmação de autonomia, na resistência à integração hemisférica, no processo de integração subregional do Mercosul e nas suas novas iniciativas na América do Sul (MELLO, 2000, p. 112 apud VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 46).

Um dos pensamentos por detrás da abertura comercial – motivada pelo regionalismo aberto e o neoliberalismo - era a ideia de que ela acarretaria em uma modernização do sistema produtivo, o que elevaria a competitividade externa do Brasil. FHC acreditou e implementou essas ideias, mas esses resultados não ocorreram da forma que esperava e o seu governo optou pela via das negociações nos sistemas multilaterais. Tendo isto em vista, a abertura também não alterou a qualidade das exportações brasileiras e o déficit gerado nos seus primeiros seis anos de governo colaborou para a deterioração das contas externas. Em sua gestão houve aumento substancial da dívida pública interna e da dívida externa (CERVO, 2002).

Nos anos 1990 a América do Sul se torna área preferencial da atuação brasileira e elemento da sua identidade internacional. Com certa fragmentação do conceito de América Latina, a diplomacia passa a aderir em seu discurso a América do Sul e posicionar o Brasil como um país sul-americano. Para Lafer (2001 apud COUTO, 2010) a América do Sul se torna parte do “eu diplomático brasileiro” e uma plataforma crucial para a projeção internacional do Brasil.

Na integração sul-americana, Santos (2014) salienta que durante o governo Cardoso, apesar de algumas iniciativas, o Brasil não se colocou como líder na região e tampouco assumira os custos da integração como paymaster. Ainda que com uma política externa que dava boa relevância ao seu entorno geográfico, o universalismo com alvo principal no livre-comércio prevalecia. Os objetivos finais da chancelaria eram fortalecer e acelerar a liberalização comercial para obter uma melhor inserção brasileira no mercado mundial.

No que se refere à iniciativa do Mercosul, Cervo (2002, p. 24-25) recorda que a integração industrial e o desenvolvimento foram substituídos pelas ideias do regionalismo aberto e todas as estratégias lançadas eram estritamente comerciais. FHC manteve o Mercosul como prioridade na agenda brasileira e ele era visto como uma forma de inserção competitiva no mercado global – sendo capaz de incorporar os seus membros às tendências internacionais, trabalhando com a possibilidade de integração com outros países e regiões.

Além disso, o fato da iniciativa estar imersa em seu regionalismo aberto, não fazia o Brasil correr o risco de ter que se fechar para outros parceiros (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 34-35). Seus efeitos são notórios: o comércio intrazonal aumentou quase cinco vezes entre 1990 e 1997, com crescimento de pelo menos 50% nas exportações e aumento de mais de 150% nas importações. O regionalismo aberto pregado pelo bloco provocou um “um desvio de comércio, extremamente oportuno para economias incapazes de elevar-se à competitividade sistêmica global” (CERVO, 2002, p. 25).

Era interessante para o Brasil a proposta de regionalismo aberto no Mercosul, pois deixava-o ter “reserva de autonomia”, já que o não exclusivismo permitia que o país aderisse normas e regimes internacionais que fossem de seu interesse (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 45-46). Ao mesmo tempo, o Mercosul era estratégico para a política global brasileira, pois

era uma peça intermediária de abertura; a passagem menos traumática de uma economia fechada a outra mais alinhada às exigências internacionais de abertura (...) Em resumo, a política brasileira em relação ao Mercosul haveria tido, assim, três objetivos: permitir-lhe a abertura gradual de sua economia; enfrentar os desafios econômicos e políticos da hegemonia norte-americana; e alcançar um reconhecimento mundial. Portanto, o Mercosul, para o Brasil, era, efetivamente, um instrumento de realpolitik (BERNAL-MEZA, 1999, p. 45-46).

Em um similar viés estratégico, nasceu a IIRSA, Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, em 2000 como uma proposta de Fernando Henrique Cardoso que só irá se consolidar no governo Lula. A iniciativa visava impulsionar a melhora de infraestrutura da América do Sul e consequentemente conectar fisicamente as regiões, promovendo maior integração e intercâmbio comercial. Um dos seus princípios norteadores - como os seus relatórios apontam - é o regionalismo aberto, tendo a América do Sul como um espaço onde se objetiva reduzir as barreiras comerciais e gargalos de infraestrutura. A abertura comercial permitiria identificar os setores produtivos de alta competitividade a nível mundial e a ideia do subcontinente configurado como uma só economia ajudaria a distribuir maiores benefícios comerciais para toda a região (FERNANDES; FILHO, 2017, p. 5).

