DOSSIÊ

As representações faunísticas na arte rupestre do Parque Nacional da Serra da Capivara, como indicadoras de mudanças climáticas e resiliência

Faunistic representations in the Park's Rock Art Serra da Capivara National Park, as indicators of climate change and resilience

Luana Campos
Univ. Estadual de Goiás - UEG, Brasil
Cristiane de Andrade Buco
IPHAN, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 49, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 11 Fevereiro 2021

Aprovação: 16 Julho 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622492021171

Resumo: O termo “mudanças climáticas” tem feito, cada vez mais, parte do vocabulário contemporâneo, sendo seus efeitos sentidos das mais distintas formas por todo o globo. Entretanto, não se trata de um fenômeno exclusivamente recente. Os efeitos das mudanças climáticas têm influenciado na ontologia do comportamento humano, com expressões marcantes na sua cultura material, em uma via dupla de relações, em que a própria cultura material serve como indicadora das mudanças ambientais provocadas pelas variações climáticas. Nesse sentido, propomos uma metodologia de abordagem dupla, pautada na análise por fragmentação e por intersecção, como forma de compreender a complexidade das relações clima/patrimônio na região do Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil.

Palavras-chave: patrimônio, mudanças climáticas, arte rupestre.

Abstract: The term “climate change” has become increasingly part of the contemporary vocabulary, with its effects being felt in different ways across the globe. However, this is not an exclusively recent phenomenon. The effects of climate change have influenced the ontology of human behavior, with striking expressions in its material culture, in a two-way relationship, where material culture itself serves as indicators of environmental changes caused by climate variations. In this regard, we propose a double approach methodology, based on analysis by fragmentation and intersection, as a way to understand the complexity of climate/heritage relationships in the region of Serra da Capivara National Park, Piauí, Brazil.

Keywords: heritage, climate change, rock art.

INTRODUÇÃO

Os efeitos das mudanças climáticas se tornaram um problema contemporâneo, presente na pauta política, a partir da década de 1990 com o final da Guerra Fria, quando temos uma sociedade com condições de se ocupar dos outros perigos globais. Contudo, as influências das variações e alterações climáticas são fatores históricos que impactam grupos humanos e as suas estruturas sociais em larga escala em diferentes épocas. Não obstante, buscaremos refletir brevemente aqui sobre como o patrimônio cultural arqueológico pode ser indicativo dos efeitos das mudanças climáticas. Sejam os efeitos sobre os impactos provocados por esses em diferentes períodos do holoceno, que claramente contribuíram para as remanescências que existem hoje. Ou, seja como indicativo de resiliência das comunidades pré-coloniais frente às mudanças climáticas sofridas ao longo dos anos, tal como podemos encontrar retratado nas pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara - Piauí/Brasil.

Primeiramente, é basilar compreender que, quando falamos em alterações do ambiente pretérito à ocupação do território por Portugueses, no caso do Brasil, estamos falando principalmente de alterações climáticas e, neste sentido, as primeiras imagens que surgem são das grandes mudanças, como período glaciares e os interestádios. Contudo, para um reflexo na paisagem e mesmo no comportamento humano, essas alterações não são necessariamente de dimensões de longa duração. Um exemplo disso são as condicionantes climáticas que vivemos atualmente devido ao aquecimento global (HALLAN, 2004;HANDEMER et al., 1999;SILVERWOOD-COPE et al., 2011).

Em particular no período Holocênico, podemos afirmar a ocorrência de vários "eventos climáticos" de curta duração que provocaram alterações no ambiente (PESSENDA et al., 2010;VAN DER SCHRIEK et al., 2007;VANNIÈRE et al., 2011). Um desses eventos climáticos ainda pouco estudado foi o Máximo Termal Holoceno (MTH), que teria se iniciado por volta de 7,5 mil anos BP e cujos efeitos foram sentidos principalmente nas altas latitudes de ambos os Hemisférios, com registro de até 5 °C mais quente que o período pré-industrial, e menos nas zonas tropicais, com alterações de 1-2 °C (RENSSEN et al., 2012). De certa forma, entre as abordagens apresentadas, há consenso quanto ao final do MTH limitado pelo evento frio de 4,2 mil anos BP (KAPLAN; WOLFE, 2006; RENSSEN et al., 2012;2009; WILLIAMS et al., 1994).

