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Entre as (re)existências da cura xamânica na região amazônica e o cientificismo colonial: Um olhar discursivo sobre o silenciamento vivenciado pelos povos originários
Between the (re) existences of shamanic healing in the amazon region and colonial scientism: a discursive perspective about the silencing experienced by the natives
Percursos, vol. 22, núm. 48, pp. 261-283, 2021
Universidade do Estado de Santa Catarina

DOSSIÊ

Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 22, núm. 48, 2021

Recepção: 01 Dezembro 2020

Aprovação: 04 Abril 2021

Resumo: Este artigo tem como proposta abordar a temática da eficácia simbólica do xamanismo, na buscar da cura de seus sujeitos envolvidos, bem como levantar questões sobre o silenciamento desses sujeitos originários em favor das práticas de cura cientificistas, logo, de poder. Temos como suporte os pressupostos metodológicos da Análise do Discurso, que estudam a língua não só no seu aspecto linguístico, mas também na sua relação com questões sociais, portanto, no extralinguístico. O método envolverá a análise discursiva em entrevistas e as formas de transmissão e de práticas do ritual xamânico, este inferido na região amazônica em recortes dos sites de veículos noticiosos (on-line) Portal Mongabay, National Geographic e G1. Buscamos identificar, na contemporaneidade, a resistência dessa prática e como ela é vivenciada, mesmo que subjugada e ignorada em favor das práticas de cura trazidas pelo colonialismo, com seu cientificismo e suas religiões, por serem de fontes empíricas. Os resultados mostram que os indígenas sofrem o silenciamento e o descaso por não terem acesso a hospitais, pois a COVID-19 é uma doença nova e requer cuidados específicos. Seguimos os subsídios teórico-metodológicos da Análise do Discurso para o silenciamento em Orlandi (2009). Especificamente para práticas xamânicas, nos baseamos em Maués (1994, 2007).

Palavras-chave: Ritual xamânico, Análise do discurso, Religião, Memória, Oralidade.

Abstract: This study aims to address the symbolic effectiveness of shamanism in the search for the healing of its involved subjects and raise questions regarding the silencing of these original subjects on behalf of scientific healing practices, and therefore, of power. We are supported by the methodological assumptions of Discourse Analysis, which studies language in its linguistic aspect and its relationship with social issues, therefore, in the extralinguistic. The method will involve discourse analysis in interviews and of the shamanic ritual's forms of transmission and practices, inferred from the Amazon region in clippings from the (online) news vehicle websites Portal Mongabay, National Geographic, and G1. We sought to identify, in contemporary times, this practice's resistance and how it is experienced, even if subjugated and ignored on behalf of the healing practices brought by colonialism, with its scientificism and religions, for being from empirical sources. The results show that indigenous people suffer silencing and neglect because they do not have access to hospitals since COVID-19 is a new disease and requires specific care. We followed the theoretical and methodological subsidies of Discourse Analysis for silencing in Orlandi (2009). Specifically for shamanic practices, we have relied on Maués (1994, 2007).

Keywords: Shamanic ritual, Discourse Analysis, Religion, Memory, Orality.

1 Introdução

Este artigo tem como finalidade analisar o silenciamento nas memórias discursivas que abordam a temática da prática de benzimento, concebida como xamanismo ou pajelança cabocla, na Amazônia.

Para os povos originários, a memória é o principal meio pelo qual norteiam suas práticas e suas ações, pois, ela é “ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais, que abrigarão elementos novos, num circular movimento repetido à exaustão ao longo da sua história” (MUNDURUKU, 2018, p. 82).

Nesse contexto atemporal encontra-se o xamanismo, o qual é uma manifestação cultural para uns, e/ou religiosa para outros, comum a diversos povos de todos os continentes; porém, suas práticas são vividas e experienciadas de formas singulares por cada povo. Nas práticas tidas como xamânicas, acredita-se que o mundo é habitado por espécies de sujeitos humanos e não humanos, que nos cercam e nos constituem, conforme nossas ancestralidades.

O xamanismo, em nosso estudo, é compreendido como uma expressão de resistência a um traçado histórico ontológico pouco acolhedor por algumas religiões, e silenciado em favor de outras que insistem em se materializar por meio de narrativas escritas; ao passo que o xamanismo, pelos indígenas, é perpassado especificamente pela oralidade.

Entende-se a tradição oral dos povos originários como “uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra bem estabelecida” (FREIRE, 1992, p. 52). Contudo, foi silenciada, por séculos, pela sociedade gráfica do colonialismo, ocasionando não somente a perda da memória como da identidade desse povo. Com esse silenciamento, “algumas práticas evidentemente se subordinaram, ainda que não tenham desaparecido sob aquelas que se tornaram dominantes, e nem sequer se fundiram em um único e simples híbrido” (LA CADENA, 2015, apudCESARINO, 2018, p. 273).

