CONTÍNUA
Recepção: 13 Abril 2020
Aprovação: 16 Agosto 2021
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a respeito dos afetos na sociedade contemporânea, em especial a solidão, entendida como sintoma social. Foi desenvolvido por meio da metodologia de escrita ensaio crítico, que não segue a lógica formal estabelecida por um método tradicional, mas se dá pela busca de reflexões profundas, por meio da articulação de pensamentos de diversos autores. Discute a respeito dos afetos e da solidão, no contexto de suas manifestações sociais, do consumismo, individualismo, vida virtual e da solidão positiva. Através dessa reflexão, compreende-se que o fenômeno da solidão se constitui por meio de diversas transformações sociais, e que não necessariamente deve ser sinônimo de adoecimento ou isolamento, mas, está presente em situações de transformações e estruturação do desenvolvimento humano, auxiliando no processo de socialização e promovendo espaço para o aprendizado.
Palavras-chave: solidão, solitude, contemporaneidade, relações sociais, afeto.
Abstract: The purpose of this paper is to discuss about affections in contemporary society, especially loneliness, understood as a social symptom. It was developed through the critical essay writing methodology, which does not follow the formal logic established by a traditional method, but takes place through the search for deep reflections, through the articulation of the thoughts of several authors. It discusses about affections and loneliness, in the context of their social manifestations, consumerism, individualism, virtual life and positive loneliness. Through this reflection, it is understood that the phenomenon of loneliness is constituted through several social transformations, and that it should not necessarily be synonymous with illness or isolation, but it is present in situations of transformation and structuring of human development, helping in the process of socialization and promoting space for learning.
Keywords: loneliness, solitude, contemporaneity, social relations, affection.
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma. (PINTO, 2004, p. 79)
INTRODUÇÃO
As relações interpessoais e os afetos são as bases que constituem a construção da existência humana. A forma de vivenciar a criação de vínculos e afetos está associada à sociedade e cultura. Na atualidade, estamos vivenciando mudanças sociais significativas, que influenciam na percepção e no comportamento das pessoas.
Assim, num contexto social que reforça a autonomia individual e incentiva o consumismo exagerado em busca da satisfação imediata, pode-se perceber uma tendência à dissolução de certezas, na medida em que crenças e valores são colocados em dúvida, e frequentemente o indivíduo se questiona sobre aquilo em que acredita. Nesse mesmo sentido, há um caminhar em direção à relativização da ética, que tem como preceito delimitar racionalmente “os direitos da sociedade contra o indivíduo, os direitos do indivíduo contra a sociedade, e os dos indivíduos uns contra os outros” (FREUD, 2006, p. 78).
A partir da relativização, perde-se a noção de limitação, de respeito ao outro, pendendo para a liberalidade excessiva. Na relação que se estabelece com o próximo, tem-se ainda a tendência ao esgarçamento de vínculos. A busca por relações profundas, mas, paradoxalmente, a tendência à flexibilização dos laços e superficialidade. Assim, vai surgindo a sociedade do espetáculo, do consumo em excesso, que busca incansavelmente completar aquilo que lhe falta.
Tem-se ainda os conflitos entre culpa e vergonha, que estão intimamente ligadas às questões morais e éticas e aos valores sociais, aos sentimentos de evitação, isolamento e inadequação social e busca pelo equilíbrio. De fato, Freud (1996) analisa em seu principal ensaio acerca da cultura, em 1930, O mal-estar na civilização, que a sociedade de sua época é fortemente marcada por um excesso de proibições que levam o sujeito a se sentir culpado pelas transgressões que se via obrigado a fazer em nome da satisfação. O ponto é que tais restrições foram sendo derrogadas pela sociedade contemporânea, no entanto, em substituição a essas, foram eleitas certas determinantes de comportamento, estilo de vida e padrão de realização que colocam o sujeito contemporâneo numa condição de insuficiência em relação a seus próprios padrões de ideal.
A esse sentimento de ser insuficiente, o sociólogo francês Alain Ehrenberg deu o nome de vergonha. Podemos depreender desse quadro descrito que as pessoas experimentam uma contínua sensação de desamparo, mediada pela relação que se faz entre expectativas e frustrações, sensação de vazio, de incompletude, falta de suporte, estabilidade e segurança emocional.
Dentro desse contexto, um dos afetos subjetivos que interfere diretamente nas relações interpessoais e sociais é a solidão. Angerami-Camon (1990) definia a solidão como a configuração extremada da ausência do outro. Entende-se a solidão como um fenômeno crescente e de relevância social, intimamente ligada à sensação de vazio e ao isolamento social. A solidão se refere pincipalmente ao estado de quem se sente sozinho ou sente que perdeu o sentido de sua existência (ANDRADE, 2006). Dentro desse contexto, diversas temáticas perpassam a discussão da solidão, tais como o impacto da internet e das mídias sociais nas relações interpessoais, o incentivo social ao consumismo exagerado, a sensação de vazio existencial e a dificuldade em criar vínculos profundos, a banalização da vida, a sensação de não pertencimento, entre outras.
