CONTÍNUA

Corpo, cidade e lugar: mapeamentos e espaços híbridos

Body, city and place: mappings and hybrid spaces

Angela Gomes de Souza
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Gisele Girardi
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 49, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 23 Março 2021

Aprovação: 11 Agosto 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622492021296

Resumo: O uso das redes sociais foi ampliado significativamente em 2020, sendo necessário refletir também sobre a experiência geográfica de deslocamentos na pandemia. Ao incrementar o uso das tecnologias digitais no nosso cotidiano, devido à impossibilidade de usufruir integralmente da cidade, modificamos profundamente as nossas relações físicas, corporais e culturais com a cidade. As sobreposições entre as redes que se formaram na pandemia, com rebatimento no território, e as redes virtuais conformam espaços híbridos. Partindo de dados de uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo, investiga-se a experiência de mapeamento das redes de cinco mulheres com atuação comunitária no bairro Centro, em Vitória, no Espírito Santo, que simbólica e materialmente constroem uma outra cidade. A premissa é de processo de conhecimento em construção, não necessariamente linear, sobre a relação entre mapeamento extensivo e intensivo. O artigo aborda a relação corpo e cidade, mapeamentos, registros de deslocamentos e análise desses espaços híbridos. Na conclusão, resgatamos a relação mapa extensivo e intensivo, o percurso construído no artigo e reflexões sobre outros caminhos possíveis para o mapeamento.

Palavras-chave: mapeamento, ciberespaço, corpo e cidade, cartografia intensiva, oficina.

Abstract: The use of social media was significantly expanded in 2020, and it is also necessary to reflect on the geographic experience of displacement in the pandemic. By increasing the use of digital technologies in our daily lives, due to the impossibility of fully enjoying the city, we have profoundly changed our physical, bodily and cultural relationships with the city. The overlaps between the networks that formed in the pandemic, with repercussions in the territory, and the virtual networks form hybrid spaces. Based on data from a doctoral research carried out by the Postgraduate Program in Geography at the Federal University of Espírito Santo, the experience of mapping the networks of five women with community activities in the Centro neighborhood, in Vitória, Espírito Santo, is investigated, which symbolically and materially build another city. The premise is a knowledge process under construction, not necessarily linear, about the relationship between extensive and intensive mapping. The paper addresses the relationship between body and city, mappings, displacement records and analysis of these hybrid spaces. In the conclusion, we recover the extensive and intensive map relationship, the path built in the article and reflections on other possible paths for mapping.

Keywords: mapping, cyberspace, body and city, cartography, workshop.

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID 19, ao impedir ou restringir os deslocamentos físicos das pessoas pelas cidades, conferiu densidade aos deslocamentos pelo ciberespaço. Se a geografia fornece elementos para nos situarmos e orientarmos no mundo, a experiência de se comunicar por meio de redes virtuais também pode ser considerada uma experiência geográfica. Deslocar-se no ciberespaço tem um sentido amplo, estando relacionado também às questões subjetivas. Se o deslocamento físico permite a geração de um mapa extensivo, em que escalas e distâncias são mensuráveis, os deslocamentos virtuais promovem mapeamentos intensivos, ambos imbricados em práticas sociais e leituras do espaço geográfico.

Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa de doutoramento do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo. A pesquisa, que inicialmente trabalharia com mapeamentos intensivos de atores locais no Centro de Vitória a partir de seus deslocamentos extensivos, da caminhabilidade, teve que ser ajustada em função do isolamento social. Se, de um lado, a realidade impôs impedimentos à condução prevista para a investigação, de outro permitiu novos olhares sobre a ação política de corpos temporariamente imobilizados, mediada pela virtualidade.

Assim, o foco da pesquisa conduzida foi a relação entre mapa extensivo e mapa intensivo, como rede de relações que não possuem escalas de mensuração e como o primeiro, ao ser construído tecnicamente e exposto, funciona para mobilizar o outro. Cinco pessoas, autodenominadas mulheres, com histórico de atuação comunitária no Centro de Vitória (ES), participaram da pesquisa.