Para tanto, o sujeito, neste estudo, é entendido como aquele que só se constitui na relação com o simbólico, em que os sentidos só se materializarão na história, se houver uma relação do sujeito com a língua e com a história, sendo suas ideologias, suas crenças incorporadas à cultura de uma comunidade. Dessa forma, é produzida a partilha das práticas perpassadas de geração em geração.

Sob uma reconfiguração do pensamento social contemporâneo, a problemática que nos cerca é: como essa manifestação cultural e/ou religiosa, desse sujeito, resiste diante de um largo período de silenciamento imposto pelo colonialismo e pelo acercamento dos povos originários com a sociedade dominante?

Para alcançarmos êxito nos objetivos deste artigo, recorremos à noção de recorte, concebida “como uma unidade discursiva” (ORLANDI, 1984, p. 14), para sistematizar a análise discursiva. Retiramos o corpus deste artigo dos gêneros discursivos: sites de veículos noticiosos (on-line) - National Geographic, G1 e Mongabay. Apresentaremos nossa análise a partir de duas perspectivas: a primeira, dos relatos do ato de benzimento e da cura tradicional; e a segunda, em relação às manchetes dos jornais sobre os relatos supracitados. E assim, buscamos trazer, à luz do conhecimento antropológico e da análise do discurso, com os recortes obtidos por meio de entrevista e das notícias via web, os discursos que garantem ao ser xamânico e à sua comunidade a continuidade de sua prática, a fim de contribuir com os estudos relacionados a essa temática e que garantam a esses povos a sua liberdade de crença.

2 O xamanismo e suas raízes

No século XVI foi incutida, na Amazônia, a religião dos colonizadores portugueses, o catolicismo; isso fez com que a cultura indígena sofresse o seu antagonismo. Embora tenha sido interpelada, também, por outras formas de imposições, ela tinha, enquanto fundamento, uma única verdade:

A teologia católica é constituída por um conjunto de princípios religiosos, acumulados ao longo dos séculos, e destinados a orientar os cristãos em suas crenças e em sua vida moral. A elaboração desses conceitos doutrinários tem como inspiração principal a Sagrada Escritura. (AZZI, 2004, p. 07)

Neste contexto teológico, desde o período de colonização, por diferentes interesses, econômicos e/ou espirituais, têm sido impostas aos originários não somente a aprendizagem da língua oficial de seus exploradores, mas todos os seus ritos, sendo justificados para sua possível inserção na sociedade dominante.

Na contemporaneidade, nas comunidades indígenas, como, por exemplo, as que estão situadas no interior da região norte do Brasil, subsiste uma forma de cura denominada pajelança cabocla. A pajelança cabocla, é uma prática que, segundo Maués (2007, p. 13), está espalhada, sobretudo, nas zonas rurais, interioranas, mas, também é existente nas metrópoles. Os indígenas da região norte do Brasil a denominam como pajelança cabocla, pois cada região apresenta uma forma denotativa de cura xamanística. Nela, há a crença pelos

“encantados”, podendo haver intercâmbios de locais “que colocam em evidência múltiplas dinâmicas intra e intercomunitárias, de maneira que as trocas entre os coletivos indígenas acontecem simultaneamente e nos mesmos circuitos das trocas estabelecidas com os espíritos auxiliares dos pajés” (ANDRADE, 2019, p. 85).

Acredita-se que os grandes pajés herdam os dons de um encantado; estes encantados “são companheiros do fundo, que habitam o fundo dos rios e igarapés” (GALVÃO, 1955, p. 5). E, (MAUÉS, 1994, p. 73) também são definidos como “seres invisíveis que se apresentam durante os rituais incorporados no “pajé” (isto é, o xamã), que é a figura central da sessão de cura”. Os indígenas acreditam que os grandes pajés herdam os dons de um encantado, os quais são transmitidos de modos particulares para a prática da pajelança, ou seja, herdam o dom de serem xamãs.

Dessa forma, o encantamento configura-se:

Pelo fato de o pajé ou curador, oficiante do mesmo, possuir “companheiros do fundo” ou “caruanas” - que, ao mesmo tempo, o dominam e são por ele dominados -, entidades nele incorporadas durante as sessões de cura, as quais tratam dos doentes que recebem em seus “trabalhos”; de outro lado, também, alguns desses pajés, os que são considerados melhores ou mais poderosos, têm ainda o poder de realizar viagens “pelo fundo” das águas, visitando a morada dos caruanas ou encantados do fundo”. (MAUÉS, 2007, p. 12)

O processo xamanístico se inicia, primeiramente, pelas escolhas dos caruanas ou espíritos, que surgem tipicamente, no nascimento do seu escolhido, que concedem o dom xamânico por agrado. Para receber os dons, o escolhido pode ser de ambos os sexos, sendo reconhecido apenas por um pajé com mais experiência, que poderá confirmar ou retirar seus dons, caso este seja, de fato, um predestinado a exercer tais funções.

