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Filosofia de uma pessoa coletiva
Philosophy of a collective person
Percursos, vol. 22, núm. 48, pp. 83-108, 2021
Universidade do Estado de Santa Catarina

DOSSIÊ

Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 22, núm. 48, 2021

Recepção: 29 Outubro 2020

Aprovação: 13 Janeiro 2021

Resumo: O texto apresenta a atuação filosófica de Ailton Krenak (1953- ) a partir da ideia de sujeito coletivo ou pessoa coletiva. Para isso, questiona-se uma espécie de senso comum ocidental que considera o labor filosófico como algo que se realiza individualmente; e as noções de ancestralidade, memória e tradição vêm à baila para procurar elucidar a forma com que o autor em tela propõe outra lida com o repertório intelectual e cultural de diversos temas da Filosofia. A partir disso, percorre-se uma série de seus textos, a fim de indicar as relações entre sua memória ancestral e alguns temas que aparecem em sua produção filosófica.

Palavras-chave: Krenak, Ailton,1953, Sujeito (Filosofia), Ancestralidade Etnofilosofia , Xamanismo, Ecologia política.

Abstract: This paper presents the philosophical practice of Ailton Krenak as the work of a collective subject or a collective person. For such, the Western common sense that consider the philosophical work as an individual task is called into question. Also, notions such as ancestry, memory and tradition will come up in order for us to elucidate Krenak’s proposal of how to deal with the intellectual and cultural repertoire of various philosophical issues in different, new ways. A selection of Krenak’s texts will be analyzed, therefore, to indicate the relations between his ancestral memory and some topics that appear in his philosophical production.

Keywords: Krenak, Airton, 1953, Subject (philosophy), Ancestral memory, Ethnophilosophy, Shamanism, Political ecology.

Introdução

Ailton Krenak fala o que fala, porta-se como se porta, escolhe o que escolhe, não como mera pessoa, mas porque toma parte de uma ancestralidade e de uma tradição que fazem dele (um) Krenak. Em que medida essa postura (im)possibilita a caracterização do autor como filósofo? Ou: em que medida essa postura põe em xeque o modo tradicional com que boa parte da Filosofia Ocidental se autocompreende e se apresenta como modelo? Amplificando essas questões: segundo esse cânone, a atividade filosófica não seria como que “demasiadamente ocidental” e/ou não se moveria por afãs alheios a culturas outras, que não sejam autorrefenciadamente debitárias de certa cosmovisão do Ocidente?

Antes, no entanto, de me dirigir diretamente aos temas que essas perguntas suscitam, começarei pelo início mesmo da autocompreensão ocidental de Filosofia. Advirto desde já que esse escorço inicial pode soar alheio ao modo com que a produção filosófica de Ailton Krenak se dá e - pior! - parecer uma espécie de “erudição vazia” que pouco ou nada contribui para a discussão em tela. Por isso mesmo, desejo, logo de saída, desfazer qualquer impressão que vá nessa direção.

Inicio com o relato mítico (isto é, com a narrativa) comumente aceite para a deflagração da Filosofia Ocidental com alguns objetivos. Um deles é indicar que, de modo geral, o filosofar do Ocidente se distanciou significativamente de um valioso elemento de sua autocompreensão originária, a saber: que o exercício filosófico é uma prática existencial, uma espécie de disposição interior (o amor, a amizade, a sophia) que se encontra profundamente vinculada ao saber-se parte de um todo que não é possível atingir por completo.

Trata-se, então, de perspectivar desde já que a ideia de um “sujeito epistêmico”, detentor das condições (ideais?) de conhecer a realidade, a verdade, os objetos, de obter certezas indubitáveis, claras e distintas - ou quaisquer outras pretensões cognitivas similares - é bem posterior a essa condição originária da Filosofia Ocidental. Também será possível apreciar no artigo como a a idéia de sujeito ou pessoa coletiva proposta por Krenak - e em geral pelos povos originários - aproxima-se da realidade por outro viés (viés esse que, ouso dizer, parece-me mais próximo a certo espírito filosófico que nascia na Grécia do que aquilo que a gesta da Filosofia veio a dar).