Esses eventos climáticos são também considerados como variações com menor intensidade, mesmo assim são apontados como responsáveis por significativas alterações nas relações comportamentais de grupos que habitaram a pré-história (BUDJA, 2007;BAR-YOSEF, 2011;BONSALL et al., 2002; GRONENBORN, 2009). Por consequência, essas alterações comportamentais refletem-se nos diferentes vestígios da cultura material como no processo de alteração na técnica e nos estilos de pinturas rupestres, tipologia lítica e estratégias de ocupação do território.

No caso dos sítios do Parque Nacional Serra da Capivara, que abordaremos neste artigo, podemos observar, por exemplo, uma ruptura do estilo de pinturas entre os 9 e 6 mil anos BP, o que marca o surgimento da chamada Tradição Agreste e o desaparecimento da Tradição Nordeste (MARTIN, 2008;MÜTZENBERG, 2010;PESSIS, 2003;PROUS, 1992). Esse momento também foi descrito por Cristiane Buco sob a nomenclatura de “Povos de Transição” (BUCO, 2012).

Outra evidência de alteração da cultura material atrelada a esse período em particular é encontrada na tipologia lítica, como afirmam os estudos de F. Parenti em 1993. Baseando-se nos artefatos encontrados no sítio Boqueirão da Pedra Furada, estes estudos apontam para uma nova classificação, a qual chamou-se de período Serra Talhada I e II, datados entre 12 e 6 mil anos BP (MÜTZENBERG, 2010;PARENTI, 2001).

Diante das afirmações anteriores, podemos nos perguntar: por que ainda há poucos estudos que relacionem as influências das mudanças climáticas sobre o patrimônio cultural arqueológico? Inferimos que uma das causas é a análise isolada dos elementos que compõem esses sistemas, o que provoca uma limitação na forma de compreensão da relação, em particular, das mudanças de ampla abrangência como as alterações climáticas globais e/ou regionais, sobre o comportamento humano. Nesse caso, utilizaremos um modelo adaptado de David Viner da Unidade de Pesquisa Climática da University of East Anglia, UK (BARKER, 2013;VINER et al., 1997), representado na figura abaixo, na busca de uma melhor visualização das diferenças entre dois sistemas interpretativos.

O modelo (Figura 01) propõe duas vias de concepção analítica que podem ser abordadas simultaneamente do topo para a base (Intersecção) ou da base para o topo (Fragmentação), que varia de acordo como a abordagem pretendida pelo pesquisador, podendo ser aplicada também conjuntamente para uma análise diacrônica. Cada abordagem leva à obtenção de resultados distintos com maior ou menor relação com a fonte, a exemplo da correlação entre níveis de generalização apresentado por Trigger (2004).

Esquema de análise sobre layers no sentido intersecção e fragmentação
Figura 01
Esquema de análise sobre layers no sentido intersecção e fragmentação
Fonte: Adaptado de VINER et al., 1997.

Para o presente artigo, do ponto de vista metodológico, buscaremos abordar a relação dual Clima/patrimônio de forma diacrônica observando como as figuras rupestres podem contribuir para o entendimento de algumas questões levantadas sobre o paleoambiente no qual cada representação fora retratada. Ou seja, utilizaremos a arte rupestre como indicadora do sistema socioeconômico pré-colonial para lançar inferências sobre a paisagem onde os grupos de artistas se integraram. Além disso, elucidaremos uma breve reflexão sobre como os efeitos das mudanças climáticas contribuíram na configuração do patrimônio cultural arqueológico rupestre, tornando este fonte de interpretação de um comportamento resiliente de grupos pretéritos, em particular em alguns sítios do Parque Nacional Serra da Capivara/PI.

No que concerne a primeira etapa de análise, por fragmentação, foi necessária a proposição de um método analítico dividido em três partes, a saber: 1) IDENTIFICAÇÃO, em que recorremos a argumentações por comparação para demonstrar que cada imagem representada de fato corresponde a uma determinada espécie, especificamente três casos: a Ema, a Capivara e o Veado Galheiro; 2) INTERPRETAÇÃO, na qual apresentaremos dados que nos permitam associar os animais a um tipo específico de paisagem; 3) CORRELAÇÕES, quando trataremos dos dados ambientais associados às referências climáticas globais e aos aspectos das alterações no comportamento dos grupos pré-coloniais nos sítios estudados.