O ritual de legitimação de um pajé predestinado, que não pode fugir de seus dons, é chamado de encruzamento: o festejo do pajé, ao seu renascimento, para uma vida nova.

[...] a partir daí, sendo possuído, mas ao mesmo tempo possuindo, dominando seus caruanas, ele (ou ela) passa a exercer sua função xamanística, que é pensada como um serviço à comunidade, ou como um ato de “caridade”. (MAUÉS, 2007, p. 13)

A insistência na crença de curas físicas e espirituais por meio dos poderes desses pajés intriga a lógica racional/cartesiana, materializada numa visão totalmente eurocêntrica - ou seja, na afirmação de uma só verdade, construída e propagada pelos colonizadores com o intuito de doutrinar e silenciar a forma como os indígenas viviam, a qual ainda vem sendo violentada, por tentar garantir que suas raízes sejam preservadas.

2.1 Cura xamanística e crença

Para alcançarmos e compreendermos mais os efeitos xamânicos e seus processos de cura, recorremos a Claude Lévi-Strauss (1985), que ressalta que a eficácia da cura dependerá da magia, a partir de três pontos: da crença do feiticeiro para realizar o processo da cura; da crença do doente ao receber a cura provinda do poder de cura do feiticeiro; e, por último, da opinião coletiva sobre esse processo de cura. Nesse sentido, a função do xamã assistido por seus espíritos protetores é empreender “uma viagem ao mundo sobrenatural, para arrancar o duplo do espírito que o capturou e, restituindo-o ao seu proprietário, assegurar a cura [...].” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 206). Portanto, há o simbolismo de se acreditar na cura advinda do xamã; segundo Lévi-Strauss (1985), a cura é facilitada pela relação simbólica do xamã e do doente com o mito.

Para que possamos melhor compreender e observar o processo de cura xamânico e posteriormente analisá-lo à luz da Análise do Discurso (AD), na sequência, veremos alguns exemplos dessa prática, obtidos por meio de uma entrevista e pelos meios de comunicação midiática.

2.2 Relatos de cura por meio do processo processo xamânico

Estes relatos foram concedidos em nossa pesquisa de campo, especificamente na entrevista cedida por uma das autoras, que é filha de indígenas de diferentes etnias, Makuxi e Wapixana, e que vivenciou e vivencia curas por meio de processos xamânico1.

Relato 1 - A picada de cobra e a tristeza

Eu não me lembro muito bem como foi que tudo aconteceu, nós morávamos na cidade, eu tinha entre dez e doze anos nessa época, isso já faz mais de trinta anos. Eu me lembro de estar na rede me contorcendo de dor e com muita febre, eu não conseguia nem comer, nem levantar da rede. Então ouvi papai dizendo que iria chamar o tio, que morava no interior de outra cidade para vir rezar em mim, não sei quanto tempo isso levou, nem quantos dias eu fiquei com febre, mas quando me vi eu estava deitada de barriga num banco de madeira, bem esticada e esse “tio” estava sentado na minha frente e papai junto com ele. E havia um pote de vidro com algumas coisas dentro, eu não consigo me recordar o que era. Então esse tio disse: “Você está vendo-a aqui? Ela está caminhando de cabeça baixa e está muito triste. Ela não pode andar triste, principalmente nesses dias (dias de menstruação), a cobra viu ela assim, picou ela e sugou o espírito dela. É por isso que ela está com febre.”. Então o tio fez uma oração, assoprou alguma fumaça em mim e disse “agora ela vai ficar bem.”. Me carregaram até minha rede e eu dormi. No outro dia eu estava sem febre e curada. (SAGICA, 2021. Informação verbal)

Relato 2 - O susto e a febre

Na nossa cultura é preciso ter muito cuidado em ficar assustando as pessoas, mesmo que seja por brincadeira, porque você pode adoecer o espírito do outro. E como o xamã nem sempre pode estar com todos nós, ele ensina, aos mais velhos da família, o que fazer em momentos de doenças não tão graves. Então, quando os nenéns e as crianças ficavam doentinhos, ou como eles diziam, “assustados”, que podia ocorrer por várias situações como fazer sons inesperados perto dos mesmos, e os surpreender causando um espanto súbito, ou por brincadeiras que pudessem tê-los assustado como jogar bichos mortos neles, histórias horrendas, entre outras. Isso podia provocar nas crianças assustadas muita febre, diarreia e deixá-las bastante debilitadas. Uma maneira de fazer com que eles se curassem era queimar algumas sementinhas vermelhas que tinham a pontinha preta, geralmente era feito por alguém mais velho, ou mesmo os pais da criança. Então eles faziam orações e a fumaça da sementinha que estava sendo queimada, passava por entre a rede da criança ou de quem estivesse assustado e ela ficava curada. (SAGICA, 2021. Informação verbal)