Conforme o mito de origem da Filosofia Ocidental é comumente narrado, o gênio especulativo de um dos sete sábios da Grécia, Tales de Mileto, teria afirmado algo mais ou menos próximo a: tudo veio da água. Essa afirmação, da qual não temos registro oriundo da própria pena do autor, seria o resultado de uma espécie de desvencilho de um modo habitual de propor conhecimento para sugerir um novo modelo cognitivo que, posteriormente, teria por nome “Filosofia”. Como está posto, antes do nome veio a atitude. Para além desses dados iniciais amplamente divulgados por todo tipo de manuais, o mito da nomeação dessa tarefa-atitude é bastante iluminador para algumas revisões, seja do modo com que podemos encarar a própria Filosofia, seja, ainda, para uma recontação e/ou releitura de sua origem.

Diz-se que Pitágoras, sendo inquirido porque era sábio, retorquiu seu interlocutor para recusar esse epíteto, afirmando que sábios eram os deuses, mas que era um filósofo. Dos muitos símbolos aos quais essa historieta aponta, destaca-se, de saída, a autoinclusão dos filósofos, por conta de sua própria condição de filósofos, em um patamar inferior ao de outros seres que detêm a sabedoria. Contudo, esse reconhecimento da inferioridade da própria condição em relação aos deuses não é (apenas) um reconhecimento de um insondável distanciamento, muito pelo contrário: o filósofo quer ser amigo daquilo que os deuses possuem - a sabedoria.

De tudo isso, é possível afirmar que a Filosofia é uma atitude, ou, antes, uma espécie de atitude existencial que envolve uma disponibilidade interior, espiritual. Dito de outra forma: a Filosofia é uma atitude de disponibilidade e disposição de nos aproximarmos amigavelmente da sabedoria, ou, ao menos inicialmente, de nos aproximarmos amigavelmente dos lugares e condições que julgamos que possam nos levar à sabedoria. Ademais, a Filosofia não deixa de ser uma atitude de proximidade com o divino, admitindo-se que há uma condição misteriosa na realidade - no sentido de que há uma dimensão do conhecimento que nunca será desvendada por completo (a menos que se considere a hipótese de que filósofos possam se converter em deuses).

Para afirmar explicitamente, destaco que essa compreensão da Filosofia a revela como um conhecimento derivado de duas realidades anteriores: os deuses e a sabedoria; e é tornando-se amigo (ao menos) da segunda que se pode, efetivamente, chegar a tornar-se filósofo. Isso posto, cabe aqui a pergunta acerca da possibilidade de a Filosofia se desvincular de realidades que lhe sejam anteriores. Parece mesmo que a atitude filosófica sempre supõe realidades que a antecedem ou mesmo que animam a investigação, dirigem-lhe questões, reflexões e respostas. Posta nesses termos, creio ser impossível discordar que a atividade filosófica sempre possui antecedentes e mesmo pressupostos, independentemente da originalidade que se possa atribuir ao autor.

Ademais, a sabedoria, divina, é algo que pode nos atravessar na medida em que dela nos aproximamos através de nosso anelo amical. Essa intimidade entre aquilo que somos e aquilo que nos é superior também parece ser o mote da aquisição de sabedoria para muitos povos originários. Longe de procurar estabelecer consensualmente o que seria essa “dimensão superior” cuja proximidade é capaz de nos tornar “menos ignorantes”, “mais sábios”, “filósofos”, trata-se de acentuar que, através dessas perspectivas, a Filosofia é, antes de mais, prática, exercício, disposição, disponibilidade, abertura e busca.