DA IDENTIFICAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES RUPESTRES

A utilização do método de associações entre a arte rupestre e o meio ambiente é cercada de nuances que devem ser observadas. A primeira diz respeito a própria identificação dos motivos, que pode ser feita, ao nosso ver, através da semiótica. Assim, pode-se dizer que a identificação dos motivos rupestres para uma correlação interpretativa fiável vai além da observação da imagem. Depende de uma relação de comunicação entre o objeto e o observador, sobre base empírica, e reforçada por dados comparáveis que evidenciem e justifiquem a atribuição de determinada representação. Como exemplo de caso, utilizaremos três motivos recorrentes no PARNA Serra da Capivara: a Ema, a Capivara e o Veado Galheiro.

No primeiro exemplo, as imagens abaixo (Figuras 02, 03, 04) podem levar a diversas interpretações a depender da experiência do observador. Contudo, de forma associativa, podemos utilizar argumentos comparativos para cogitar que a representação dos animais nos painéis corresponde a um grupo de Emas, como veremos à frente.

Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Ema do Sítio do Brás I
Figura 02
Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Ema do Sítio do Brás I
Fonte:CAMPOS, 2015.

Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada
Figura 03
Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada
Fonte:BUCO, 2009.

 Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Baixão do Perna
Figura 04
Grupo de figuras associado a emas do Sítio Toca do Baixão do Perna
Fonte:CAMPOS, 2015.

Iniciando a apresentação dos dados correlacionais capazes de associar as imagens anteriores às Emas, mesmo sendo uma espécie atualmente atípica na região de Caatinga, trazemos que a Rhea americana, nome científico da Ema, é, como podemos observar na própria etimologia da palavra, endêmica da América, mais especificamente da América do Sul (PARAZZI et al.,2007;SINKOC et al., 2005), ou seja, passível de contato com os grupos que a representaram.

Também conhecida como nandu, nhandu, guaripé e xuri, este animal, quando adulto, pode atingir de 1,4m a 1,7m de altura. Seu peso fica entorno dos 35 kg e cada fêmea pode produzir de 12 a 30 ovos por estação de postura. Estes, por sua vez, medem cerca de 132x90mm e pesam em torno de 600gr (PARAZZI et al.,2007); não se trata, portanto, de um animal que sobreviveria facilmente em ambiente arbustivo, levando novamente ao questionamento sobre as condições ambientais atuais do local onde foram representadas.

Omnívora, essa espécie vive especialmente em ambientes abertos, o que nos leva a considerar a existência de um ambiente diferente nas proximidades dos sítios onde estas foram retratadas, ou a mobilidade dos grupos para áreas abertas. Apresenta um comportamento extremamente social, vivendo em grupos de até 30 indivíduos (BRASIL ESCOLA, 2013). Esse fato leva a outra correlação do animal com a pintura, pois quando observados os conjuntos pictóricos os quais relacionamos com emas, estes são representados constantemente em bando, com raras exceções.

Tratando um pouco mais sobre o comportamento social da espécie, ele se deve ao esforço parental na proteção da prole, a qual cabe particularmente ao macho, destinado a vigiar o ambiente, reunir os filhotes, ocultá-los e conduzi-los a locais com mais recursos, desde seu nascimento (LEITE et al., 2005;MOURA, 2010). Esse vigiar constante dos filhos, que praticamente "nascem andando", promovem na paisagem a imagem sempre dispersa do bando, como podemos observar nas imagens abaixo (Figuras 05, 06).

Grupo de emas no cerrado
Figura 05
Grupo de emas no cerrado
Fontes: FLICKR, 2011. Portal dos Pássaro, 2019.

Grupo de emas no cerrado
Figura 06
Grupo de emas no cerrado
Fontes: FLICKR, 2011. Portal dos Pássaro, 2019.

Essa dispersão fora captada e registrada pelos artistas através da utilização de técnicas de profundidade, o que nos permite novamente uma correlação positiva com as representações e os representados, além de cogitar o fato de que os artistas não apenas tiveram contato esporádico com a espécie, mas sim tiveram a oportunidade de observálas por longo tempo.