Relato 3 - Os gatos e a construção

Meu pai estava construindo uma casa de alvenaria e até que ela ficasse pronta, nossa família se acomodou em uma casinha muito pequena feita de adobe pelos meus irmãos, tios e pelo papai nos fundos do quintal. E a casa nova estava sendo erguida bem na frente do quintal. Quando ela já estava para ser coberta, muitos gatos começaram a aparecer e ficavam miando lá do alto da estrutura da casa nova. Papai não entendia porque isso estava acontecendo e ele também não estava muito bem fisicamente. E por coisas da vida o tio que é o rezador da família, estava pela cidade na casa do irmão do meu pai. Então papai foi ao encontro desse tio rezador e contou a ele o que lhe estava passando fisicamente e o surgimento dos gatos e o tio pediu que papai providenciasse um pote de vidro, álcool e outras coisas. Na noite seguinte eu acompanhei papai, nos sentamos em círculo e o tio colocou as coisas bem no meio, e começou a contar a papai o que significava os gatos e o porquê dele não estar muito bem. Então fez uma oração e disse que os gatos assim sumiriam e que tudo voltaria ao normal. E assim ocorreu. (SAGICA, 2021. Informação verbal)

Nos três relatos, identificamos o mesmo aspecto de curas obtidas por meio de processos xamânicos, uma vez que os sujeitos envolvidos atribuem ao pajé ou xamã “a competência de curar, como os médicos, assim como de operar milagres extraordinários, como ocorre com todos os magos, primitivos e modernos (ELIADE, 2002, p. 5). Segundo Kopenawa, é “[...] tão comum ver os xamãs trabalhando em nossas casas. Sem eles, seriam vazias e silenciosas. Assim é.” (KOPENAWA, 2015, p. 87).

A afirmativa de Kopenawa, acima referenciado, sobre ser tão comum a presença dos xamãs nas casas indígenas, é perceptível nos trechos dos relatos descritos anteriormente:

“quando me vi eu estava deitada de barriga num banco de madeira, bem esticada e, esse “tio” estava sentado na minha frente e papai junto com ele” (Trecho do Relato-1). (SAGICA, 2021. Informação verbal)

“Então eles faziam orações e a fumaça da sementinha que estava sendo queimada, passava por entre a rede da criança ou de quem estivesse assustado e ela ficava curada” (Trecho do Relato - 2). (SAGICA, 2021 Informação verbal)

em “[...] estava pela cidade na casa do irmão do meu pai. Então papai foi ao encontro desse tio rezador e contou a ele o que lhe estava passando fisicamente” (Trecho do Relato - 3). (SAGICA, 2021. Informação verbal)

Em todos esses trechos selecionados, percebemos que tanto “esse tio”, citado nos relatos 1 e 3, quanto o rito de cura descrito no relato 2, são processos xamânicos, feitos dentro das casas desses familiares; ou seja, não são seres que não se veem, mas pessoas que fazem parte do contexto familiar. Contudo, são detentores de dons específicos para sua função.

A esse contexto, podemos relacionar a afirmação de Lévi-Strauss, de que “a ciência nunca nos dará todas as respostas” (1985, p. 24), ou seja, mesmo que se tente dar uma única resposta aos processos que perpassam a vida, a cadeia cientificista não será suficiente para satisfazer a todos. Especialmente aos que vivem presos à realidade tecnicista. Entretanto, é importante ressaltar que os processos realizados pelos xamãs, não os isentam de percorrerem o mesmo caminho que fazem os cientistas para alcançarem seus objetivos, uma vez que “agem por meios intelectuais, exatamente como faz um filósofo ou até, em certa medida, como pode fazer e fará um cientista” (LEVISTRAUSS, 2020, p. 28).

Entende-se que os efeitos esperados pela cura xamânica somente surgirão se os envolvidos viverem dentro dessa realidade, sendo essa questão um fator de resistência e luta desses povos originários, uma vez que nem sempre lhes é garantida essa prática de cura sem que sejam subjugados ou desacreditados pela sociedade dominante. Vejamos alguns exemplos desses silenciamentos.