O município de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, possui 358.267 habitantes, integrando a Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), composta por mais seis municípios (Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra, Viana e Vila Velha) totalizando 1.951.673 habitantes, sendo Vitória o quarto município mais populoso, segundo dados de projeções estatísticas de 2018 (VITÓRIA, 2020).

A região Central de Vitória, área onde se iniciou o processo histórico de formação da cidade, compreende um conjunto de bairros situados em áreas de aterro e morros. A parte histórica é conhecida como cidade alta e abriga algumas igrejas e o Palácio Anchieta, sede do governo estadual, enquanto a parte baixa concentra as atividades comerciais e de serviços. No entanto, entre as duas, existem os morros que conformam outros três bairros. O Centro abriga, ainda, os principais equipamentos culturais públicos da RMGV como museus, centros culturais e teatros.

Vitória apresenta bons Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), “porém, tem mais da metade de seu território urbanizado reconhecido como área de ZEIS”, Zonas Especiais de Interesse Social, e “cerca de 1/3 da população de Vitória vive em situação de vulnerabilidade social”, sendo usuária de programas municipais, como o Projeto Terra, um programa formado por ações integradas nas áreas social, fundiária, ambiental e habitacional (MIRANDA; ALMEIDA PROSCHOLDT; MARTINS, 2019, p. 179).

No Centro de Vitória se entrelaçam o direito à memória, a falta de acesso ao saneamento, os imóveis abandonados, o descumprimento da função social da propriedade, as questões de segurança, a ausência de gestão pública democrática, a demanda por urbanismo reparador e o porto em processo de desestatização. Várias camadas históricas que foram sobrepostas, muitas vezes sob um olhar de vertente europeia e colonialista. Planos urbanísticos e instrumentos de gestão existem e não são aplicados. Por outro lado, há no Centro um vigor proveniente de ações ligadas ao setor cultural que se expandem aos coletivos, bares e restaurantes locais, e são esses grupos que buscam melhorias para a região central. As mulheres participantes da pesquisa engajam-se nesses movimentos de resistência.

O recorte temporal para o levantamento de dados da pesquisa e os mapeamentos ocorreu entre 15 de março e 30 de outubro de 2020, período em que fizemos o cadastramento e mapeamento das lives realizadas. Lives são transmissões ao vivo de áudio e vídeo pela internet, feitas por redes sociais, por exemplo, o Instagram. As demais atividades práticas da pesquisa, como formulário e oficina (mapeamento intensivo), ocorreram nos meses de dezembro de 2020 e início de janeiro de 2021.

A matéria-prima dos mapas extensivos foi a localização das pessoas que participaram de lives com as mulheres citadas. Esses mapas e a identificação das redes de interlocutores das pessoas pesquisadas foram construídos com o uso de ferramentas cartográficas do Google My Maps, utilizando-se dados da rede social de compartilhamento de fotos e vídeos, Instagram. Posteriormente, foi solicitado o preenchimento de um formulário com questões sobre o mapeamento extensivo e realizada uma oficina, com a participação das pessoas pesquisadas e desses mapas, buscando entender como o mapa extensivo do alcance das lives poderia mover o pensamento sobre suas próprias geografias, ou seja, como o extensivo atravessa (e é atravessado por) o intensivo.

Ao todo, as cinco mulheres pesquisadas participaram de 111 lives no período considerado. O quadro 1 apresenta o perfil de cada mulher, a quantidade e temática das lives (Quadro 1).

Síntese das lives
Quadro 1
Síntese das lives
Fonte: baseado em dados de levantamentos do Instagram, entre março e outubro de 2020.

Na sequência deste artigo, refletimos sobre espaço, mapeamento e apresentamos a oficina realizada no âmbito da pesquisa.