Dessa forma, o que se pretende na sequência é indicar algumas noções sobre o modo com que tudo isso aparece no filosofar de Ailton Krenak. Sobre isso, desde já é preciso ter em mente dois aspectos de sua proposta. O primeiro deles é o rompimento com a ideia tradicional de “sujeito epistêmico” no sentido acima exposto - o que se coloca em profunda consonância com a ideia de sujeito ou pessoa coletiva. O segundo é a disposição do autor em ser para nós, ocidentais, um tradutor do pensamento mágico ou, antes, um “xamã cultural”. Não é demais frisar que essa disposição emerge de sua condição e compromisso de ser sujeito ou pessoa coletiva.

Sujeitos ou pessoas coletivas contra a ideia de humanidade única

Ailton Krenak pressupõe um saber oriundo de uma tradição ancestral e procura falar em nome dela. Esse saber passa por ele, mas não se detém nele. A vantagem aqui parece ser o fato de Krenak explicitar que essa tradição ancestral se identifica com os pressupostos dos quais parte e, mais ainda, dos quais não pretende - ou não pode! - abrir mão. Logo, é possível entender a atuação (filosófica) do autor como sendo, concomitantemente, a de mensageiro e atualizador daquele saber. É como se, em alguma medida, sua “vocação” fosse a de atualizar a mensagem que porta. O saber daquela tradição ancestral constitui, a um só tempo, seu papel de filósofo, mensageiro e atualizador1. A situação do autor é, pois, como um vínculo, um elo. Atado ao que lhe antecede, mas, em simultâneo, aberto ao presente-futuro, atualizando aquela sabedoria às circunstâncias hodiernas.

É impossível analisar todos os pressupostos embutidos nas proposições filosóficas. Isso, contudo, nunca é impedimento para se debruçar sobre elas, tentar compreendê-las, analisá-las, reconhecê-las, dialogar com elas, refletir a seu respeito, acolhê-las ou rechaçá-las, extrair-lhes as consequências ou procurar evitá-las etc. A força com que uma reflexão filosófica se mostra e/ou se nos aparece nem sempre (quase nunca) está em saber (todos) os “dados subterrâneos” que a fizeram emergir, mas quase sempre está ligada ao fascínio, à pertinência, ao thauma que elas acabam por provocar. Fascínio, pertinência e thauma esses que também nos mobilizam por conta do que já trazemos conosco.

Muito embora essa espécie de “arqueologia” seja deveras importante para dar suporte a uma série de aprofundamentos das reflexões filosóficas, há possibilidades outras de fazer filosofia que se movem pelas inquietações de criar (elaborar) descrições e/ou explicações para o mundo, para o que sou, para o que somos nós, para nossa relação com o que nos circunda e/ou tomamos parte. E estar próximo - mesmo apenas como quem procura saber de que se trata - já bem pode ser estar mais perto do divino e da sabedoria...

Antípoda da conclusão da narrativa sobre Pitágoras, Ailton Krenak não se atribui o epíteto de filósofo. Essa é, antes, uma caracterização que os outros lhe atribuem (KRENAK, 2019a, p. 116; 2019c, p. 17). Mais: o autor parece tomar um desvio quando inquirido a respeito. Como, então, compreender que o próprio Ailton Krenak seja filósofo se nem mesmo assim se assume? A resposta a essa questão se ancora no desenvolvimento proposto até aqui: filosofar não é mera questão de autodeclaração e autorreconhecimento, mas é, sobretudo, a adoção existencial daquele ímpeto investigativo que pretende se acercar da sabedoria. Nesse sentido, provocativamente e quase à revelia do autor, é possível afirmar: Ailton Krenak filosofa. Sem nenhuma pretensão de elaborar uma ontologia que vá além da descrição, e dela extraindo as consequências, também se pode afirmar que Ailton Krenak, enquanto filosofa, é filósofo.