2.3 A cura xamânica sendo noticiada

No que se refere ao corpus deste artigo, relevante para a construção de memórias discursivas no espaço do benzimento da Região Norte, percebeu-se que há uma repetição de atitudes preconceituosas, combinada com a desassistência do Estado para com as populações indígenas, que na maioria das vezes ainda estão vivendo à margem da sociedade. Nesse sentido, a noção de memória, para a AD, é

[...] é aquilo que fala antes e que se atualiza no discurso, trazendo consigo dizeres outros que foram silenciados e/ou apagados, mas que ecoam e não cessam de produzir sentidos. É, portanto, na relação entre memória e história - o que do esquecido pode ser lembrado em determinadas condições de produção - que se situa a relação entre esses dois lugares. A história (enquanto discurso historiográfico) é efeito de uma leitura do passado que produz a ilusão de homogeneidade (foi assim que aconteceu, porque está escrito) e, portanto, não poderia haver espaços para a contradição (o real histórico), tampouco para pensar a história em seu movimento/processo (historicidade); para a AD, no entanto, são essas contradições e movimentos que devem ser enfatizados, daí o caráter materialista da teoria. A noção de memória, por sua vez, é passado-presente, isto é, é o que, no presente, é lembrado do esquecido (do relegado ao passado que insurge no dito); a memória é, dessa forma, entendida. (NASCIMENTO, 2015, p. 31)

Quanto à circulação de imagens em gêneros discursivos, sites de veículos noticiosos (on-line): National Geographic, G1 e Portal Mongabay, estas vêm sendo feitas constantemente, inclusive por manchetes, que reproduzem a propagação desses silenciamentos que os indígenas vêm vivenciando ao longo do tempo. Censurados, silenciados e esquecidos, em sua grande maioria, estão sendo desassistidos pela medicina ocidental, considerada a mais eficaz por dominar a tecnologia de ponta que, porém, se torna incipiente nas aldeias, pois não cobre a demanda de necessidade indígena.

O primeiro recorte é o do portal da National Geographic, no ano de 2020, ano este no qual se vive uma pandemia provocada pelo coronavírus2, e em que muitos grupos étnicos correm risco de se extinguir por causa dessa doença infecciosa. Assim como, no período colonial, doenças infecciosas mataram muitos indígenas: “a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente, trazidas por europeus e negros de várias procedências” (FREYRE, 2003, p. 91). Atualmente, indígenas estão sendo infectados por garimpeiros, grileiros que invadem suas terras e causam impactos tanto ao meio ambiente quanto à saúde desses povos que vivem em áreas isoladas. Em decorrência desse contato, podemos destacar um exemplo: a morte do último homem indígena da etnia Juma, o senhor Amoim Aruká, aos 90 anos de idade, vítima da Covid-19, em 17 de fevereiro de 2021, cuja morte repercutiu na manchete: “Lideranças indígenas e indigenistas associaram a pandemia do novo coronavírus com extermínio de povos indígenas, e lamentaram a perda do último sobrevivente legítimo da etnia” (BEATRIZ, 2021). Conforme veremos na notícia abaixo:

A manchete do mês de agosto de 2020 (Notícia 1), publicada pela National Geographic, alerta para o tratamento da medicina tradicional dos indígenas Desana, que, desassistidos pelo sistema de saúde em vigor, optam pelo benzimento tradicional, para se protegerem do coronavírus.


Notícia 1
Indígenas recorrem à medicina tradicional no tratamento contra a Covid-19
Fonte: DI BELLA, 2020

Pois quando os primeiros casos de coronavírus apareceram na região, colocar em prática a sabedoria medicinal empírica era, senão a melhor, a única possibilidade. Afinal, o terceiro maior município em área do Brasil - com 109.185 km2 - só é acessível por barco ou avião, e seus 45 mil habitantes, 75% dos quais são indígenas, contam com um único hospital e nenhum leito de UTI - o mais próximo fica na capital do estado, Manaus, a mais de 850 km de distância. (DI BELLA, 2020)

Os relatos contidos nesta matéria (Notícia 1), cujo título é Indígenas recorrem à medicina tradicional no tratamento contra a covid-19, deflagram o silenciamento a que esses sujeitos são submetidos, tratados como invisíveis perante o Estado, pois não têm a possibilidade de acreditarem nas suas próprias concepções de cura como os demais civis interpelados por essa cultura cientificista. Silenciamento aqui, é compreendido como definido por Eni Orlandi (1997), na obra As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Para a autor, “em face dessa dimensão política, o silêncio pode ser considerado tanto como parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência)” (ORLANDI, 1997, p. 31).

Com efeito, não basta pensar o silêncio somente numa esfera política; é algo que vai além. É no silêncio que se dá a construção de novos discursos através da história, com a atribuição de novos sentidos: “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é” (ORLANDI, 1997, p. 37). Isto é, o silenciamento é um constructo histórico provindo da práxis social, em que a censura é uma expressão das relações de poder; silenciam-se sujeitos para que não se ressignifiquem na memória discursiva.