A preocupação com a liberalização comercial alinhada às iniciativas regionais com foco em uma melhor inserção no comércio internacional estará presente durante todos os anos 1990, salientando as ideias do regionalismo aberto e do paradigma do Estado normal. O Estado brasileiro esforçou-se para uma maior abertura comercial, estimulando de fato um crescimento para fora. A perspectiva dos anos neoliberais de que o regionalismo aberto chega para favorecer a economia internacional mais aberta – que seria necessariamente algo bom e um objetivo a ser alcançado – se evidencia quando o MRE aponta que o objetivo são soluções globais, sem aparentemente levar em conta especificidades brasileiras ou sul-americanas;

O MRE manteve na década de 1990, e até o final da gestão FHC, o princípio de que “a solução global deve ser o objetivo” (Brasil, MRE, 1993, p. 199), ou seja, na formulação de diplomatas, optar pela Alca ou pela área de livre comércio com a União Européia implicava contribuir para o estabelecimento e para o pleno funcionamento de um regime internacional de liberalização comercial (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 34-35).

Assim, a opção pelo neoliberalismo e o novo regionalismo fez parecer que era necessariamente de interesse do Brasil uma maior abertura comercial. Se apontava naquele momento – também influenciada pela ideia de globalização -, que este era o melhor caminho a ser seguido. De qualquer maneira, se evidencia o paradigma do Estado normal ao adotar e pregar ao mundo as sugestões dos grandes centros hegemônicos de poder de forma praticamente acrítica, e se elucida a submissão brasileira e a falta de estratégia e autonomia.

Entre resultados positivos e limitações da política externa adotada por FHC, podemos citar:

(...) a confiabilidade despertada pelo país no exterior, possibilitando a atração de investimentos externos diretos, significativamente importantes para o sucesso da estabilidade macroeconômica; o apoio de organismos multilaterais e de governos de países desenvolvidos em momentos de ameaça de crise financeira e econômica, como a crise cambial de 1999. Entretanto, tendências profundas, sobretudo as ligadas à debilidade do crescimento econômico no Brasil ao longo dos dois mandatos, com exceção do índice 4,4% alcançado em 2000 (cf. Intal, 2003, p. 7), limitaram a possibilidade de melhor utilização da política externa para alavancar os objetivos estratégicos, de caráter político e econômico (Ibid., p. 41).

Ao fim de seu mandato, Fernando Henrique Cardoso faz um balanço da política externa brasileira. É interessante ressaltar quais foram os ganhos alcançados em sua perspectiva.

Tendo [o Brasil] aberto seu mercado ao comércio internacional e, sobretudo, tendo alcançado a estabilidade monetária, o Brasil tornou-se capaz de estabelecer uma relação inteiramente diferente com a economia internacional: uma relação que já não se baseia na ideia de ameaça, mas na ideia de desafio. Internamente, os resultados foram sem precedentes. A maior abertura aos fluxos externos de bens, serviços, capital e tecnologia contribuiu para uma restruturação abrangente de nossa base produtiva. Nossas empresas tornaram-se mais competitivas. Nossa força de trabalho viu-se confrontada com a necessidade de adaptar-se a um ambiente de inovação incessante, que valoriza a qualificação e as habilidades técnicas. Por nos tornarmos mais abertos, ficamos também mais sensíveis ao que ocorre em torno de nós. Em conseqüência, o Brasil vem expressando seus pontos de vista e suas preocupações sobre o funcionamento da economia internacional e, de forma mais ampla, do sistema internacional (CARDOSO, 2001, p. 7).

Porém, analisando outras visões, houve muitas falhas. Cervo (2002, p. 8) não acredita nem na autonomia e nem na eficiência da política externa executada naquela época. Para ele, o Brasil havia desistido de fazer política internacional própria, acatando as sugestões de Washington ao implementar políticas de rigidez fiscal e privatizar empresas públicas em prol de empresas estrangeiras, na tentativa de pagar a dívida externa com os dólares arrecadados. Em um momento posterior, criou facilidades para o empreendimento estrangeiro – seguindo as orientações americanas, do FMI e do Banco Mundial, onde os países deveriam se tornar favoráveis à expansão das transnacionais em seu território.