Assim, o que está posto é a possibilidade de flexibilizar certo entendimento de que a tarefa reflexiva e investigativa própria da atitude filosófica (de aproximar-se amigavelmente da sabedoria) é algo a ser realizado por um eu, uma alma, um espírito, uma consciência, uma pessoa, um indivíduo (do latim, indivisível); enfim, sempre um a propor algo que pretende dar a conhecer, comunicar, ou, quando muito, instigar os demais a refletir a respeito de algum problema ou questão que considera pertinente. Mas, não seria o caso de colocar em questão esse pressuposto da atividade filosófica tal como habitualmente é realizada no Ocidente? Não é o caso, justamente, de se pensar outras possibilidades filosóficas que não partam de concepções e pressupostos ocidentais, mas que também se abram àquela postura existencial revelada na anedota pitagórica? A saber: a manifestação de um apreço por tudo o que possa nos aproximar da sabedoria.

Não está em questão aqui - e nem poderia estar, sob pena de tornar essa reflexão interminável - o que se pode ou deve entender por “sabedoria”, mas tão somente o fato inegável de que a Filosofia é uma produção de saber e, ao agirem assim, seus agentes, seus atores, estão atuando para tanto. Nesse sentido, uma questão central cuja pertinência pretendo destacar agora a partir de Ailton Krenak é: só é possível pensar filosoficamente como uma célula individual, que concebe e produz esse saber através de uma (auto)compreensão de que se é “algo individual”?

Bastante comum no Ocidente, essa compreensão da produção filosófica como algo meramente individual, parece ser flexibilizada por Ailton Krenak. Suas articulações e proposições advêm de uma espécie de “eu-nós”: Ailton Krenak só está a falar o que fala porque é Krenak; só pode falar o que fala porque é Krenak. Mais: ele assume um dever ético, um compromisso, um engajamento concreto de não abrir mão dessa tradição ancestral que o informa e a qual pretende atualizar (KRENAK, 1999, p. 27; 2012, p. 126-7; 2015, p. 84, 86-7, 91-3 e 195; 2019c, p. 17)2.

De muitas maneiras, a atitude de muitos filósofos, quer o confessem, quer não, toma por base certa tradição (hoje já ancestral) autorreferente a retroalimentar certas leituras, perspectivas, preferências e, a reboque, desprivilegia uma série de outras - quando não as apaga, esconde, oculta, invisibiliza. Que o digam as recentes investigações filosóficas que procuram mostrar vieses contra-hegemônicos na cultura filosófica e mesmo para além dela, entre as quais, convém destacar o feminismo e as perspectivas filosóficas não-eurocêntricas3.

Em linhas gerais, é possível afirmar que esse eurocentrismo cultural e, por extensão, filosófico, foi responsável por um notório “embranquecimento” da forma com a qual os filósofos pensam a sua atividade. Esse pressuposto, por óbvio, acaba por excluir outras possíveis formas de produzir Filosofia. Na verdade, a partir das indicações que são apresentadas aqui, melhor será se referir a esse conjunto de práticas como “filosofias”, no plural. Por um lado, a atitude filosófica bem pode ser pensada ainda com um quê universal, se compreendida como aquela postura de disponibilidade e disposição existencial que pretende se aproximar amigavelmente da sabedoria. Mas, por outro lado, as tradições ancestrais que nutrem a Filosofia são tão diversas que, do ponto de vista da produção filosófica mesma, estamos autorizados a falar apenas em “filosofias”, no sentido mais plural possível.

Em geral, usa-se o termo “embranquecimento” e afins para se referir seja ao caráter eugênico e genocida defendido ou flertado por várias teorias de cunho cientificista, seja, ainda, ao alijamento de corpos e culturas negras de um suposto Brasil. Contudo, muito mais eficazes têm sido o apagamento e a invisibilização, de cunho igualmente genocida, dos povos indígenas em nosso país. Abundam exemplos de ações que apontam à construção dessa invisibilidade histórica, francamente desejada e facilmente estendida aos inúmeros campos culturais que parte da população brasileira pretende(u) para si. Esse apagamento e essa invisibilização podem ser vistos com uma gravidade ainda maior, se levarmos em conta as inúmeras dificuldades na mobilização dos distintos povos originários espalhados pelas mais recônditas regiões de um país continental e o fato de que há incontáveis povos indígenas que permanecem isolados do contato com os brancos. Some-se a isso a generalização - também ela apagadora e invisibilizadora de identidades - sob a qual os “índios” são (ou não) vistos.