E que chega a nos fazer compreender de modo interessante o que é, por exemplo, a censura, vista aqui por nós não como um dado que tem sua sede na consciência que um indivíduo tem de um sentido (proibido), mas como um fato produzido pela história. Pensada através da noção de silêncio [...], a própria noção de censura se alarga para compreender qualquer processo de silenciamento que limite o sujeito no percurso de sentidos. (ORLANDI, 2013, p. 13)

Dado esse sentido de silenciamento, percebemos que, nesse momento pandêmico, ele contribuiu para que os povos indígenas, no Brasil, fossem ainda mais excluídos. Isso ocorre, uma vez que a grande força da racionalidade da ciência moderna propaga o uso dos remédios, fazendo com que os tratamentos tidos como empíricos (entre ciência e senso comum) sejam concebidos como única forma de tratamento e a mais eficaz contra quaisquer doenças na pós-modernidade. No entanto, ao se tentar conservar e transmitir alguma maneira específica de experiências de curas, embasadas, também, nas crenças mágico-religiosas e especialmente, num saber empírico popular, o processo de cura ainda ocorre em grupos étnicos mais distantes da sociedade ocidental.

Esses silenciamentos epistemológicos são definidos por Boaventura de Sousa Santos (1995) como epistemicídio e genocídio, retratados como processos que afastam a sociedade da cultura do Outro. Esse autor ainda destaca que o genocídio e o epistemicídio foram processos necessários e complementares que geraram violência no período colonial. E ainda apontou:

o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou durante boa parte do nosso século, a expansão comunista (neste domínio tão moderno quanto capitalista); e também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu e extra-norteamericano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norteamericano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais). (SANTOS, 1995, p. 328, grifos do autor)

A esse respeito, na notícia 1, identificamos uma fala temerosa do sujeito pajé, ao declarar que “meu avô me ensinou o dom do benzimento, ele aparece nos meus sonhos”. Temerosa, uma vez que essa prática não é reconhecida cientificamente e por isso é vista como uma prática subalterna.

Contudo, a benzeção (ou o benzimento) é um ritual que carrega um poder simbólico muito grande. Seus elementos são partes constituintes desse aspecto religioso: o local aonde se é benzido, as orações, os objetos, a expressão corporal, dentre outros fatores fazem parte desse ritual. Dessa forma,

A benzeção, caracterizada pela gratuidade dos cuidados, pela noção de caridade, pelo contato e a proximidade física (tocar, apalpar, cheirar e sentir, às vezes até em seu próprio corpo as dores do doente), diferenciase da medicina erudita que prega distância social e a mediação instrumental. Ambas são formas para se alcançar a cura, restaurar o equilíbrio, mas cada qual com seu espaço. O popular sabe dos limites de sua atuação, mas não receia dividir seu espaço, abrindo suas portas a todos que buscam seus recursos, pois os males a que se destinam não são apenas os do corpo, mas também os da alma. (MOURA, 2011, p. 364)

Nesse sentido, o ato de benzimento não é somente o poder de orar, sobretudo é a crença nos gestos, nos sons, nos cheiros, no toque, no canto - em tudo aquilo que transpassa o ser que está recebendo esse ato de cura.

De acordo com a notícia 2, muitos indígenas estavam sendo levados aos centros de saúde para receber tratamento médico; porém, muitos estavam morrendo. Então, a liderança dessa comunidade resolveu buscar no tratamento tradicional, feito pelo pajé, a cura dos seus integrantes, infectados pela Covid-19, para que, assim, pudessem ser tratados dentro da comunidade:

[...] se encontram possíveis infectados, os pajés são avisados. Para esses pacientes, o tratamento virá dos rituais com o uso da ayahuasca, o chá sagrado da floresta utilizado há milênios em rituais de cura. “No começo, confiamos nos remédios dos não-indígenas, mas nosso povo ia para o hospital e saía de lá em um caixão”, diz Edney Samias, cacique geral do povo Kokama. “Agora, todos com sintomas de coronavírus são tratados em casa só com ayahuasca e outras medicinas tradicionais. E estamos salvando muitas vidas”. (RIBEIRO, 2020, grifos do autor)

Nesse trecho, retirado da notícia 2, destacamos que os indígenas dessa comunidade não deixaram de crer na cura ocidental; como afirma o cacique, “no começo confiamos nos remédios dos não-indígenas, mas nosso povo ia para o hospital e saia de lá em um caixão.” (RIBEIRO, 2020). O indígena não se opõe ao conhecimento dominante, mas se, para ele, não surte o efeito esperado, ele deve tentar ajudar o seu povo.


Notícia 2
Povo Kokama troca hospitais por rituais com ayahuasca para curar indígenas do coronavírus
Fonte: RIBEIRO, 2020.

Para a AD, um dos seus pontos fortes é ressignificar o conceito de ideologia, a partir da linguagem. Não há ideologia sem a interpretação e sem sentidos que a signifiquem. O trabalho da ideologia é justamente “produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência” (ORLANDI, 2009, p. 46). Dessa forma, todo indivíduo é assujeitado pela ideologia, sua forma de experienciar o mundo produz sua forma de constituição perante o dizer. Os sujeitos são interpelados pela ideologia em todas as esferas para viver na sociedade ocidental; se acham livres para pensar e agir, mas, são afetados, assujeitados e interpelados pela ideologia, que os obriga a viver em regras em todas as esferas: religiosa, moral, jurídica, política, etc.) (ALTHUSSER, 1974, p. 25), e são, sobretudo, interpelados pelo Estado. Quem está fora dessas regras, é considerado como um não sujeito.