A subserviência do Estado normal, erigida como ideologia da mudança, engendrou graves incoerências, ao confundir democracia com imperialismo de mercado, competitividade com abertura econômica e desenvolvimento com estabilidade monetária. Completou-se com o desmonte da segurança nacional e a adesão a todos os atos de renúncia à construção de potência dissuasória.

Na vigência dessas novas condições políticas, o Estado normal encaminhou no Brasil a destruição do patrimônio e do poder nacionais. (...) A ação destrutiva do Estado normal priva, ademais, o governo de meios de poder sobre a arena internacional (CERVO, 2002, p. 8-9).

Desse modo, FHC teve certo êxito em manter a estabilidade econômica interna, porém ao tentar unir o âmbito externo com os objetivos internos do Brasil acabou por deteriorar a função da política exterior. "Seu governo confundiu abertura com estratégia e sacrificou a política exterior, que deixou de servir ao desenvolvimento e à superação de dependências estruturais (Ibid., p. 29)." A estratégia da política externa brasileira era unicamente a abertura comercial. Desta maneira a sua política fracassou, pois expôs as finanças brasileiras à especulação e alienou parte do núcleo da economia com as privatizações e transferência de ativos para fora do país. Agravando a dependência e vulnerabilidade externa. Em suma, para Cervo (2002), o governo Cardoso também se iludiu ao acreditar no ordenamento multilateral (suas justas regras e no respeito de todos os membros a tais) e na ilusão de divisas ao crer que o capital externo não causaria desequilíbrio na balança de pagamentos.

4. Política Externa para a América do Sul em Luiz Inácio Lula da Silva

No século XXI ganha força na América Latina governos com discursos anti-neoliberais e de cunho mais social, definido por Panizza como “maré rosa”. Nesse cenário, é eleito em 2002 Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, como líder do poder executivo no Brasil, assumindo seu cargo em 2003. Celso Amorim retorna ao cargo de Ministro das Relações Exteriores – após sua breve gestão no governo Itamar Franco – e fica neste posto até 2010. Ainda que a importância do continente estivesse notável no governo anterior, nesse período é conferida grande prioridade a América do Sul e empreendido maiores esforços de integração, dando uma diferente ênfase ao continente e suas relações (SANTOS, 2014). Em seu discurso de posse, Lula já evidencia as diretrizes em relação à América do Sul:

A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração.

O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados.

Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americano.

A sua política externa também irá inovar no que tange o organograma de sua chancelaria e distribuição de funções. Samuel Pinheiro Guimarães se torna Secretário-Geral das Relações Exteriores do MRE e principal formulador da política externa. Somando a isso, destaca-se a grande influência de Marco Aurélio Garcia como Assessor Especial da República para Assuntos Internacionais e a criação da Secretária-Geral da América do Sul dentro do Itamaraty, ressaltando a grande importância concedida à região na política externa.

Com Lula, o Estado readquire seu protagonismo, reafirma-se a América do Sul como uma região e sai em busca de uma identidade sul-americana. Tem-se o objetivo de ter determinado grau de autonomia em relação aos EUA e outras potências, rechaçando a ALCA, e vêem na coalizão política uma forma de se defenderem de interesses alheios, sem necessariamente criar um confrontamento direto com o poder hegemônico regional (TOLEDO, 2014).

Amado Cervo (2008 apud TOLEDO, 2014, p. 20) conceitua o “paradigma da cordialidade oficial” para caracterizar a política externa da era Lula. Este paradigma indica que o Brasil defendia o seu interesse nacional com cuidado para não causar conflitos. Ou seja, não tentaria impor as suas vontades nos vizinhos, visando robustecer e amadurecer as relações com os países, colocando o diálogo e a negociação em primeiro lugar.

Deste modo,

A cordialidade oficial aconselha conduta regional que não ostente a grandeza nacional e a superioridade econômica e que elimine gestos de prestígio, mas que se guie pela realização dos interesses do Brasil sobre os dos vizinhos, seja pela cooperação seja pela negociação, e fortaleça seu poder internacional, razões que podem momentaneamente quebrar a cordialidade. A quebra não é aconselhável, por tal razão o governo Lula recusou-se a abrir conflito com seus colegas da Argentina e Bolívia, Néstor Kirchner e Evo Morales, quando interesses do comércio exterior e dos investimentos brasileiros foram afetados. (CERVO, 2008 p. 30 apud TOLEDO, 2014, p. 20-21).