Esse termo genérico e impróprio, utilizado para se referir às mais de 300 nações indígenas que vivem no Brasil, já indica, de saída, o quanto uma mentalidade abstrata move pensamentos, afetos e atitudes contrárias aos povos a que ele se refere. Nenhum povo indígena se entende como “índios”, expressão que sinaliza o modo com que os brancos enxergam os povos originários desta terra, desde a chegada dos primeiros portugueses d’além-mar. É, pois, um termo discriminatório desde sua origem.

As nações indígenas não desejam ser vistas como uma massa genérica, amorfa, sem identidade, personalidade, cultura, ritos e linguagens distintas, como se todas constituíssem uma única realidade confusa e indeterminada. Isso, na verdade, diz respeito à cultura branca ocidental erguida a partir da modernidade em sua insaciável sede de abstração, e não ao desejo ou à percepção advindas dos povos originários: “Só somos índios para os outros. Para nenhuma de nossas famílias nós somos os índios” (KRENAK, 2015, p. 230). Mesmo porque

índio é um equívoco de português, [...] porque o português saiu para ir para a Índia. Mas ele perdeu a pista e veio parar aqui nas terras tropicais do Pindorama, viu os transeuntes e acabou carimbando de índios. Aquele carimbo errado, equívoco, ficou valendo para o resto de nossas relações até hoje. (KRENAK, 2015, p. 239).

O que está em jogo é uma cosmovisão de uma única humanidade que pensamos ser; e tal pensamento pretende esmagar outras cosmovisões que desejam se manter ligadas à natureza, à terra - em vez de consumi-la ou dominá-la (como é o caso da primeira)4. Nesse sentido, a (r)existência dos povos originários é exemplar: ela questiona o próprio modo de vida homogêneo e urbano que o Ocidente toma como único aceitável em seu propósito de consumo e dominação.

Segundo Krenak, um dos maiores contrassensos de toda essa situação - senão o maior - é que, por um lado, somos uma humanidade; mas, por outro, mais de 70% dos seres humanos estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser. Nesse contexto, o termo “ser” parece se alinhar com a interpretação existencial já oferecida ao apresentar a Filosofia como atitude, disposição interior - desginando, além disso, um modo de vida. Aqui, “ser” designa um modo de vida em que o sujeito se encontra enraizado num lugar de origem, e também em sua coletividade e tradição. Pode-se, pois, interpretar que o sujeito ou pessoa que se entende como coletivo dificilmente se ilude com a pasteurização, homogeneização de pensamentos, sentimentos, desejos, atitudes e mesmo de modos de vida, que, em geral, advêm do modo de vida ligado à urbanidade.

Ao mesmo tempo em que a grande maioria da humanidade está alijada do exercício de ser, a modernização retira essa gente de seu lugar de origem, arranca-a de sua coletividade, desliga-a de sua terra originária, do campo e das florestas. Virando mão de obra nas cidades, essa gente passa a viver nas favelas e nas periferias e são “jogadas nesse liquidificador chamado humanidade” (KRENAK, 2020c, p. 14), que tudo mistura num único líquido e desfaz a solidez das tradições, das histórias, das trajetórias, das memórias coletivas e ancestrais. A lucidez de Krenak ao analisar as consequências dessa liquefação não deixa de ser impressionante: “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas nesse mundo que compartilhamos” (KRENAK, 2020c, p. 14).