A presença da ema também foi confirmada por um fóssil evidenciado na Toca das Moendas. Tratou-se da extremidade distal de um metatarso esquerdo do fóssil de Rhea fossilis, diferente da espécie atual, a Rhea americana (FAURE et al., 2010).

Outro animal emblemático escolhido para ser analisado neste artigo é a capivara. Espécie também sul-americana, esse roedor esteve presente na dieta alimentar dos povos indígenas (BRESSAN et al., 2004;PEREIRA et al., 2007), assim como ainda faz parte da dieta de algumas populações rurais do Brasil. Esse fato nos permite cogitar que nossos paleoíndios também tiveram contato com esse animal.

A Capivara, ou Hydrochoerus hydrochaeris, é também conhecida por carpincho, capincho e capinga, mas o nome capivara vem do tupi kapi'wara que significa "comedor de capim", o que antecede algumas características desse animal.

Considerado o maior roedor do mundo, a capivara é semiaquática e habita desde savanas alagadas, matas ciliares e manguezais salobros. Sua necessidade de água está relacionada com a presença de poucas e dispersas glândulas sudoríparas no seu corpo, obrigando o animal a utilizar a água como regulador de temperatura, o que justifica também o seu ciclo de vida crepuscular (FERRAZ et al., 2001;GHELER-CONSTA et al., 2002;MOREIRA et al., 1997). Essa informação é extremamente importante como indicador de alteração ambiental, pois a região da Caatinga, onde são encontradas as pinturas rupestres, é considerada a mais seca do país.

O formato peculiar da cabeça, com um focinho arredondado, foi bem retratado pelos artistas pré-coloniais (Figura 07). Serve como um fator diferencial, pois as representações de capivaras podem ser as mais dúbias dentre os animais selecionados para este estudo, já que sua forma pode ser confundida com o mocó (Kerodon rupestris) que povoa os sítios da Serra da Capivara (Figuras 08, 09).

Grupo de figuras associado a capivaras do Sítio Caldeirão dos Rodrigues I
Figura 07
Grupo de figuras associado a capivaras do Sítio Caldeirão dos Rodrigues I
Fonte: BUCO, 2009.

Mocó (Kerodon rupestris)
Figura 08
Mocó (Kerodon rupestris)
Fonte: Redação NGB, 2020.

Capivara (Hydrochoerus hydrochaeris)
Figura 09
Capivara (Hydrochoerus hydrochaeris)
Fonte: MIQUELETTO, 2017.

Medindo cerca de 100 a 130cm, com altura de até 50cm e um peso médio de 52kg, a capivara vive em sociedades complexas, em grupos que podem chegar a dezenas de indivíduos. Sua gestação dura cerca de 150 dias, gerando até quatro crias por vez, o que permite a existência de grandes grupos (GHELER-CONSTA et al., 2002;MOREIRA et al., 1997). Esse comportamento social confere outra característica bem retratada pelos artistas pré-coloniais, como podemos observar na figura 7.

A ocupação do território por esses animais é do tipo sedentária, abrangendo áreas de campo de pastagem, leitos com água para temperatura e hidratação, e zonas mais altas para descanso. Seu comportamento não muda desde que esses recursos estejam disponíveis. A escassez de recursos pode justificar a ausência deste animal, que dá nome ao parque, mas não é encontrado na região atualmente.

Na Toca das Moendas foi encontrado um fragmento rostral da mandíbula direita de Hydrochaerus sp. que é uma espécie maior que a atual Hydrochoerus hydrochaeris. A espécie foi videnciada em uma mesma camada de fósseis da preguiça gigante, cervo do pantanal, paleolama e uma grande tartaruga, Chelonoidis sp (FAURE et al., 2010) enfatizando um clima mais úmido que o atual. Tal informação não deixa dúvidas da convivência dessas espécies com os grupos humanos que habitaram a região, antes de 6 mil anos antes do presente.

Por último, uma das representações mais conhecidas da Serra da Capivara é o veado galheiro ou Blastocerus dichotomus (Figura 10). Seja pela sua imponência ou pelo fato de não existir mais na região, este animal chama atenção de turistas e pesquisadores, quase tanto quanto as suas cenas de sexo.