Esse paradigma pode ser ilustrado pelo caso dos hidrocarbonetos com a Bolívia e a renegociação da energia de Itaipu paga pelo Brasil ao Paraguai. No tocante a isto, Garcia (2010 apud TOLEDO, 2014, p. 20) acreditava que a concessão aos “irmãos menores” é uma responsabilidade do Brasil, devido ao seu tamanho. Assim, certos consentimentos brasileiros com seus vizinhos surgem como uma tentativa de reparar certas assimetrias e conquistar confiança e apoio dos mesmos.

Neste período o Brasil inaugura uma posição mais dinâmica, com uma política externa que ficou conhecida como “ativa e altiva” na concepção de Amorim. O papel da liderança regional foi assumido. Em um período inicial, o presidente Lula muito colocava o Brasil nessa posição, contudo, houve certa desaceleração nesse tipo de discurso para não correr o risco de reavivar o histórico de desconfiança dos vizinhos para com o Brasil. Ainda assim, o Brasil se delegava certa responsabilidade no continente devido ao seu peso econômico, demográfico e geopolítico (TOLEDO, 2014). Todavia, o discurso da liderança muitas vezes aparecia de forma clara ou implícita pelos formuladores de política. O discurso de que o Brasil e a América do Sul possuem uma histórica e um destino comum também é freqüente, tanto na fala do presidente, quanto na do chanceler. Assim, observamos uma tentativa forte de atrelar os países em diferentes aspectos, supondo basicamente que é inevitável a sua união, já que possuem tantos aspectos compartilhados. Para mais, argumentos geopolíticos e econômicos tornam o continente essencial para a política externa. Guimarães (2007 apud LEÃO, 2016) considera, desta maneira, que só haverá efetividade na política externa do Brasil se a sua formulação tiver fortes vínculos com o seu entorno geográfico.

Entre as mudanças mais notáveis no esforço de integração do governo Lula, podemos citar as novas ênfases na agenda que são destacadas no relançamento do Mercosul, e nos esforços empenhados na iniciativa da Casa e da Unasul. No que se refere ao Mercosul, ele

seria visto pelo governo Lula como instrumento de aprofundamento de uma integração que ultrapassaria a agenda comercial. Nesse sentido, o contexto geopolítico regional foi pensado por muitos como oportunidade de aprofundar a integração, convergindo assim com a estratégia brasileira de integração regional (TOLEDO, 2014, p. 16).

Com o governo Lula e o advento do regionalismo pós-liberal facilitado pela maré rosa, o Mercosul ganha novo foco, abrindo espaço para temas que vão além da questão comercial e da liberalização, tais quais temáticas de cunho social e político. Nesse sentido, também é marcante o Consenso de Buenos Aires em 2003 que sinaliza logo no primeiro ano do governo Lula seu comprometimento, junto com o governo argentino, de uma integração e cooperação com aspectos político-sociais, além de estimular a participação da sociedade civil. Neste mesmo ano, Lula discursa na XXIV Reunião de Cúpula do Mercosul:

É esse Mercosul que defendemos em nossas campanhas eleitorais. Por isso, é necessário fortalecer também as agendas política, social e cultural do Mercosul. Dar-lhe uma dimensão humana. Precisamos conhecer-nos melhor, crescer juntos para garantir apoio duradouro ao processo de integração. Daremos importância à construção de instituições comuns, de políticas sociais articuladas, de parcerias na área educacional e cultural dentro do bloco, para que possa florescer uma verdadeira identidade dos cidadãos de nossos países com o Mercosul. Faltou ao Mercosul uma dimensão política, como se bastassem apenas fórmulas econômicas.

Em 2005, é criado o Focem, Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul, que com objetivo de aprofundar e melhorar a integração, visando reduzir as assimetrias e estimular a competitividade e a coesão social. Além dele, temos outras organizações de índole social criada no seio do Mercado Comum. Assim, observamos a chegada de um “novo” Mercosul.