Corroborando esta perspectiva, Orlandi (2009, p. 50) afirma que “a forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso". Esse é um modo como podemos perceber a violência com que a sociedade dominante assujeitou, ideologicamente, o ser indígena, impondo-lhe seus aparelhos repressores de poder (ALTHUSSER, 1974), em detrimento de suas próprias ideologias ancestrais.

Entretanto, os indígenas, ao se (re)conhecerem enquanto povos constituídos de saberes e de uma grandiosa riqueza sociocultural, têm assumido cada vez mais a sua identidade étnica, fato que tem ficado cada vez mais evidente a partir dos anos 1970 (GERSEM, 2006, p. 57), pois foram criadas organizações de povos que passaram a lutar por seus direitos de existir enquanto sociedade, com direitos e deveres. Desde então, cada vez mais, os indígenas estão deixando a condição de figurantes para serem protagonistas das suas próprias histórias, estão começando a falar por si mesmos, resgatando seus costumes, suas crenças.

Os tratamentos que a ciência oferece são tidos como mais eficazes, muitas vezes beneficiando e controlando as doenças transmissíveis, que, desde o período colonial, trouxeram muitas mazelas aos indígenas. Além das doenças transmissíveis, existem muitas outras doenças físicas, como as crônicas degenerativas; algumas previsíveis, outras não. Há as que surpreendem, como o Covid-19, essa doença ainda sem o remédio profícuo para sua cura, mesmo sendo para o sujeito da cultura ocidental.

Terry Eagleton (2005), no livro A ideia de cultura, explora a noção de cultura em diferentes vieses, sobretudo proporcionada pelo Estado e unificada politicamente. Conforme Eagleton,

[...] poder-se-ia afirmar que a cultura é uma ideia pré-moderna e pósmoderna em vez de uma ideia moderna; se ela floresce na era da modernidade, é em grande medida como um vestígio do passado ou como uma antecipação do futuro. O que liga as ordens pré-moderna e pós-moderna é que, para ambas, embora por razões bem diferentes, a cultura é um nível dominante da vida social. (EAGLETON, 2005, p. 47)

Com efeito, o termo cultura passa a ser uma definição sociocultural de que, quanto mais cultura um povo tiver, mais próximo à civilização ele está. Partindo de uma relação entre tradição e modernidade. Nesse sentido, Eagleton, ao afirmar que a cultura, como civilização ou erudição (ligada à atividade humana) é o oposto à cultura ligada ao campo, à terra (atrelada à natureza), salienta que a cultura passa a ser estritamente ligada a quem for instruído. No entanto, nessa perspectiva, cultura é algo que se pode modificar. Nesse sentido, Eagleton (2005, p. 54) contrapõe uma outra noção de cultura: assevera que “a cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico”; isto é, uma cultura só é compartilhada quando a coletividade a aceita e a vivencia. Portanto, o autor defende também que “todas as culturas estão envolvidas umas com as outras; nenhuma é isolada e pura, todas são híbridas” (EAGLETON, 2005, p. 28). O Estado cerceia as difusões da sociedade heterogênea no âmbito cultural, e, por meio do controle e disciplina promovidos por instituições reguladoras ou forças coercitivas, ordena qual cultura deve ser seguida e vivida.

Segundo a notícia 3, um menino que estava internado há algum tempo no hospital, não estava apresentando melhoras e havia perdido a visão por consequência da doença. Então o pajé foi ao encontro do paciente e lá teve a liberdade para fazer o seu ritual. Na sequência, seguiram-se, na comunidade, os mesmos rituais em prol da cura do menino. E, segundo a notícia, o menino, que estava sem movimentos, começou a andar e a apresentar sinais de melhoras. Contudo, o médico que acompanhava o menino afirmou não poder comparar ou mesmo aceitar que pudesse ter sido curado pelos ritos xamânicos:


Notícia 3.
Pajé faz ritual de cura indígena para tentar salvar garoto de cinco anos
Fonte: PORTAL G1, 2009.