Grupo de figuras associado a cervídeos com destaque para o “Veado Galheiro” do Sítio Toca do Pinga do Boi
Figura 10
Grupo de figuras associado a cervídeos com destaque para o “Veado Galheiro” do Sítio Toca do Pinga do Boi
Fonte: BUCO, 2009.

Chamado em guarani de guazú-pucu e de ciervo de los pantanos em espanhol (PAREY, 1989), este é um animal que está diretamente relacionado com ambientes úmidos, especialmente adaptado a locais com existência permanente ou sazonal de corpo de água devido às suas membranas interdigitais, cascos alongados e membros longos (RÍOS-UZEDA, 2008;WOLLENHAUPT et al., 2012), característica que justifica a sua ausência no atual bioma do Parque Serra da Capivara.

Considerado o maior cervídeo da América do Sul, seu peso varia entre 100-120kg distribuídos ao longo dos 145-200cm de comprimento. Sua gestação é lenta, em torno dos nove meses (PAREY, 1989), com uma a duas crias por vez, o que faz com que esse animal tenha um comportamento social mais isolado. É comumente observado sozinho, ou, raramente, em pares (WOLLENHAUPT et al., 2012), fato que não passou desapercebido pelos artistas rupestres (Figura 11).

Representação pictórica do “Veado Galheiro” isolado no Sítio Toca do Paraguaio
Figura 11
Representação pictórica do “Veado Galheiro” isolado no Sítio Toca do Paraguaio
Fonte:BUCO, 2012.

Como dito anteriormente, o Blastocerus dichotomus é bem adaptado a ambientes úmidos, ocupando áreas alagadas, preferencialmente em lâmina d’água com 60 cm de profundidade. Ocupa também áreas de mata ciliar ou cordilheiras (Pantanal), onde busca abrigo. A várzea proporciona alimento durante todo o ano, minimizando as flutuações encontradas em outros ambientes (DUARTE, 2008; PAREY, 1989). Além disso, a várzea oferece aos cervos proteção contra o seu principal predador natural, a onça, pois nesse ambiente eles são mais velozes do que ela. No comportamento de fuga diante de ameaças, o veado-galheiro tende a fazer um gesto muito característico de olhar para trás, ou para a direção do barulho, antes de correr, gesto que foi fielmente retratado pelos artistas, demonstrando o conhecimento do comportamento dessa espécie (Figuras 12, 13).

Veado galheiro em fuga na Toca do Morro das Figura do Angical II
Figura 12
Veado galheiro em fuga na Toca do Morro das Figura do Angical II
Fonte:BUCO, 2006.

Veado Galheiro em posição antes da fuga
Figura 13
Veado Galheiro em posição antes da fuga
Fonte: ZOLNERKEVIC, 2010.

Os cervos parecem ser particularmente sensíveis ao calor, pois possuem um pelame lanoso, e a água passa a ser um mecanismo de termorregulação bastante eficiente. Frente ao habitat ocupado, distribuíam-se originalmente por todo o Pantanal e nas áreas de várzea marginal dos principais rios brasileiros, à exceção do Amazonas. A necessidade de várzeas para a sobrevivência levou a espécie a uma redução populacional intensa no último século (DUARTE, 2008). Esse fator nos leva novamente à arte rupestre como indicador de transformação da paisagem.

As escavações na Toca das Moendas confirmaram uma variada e abundante fauna silvestre, inclusive associada aos restos humanos e ferramentas líticas (GUIDON et al., 2009). Cerca de 15 espécies de grandes mamíferos, bem como diversos pequenos mamíferos estão presentes. Os grandes mamíferos dominantes são Palaeolama major, seguida pelos Cervidae (GUÉRIN; FAURE 2009), estes representados pelos fósseis de Mazama gouazoubira (inclusive um esqueleto, parcialmente em conexão) e Blastocerus dichotomus (Veado galheiro ou Cervo do Pantanal). Dentes do Blastocerus dichotomus foram datados independentemente por ressonância de spin de elétrons (ESR) em dois laboratórios. As idades obtidas para os dentes foram de 29 ± 3 ka (milhares de anos) e 24 ± 1 ka (KINOSHITA et al., 2014) e na mesma camada existiam partes de fósseis humanos. Portanto, infere-se a convivência dessas espécies, tão evidenciada na arte rupestre espalhada nos abrigos do PNSC, com os artistas que os retrataram.