Já em 2004, surge a Casa (Comunidade Sul-Americana de Nações) com a declaração de Cusco. Nela observamos uma ampliação da agenda da integração, com o objetivo de consolidar o diálogo entre as nações e o espaço sul-americano, além de criar uma identidade sul-americana e integrar os povos. Em 2008, a Casa é transformada em Unasul e notamos certos objetivos comerciais se distanciarem mais dessa nova proposta regional. Segundo o seu tratado constitutivo, a Unasul tinha o intuito de proporcionar um espaço de integração entre os povos, integração social, cultural, econômico e político. Destaca-se também a questão do diálogo político, educação, segurança e integração energética, defesa e formação de identidade e cidadania sul-americana.

Estas iniciativas são frutos do regionalismo pós-liberal, com o alargamento da agenda da integração, retirando o foco exclusivo no comércio. A chegada de novas pautas se dá não somente pela oposição ao sistema anterior – isso é, neoliberal e de regionalismo aberto – como também pela percepção de que só comércio não é suficiente para alavancar a integração da região e até mesmo para a maximização dos esforços já empreendidos no sentido comercial. Por esse ângulo, o prosseguimento das propostas de infraestrutura é importante para exemplificar isto, já que o investimento neste setor ajudaria de forma indireta nas questões comerciais.

É importante notar que nesse período identificamos novas questões, preocupações e ocorre a elaboração de uma nova agenda. Contudo, não quer dizer que questões comerciais tenham sido esquecidas. Elas apenas passaram a formar um dos vários elementos da integração e não o seu principal.

Desta maneira, devemos ressaltar também os acordos entre o Mercosul e a Comunidade Andina na Aladi. Esses acordos fundamentam a ideia de que todo o continente já estava encaminhado para se tornar integrado comercialmente, logo, em certa medida, a liberalização era uma questão superada. Assim, com a finalização das negociações não seria mais necessário criar novas iniciativas de integração econômica, apenas melhorar o já existente quando fosse de interesse dos envolvidos. O discurso de Lula na abertura da I Reunião de Chefes de Estado da Comunidade Sul-Americana de Nações (30 de setembro de 2005) demonstra a clara pertinência de se falar em assuntos comerciais.

Os acordos entre o Mercosul e a Comunidade Andina mostram que é possível harmonizar interesses. A integração das cadeias produtivas dará a nossos países melhores condições para a inserção competitiva na economia globalizada. O alicerce da Comunidade Sul-Americana é a integração da infraestrutura física. Estamos dando passos firmes na execução dos projetos que elegemos como prioritários no marco da Iniciativa de Integração da InfraEstrutura Regional Sul-Americana, IIRSA.

Nesta mesma lógica, Amorim fala em unificação do espaço econômico:

O espaço econômico unificado que procuraremos construir terá como alicerces o livre comércio e projetos de infraestrutura entre os países sul-americanos, com o indispensável reconhecimento de que há situações de assimetria a serem levadas em conta (AMORIM, 10 De abril de 2003 apud SANTOS, 2014, p. 155).

Destarte, as relações comerciais são continuadas, novos acordos são feitos e outros assuntos são incluídos em antigas e novas instituições regionais. A política externa brasileira, que tradicionalmente é utilizada como um mecanismo para o seu desenvolvimento, vislumbra também a possibilidade de aproveitar esse momento de maior aproximação com os vizinhos para aumentar a presença das empresas de capital brasileiro na América do Sul. Portanto, o Brasil “ainda, percebe na região a plataforma preferencial de internacionalização das empresas nacionais, que se converte em captação de poupança externa para fortalecer seu próprio desenvolvimento, enquanto contribui para o desenvolvimento dos países vizinhos (COUTO, 2010, p. 26)”.

5. Conclusão

O regionalismo aberto norteou a política externa de FHC. Esta proposição da Cepal esteve presente nas iniciativas de integração regional e tinha alta compatibilidade com o neoliberalismo. Primeiramente, o Mercosul se manteve com o seu caráter estritamente comercial de regionalismo aberto como nos governos anteriores, sem alterações em suas ênfases. A iniciativa de reunir todos os presidentes sul-americanos em Brasília nos anos 2000 teve como principal objetivo o lançamento de um programa (também com base no regionalismo aberto) para melhorar e integrar a infraestrutura continental (IIRSA) com o propósito de facilitar o fluxo de mercadorias entre as regiões e fazer possíveis conexões do Pacífico-Atlântico. Essa ambição serve para atender o ideal do livre-comércio, podendo reduzir custo de transporte e criar novas alternativas de rotas, além de dar saída a ambos os oceanos, eliminando alguns fatores que limitavam o lançamento da América do Sul (e principalmente o Brasil) como um global trader, presente no comércio internacional.