MAPAS E ESPAÇOS (INTENSIVO/EXTENSIVO; REAL/VIRTUAL)

A elaboração de mapas intensivos e extensivos tem auxiliado a compreensão dos espaços, sejam reais ou virtuais, enfatizando práticas espaciais que contribuem para leitura do espaço geográfico, assim:

Mapas intensivos são instantes de sensação quando ela toma consistência e se efetua e, novamente, se abre a novos encontros. Enquanto a cartografia apresenta os movimentos de transformação das paisagens (o que se passa, o que acontece) os mapas intensivos apresentam as reterritorializações. Consistências. O mapa intensivo como consistência é aberto às conexões. Não é um todo estático ou definitivo de algo ou alguém, é a mobilidade dos afetos. (PREVE, 2010, p. 85)

Girardi (2014, p. 88) estabelece um diálogo entre a possibilidade de leitura de políticas espaciais em mapas e a cartografia crítica, que ampliam as abordagens dos mapas e afirmam que “todo mapa apresenta um lugar, ao mesmo tempo em que o constitui discursivamente e que tanto é produzido como produz imaginações e práticas espaciais” (GIRARDI, 2014, p. 90), sendo que a apresentação do mapa possui um “caráter de ficção, ou seja, de invenção com efeito de verdade, porque se ajusta aos modos como aprendemos a ler e a ver a realidade” (GIRARDI, 2014, p. 91).

No sentido amplo, considerando também a identidade do lugar, o conceito de espaço pode ser melhor compreendido ao se destacar as três proposições e argumentos de Doreen Massey:

1.O espaço é um produto de inter-relações. Ele é constituído através de interações, desde a imensidão do global até o intimamente pequeno [...].

2. O espaço é a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade; é a esfera na qual distintas trajetórias coexistem; [...] multiplicidade e espaço são co-constitutivos.

3. Finalmente, e precisamente porque o espaço é o produto de relações entre relações que são práticas materiais necessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ele está sempre num processo de devir, está sempre sendo feito - nunca está finalizado, nunca se encontra fechado. (MASSEY, 2004, p. 8)

Nesse modo de conceituar o espaço, em constante devir, este nunca estaria acabado e fechado. Adotando o conceito de identidade do espaço, essa não seria préconstituída e fechada, sendo o entendimento da identidade do lugar construído por meio de relações com outras partes (espaço relacional), a própria condição do político (MASSEY, 2004, p. 9).

As mulheres cujas trajetórias foram mapeadas estão envolvidas em lutas urbanas ligadas a temas como direito à memória, acesso a serviços, infraestrutura, moradia, entre outros, e atuam no Centro de Vitória (ES) para obter melhorias para as questões estruturais e históricas da cidade, conforme perfis e temas citados no Quadro 1. Os deslocamentos no ciberespaço durante a pandemia também são atravessados pelas questões de gênero, raça e classe, assim como no espaço público. O Centro, considerado em decadência e abandonado, quase residual, no sentido de lugar que não recebe atenção da administração pública, é um lugar repleto de pessoas com narrativas e trajetórias em constante transformação.

Podemos traçar uma analogia entre a virtualidade do ciberespaço e do espaço público. Em termos de componentes, no espaço público, o que mais se assemelha ao ciberespaço é o seu poder comunicacional. De acordo com Gomes (2018, p. 117), os espaços públicos possuem um poder comunicacional, isto é, “tornar público significa oferecer ao julgamento e à opinião dos outros indivíduos essas características”, as diferenças. Possuem ainda a propriedade da reflexividade, ou seja, observamos e somos observados.

Lévy (1999, p. 47) destaca que “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato”, enfatizando que no entendimento filosófico contemporâneo “é virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular”.

MAPEAMENTO

Apresentamos, inicialmente, os mapas elaborados na pesquisa baseados nos dados disponíveis na internet (Instagram). São mapas que representam um recorte de uma rede de atores que se formaram e/ou se fortaleceram durante o período de restrições da pandemia. Esses mapas passam a ser colaborativos na medida em que as mulheres pesquisadas foram convidadas a intervir nessa construção, na etapa seguinte da pesquisa, com a realização da oficina.

Ao correlacionar, por meio do mapa e geolocalização, os entrevistados nas lives, conteúdo das entrevistas e as pessoas pesquisadas, observamos que a maioria dos envolvidos reside nos municípios da RMGV, principalmente na capital, Serra e Cariacica (Figura 1).