Este artigo propõe um ensaio teórico com o objetivo de discutir a respeito dos afetos na sociedade contemporânea, em especial a solidão, entendida como sintoma social. Este estudo é uma síntese do pensamento de diversos autores. A intenção da pesquisa não é esgotar o tema, mas trazer reflexões, pensando nos desdobramentos e nas questões que atravessam este fenômeno e em seu impacto nas relações interpessoais.
Um ensaio teórico é um estudo que não segue a lógica formal estabelecida por uma metodologia tradicional. Ou seja, não exige um sistema ou modelo específico, pois seu princípio se dá pela busca de reflexões profundas. “Busca-se por novos enfoques e permite a construção da forma adequada, mesmo que esta não exista a princípio. Nele, o objeto exerce primazia, mas a subjetividade do ensaísta está permanentemente em interação com ele” (MENEGHETTI, 2011, p. 323).
O SIGNIFICADO DA SOLIDÃO E AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS
Riesman (1995) dividiu o desenvolvimento do caráter social por meio da cultura em três diferentes tempos: tradição, introdireção e alterdireção. No passado, as relações eram orientadas pelas tradições e costumes, gerando forte sentimento de participação e segurança. “O povo se comporta em uma linha tradicional legada pelas gerações. Qualquer espécie de modificação é extremamente lenta e dificilmente percebida. A mobilidade social é baixa ou está ausente” (RAMOS, 1975, p. 42).
Na modernidade, as relações são direcionadas para si mesmo, no desenvolvimento próprio, é a chamada introdireção ou autodireção. Há nesse contexto uma grande mobilidade social, com ampliação das oportunidades, e, ao mesmo tempo, aumento da competitividade no trabalho e na vida pessoal.
Para os indivíduos não ficarem perdidos nesse mundo instável, terão de ser treinados para não pedir orientação aos demais, e assim seguir seus próprios padrões e valores inculcados pelos genitores no período da idade evolutiva. Esse tipo de caráter social autodirigido pode dar a aparência exterior de independência, mas está vinculado aos seus modelos e valores, a uma estrita disciplina. Ele é orientado pelo trabalho e tarefa. (RAMOS, 1975, p. 42)
Já na atualidade, há um movimento de caráter social orientado para os outros, mas ainda com muitas características do momento anterior. É a chamada alterdireção. Esse “processo de socialização retira a ênfase que era dada à família em favor dos ‘contemporâneos’ como fonte de direção” (RAMOS, 1975, p. 42). Desse modo o indivíduo deve “aprender a andar a passo igual ao de seus pares para não ‘ser deixado para trás’. A mobilidade social continua em passos de autodireção, mas o círculo das interações com os outros se alarga” (RAMOS, 1975, p. 42).
Por meio dessa análise, Riesman enfatiza que o processo de socialização e o desenvolvimento do caráter social acontecem por meio da percepção dos pares sobre o outro. Assim, há uma tendência a buscar incessantemente ser aquilo que os outros são, ou aquilo que os outros desejam que eu seja. Essa condição social cria, ao mesmo tempo, uma relação de competitividade e de identificação com o outro (RIESMAN, 1995). Há na experiência do indivíduo contemporâneo uma forte contradição, pois, “de um lado, se tem a priorização da autonomia, da pretensão de ser dono do seu querer e viver e, por outro, submete-se a uma servidão imaginária e alienada das soluções que são oferecidas a todos sem distinção.” (FLECHA, 2011, p. 41).
A síntese desse pensamento - da transição do caráter social “orientado para dentro” (introdireção) para o “orientado para o outro” (alterdireção) - é que somos extremamente sociais, por existirmos apenas na multidão e por meio da multidão, e, ao mesmo tempo, somos também solitários porque a tentativa de ser um reflexo do outro interfere na autonomia e autenticidade individual.
Riesman (1995) afirma que a ideia de que os homens foram criados iguais e livres é uma verdade e também um equívoco. Isso porque os homens são criados de maneira diferente, mas tornam-se iguais na tentativa de ser como o outro, e neste processo perdem sua liberdade e autonomia (RAMOS, 1975; RIESMAN, 1995).
Diante desse cenário de conflitos e contradições há a lógica individualista, que pressupõe a busca pela realização pessoal e profissional, a competitividade, a profissionalização e a personalização; e uma lógica social, que sustenta um modo de socialização inédito, capaz de incentivar simultaneamente a tentativa de ser como o outro, e o afastamento das interações profundas e intensas. A superficialidade nas relações, o enfraquecimento da vida coletiva, a necessidade de mostrar-se bem e feliz ao outro e a sensação de vazio e solidão são características da contemporaneidade (LIPOVETSKY, 2005; SANTOS, 2015).