Neste momento, o Brasil se colocava na situação de uma potência média internacionalmente, subserviente às potências centrais, com foco na integração comercial sul-americana, mas com o propósito de manter certo grau de autonomia em relação a este processo. Ou seja, mantinha cautela para que não caísse em uma situação em que não pudesse escolher seus parceiros comerciais. Também mantinha boas relações com os Estados Unidos, evitando a todo custo entrar em alguma espécie de contraposição. Isso fica evidente na quase indiferença em relação à Alca, já que não era de seu interesse não aceitá-la e criar um desconforto diplomático com Washington. Em certa medida, FHC tentou dar mais energia ao Mercosul e tonificar a América do Sul como região em resposta à ameaça da Área de Livre Comércio das Américas.

Por sua vez, os novos governos de esquerda na América do Sul no século XXI inauguraram um novo momento no regionalismo com as suas pautas diversificadas e certo distanciamento das propostas estritamente comerciais, em contraponto aos governos anteriores. O regionalismo pós-liberal marca a substituição do modelo cepalino, para um que incluísse e desse maior ênfase às questões políticas, sociais, de infraestrutura, de defesa, entre outros. Nesse período observamos uma grande afinidade entre os governos e o surgimento de novos diálogos, ainda que, o caráter nacionalista dos mesmos pudesse dificultar certas negociações, fora um período muito intenso para as relações intra-regionais.

Na posse de Lula e até o fim de sua gestão, fica clara tanto a prioridade dada à região sul-americana, quanto esses elementos do regionalismo aberto ressaltado por Sanahuja (2008). O ex- presidente deixa inteligível a importância da América do Sul para si e sua chancelaria e a necessidade de se ter uma integração mais profunda entre os Estados e sociedade civil. O Consenso de Buenos Aires (2003) e o lançamento de uma série de instituições no Mercosul, juntamente com os outros países membros, mostram em prática este discurso e o comprometimento com uma nova integração.

A “autonomia pela participação” de FHC foi substituída por uma “autonomia pela diversificação” de Lula (VIGEVANI, CEPALUNI; 2007), com grande intenção de diversificar as suas parcerias. Assim, o Brasil faz uma transição da sua posição de global trader dos anos 1990 para o global player dos anos 2000. Isto é, deixa de almejar uma inclusão no sistema internacional pela via exclusiva do mercado, para ambicionar uma através da política, sendo um país com peso e capaz de influenciar os rumos da América do Sul e do mundo.

A política externa de Lula tem uma visão de longo alcance, pretendendo iniciar um processo de aprofundamento da integração, que embora tenha tido resultados rápidos no curto prazo, deveria se desenvolver no longo prazo. Na transição da política externa anterior para a do seu governo, não houve rupturas drásticas, já que apresentou muitos elementos de continuidade. No entanto, aprofundou algumas iniciativas e deu nova ênfase e sentido a integração e às suas relações com a região. Assim, possuía uma política para a América do Sul bem organizada, com uma Secretaria-Geral própria para o continente, além de divisões de linhas de ação para os temas econômicos, políticos e sociais.

Também é importante relembrar que apesar das opiniões públicas e publicadas, o Brasil manteve o diálogo e a cordialidade com os vizinhos em determinados impasses. Foi bastante difundido pelo governo neste período, que o Brasil deveria ser solidário e generoso com os países menores, reconhecendo as assimetrias e ganhando a confiança destes. Dessa maneira aparentemente pacífica e conciliadora é que seria construída a diplomacia brasileira para a região - ainda que a presença de empresas brasileiras, com suas internacionalizações por vezes estimuladas pelo governo nesses outros países, pudesse contrariar estas ideias; este era o discurso oficial do Estado brasileiro.

Já foram apontadas ao longo do texto as divergências entre os dois modelos de regionalismo, porém ambos acabam coincidindo ao pressupor que deve haver maior união no continente, ainda que por vias e motivos diferentes. Com a exposição sobre o conceito da Cepal e o de Sanahuja, somada às análises das políticas externas aqui selecionadas, podemos inferir que com a chegada do regionalismo pós-liberal, dos governos de esquerda e de Lula a presidência brasileira, foram positivas para a integração regional, que em certo grau amadureceu e tomou novos rumos.

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