Exemplos de rede de contatos na Grande Vitória
Figura 1.
Exemplos de rede de contatos na Grande Vitória
Fonte: Mapa elaborado no âmbito da pesquisa baseado em dados do Instagram, 2020.

Constam, ainda, 15 contatos com pessoas dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Recife, Bahia, Brasília, Paraná e Piauí. Ocorreram somente quatro contatos com pessoas que residem fora do Brasil, amigos e moradores de Portugal, Itália, Estados Unidos e Peru, caracterizando uma rede essencialmente local e intermunicipal, localizada no Espírito Santo.

Nesse circuito de lives, encontramos vereadores e candidatos a vereadores, docentes de instituições públicas e privadas, deputados estaduais, moradores do Centro, artistas, escritores, comerciantes, epidemiologista, o Secretário Estadual de Cultura, a vice-governadora do Espírito Santo, dentre outros.

Os mapas produzidos utilizando o My Maps são cartografias tradicionais no sentido de leitura do campo extensivo, físico:

Esse objeto, o mapa, que simula uma imagem de território estável, capturável no todo (porque visto na ortovisão) e em toda sua natureza, cada vez mais disponível pela disseminação tecnológica e cada vez mais produzido porque é, ele mesmo, elemento da reprodução do capital, vira objeto de desejo e, nesse ganho de autonomia, de coisa desejada, de fetiche, por sua vez, deseja-nos. (GIRARDI, 2009, p. 154)

Os mapas tradicionais não contemplam as características subjetivas, uma vez que os trajetos formais ou informais são realizados pelo fluxo de pessoas e por seus percursos. O errante não vê a cidade somente de cima, a partir da visão de um mapa, mas a experimenta de dentro. “Ele inventa sua própria cartografia a partir de sua experiência itinerante” (JACQUES, 2012, p. 24).

Massey (2008, p. 145), em relação às narrativas sobre os efeitos do ciberespaço, afirma que a virtualidade do ciberespaço “tem suas raízes, muito firmemente, na terra e o mundo do espaço físico e o mundo das conexões eletrônicas mediadas não existem como se fossem duas camadas separadas”.

Lévy (1999, p. 20) afirma que as tecnologias são produtos de uma sociedade e de uma cultura, sendo que “é impossível separar o humano de seu ambiente material” e, consequentemente, separá-los dos “signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo”. Conclui, ainda, que “não podemos separar o mundo material - e menos ainda sua parte artificial - das ideias por meio das quais os objetos técnicos são concebidos e utilizados, nem dos humanos que os inventam, produzem e utilizam”.

Portanto, a dicotomia espaço real e virtual não faria sentido sendo que as práticas sociais, econômicas e culturais atuais ocorrem de forma híbrida nesses espaços, mediados também por seus dispositivos móveis, e com a própria estrutura urbana.

Sobre o ciberespaço e a identidade pessoal, Kitchin (1998, p. 394) afirma que

existem duas teorias emergentes ambas girando em torno de mudanças nas conceituações do corpo e baseadas em estudos de Foucault, que sugerem que determinados dispositivos tecnológicos alteram a construção social da identidade pessoal. Na primeira, o ciberespaço é visto como uma experiência desencarnante com efeitos transcendentais e libertadores. A segunda posição conceitua as interações com o ciberespaço como auxiliando na fusão da natureza com a tecnologia, à medida que humanos e computadores se unem por meio de um processo de cyborging. (KITCHIN, 1998, p. 394, tradução nossa)1

Apesar de a cartografia ser um instrumento de representação e uma forma histórica de legitimar políticas e ações de grupos sociais dominantes para influenciar a apropriação e percepção territorial, a cartografia também pode se tornar um método de construção da realidade de forma coletiva e horizontal (RENA; MAIA; SÁ, 2015, p. 5).

