Ensaio Fotográfico
Recepção: 15 Maio 2019
Aprovação: 26 Junho 2019
A pesquisa sobre os campos de concentração no Ceará, em específico sobre o Campo do Patu, em Senador Pompeu, surgiu a partir das vivências pessoais no âmbito cultural naquela cidade. Desde 2011, a temática estava presente em minhas lides patrimoniais; o envolvimento com a formulação de processos de patrimonialização (tombamento e registro) de bens locais me fez acumular certo conhecimento e suscitou outros questionamentos que me levaram a eleger esse tema para o trabalho de mestrado (2014-2015), cursado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará, sob a orientação do professor Dr. Antonio Gilberto Ramos Nogueira. O texto integral da dissertação – Das Santas Almas da barragem à Caminhada da Seca: projetos de patrimonialização da memória do Sertão Central cearense (1983-2008) – se encontra publicado no repositório da Universidade Federal do Ceará e em livro físico editado pelo Museu do Ceará.
Os campos de concentração resultaram de medidas extremas de uma política pública adotada pelo Governo do Estado do Ceará durante a seca de 1932 (um aperfeiçoamento das experiências anteriores de 1877 e 1915). De abril daquele ano até abril de 1933, foram abertos e mantidos sete campos de concentração, estrategicamente localizados, a fim de “concentrar” e impedir a viagem dos retirantes que rumavam em busca de condições mínimas de sobrevivência, do interior à capital, numa Fortaleza aformoseada pelos ares tardios da Belle Époque francesa, que em nada deveria ser abalada pela presença de flagelados oriundos dos sertões cearenses.
O Campo do Patu é a materialização de uma dessas sete distintas e correlatas experiências. Localizado na cidade de Senador Pompeu, no Sertão Central cearense, o campo foi instalado junto às antigas edificações erigidas para dar suporte à construção inconclusa da barragem homônima, ainda na década de 1920. O Campo do Patu concentrou mais de vinte mil retirantes do Ceará e estados vizinhos. Em sua existência, o momento mais grave se deu com a epidemia de cólera, que se instalou com a chegada das “chuvas do caju”, a partir do mês de agosto, ampliando a escala de mortes diárias e a consequente memória dolorosa das Santas Almas da Barragem.
É em torno dessa memória, construída a partir do sofrimento daqueles concentrados e reconstruída pelos sobreviventes e seus descendentes, que a pesquisa de mestrado se desenvolveu. Partindo de uma devoção religiosa, pessoal e familiar, fundada por aqueles que perderam ali seus entes queridos, essa memória sobrevive, de forma silenciosa e quase sigilosa, durante cinquenta anos, até que em 1983 a chegada de um padre italiano à cidade inaugura o que chamo de “projetos de patrimonialização”, apropriando-se dela, ressignificando-a e tornando-a manifestação pública, dando-lhe o formato institucionalizado das romarias − eis: a Caminhada da Seca. Essa romaria não substitui a devoção popular, não rivaliza com ela nem a destrói; ao contrário, oportuniza e, contraditoriamente, a publiciza e fortalece.
Sob os ares da redemocratização, os anos 1980/1990 são momentos de renovação do pensamento e das práticas patrimoniais no Brasil; nessa perspectiva, a sociedade se organiza e entra na luta patrimonial em defesa de suas referências culturais. A Equipe Cultural 19-22, formada por jovens profissionais e estudantes da cidade de Senador Pompeu, leva a cabo a movimentação que identifico como o segundo projeto de patrimonialização da memória dos campos de concentração e o faz apropriando-se das linguagens artísticas para difundir o seu discurso patrimonial, seguindo o percurso tradicional, legalista, que requer o reconhecimento oficial do Estado às suas referências culturais − no caso, os antigas edificações do Patu, entre elas o Cemitério da Barragem, ao qual está vinculada a Caminhada da Seca.
Seguem-se momentos de embates entre a sociedade civil e o Estado, que apenas na década seguinte irá se interessar, e de fato tentará se apropriar dessa memória, ensaiando políticas municipais de cultura e turismo em torno da Caminhada da Seca e dos Casarões da Barragem – configurando, assim, o terceiro projeto de patrimonialização.
Esta pesquisa buscou, além da constatação e sistematização da história dessa memória, trazer à tona e ao centro da questão os devotos das Santas Almas da Barragem, os sujeitos, mulheres e homens simples, que sustentam de fato essa memória. Seus discursos e práticas, desvelados, apontam outras nuances dessa construção patrimonial. A história segue.
O sertão, os poderes, os sertanejos
O trem, a ferrovia. Tecnologias para mover e comandar o sertão.
As secas, o campo de concentração. Tecnologias para deter e controlar o sertão.
Os caminhos traçados, de terra e de ferro, entre ruínas e espinhos, seguem –
são pelos sertanejos vividos...
As lutas, as resistências, os sertanejos
A religião é política. A convivência com o semiárido é política.
As práticas devocionais são lutas da memória. São resistências, fortalezas sertanejas.
São águas correntes, que alimentam a vida, pelos sertões reviventes.