DA INTERPRETAÇÃO ENQUANTO MÉTODO DE ASSOCIAÇÃO

A segunda nuance para associação entre a arte rupestre e o ambiente pode ser atribuída à hermenêutica, uma vez que a compreensão das associações, como parte do questionamento primário, depende da correta interpretação dos dados coletados e comparados em vista da criação de um nexo explicativo, que compreende a etapa posterior. Assim, iniciamos uma análise mais pormenorizada a partir do pressuposto que as representações rupestres apresentadas correspondem, respectivamente, a figuras de ema, capivara e veado-galheiro, que conviveram com grupos humanos em períodos précoloniais. Contudo, duas características são comuns a estes animais: 1) Não são encontrados atualmente na região; 2) Estão relacionados a ambientes distintos dos atuais.

Considerando, portanto, que na identificação das figuras rupestres observam-se características que nos indicam que os artistas tiveram tempo suficiente para observar e assimilar o comportamento dos animais retratados, ficamos com duas hipóteses principais, o que não exclui a existência de outras: 1 - eram grupos nômades que circulavam por biomas distintos; 2 - O ambiente da Serra da Capivara era consideravelmente diferente do atual.

Isso posto, no que concerne à primeira hipótese, podemos inferir que os grupos de artistas eram nômades, caçadores-coletores, que viviam sazonalmente em abrigos sob rocha onde acendiam fogueiras, lascavam pedras e pintavam o que observavam e vivenciavam no seu cotidiano. As pinturas não eram o que lembravam ou repassavam oralmente de geração em geração, visto que foram feitas em espaço de tempo de longa duração com os mesmos rigores de detalhes. Assim, foram retratado no conjunto do corpus pictórico denominado de “Povos de Transição” que ocuparam o vale da Serra Branca no período de 10.800 BP a 6.600 BP (BUCO, 2012).

Antes de continuarmos com a aplicação da proposta interpretativa, cabe destacar que ela trata de uma opção hermenêutica, ou seja, sendo o homem um ser simbólico e complexo (CASSIRER, 1992) compreendemos que qualquer uma das linhas interpretativas que abordarmos não contemplará a sua totalidade. É utilizada em vista da questão colocada inicialmente para estabelecer as relações entre a arte rupestre, as mudanças climáticas e o comportamento resiliente dos grupos artistas dessa região. Sabemos que outros questionamentos poderiam levar a resultados diferentes.

Já sobre a segunda hipótese, podemos inferir que o ambiente, no qual foram retratados a ema, o veado-galheiro e a capivara, era diferente do bioma de Caatinga que se encontra hoje na região. Esse bioma, que é considerado o único bioma exclusivamente brasileiro (BUCO E., 2011; MAGALHÃES, 2012), apresenta características muito singulares que não suportariam a vida dos animais representados. A escassez de água, por exemplo, impede a sobrevivência das espécies que utilizam a água como termo-reguladores, no caso a capivara e o veado-galheiro. Outra dificuldade enquanto sobrevivência nesse ambiente diz respeito às características arbustivas da Caatinga, que dificultaria a circulação de animais de grande porte como a ema e o veado-galheiro, como vemos na imagem (Figura 14) abaixo.

exemplo das condições de circulação entre as vegetações arbustivas secas da Caatinga do entorno do Sítio Toca do Sítio da Ema do Brás I
Figura 14
exemplo das condições de circulação entre as vegetações arbustivas secas da Caatinga do entorno do Sítio Toca do Sítio da Ema do Brás I
Fonte: CAMPOS, 2014.

Além das evidências contidas nas pinturas rupestres, foram encontrados ossos de animais extintos com características igualmente incompatíveis com o bioma semiárido (GUERIN; FAURE, 2014), assim como artefatos construídos com ossos de animais extintos atualmente na região (FAURE et al., 2013). Mas é sobre os dados paleoambientais que encontramos uma interpretação mais contundente sobre a existência de um bioma distinto do atual nos sítios da Serra da Capivara, onde identificamos as figuras apresentadas.