A cartografia contemporânea dialoga com a possibilidade de rediscutir novas linguagens, sendo a arte (e suas diversas vertentes) uma das possibilidades de diálogo, pois o artista, assim como o cartógrafo, registra, absorve, processa, questiona e reelabora o seu tempo (ROLNIK, 2014, p. 23). A antropofagia em si mesma é uma forma de subjetivação caracterizada “pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade de hibridização, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias” (ROLNIK, 2014, p. 19).

ENCONTRO, OFICINA E NARRATIVAS

Preve (2013, p. 51) afirma que “as oficinas são composições que o oficineiro faz e usa em benefício próprio para poder dizer alguma coisa ao mundo”, não sendo neutro porque a escolha de um tema de estudo pelo oficineiro/pesquisador “deriva dos encontros que faz com o mundo no seu tempo e que o despertam afetivamente”.

A oficina foi adotada como um procedimento para transformar o mapa extensivo (Google My Maps) em intensivo. As cartografias intensivas, de acordo com Preve (2013, p. 52) tratam de apresentar os movimentos que os mapas percorrem até se tornarem o que são, pois os “mapas intensivos não podem ser deslocados dos processos em que surgiram”. No entanto, a mesma autora (PREVE, 2013, p. 64) afirma que “O plano extensivo não se opõe ao do intensivo. Não se sai de um plano para entrar noutro totalmente a parte do primeiro”.

Utilizamos o mapeamento inicialmente produzido, além de entrevistas individuais, para realizar um encontro remoto entre as cinco mulheres pesquisadas, com auxílio da plataforma de design InVision, que possibilita a elaboração de atividades em grupo. “ir ao encontro de alguém produz conhecimento recíproco entre as pessoas que se movem em nosso novo mundo e nos ajuda a imaginar, com elas, uma outra maneira de habitá-lo” (CARERI, 2017, p. 34). O resultado da oficina (Figura 2), mapeamento e relatos encontramse a seguir.

Mapeamento coletivo produzido na oficina da pesquisa
Figura 2
Mapeamento coletivo produzido na oficina da pesquisa
Fonte: SOUZA, Angela Gomes. Corpo, cidade e lugar: mapeamentos e espaços híbridos. 2021. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2021. Disponível em: https://corpocidade.invisionapp.com/freehand/Mapa-8Q2dc6Hr6. Acesso em: 21 ago. 2021.

Sintetizamos os relatos e anotações da gravação da oficina, realizada em 20 de janeiro de 2021, das 17h às 18h30, com ruídos de comunicação, intervalos de fala e descontinuidade características da interface remota.

As participantes da oficina identificaram como ponto em comum entre elas a “resistência”, ligada a lugares específicos da cidade, como o Centro e bairros periféricos, sendo necessário, nesse momento tão confuso do país, se preparar para dialogar com a população, com as pessoas que precisam de informação, em especial, com o povo preto e minorias isoladas na sociedade. Possuem em comum também a luta pelo fim da desigualdade e pela sobrevivência frente às truculências das instituições públicas em relação à negação dos direitos coletivos. A união das mulheres foi representada na oficina por uma ilustração contendo as faces das mesmas, unidas por linhas, além de desenhos e fotografias indicativas de manifestações já realizadas na rua. São mulheres que estão à frente, se expondo para transformar a sociedade.

As mulheres pesquisadas viveram o medo da fome e da morte. Além disso, ficaram surpresas com as informações mapeadas e quantificadas sobre as lives realizadas e como se relacionaram com outras pessoas mesmo a distância, concluindo que continuaram em movimento, em estudo, em militância. Há uma percepção coletiva sobre a intensificação da velocidade da passagem do tempo, concluindo que ainda não processaram tudo o que está acontecendo agora. Em relação ao futuro, reconhecem que será muito afetado por essas experiências de redes que elas estão vivenciando e que ainda existem muitas demandas a serem supridas na área de inclusão digital, pois muitas pessoas ficaram excluídas do processo de educação, do acesso a serviços básicos de saúde e com dificuldade para obter o auxílio emergencial por não terem acesso à internet.