Tudo isso aponta à ideia de que nosso tempo se especializou em “criar ausências do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida” (KRENAK, 2020c, p. 26). Krenak identifica que essa criação de ausência não produz apenas uma vida letárgica ou depressiva, como fica sugerido com a ideia da oferta de remédios para a lida nesse nosso mundo de ambientes artificiais, mas também que essa ausência de sentido cria uma disposição intolerante contra quem não se desvinculou da terra e disso extrai a experiência do prazer “de estar vivo, de dançar e de cantar. [...] O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida”. (KRENAK, 2020c, pp. 26-27)

É da parte dessa humanidade zumbi que vem o discurso de fim do mundo como uma tentativa de fazer essa gente que canta, dança, faz chover, goza e frui da vida, desistir. (o que pode ser interpretado como outra face daquele “embranquecimento” advindo da pretensão de que somos uma humanidade única.). No entanto, está posto que há quem pretenda gozar e fruir a vida aliadas à possibilidade de seguir contando histórias. (O que, por sua vez, parece ser outra forma de se referir àquele exercício de ser que não pretende sucumbir à hegemônica e pasteurizante concepção de uma humanidade única.) Nesse sentido é que se deve entender tanto as estratégias de colonização como as de resistência dos povos originários do Brasil. É por entende-los dessa forma que a civilização não só os chama de bárbaros, mas também imprime contra eles uma guerra sem fim, “com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade” (KRENAK, 2020c, p. 28).

Muitos dos povos que não integram esse clube se concebem de modo bastante distinto da maioria dos povos ditos Ocidentais ou, antes, de matiz europeizante e eurocêntrico. Não é demais ressaltar: essa concepção não Ocidental assume que as pessoas desses povos não são o que o Ocidente entende regularmente como “indivíduos”, mas são “pessoas coletivas”, “células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo” (KRENAK, 2020c, p. 28).

Xamanismo cultural

A pessoa coletiva Ailton Krenak se experimenta ligada à tradição ancestral que, enquanto Krenak, vive através da memória herdada de seus mais antigos e que, ele mesmo, procura manter viva reacendendo-a nos seus: “o pensamento que mais me inspira”, afirma Krenak, “é exatamente o que foi transmitido de geração em geração, ao longo de muito tempo, para povos que querem continuar vivendo na Terra, tendo a Terra não como uma plataforma, mas como uma extensão da nossa respiração, da nossa presença” (KRENAK, 2019a, p. 116). Ligado à natureza como que a terminais nervosos, por entender o caráter vital e maternal da Terra, Ailton Krenak, assim como muitos membros de povos originários, sofre organicamente com os desastres absurdos que lhe são imputados e mesmo antevistos através de sonhos (KRENAK, 2019c, p. 12, 14).

Levando o exposto acima em conta, é possível afirmar que um dos aspectos centrais da filosofia de Ailton Krenak é o ato de se colocar no papel de traduzir o pensamento mágico dos povos originários, ora mediando os conflitos advindos desse mundo cheio de racionalidade, muito próprio do Ocidente, ora, denunciando que esses conflitos permanecem a exterminar esses povos. Sua articulação entre diversas áreas do (muitas vezes mal nomeado) “pensamento ocidental” - entre os quais, por certo, há que se incluir a filosofia - é uma espécie de xamanismo cultural, uma vez que ele “possui a habilidade de cruzar as fronteiras entre os mundos indígena e não indígena, administrando as relações entre eles” (MEIRELLES, 2019, p. 14).

Essa tradução, esse xamanismo se plasma na tentativa de compartilhar com os demais, com os Kraí5, a existência de outros mundos possíveis de serem experienciados já no aqui-agora. A vida homogênea urbana, como um implante sobre o corpo da Terra e uma espécie de índice de nossa insatisfação com a beleza desse organismo vivo, não é a única forma de existência inteligente e sensível, mas assim o entende o clube da humanidade, que reforça a depredação de tudo o que é não humano, por julgar-se como “a única inteligência viva da Terra”. Essa homogeneizante compreensão ocidental é denunciada pelo autor, no limiar do paradoxo, como “uma racionalização absurda do pensamento”, que acaba por produzir uma humanidade-zumbi, petrificada, “que não sabe o que está fazendo, mas continua fazendo” e, pior, que entra em rota de colisão com outros povos, mentalidades, culturas e cosmovisões (KRENAK, 2019c, 12-14).