Andrade (2006) acredita que o ser humano perdeu o sentido de pertinência, e compara-o com uma criança perdida no meio da multidão, abandonada. O autor complementa a ideia afirmando que
O homem vive em uma sociedade repleta de pessoas sem nenhuma intimidade e perde, cada vez mais, o sentido do que seja gregário. Um paradoxo evidencia-se. De um lado, em consequência de explosão demográfica e técnica, os homens estão cada vez mais próximos fisicamente uns dos outros. De outro lado, inegavelmente, os homens também não cessam de afastar-se existencialmente dos outros e de tornarem-se estranhos entre si. No meio das massas humanas das grandes cidades, a maior parte dos homens sente-se cada vez mais isolado e separado de seus semelhantes. (ANDRADE, 2006, p. 5)
A solidão pode ser definida como um fenômeno, um estado, uma condição ou sensação inscrita ao homem no contexto de sua história social. A solidão é complexa, plural e multifacetada, e na atualidade é expressa principalmente em seu aspecto negativo, pela sensação de vazio existencial e experiência nos relacionamentos interpessoais (FERRAZ, 2006; ZANONI, 2015).
Alguns autores defendem que os comportamentos e manifestações relacionados à solidão estão vinculados às experiências primárias vivenciadas na infância, tais como a separação progressiva dos pais, as situações de isolamento e o contato físico e amor satisfatórios. Desse modo, o crescimento possibilita o processo de reconhecimento da própria identidade, de separação com o outro, de socialização e de criatividade. Significa dizer que as experiências de separação, desamparo e isolamento vivenciadas na infância e no decorrer do desenvolvimento do indivíduo impactarão na sua forma de relacionar-se e de significar a integração/socialização com o outro e com a solidão (SONDERBY, 2013; ZANONI, 2015).
Assim, entende-se que as experiências de solidão fazem parte do processo de desenvolvimento humano. São vivenciadas nas relações, e também na falta delas, por exemplo, em situações de perda, de mudanças ou de luto (KATZ, 1996). A solidão pode ser vivenciada em seu aspecto positivo e criativo, como um espaço dinâmico de tensões e transformações, aberto para os sentidos e a renovação das percepções da vida em sociedade, dos relacionamentos interpessoais e da relação que se estabelece consigo mesmo. Existe então, uma clara diferença entre a solidão criativa e a solidão nociva (ANDRADE, 2006; MANSUR, 2008).
A solidão é percebida como um aspecto negativo quando passa a ser vivenciada e associada à privação, exclusão e isolamento extremo (FERRAZ, 2006). Em vista disso, “a solidão é um estado, e deve se tornar uma questão com que se preocupar apenas quando se estabelece por tempo suficiente para criar um labirinto persistente, autoalimentado, de pensamentos, sensações e comportamentos negativos” (CACIOPPO; PATRICK, 2010, p. 23). Nesse mesmo sentido Zanoni (2015, p. 14) define que a “percepção da solidão contém um sofrimento que incomoda. Nos casos extremos chega ao isolamento e dá a impressão de um movimento de estagnação psíquica no lugar da possibilidade de transformação”.
Pinheiro e Tamayo (1984) já estudavam a solidão como um estado de desânimo pela condição de sentir-se sozinho, e definiram seis dimensões do fenômeno da solidão: 1. Falta de significado e objetivo de vida; 2. Reação emocional; 3. Sentimento indesejável e desagradável; 4. Sentimento de isolamento e separação; 5. Deficiência nos relacionamentos; e 6. Unattachment, que está relacionado ao isolamento emocional e social.
As diferentes abordagens teóricas possuem definições distintas para a solidão e seu processo de desenvolvimento:
Na abordagem cognitiva, por exemplo, a solidão foi entendida como uma resposta para a discrepância entre os níveis de contato social desejados e os alcançados. A interacionista a viu como multidimensional e de vários tipos, incluindo a solidão emocional e a social. A psicodinâmica se baseou na experiência infantil do apego com a mãe. E para a existencial, a solidão é uma realidade intrínseca e orgânica da vida humana, em que tanto a dor quanto a criatividade podem emergir a partir de períodos de desolação. (ZANONI, 2015, p. 19)
Apesar das diferenças, há um consenso de que a solidão está relacionada a dois aspectos: o afetivo, que compreende a experiência emocional negativa da solidão; e o cognitivo, que abrange a contraposição entre as relações sociais desejadas e as que são alcançadas. Desse modo, há uma concordância entre as diversas linhas teóricas de que a solidão é uma emoção subjetiva, carregada de sentimentos dolorosos e desagradáveis, e está vinculada às sensações individuais e relações sociais (SONDERBY, 2013; ZANONI, 2015).
Diante dos paradoxos entre a globalização e o individualismo, o capitalismo e a liberdade social, a felicidade comprada e a construção do “ser” ao invés do “ter”; e das atuais condições sociais, tais como padrões de beleza, movimentos de incentivo à satisfação e ao individualismo, diferentes configurações familiares, entre várias outras questões, entende-se que surgem novos “contornos de solidão, específicos em cada caso, que emergem e produzem diferentes imagens - positivas e negativas - acerca de tal experiência” (ZANONI, 2015, p. 37).