Foi possível perceber, com a realização da oficina, quantos aspectos subjetivos emergiram e que estavam invisíveis na cartografia tradicional, no mapa extensivo. Promover a oficina no âmbito da pesquisa é um movimento que reflete a possibilidade de desmontar e reconfigurar a tecnologia e o mapa produzido com o auxílio do My Maps. Algumas questões referentes ao mapeamento intensivo ficaram expostas. Entre elas, as estratégias de dissolução da autoria, a horizontalidade do diálogo, a apropriação de imagens e de discursos, as tensões e as negociações do encontro. A oficina evoluiu como uma forma de repensar o “caminhar e o parar”, de se relacionar com o mapa e com a criação de uma espécie de contra-mapa, agora elaborado como resultado de um encontro (Figura 3). Neste sentido, o mapa intensivo “é uma sutileza, talvez. Imperceptível. Frágil. Um encontro” (PREVE, 2013, p. 64).

Mapeamento coletivo produzido na oficina da pesquisa, detalhe ampliado
Figura 3.
Mapeamento coletivo produzido na oficina da pesquisa, detalhe ampliado
Fonte: SOUZA, Angela Gomes. Corpo, cidade e lugar: mapeamentos e espaços híbridos. 2021. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2021. Disponível em: https://corpocidade.invisionapp.com/freehand/Mapa-8Q2dc6Hr6. Acesso em: 21 ago. 2021.

Neste “tensionamento” entre a cartografia tradicional e outras formas de representação, interessa-nos, então, nesse mapeamento, um conceito de espaço enquanto processo de interconexões em construção, inacabado (MASSEY, 2008, p. 32).

Ao longo da pesquisa, fomos tecendo novas articulações entre as informações das pessoas pesquisadas na tentativa de estabelecer uma nova cartografia, agora intensiva. Nessa abertura para o novo, no inacabado, a exploração não necessita de metas, mas de tempo a ser perdido, desvios, mudanças de rumo, paradas para encontrar o outro (CARERI, 2017, p. 107).

As pessoas pesquisadas são guias para conhecimento dos lugares, apontando brechas e recortes para idas e vindas, e podem nos apresentar “uma leitura da cidade construída com um ponto de vista em movimento e imerso nas dinâmicas do território” (CARERI, 2017, p. 18).

As trajetórias das mulheres pesquisadas se articulam com o movimento feminista no sentido de compreender que sua inserção ou não na sociedade, consequentemente, na cidade, é decorrente de processos e lutas históricas. Neste sentido, o espaço público não é neutro e o planejamento das cidades reproduz as estruturas ainda vigentes de poder e de opressão.

Ao politizar as desigualdades de gênero, segundo Carneiro (2019, p. 273), o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Para a autora, essa condição permite que os sujeitos tenham olhares diversos a partir do local em que estão inseridos, fazendo com que outros processos particulares sejam desencadeados.

No entanto, os lugares mudam, eles prosseguem sem a nossa presença, sendo necessário uma geografia que reflita sobre essas relações e sobre o “desafio de ligar lutas locais à possibilidade de uma política local com mentalidade aberta, de alcance para além do lugar” (MASSEY, 2008, p. 212).

Careri (2017, p. 30) argumenta que é necessário inventar instrumentos e modalidades “para ‘autorrepresentar’ as realidades pesquisadas”, sem necessariamente “produzir nem propriamente objetos nem propriamente projetos, mas sim procurando construir percursos, relações”. Neste sentido, quanto à potência dos métodos que se apropriam de outras linguagens não tradicionais do planejamento, “a arte é capaz de pegar desprevenida a cidade, pegá-la de modo indireto, lateral, lúdico, não funcional, de tropeçar em territórios inexplorados, em que nascem novos fenômenos e novas questões” (CARERI, 2017, p. 60).

No rebatimento no corpo, percebemos na oficina depoimentos de cansaço, de sentir no corpo o ano atípico e uma disposição para a resistência, apontados no mapa colaborativo produzido. Há um sentido de luta permanente (Figura 04).