De fato, em vários planos, essa denúncia-reflexão sobre o modelo Ocidental que promove um esgotamento do mundo e da humanidade revela-se como elemento central no pensamento do autor. Tais planos de denúncia-reflexão mobilizam, entre outras considerações, críticas referentes a diversos sistemas políticos e econômicos, à epistemologia, à metafísica, à (auto)compreensão das relações entre os seres humanos entre si e/ou com o mundo, com implicações ligadas à ética, à ecologia ou filosofia ambiental e mesmo à ontologia. Em uma palavra: há um amplo espectro filosófico vislumbrável no panorama oferecido.

Por si só, a crítica ao “modelo Ocidental” já seria motivo suficiente para inserir nosso autor na lista de filósofos, mais ainda se considerarmos que tal revisão não constitui novidade alguma no seio da filosofia contemporânea6, sendo facilmente constatável que considerações semelhantes já foram propostas mesmo “internamente”, isto é, por (diversos) autores que são ampla e facilmente tomados por “filósofos ocidentais”.

Contudo, como assinalado, o panorama filosófico em questão é bem mais amplo e diverso. E mais: como também já foi indicado, essa ampla revisão filosófica crítica não pode desconsiderar o fato de que ela brota e floresce conceitualmente a partir da situação de pessoa coletiva indígena, ou mais especificamente, Krenak - que Ailton pretende atualizar através da memória ancestral que lhe é própria. Para reafirmar do modo mais direto possível: um dos motivos mais valiosos pelo qual alguém pode se determinar a dialogar com as contribuições filosóficas de Ailton Krenak está no fato de que ele é um “filósofo indígena”.

Sobre esse último aspecto, é possível colocar aqui a questão quase dilemática da preferência de se referir a Ailton Krenak como “filósofo indígena” ou “indígena filósofo”, como que a acentuar uma certa prioridade ontológica, axiológica ou mesmo existencial de sua ação ou condição. Por mais relevante que seja esse aspecto, revisá-lo talvez implique reler o modo habitual com que se tratam inúmeras correntes e autores (por exemplo, feminista filósofa, ocidental filósofo/a, filósofa/o brasileira/o etc.), mas a questão também pode transbordar para certa prioridade étnica filosofante e não acentuar devidamente que . condição para essa atividade é mesmo o fato de sermos humanos.

Por razões óbvias, justificar essa tese ou, antes, esse pressuposto é algo que ultrapassaria - e muito! - o escopo deste artigo. Para traçar um paralelismo com um texto específico do autor e com os desvios que ele mesmo oferece quando perguntado a respeito da alcunha de filósofo e outras, talvez seja preferível afirmar que Ailton Krenak é um indígena que filosofa, já que ele mesmo prefere se referir à ação política dos povos indígenas como “índios em movimento” (e não “movimento indígena”) (KRENAK, 2019a). Deixando, pois, esse ponto propositadamente aberto, o que mais interessa é a apreciação que se pode fazer das proposições filosóficas do autor.

Entre essas relevantíssimas contribuições, destaco algumas que chamam a atenção pela urgência com que o diálogo pode vir a incitar os espíritos mais sensíveis às demandas de nosso tempo. Assim, por exemplo, o autor propõe novas relações éticopolítico-econômicas que estabeleçam uma rede de ações solidárias entre os seres humanos, aí também incluindo aquilo que o Ocidente nomeia como “natureza”; ao fazêlo, não deixa de pensar e viver soluções poéticas - tinge o rosto em sinal de luto na Assembleia Constituinte7, além de perseguir um sonho ancestral que o leva a organizar um Festival de Danças Indígenas (KRENAK, 2015, p. 170-3). Não é demais frisar que essas demandas filosóficas (ético-político-econômico-ecológico-ambientais-estéticas) se encontram profundamente enraizadas nas tradições ancestrais de seu povo, mas possuem em seu interior uma concepção de sacralidade comum a inúmeros povos originários: a conexão com a terra.