SOLIDÃO, CAPITALISMO E SUJEITO CONTEMPORÂNEO
O sistema capitalista influencia diretamente no cotidiano dos indivíduos e nas perspectivas de solidão. O sentimento de não pertencimento aos grupos e a busca incessante pela felicidade, que só é encontrada na perfeição (o relacionamento perfeito, o trabalho perfeito, a vida perfeita, que logicamente é inalcançável) causam sensação de frustração e insatisfação. Esse quadro é incentivado ainda pelos meios de comunicação, que reforçam a idealização das relações e das soluções fáceis e imediatas para alcançar a felicidade/satisfação. Ao mesmo tempo em que se tem o incentivo pelo individualismo e autonomia, tem-se também a busca do amor como condição de felicidade (FERRAZ, 2006).
Freud (2006) também discute a respeito das contradições existentes no processo de desenvolvimento individual, afirmando que, inicialmente, a autoridade dos pais, e posteriormente, a convivência social é que vão definindo aquilo que é “bom” ou “mau”, e, consequentemente, instaurando a renúncia instintual, que surge através da pressão social. Dentro desse contexto, a sensação de vazio se instala, de inexistência, de incompletude. O ser humano busca relacionar-se, mas encara falta de sentido e superficialidade nas relações. Sente-se então fragmentado, dividido entre sua singularidade e a multidão, sua história e o sacrifício da busca pelo que é idealizado. E vai perdendo o referencial que fundamente a sua existência, suas crenças e seus valores (ANDRADE, 2006).
Lipovetsky (2007) traz uma reflexão a respeito da sociedade do consumo e as mudanças no funcionamento de cada uma das três fases do capitalismo. O autor define o primeiro ciclo do capitalismo, no período compreendido entre 1880 até a Segunda Guerra Mundial, quando surge o consumidor, o marketing, as produções em larga escala e os mercados para as massas. O segundo ciclo acontece nas três décadas pós-guerra, a partir de 1950. É definido pelo alto crescimento econômico e produtivo, pelo surgimento de novas estratégias de marketing de personalização dos produtos, ampliando as suas opções e a segmentação no mercado. Nesse período surge, de acordo com o autor, a noção de que o progresso e crescimento estão vinculados à melhoria das condições de vida, e que consumo, conforto e facilidade são sinônimos de felicidade.
O terceiro ciclo inicia-se após 1970 com a sociedade do hiperconsumo. A partir daí, amplia-se ainda mais a mentalidade consumista, que alcança a mercantilização das relações e das necessidades. O consumo emocional e a satisfação individual marcam o período da felicidade comprada, numa sociedade esvaziada de valores, mas cheia de bens materiais e com alto potencial consumista (LIPOVETSKY, 2007). Isso porque, há uma necessidade extrema de que a prática do consumo compulsivo seja capaz de trazer satisfação parcial, “como forma de afastar a insatisfação fundante que consome a todos” (MANNO, ROSA, 2018, p. 124).
O homem atual, tão abastado das coisas materiais, está desprovido da presença do outro. Vive-se em uma sociedade individualista, na qual prevalece a solidão. Os sujeitos que sofrem e se queixam da solidão estão, paradoxalmente, cultuando sua privacidade, sua personalidade, desvinculando-se da vida pública, ignorando a ética coletiva e, ao mesmo tempo, vivendo os infortúnios da falta desse espaço coletivo, o qual possibilita o reconhecimento de si mesmo. Surge então o ideal de aprender a viver só no meio da multidão, e o exercício da privacidade é entendido como a verdadeira liberdade. (ANDRADE, 2006, p. 89)
Desse modo, vivemos a era da felicidade paradoxal. Isso porque, por um lado, a
sociedade do hiperconsumo exalta os referenciais do maior bem-estar, da harmonia, do equilíbrio; do outro lado, ela apresenta um sistema hipertrófico e incontrolado, de ordem bulímica que leva ao extremo e ao caos [...] com a amplificação das desigualdades e do subconsumo. (LIPOVETSKY, 2007, p. 19)
Assim, é possível afirmar que, de um lado, a satisfação imediata e individual se dá por meio do consumo; e por outro há a patologização ocasionada pela insatisfação dos desejos de consumo, mesmo quando estes são adquiridos. Em decorrência das fragilidades nas percepções e nas relações que estabelecemos, há uma tendência ao adoecimento social (BÔAS; SANTOS, 2014).
Diante dessa realidade, é possível afirmar que a solidão é uma experiência dominante na atualidade, em decorrência das rupturas e das dificuldades em estabelecer novos vínculos. “O sentimento de solidão parece ser um intervalo entre os discursos sociais que engolem o sujeito e que impõem a necessidade de sermos felizes e sociáveis” (TATIT; ROSA, 2013, p. 137). Assim, a solidão pode surgir como expressão da singularidade do sujeito, ou como sinônimo de isolamento, que reforça o individualismo e a autossuficiência (TATIT; ROSA, 2013).
Para resolver os conflitos da felicidade paradoxal, Lipovetsky (2007) acredita que o que precisamos, na realidade, é de menos consumo, menos materialismo, menos dependência de bens mercantis, desfazendo a percepção de que a prática consumista leva à satisfação. Ao mesmo tempo, o autor acredita também que precisamos de mais consumo, no intuito de reduzir a pobreza, ajudar os grupos vulneráveis, otimizar o tempo e definir novos critérios de regulação, moderação e desenvolvimento econômico durável.