O primeiro deles encontra-se nas datações obtidas pelas diversas campanhas de escavações realizadas no parque. Há um conjunto com 233 datações associadas a 66 sítios arqueológicos na região do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno1. Dessa totalidade, 77% está associada aos sítios arqueológicos com arte rupestre. No Holoceno antigo (pré-borial, boreal e parte do Atlântico) reside a maior concentração de datações (coincidindo com os sítios de arte rupestre). Entretanto, entre 4 e 6 mil anos, há uma considerável diminuição. Já entre 4 mil e o período do contato, o chamado Holoceno recente (final do Atlântico, sob-boreal e sob-atlântico), existe um grande aumento de sítios datados. Os sítios se encontram principalmente na Planície Pré-cambriana, região do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara (BUCO, 2012), demonstrando uma variação no processo de ocupação do território em determinados períodos do Holoceno, coincidindo também com distintas variações climáticas.

Em diversos sítios, as datações têm relação direta com pinturas rupestres, seja através de placas e/ou painéis com pinturas enterradas, fragmentos de pinturas e ocres em camadas associadas a estruturas de fogueiras. Destaca-se o sítio Toca do Pica-pau onde foi evidenciado um ocre com marcas de uso e um fragmento de pintura com partes de um cervídeo, enterrados a 317 cm do solo atual, datado de 7.410 +/- 60 BP (C14), que se encaixa na parede (BUCO, 2012, p. 342), permitindo inferir uma datação mais antiga para o painel que contém emas e cervídeos representados (Fig.15).

Composição com os dados do painel do sítio Toca do Pica-pau
Figura 15
Composição com os dados do painel do sítio Toca do Pica-pau
Fonte: Adaptado de BUCO, 2012.

Abrindo o leque de correlações para os eventos climáticos que marcaram o período do Holoceno pré-boreal, podemos observar, nas datações indicadas, uma correspondência de maior ocupação dos locais datados com o pré evento climático Younger Dryas. Esses eventos teriam ocorrido logo após o final da última glaciação, a volta de 12 700 a 11 500 cal. BP, caracterizada como uma alteração abrupta em pequena escala temporal, fazendo sentir-se por condições frias e secas (BAR-YOSEF, 2011;HABERZETTL et al., 2007). O que se segue é, portanto, um período marcado por incremento de temperaturas mais quentes e úmidas (GANDOUIN et al., 2007), que durante muitos anos foi conhecido no meio arqueológico com “ótimo climático”, com condições ambientais ideais para o desenvolvimento da vida.

Contudo, as datações apresentadas abarcam outros eventos climáticos do chamado Holoceno boreal. Um desses eventos é o chamado "8 200 Event". Este, por sua vez, é registrado em diferentes sondagens de forma distinta quanto às suas condicionantes seco/úmido. Porém é constantemente apresentado como mais frio que a tendência holocênica (BUDJA, 2007;GRONENBORN et al., 2009;SCHULZ et al., 2002), podendo ser caracterizado por temperaturas mais amenas, especialmente nas regiões tropicais.

Mas, é no período Atlântico, por volta de 7 a 6 mil anos B.P., que encontramos a variação climática mais significativa para a paisagem da Serra da Capivara, que se localiza próximo à linha do Equador. Trata-se do chamado Máximo Termal Holocénico (Holocene Thermal Maximum - HTM), quando foram registradas as temperaturas mais quentes e secas do Holoceno, até o momento (BROUGHTON et al., 2008;LJUNGQVIST, 2011; RENSSEN et al., 2009;RULL et al., 2011;VANNIÈRE et al., 2011;YU et al., 2000).

Esse período, ainda pouco difundido na literatura não especializada, com datação aproximada entre 7 500-4 500 BP, é apontado como parte decisiva de uma série de eventos que provocaram significativas alterações comportamentais nos grupos précoloniais, desde a aquisição de economias agropastoris até alterações nos padrões alimentares (YU et al., 2000;SCHMITZ, 2000;RICHERSON et al., 2001; VANNIÈRE et al., 2011). Coincide também com o período de instalação do bioma de Caatinga na região (CHAVES, 2002;GUIDON, 2002; SANTOS, 2007); a extinção dos grandes animais e da megafauna no Nordeste (ROSA et al., 2018) e o secamento de leitos de rios (CAMPOS, 2015). Esse evento teria sido também o responsável pelo final do Saara verde (CLAUSSEN et al., 1999) e muitas outras grandes transformações ambientais e culturais a volta do globo (RENSSEN et al., 2012), especialmente nas regiões equatoriais do hemisfério sul.