Recorte da oficina
Figura 04.
Recorte da oficina
Fonte: SOUZA, Angela Gomes. Corpo, cidade e lugar: mapeamentos e espaços híbridos. 2021. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2021. Disponível em: https://corpocidade.invisionapp.com/freehand/Mapa-8Q2dc6Hr6. Acesso em: 21 ago. 2021.

OUTROS CAMINHOS

Cinco pessoas, entre tantas na cidade, circulam intensamente nas redes na pandemia. Mulheres que se encontram com outras pessoas, debatem, divergem e ampliam temas e estratégias contemporâneas, hibridizam espaços físico e virtual nestes movimentos.

As transformações das tecnologias da informação e da comunicação “apresentam um mundo global que existe em função daquilo que os meios de comunicação de massa transmitem”, existindo “um mundo global”, midiático, que é enfocado, e o “resto do mundo - o da luta cotidiana, da miséria endêmica, dos movimentos urbanos e alternativos”, que se encontra quase oculto do foco midiático. Por outro lado, a própria “facilidade de acesso aos sistemas de comunicação” oferece novos canais pelos quais realidades antes invisíveis se tornam visíveis (MONTANER; MUXÍ, 2014, p. 81).

As mulheres pesquisadas, quando atravessadas pela proposta da oficina, intensificaram formas de observação, lugares, métodos e instrumentos, transformaram e driblaram visões. Porém, uma parte do que não é visto, o que não cabe nos mapas, nas narrativas do olhar, que são outros estímulos, que incorporam novos sentidos aos corpos em deslocamento e/ou são vivências que já existiam, tornaram-se aparentes na oficina, no encontro realizado.

Nessa abertura para o novo, Careri (2017, p. 87) afirma que “o percurso mais breve nunca é o melhor, que há muitas coisas para ver ainda, que perdendo tempo, ganha-se espaço” e cria-se a possibilidade de encontrar o outro.

Costurar, colar, estriar, alisar, emendar, criar novas interseções e mapear permanecem como dispositivos, abrindo caminhos e novos encontros possíveis, de uma outra cidade. Se o intensivo é um “um exercício político em nós” com rebatimento coletivo, é necessário reforçar a importância de questionar, refletir e romper com situações já configuradas para que outras possam surgir e/ou se destacar. Trata-se de um exercício político de dizer, de expor mais situações que aparentemente são hegemônicas. Neste sentido, recortar e rearticular mapas e desejos cria uma cartografia com linhas soltas, abertas a novas conexões, em que outras pessoas, novas redes, observarão e participarão desses deslocamentos.

A partir do debate sobre mapeamento, a pesquisa apresentou reflexões referentes às questões urbanas, buscando debater, propor e avançar na construção de metodologias para compreensão, mapeamento e construção das cidades, concluindo que mapas extensivos e intensivos podem ser complementares.

É necessário ter novos olhares sobre o espaço público, os deslocamentos em espaços híbridos e sobre as fronteiras e sobreposições que existem entre campos disciplinares. Portanto, justifica-se investigar os novos procedimentos discursivos conceituais e conceptivos de representação da cidade, que a reforçam como espaço de mediações políticas, sociais e culturais, e que participam da construção de novos significados da cidade para as pessoas (Figura 05).

Ilustração elaborada a partir da oficina, com técnica de colagem digital
Figura 5.
Ilustração elaborada a partir da oficina, com técnica de colagem digital
Fonte: Elaborada a partir da oficina com imagens de acervo da pesquisa e outras disponíveis on-line, 2021.

REFERÊNCIAS

CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gilli, 2017.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento: contribuições do feminismo negro. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019. 400 p.

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MASSEY, Doreen. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. GEOgraphia, Niterói, v. 6, n. 12, p. 07-23, 2004.

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ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2014.

Notas

1 No original: "There are two emerging theories concerning the relationship between cyberspace and identity. Both theories centre around changing conceptualizations of the body. In the first, cyberspace is seen as a disembodying experience with transcendental and liberating effects. The second position conceptualizes interactions with cyberspace as aiding the merging of nature with technology, as humans and computers coalesce through a process of cyborging. Both theories draw on notions of Foucault's theory of `technologies of the self'”.
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