A SOLIDÃO E AS RELAÇÕES VIRTUAIS
Katz (1996) afirma que no século XX o amor é uma condição para a felicidade, fato que dissemina o ideal de “se estar acompanhado” e a ideia de que um homem sozinho será motivo de estranheza ou comiseração dos outros, o que se leva a uma busca desenfreada por companhia e pela satisfação dos desejos individuais e narcísicos.
É indiscutível a observação de Rodrigues et al. (2018) em relação ao fato de a contemporaneidade trazer uma série de modificações e acelerações na vida do sujeito, influenciando todo o seu funcionamento. Manno e Rosa (2018) reforçam a ideia afirmando que a vida atual está cada vez mais influenciada pela tecnologia e a internet passou a ser um instrumento útil e indispensável. Assim, com o advento da internet, as relações passaram a ser também virtuais, fazendo com que a sociedade viva um paradoxo entre a globalização e o individualismo e é “justamente neste espaço que a solidão se impõe” (FERRAZ, 2006, p. 4).
Lima (2001) assinala a solidão como um sintoma cultural, ou seja, solidão vinculada ao conceito do “eu” moderno: o indivíduo como um ser autônomo e de valor supremo. Castells (2002) acrescenta ainda o capitalismo atrelado ao individualismo como causa do surgimento dos relacionamentos online.
Seguindo o preceito do capitalismo unido ao individualismo, é possível associar a ideia de Fromm (1983, apud Rodrigues et al., 2018), com relacionamentos conceituados em “ser” e “ter”. Relacionamentos no âmbito do “ser” seriam embasados no respeito e compreensão do outro, em relação às suas qualidades e fragilidades, enquanto relacionamentos no conceito “ter” são baseados na sensação de posse, em que “os membros da relação pertencem um ao outro, assim como um objeto de desejo e consumo, que é interessante até surgir algo mais atrativo”. A maior preocupação do indivíduo contemporâneo inserido nesse contexto é tornar-se vendável para ser visto, consumido e requisitado pelo outro. A máscara social torna-se uma fuga, que auxilia na negação de sua pobreza existencial. “Por essas experiências radicais que produzem sofrimento e alienação ao sujeito que se doou ao seu consumidor egoísta, as relações amorosas concretas em muitos casos são substituídas pelas relações virtuais” (RODRIGUES et al., 2018, p. 40).
O indivíduo tem muito mais liberdade nos contextos virtuais, uma vez que podem escolher quem querem ser, qual identidade apresentarão e como querem construir sua rede de relacionamentos. Mesmo em comunidades unidas é difícil rastrear informações de identificação de quem está por trás da tela, como nome verdadeiro, tom de voz ou aparência física. Cria-se uma sensação de “liberdade” e de maior “possibilidade de expressão” (MANNO, ROSA, 2018). Guedes e Assunção (2006) enfatizam ainda que, através do anonimato, a relação interpessoal tende a ser mais livre e impessoal.
Assim, as relações dispensam cada vez mais a necessidade de um compromisso, flexibilizando, quantificando e diversificando os laços. Paralelamente, observa-se também
uma crescente carência por contatos mais profundos, mas paradoxalmente, na mesma intensidade com que são desejados, também são temidos, pela ameaça que estes representam para a liberdade individual conquistada historicamente e tão valorizada até então. (MACHADO et al., 2016, p. 1289)
Nessa perspectiva, Bauman (2004) entende que o período que vivemos incentiva os chamados “relacionamentos de bolso”, que estão disponíveis sempre que necessário. O termo “relacionar-se”, entendido como antiquado, pesado, carregado de compromisso altera-se para “conectar-se”, dando uma ideia de leveza, satisfação e aumento de possibilidades. As relações virtuais parecem feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna. “Diferentemente dos ‘relacionamentos reais’ é fácil entrar e sair dos ‘relacionamentos virtuais’. Em comparação com a ‘coisa autêntica’, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear” (BAUMAN, 2004, p. 12).
Manno e Rosa (2018) apontam que vários estudos mostram que este anonimato estaria relacionado com a solidão, a fraqueza e o vazio, e que existe uma correlação entre baixa autoestima e o uso abusivo da internet. Certos tipos de interação podem provocar nos indivíduos um sentimento de inadequação social, que facilmente pode levar à procura de uma forma mais fácil de se socializar: o espaço virtual, o que pode vir a induzir a uma dependência das redes sociais.
Há, na atualidade, uma utilização exacerbada e compulsiva de redes sociais, que servem para “preencher o vazio”, o tempo livre, o espaço solitário. Isso porque, nos momentos em que deveríamos estar reconhecendo a nossa subjetividade, “as nossas fraquezas e admirando as nossas virtudes, recorremos ao celular [ou à internet] para nos entreter com assuntos que possuem a falsa impressão de nos completar” (ALMEIDA, NAFFAH NETO, 2019, p. 433). Buscamos a relação com outro indivíduo, no contexto virtual, que promove a ilusão de superação do momento de angústia e do silêncio da solidão. A socialização dentro do espaço virtual pode conferir ao indivíduo habilidades que ele gostaria de ter na vida real, reforçando seu lado narcisista.