CORRELAÇÕES ENTRE O PATRIMÔNIO CULTURAL ARQUEOLÓGICO, AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMPORTAMENTO RESILIENTE

Para a correlação dos dados aqui apresentados, buscaremos bebe. um pouco da fonte do método hegeliano da dialética2, pois intentamos chegar a uma síntese, ancorada na tese construída pela identificação e interpretação. Ou seja, a tese de que as representações rupestres funcionam também como indicadores das mudanças ambientais e climáticas é contrastada pela antítese da ausência de evidências similares em outras regiões do Brasil, uma vez que o bioma de Caatinga só é encontrado na região nordeste do país.

Partimos do pressuposto da afirmação de Cassirer (1992, p. 22) de que as “formas simbólicas especiais não são imitações, e sim, órgãos dessa realidade, posto que, só por meio delas, o real pode converter-se em objeto de captação intelectual e, destarte, tornar-se visível para nós”, como vimos nas distintas representações da ema, da capivara e do veado-galheiro pelos artistas que habitaram a região da Serra da Capivara.

Do ponto de vista ambiental, observamos que os dados paleoambientais corroboram para a interpretação da existência de um bioma distinto do atual, que comportaria a sobrevivência das espécies retratadas nas pinturas e que teria iniciado sua transformação com o evento do Máximo Termal do Holoceno. Extrapolando as fronteiras, há evidências de que os impactos desse evento, caracterizado no Nordeste do Brasil como quente e seco, foi sentido de outras formas em diferentes regiões do mundo (CAMPOS, 2015;RENSSEN et al., 2012). Para citar alguns exemplos, no norte da América do Sul, na tundra de Apakará-tepui (Guiana venezuelana), os dados palinológicos apresentam um cenário de condições quentes e úmidas entre 8 - 5 ka BP, com possível zona de inundação permanente, atribuídos ao deslocamento da Zona de Convergência Intertropical - ZCIT (RULL et al., 2011). A mesma autora aponta para condições diversas na região dos Andes, onde os isótopos de oxigênio indicam um período mais seco durante o Holoceno médio.

Em suma, observamos que, além das peculiaridades culturais que faziam com que os artistas rupestres dessem focos distintos ao que observavam, assim como formas distintas de representação, temos uma diferença singular sobre os efeitos das mudanças climáticas de acordo com a geomorfologia, e outras condicionantes, nos diferentes locais do Brasil, país que apresenta uma dimensão continental. Compreendemos que a única forma de utilizar a arte rupestre como indicador de mudança climática é partindo da observação local/regional de forma contextualizada com outras fontes de informações de alto a médio nível de generalização (TRIGGER, 2004).

Por outro lado, as representações rupestres também podem ser indicadoras de que o clima influenciou a configuração do patrimônio cultural arqueológico rupestre como conhecemos hoje, visto que os locais onde são encontrados os sítios estão, majoritariamente, associados a zonas que deram condições de sobrevivência aos grupos pretéritos, demonstrando uma estratégia de ocupação do território por esses grupos que evidencia a sua condição de resiliência frente aos efeitos das alterações climáticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto aqui apresentado serviu como um exercício teórico-metodológico que visou trazer reflexões sobre como o patrimônio arqueológico rupestre pode funcionar como indicador de mudanças no ambiente. As análises indicam que o ambiente influencia na própria configuração do patrimônio cultural como conhecemos hoje, uma vez que os motivos e lugares onde encontramos arte rupestre estão diretamente relacionados com as condições do meio em que este foi desenvolvido.

Por fim, consideramos que a relação entre os motivos representados e as mudanças climáticas depende de nuances que interferem desde: a) identificação, quando propomos a utilização da semiótica como método de análise; b) a interpretação, com a utilização da hermenêutica vista a questão norteadora; e, c) a correlação, pautada na dialética como método, o qual completamos com uma necessária correlação contexto de alto a médio nível de generalização.

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Notas

1 Esses dados foram retirados da listagem de datações da Fundação Museu do Homem Americano, São Raimundo Nonato, Piauí.
2 Apesar da dialética metafísica de Hegel ser criticada pela interpretação de CASSIRER (1992) e do Materialismo Histórico de Marx.
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