“Eu acho que não dá pra gente tratar a medicina do pajé, a medicina tradicional indígena com o mesmo enfoque que a gente faz com a medicina científica”, diz Rodrigues. “Pra mim o que importa é que o Felipe, que é a pessoa que eu cuido, acredita. Que a família do Felipe acredita, que a comunidade do Felipe acredita. Isso pra mim basta”, diz o pediatra. (PORTAL G1, 2009)

Neste sentido, percebemos que a concepção de cura dos povos originários é complexa para os cientistas e não cabe a um julgar o conhecimento do outro, mas respeitá-lo, para que, assim, aos povos originários seja garantida a liberdade de realizar seus ritos onde quer que estejam. Uma vez que

Tais representações não são extraídas de um mundo já acabado do ser; não são meros produtos da fantasia, que se desprendem da firme realidade empírico-positiva das coisas, para elevar-se sobre elas, como tênue neblina, mas sim, representam, para a consciência primitiva, a totalidade do Ser. (CASSIRER, 1992, p. 23)

Percebe-se, assim, que os processos xamânicos vão muito além de simples ritos: há neles a essência de todo um povo, há uma maneira de interligar os elementos que lhes atravessam, o mais íntimo de sua essência, e que sobrevivem ao serem perpassados por meio de sua prática.

3 Considerações finais

Os povos originários, na contemporaneidade, estão travando uma luta tão difícil quanto os seus antecessores na época do colonialismo, pois seguem sendo silenciados e vistos como seres ignorantes, tendo que reprimir suas práticas em favor das dos herdeiros do colonialismo. Tal como o ritual do benzimento, que está cada vez mais se esvaindo da cultura da população indígena, visto que, para ser transmitido, é necessário que seja realizado o rito perpassado por seus ancestrais, no qual um de seus integrantes é escolhido por um dos seus deuses maiores ou sobrenaturais. Contudo, vemos como outras religiões vêm sendo incutidas entre os povos originários para implantar outras culturas, outras formas de viver e pensar, subjugando suas práticas ancestrais por não terem comprovação científica.

Esse silenciamento tem provocado, nos povos originários, um grave apagamento de suas memórias ancestrais, ocasionando uma perda da identidade de seus integrantes. Muitos desses indígenas não realizam mais as suas práticas de cura, seja por não terem tido a oportunidade do contato com sua transmissão oral, seja por serem submetidos constantemente às técnicas da medicina tradicional.

Neste sentido, encontramos em Orlandi que o sujeito vive numa ilusão de ser o autor dos seus discursos, sendo que é no âmbito do inconsciente que se é interpelado por ideologias; no entanto, só são retomados os sentidos já fixados em outro contexto sóciohistórico. A AD considera o sujeito numa posição de assujeitamento à língua, e sem ela não haveria o sujeito, tampouco os seus sentidos.

Em nossa análise dos sites de veículos noticiosos (on-line): National Geographic, G1 e Mongabay, identificamos esses processos de silenciamento atravessados pelos indígenas, os quais sofreram/sofrem pelo descaso do Estado diante de uma pandemia. A disseminação da doença entre os indígenas ocorreu através dos “profissionais da saúde, que levaram o vírus para aldeias, garimpeiros e grileiros” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2020). Uma vez que as casas, dentro das comunidades indígenas, são compartilhadas, esse fator contribuiu/contribui para que a propagação coletiva do vírus fosse/seja ainda mais grave e rápida. Dado o descaso por parte do Estado, e temendo a devastação de suas comunidades, os líderes indígenas - os quais são considerados, entre seus integrantes, os guardiões das memórias ancestrais - recorreram às suas técnicas ancestrais, resgatando assim a sua identidade de tempos imemoriais, para encontrar nessas técnicas - como o xamanismo - um meio para salvar e curar seu povo do perigo apresentado pelo Covid-19, caracterizando esse ato como uma resistência perante essa tragédia anunciada.

Podemos relacionar a resistência desse povo, na contemporaneidade, com a vivenciada pelos primeiros indígenas que passaram por todo o processo sócio-histórico do Brasil, durante a colonização dos portugueses. E que, além do massacre, da exploração e das demais formas de violência que sofreram, ainda foram vítimas das enfermidades que aportaram junto com os colonizadores, sendo submetidos a todos os tipos de dominação e censura. A história escrita não retrata o valor de suas lutas e (re) existências, como uma forma de não aceitação às formas de domínio incutidas pelos portugueses.

Percebemos assim que, em pleno século XXI, essa dominação colonial segue sendo realizada: os indígenas continuam sendo esquecidos, deixados à margem da sociedade, à sua própria sorte, destituídos de seus direitos enquanto povos originários e guardiões da natureza e de uma ancestralidade que nenhum livro seria capaz de descrever tão bem quanto a memória de seus anciãos e de seus líderes. Que, silenciados em meio a uma pandemia chamada coronavírus, correm novamente o risco da época de 1500, de terem alguns de seus povos exterminados e com eles os ensinamentos milenares, ferindo não apenas a um determinado grupo, mas a toda a natureza que por eles é cuidada e guardada.

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Notas

1 A autora Vanessa Silva Sagica é filha de indígenas das etnias Makuxi, pai, e Wapixana, mãe, que migraram da Guiana Inglesa para o Brasil na década de 70; nascida e criada na cidade de Boa Vista, capital de Roraima.
2 COVID-19 é a doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, identificado pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em 29 out. 2020.


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