O sujeito se coloca nesse registro imaginário que não indica necessariamente um encontro com o Outro, mas, ao contrário, permite o distanciamento da relação e o gozo solitário, em um mecanismo de glorificação do Outro e da relação com o Outro, um dos modelos de expressão da internet. Desta forma, poderá se desfrutar sem risco a relação com seu próprio desejo, porque um novo relacionamento pode substituir de forma quase automática um anterior, fora dos limites de espaço e tempo. (MANNO, ROSA, 2018, p. 123)
No entanto, o preço a pagar por essa liberdade é a insegurança. Os relacionamentos tornam-se conexões, que podem ser feitas, desfeitas e refeitas, dependendo da vontade do sujeito. “Ao mesmo tempo em que as pessoas buscam o afeto, existe o medo de criar um sentimento mais profundo que provoque uma imobilidade num mundo que é movimento permanente” (MANNO, ROSA, 2008, p. 122). Tal ideia encontra conformidade em Bauman (2004), na nova forma frágil de relacionarse, seguindo o pressuposto da ambivalência das relações virtuais, que possibilitam criar e cortar conexões por escolha, ou seja, romper uma relação antes mesmo que ela se torne minimamente concreta. Baseia-se na lógica do consumo e do descarte, assim como as relações de mercado.
Para Moser (1994, apud GUEDES; ASSUNÇÃO, 2006), a relação perde a qualidade, uma vez que o reconhecimento das expressões reais de emoção e seus significados, base para o exercício da intimidade, é dificultado. Assim, as relações online seriam consideradas rasas e inferiores se comparadas com as relações face a face. Dessa forma, “o processo civilizatório do sujeito aponta para o fracasso das relações sociais devido às diversas transformações, em que tudo é superficial e descartável” (RODRIGUES et al., 2018, p. 39).
Em contrapartida, é importante considerar que a internet é uma importante ferramenta de contato social. Os sujeitos mais tímidos e inibidos relatam benefícios decorrentes do uso das redes sociais e dos aplicativos de comunicação instantânea.
Sproul e Kiesler (1986, apud GUEDES; ASSUNÇÃO, 2006) indicam também que as condições de anonimato poderiam facilitar a sociabilidade e a sinceridade entre os interlocutores. A partir dessa perspectiva é possível inferir, assim, que
As características que formam os vínculos interpessoais na Internet favorecem o comparecimento de novas facetas da personalidade, principalmente se levarmos em conta as pessoas que sofrem profundas sensações de ansiedade em situações sociais concretas e, no relacionamento pela Internet, experimentam sensações menos ansiosas e adotam posições sociais mais satisfatórias. (MANNO; ROSA, 2018, p. 127)
Ainda segundo Manno e Rosa (2018), se levarmos em consideração o aspecto filogenético em que os seres humanos sobreviveram e prosperaram pelo fato de estarem juntos, o isolamento seria uma ameaça à vida, e, logicamente, o indivíduo seria incentivado a viver em comunidades para sua própria sobrevivência. Nesse sentido, a solidão seria um sinal destinado a empurrar o ser humano para a renovação das conexões necessárias para viver e prosperar. “De acordo com esta perspectiva, a mediação tecnológica da comunicação poderia ser uma ajuda para relacionamentos se usada com inteligência, mas nunca um substituto” (MANNO; ROSA, 2018, p. 130).
Desse modo, as relações em rede modificam a sociabilidade do sujeito. Significa dizer que se modifica a capacidade de comunicação de forma tão intensa que é capaz de impactar em nosso modo de vida, bem como em nosso potencial destrutivo ou capacidade criativa. Assim, a sociedade em rede pode ser uma sociedade hipersocial, e não uma sociedade de isolamento. É necessário reconhecer esse cenário histórico, e entender as possibilidades a partir dessa nova realidade da sociedade em rede (CASTELLS, 2002).
SOLITUDE: A SOLIDÃO POSITIVA
A solidão tem sido patologizada e negativada no contexto da contemporaneidade sendo tratada e “curada”, visando reconduzir o ser solitário à “normalidade da convivência grupal e social”. No entanto, quando a solidão perde seu caráter negativo, também é possível se apresentar como uma “possibilidade de emergência da singularidade humana”, podendo ser observada através de uma faceta benéfica, “ampliando seu espectro de significados” (MANSUR, 2008).
Além disso, “pensar a solidão como doença do indivíduo que sempre fracassa na relação com o outro é reduzir essa experiência a um estatuto imaginário”. Assim, a visão da solidão como doença minimiza a experiência e concepção da solidão, sem considerar a complexidade da criação e manutenção de vínculos no contexto social. Assim, “o discurso que trata a solidão como doença aposta em um ideal de autossuficiência, e desconsidera o mal-estar constituinte do sujeito na relação com os outros” (TATIT; ROSA, 2013, p. 142).
Na percepção do filósofo francês Kaufmann, “a percepção positiva ou negativa da situação de isolamento está associada, entre outras coisas, aos estereótipos presentes no contexto social em que o sujeito está inserido” (TATIT2012, p. 34). Assim, a expectativa individual está pautada nas expectativas sociais, exemplificada por Ferraz (2006), ao dizer que os Hebreus antigos não viviam a solidão como algo negativo ou trágico, uma vez que o sentido da solidão é o deserto, local onde a comunicação direta com Deus é alcançada.
Winnicott (1983) fundamenta a vivência da solidão positiva: a capacidade de estar só seria um resultado da oportunidade que o bebê teria para desenvolver uma confiança na “existência de um ambiente benigno, mediante os cuidados maternos.” (WINNICOTT, 1983, p. 34). Dentro dessa visão, a capacidade de ficar só seria desenvolvida dentro de uma relação paradoxal, ainda na primeira infância, de estar a sós na presença da mãe, quando o bebê, cujo ego é naturalmente compensado pelo apoio do ego oferecido pela mãe, introjeta essa mãe e se torna capaz de estar só sem precisar recorrer frequentemente a ela ou ao símbolo materno.
Assim, “a capacidade de ficar só se baseia na vivência de estar só na presença de alguém, e que sem uma quantidade suficiente dessa experiência, a capacidade de ficar só não se desenvolve.” (WINNICOTT, 1983, p. 35). Considera-se que as experiências dos primeiros anos de vida exercem efeito determinante nas relações posteriores (FREUD, 2006). A criança só poderá perceber e descobrir suas necessidades e desejos reais quando conseguir experienciar a sensação relaxada de se estar só na presença da mãe. Assim, a possibilidade de que algumas pessoas possam apreciar a solidão antes de sair da infância seria algo muito especial e positivo.
A solidão é desencadeada quando há uma ameaça de interrupção de uma relação afetiva ou quando ela é interrompida de fato. Quinodoz (1993) defende que a “angústia da separação traduz a emoção dolorosa - mais ou menos consciente - que acompanha a percepção do caráter efêmero das relações humanas, da existência do outro e da nossa própria existência” (QUINODOZ, 1993, p. 24). Porém, o autor ainda diz que tal angústia seria uma emoção estruturante para o ego, uma vez que “sentir a dor de nossa solidão nos faz tomar consciência de que existimos como seres únicos em relação aos outros, e que os outros são diferentes de nós” (QUINODOZ, 1993, p. 24).
Há um conflito posto pela sociedade homogeneizada que prejudica a percepção da solidão, vinculando-a negativamente aos conceitos de segregação e isolamento. Isso porque, de um lado, há valorização da coesão grupal, da harmonia e da busca pela felicidade e; por outro, a incitação ao individualismo, competitividade, independência e autonomia. Na contramão desse pensamento, acredita-se que a solidão possibilite o trabalho intelectual e que seu conceito possa ser relativizado. Esse assunto é tema de discussão para Le Bon (presente nos textos de Freud), que afirma que “o sujeito isolado, não está segregado das relações sociais, mas também não se dissolve na massa, conseguindo sustentar sua capacidade intelectual e crítica e não se deixando levar pela influência da fascinação das multidões” (TATIT; ROSA, 2013, p. 138).
Sobre a oposição entre solidão e “socialidade”, defende-se que, apesar de uma condição necessária à existência humana, a socialidade não exclui o desejo de estar só. A criação de espaços vazios, possibilitados apenas por meio da unificação do sujeito e da solidão no processo de socialidade é que permite o desenvolvimento da singularidade (KATZ, 1996). Tal pensamento também é válido (e sobretudo) para o desenvolvimento infantil:
Seria bom para a educação das crianças se aprendêssemos com a psicologia a respeitar sua necessidade de solidão. Aliás, ninguém sabe nada sobre essa necessidade. Talvez venha do fato de a criança se identificar com alguém que era assim. Não se sabe. Na escola não se permite estar só. O recreio foi feito para brincar. Brincar? É correr com outro; ao passo que, para aquela criança talvez seja descansar, refletir, ouvir ruídos, olhar folhas a rodopiar... observar uma formiga... O adulto se angustia ao ver uma criança solitária. Ora, há solidões regeneradoras tanto para o adulto, com certeza, quanto para a criança. (DOLTO, 2001, p. 22)
O processo de separação e diferenciação estão relacionados ao luto, uma vez que separar-se do outro representa uma perda em dois níveis: “da relação entre duas pessoas e o da renúncia à fusão do ego com o objeto do qual se separa”. Desse modo, o ego passa por um “processo que se assemelha ao da criação artística”, estando em evolução constante (QUINODOZ, 1993, p. 45-48).
Assim, o trabalho de criação é longo e doloroso porque também
implica em um trabalho de luto para descobrirmos a nossa própria originalidade, isto é, os aspectos de si-próprio constitutivos da identidade que permaneceram confundidos com nossos primeiros objetos, dos quais nunca terminamos de nos diferenciar. (QUINODOZ, 1993, p. 45-48)
Ferraz (2006) defende que a solidão como uma experiência criativa (solidão positiva) deixa de ter um caráter impositivo e passa a ser percebida como uma opção do próprio sujeito, como um “espaço necessário para a criação”. A autora também destaca que muitos escritores, músicos e artistas conhecidos mundialmente conseguiram desenvolver suas obras a partir do isolamento. Afirma ainda que as diversas formas de arte se tornariam fonte de alívio das frustrações. Nesses casos, a solidão se transforma numa expressão construtiva, um processo de socialização positiva.
Pensando na perspectiva da solidão positiva ou criativa, cunhou-se o termo solitude, que nada mais é do que a “a capacidade para ficar só de maneira positiva, em suas complexas injunções psicológicas e sociais”. Essa concepção está diretamente ligada à crença na capacidade humana e “à qualidade da sustentação emocional e das oportunidades culturais que encontramos, seja no início ou no decorrer da vida, no conjunto formado pelo ambiente familiar e pela sociedade em que vivemos” (MANSUR, 2008, p. 44). A autora afirma ainda que viver é inegavelmente difícil para todo ser humano, e que a proposta do termo não é romantizar ou idealizar a solidão, mas entender a potencialidade dos espaços vazios e da criação da singularidade.
CONSIDERAÇOES FINAIS
A solidão na modernidade se constituiu através das diversas transformações sociais. Com o advento das tecnologias digitais, as pessoas deixaram de se vincular por meio das sociedades tradicionais e passaram a desenvolver novas formas de interação. As relações virtuais possibilitam uma nova socialização e expressão da individualidade, criando um ambiente de “aproximação distante”, em que é possível assumir comportamentos evasivos e fugir das frustrações. O aumento das taxas de urbanização e o cotidiano frenético nos grandes centros também vêm contribuindo para o isolamento entre os indivíduos, uma vez que as pessoas se veem impossibilitadas de manter contatos primários por motivos diversos, seja pelo aumento crescente da necessidade de horas de trabalho, seja pelo medo da violência urbana ou, até mesmo, pelo aumento de dispositivos tecnológicos que possibilitam o contato a distância e tornam a vida mais cômoda ao indivíduo.
Essa discussão surge no meio do paradoxo entre a globalização e o individualismo, na contradição entre criação e sofrimento, entre estar só e sentir-se só. “Ao mesmo tempo em que se dirige ao homem o apelo para que viva sua humanidade mais profundamente, ou seja, deve buscar significação a sua existência, exige-se dele a produção e a realização material” (ANDRADE, 2006, p. 88). Alguns dos autores apresentados acreditam que em nossa sociedade não existe espaço para a manifestação da solidão. Isso porque a tendência ao individualismo levou-nos a abandonar a vinculação com a comunidade e o aprofundamento das relações, incentivando a superficialidade e a felicidade comprada.
Nesse mesmo sentido, Bauman (2007) acredita que há uma tendência à liquidez e não à concretude dos relacionamentos. Por isso, o autor considera que as relações se tornaram líquidas, e compartilham-se apenas solidões. A individualidade incentivada na sociedade contemporânea nada mais é do que o abandono, a solidão, o esgarçamento das relações entre vizinhos, amigos e familiares. Uma corrida sem intervalo.
Para alguns, a solidão é entendida como um sintoma social da contemporaneidade, sinônimo de isolamento. Para outros, é uma condição atemporal do ser humano, que se desenvolve incentivada pela cultura do momento. O propósito dessa discussão não é romantizar a solidão, nem tampouco desvalorizar a relação com o outro, ou promover propositalmente o isolamento social como uma forma de defesa. A perspectiva é de compreender a potencialidade que existe nesse espaço de vazio e no processo de criação da singularidade, pois, ao desenvolver o autocuidado e a noção de subjetividade, aprendemos também a perceber e respeitar o outro.
É importante considerar a perspectiva de que a solidão não significa adoecimento, isolamento ou exclusão. Pelo contrário, a solidão está presente em situações de transformações e de estruturação do desenvolvimento humano. É a partir da diferenciação entre o eu e o outro que se dá o processo de socialização e aprendizado. A partir dessa percepção, da solidão positiva, é que surge o conceito de solitude, que significa vivenciar a solidão em seu aspecto positivo, como um espaço dinâmico de tensões e transformações, aberto para os sentidos e a renovação das percepções da vida em sociedade, dos relacionamentos interpessoais e da relação que se estabelece consigo mesmo.
A solidão amiga
A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa.
Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio.
Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só.
Vem a tristeza da solidão… O que mais você deseja é não estar em solidão…
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão.
Vem das fantasias que surgem na solidão.
Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir música…
Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas.
De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha.
Aí a cena se alterava: ele sozinho naquela sala.
Com certeza ninguém estava se lembrando dele naquela festa feliz, quem se lembraria dele?
E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão.
O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa… Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas.
Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão…
A noite estava perdida.
(ALVES, 2008, p. 86)
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