Para além da enorme riqueza e profundidade que esses temas sugerem, apresento aqui alguns aspectos que interessam de modo mais imediato ao desenvolvimento que vem sendo apresentado através de algumas passagens do autor. Na primeira delas, Krenak afirma:

a minha maneira de atuar, sempre me colocando independente daquelas ideias de me rotular dizendo que eu sou um ambientalista ou um jornalista ou qualquer uma dessas identificações, é uma maneira, uma estratégia de me inserir no mundo dos brancos. Porque se alguém disser que eu sou jornalista ou que sou ambientalista, está dando um código de abertura para essa minha comunicação com o mundo da técnica (KRENAK, 2019a, p. 116).

Ora, assumir o exercício filosófico como uma abertura existencial dialógica que se deixa interpelar com e pelo real faculta mesmo fazer desse exercício uma possibilidade de escapar ao “mundo (fechado) da técnica”; ou, antes, para dizer de modo mais direto: a filosofia é uma das possíveis aberturas para superar, ultrapassar, ir além, transcender esse mundículo técnico. Nesse contexto, o pensamento mágico de Ailton Krenak surge como um convite para se lançar a novas aventuras filosofantes, para além dos apelos tecnocientíficos atuais, mas também para além de diversos aprisionamentos através dos quais inúmeras fórmulas racionais procuram capturar o real.

Como já foi afirmado, o xamanismo cultural da filosofia de Ailton Krenak passa por se comunicar conosco, ocidentais de “(con/de)formação”, pretendendo, com isso, em boa medida, traduzir(-nos) o que é o pensamento mágico. Como um xamã que transita entre mundos, comunica-se desde um terreiro, um domínio muito comum aos Ocidentais, e, desde aí, ao propor uma conexão íntima, espiritual com a Terra, elabora sua ontologia, sua ética, sua política, sua estética, sua abordagem de como a natureza é sagrada, levando-nos8, entre outras possibilidades filosóficas, a questionar o modo tradicional de oposição entre transcendência e imanência com que a própria Filosofia Ocidental pensa algumas dessas “questões” (?).

No entanto, é bom que se diga, tal xamanismo - por ser xamanismo - não se dá apenas no exercício de tradução dos indígenas para as demais comunidades humanas, mas também na inter-relação, e mesmo na proposição de um diálogo entre humanos e não humanos. É mesmo pré-condição para a experiência do sujeito coletivo a existência de uma comunidade para além dos seres humanos, uma constelação de seres: paisagens, rios, florestas, montanhas. Trata-se, pois, de uma espécie de abandono a algo que nos vincula com a (nossa) ancestralidade, não apenas em sentido genealógico, mas de modo a também envolver a territorialidade, os lugares (e sua conotação sagrada) da Terra, onde podemos trocar com os não humanos, em constante transformação (KRENAK, 2020a, p. 99-100).

Afim ao sujeito coletivo assim concebido e experienciado, está a ideia não pragmática e mesmo inútil9 do “pensamento mágico” que, por sua vez, é tolerante, aberto, plural e diverso; acolhe mundos outros, acolhe possibilidades outras de outras cosmovisões, e não somente aquelas que, direcionadas pela produtividade carniceira e exploratória advinda do capitalismo, apenas conseguem assimilar realidades que se enfileiram à praticidade e à utilidade do consumo e da mercadoria. Desde a sua condição de pessoa coletiva, sujeito coletivo, é possível fazer emergir outra voz que não a do “indivíduo antropocêntrico”, mas que faça ecoar a ideia de descentralizar um (suposto) lugar de fala privilegiado a que nos atribuímos enquanto humanidade10.

Evocar outra(s) subjetividade(s) não é apenas algo teórico, mas uma espécie de atitude existencial em que a experiência e a explicação da vida, da existência, do cotidiano ganham sentidos e contornos próprios, em múltiplos campos: estético, ontológico, ecológico, político, cosmológico/cosmogônico etc. Muito embora se possa questionar o quanto essas secções são parte de um condicionamento ocidental na maneira de categorizar campos teóricos, é possível interpretar que experiências indígenas - e, mais amplamente, não Ocidentais - leiam uma certa “integralidade”, uma “conectividade inseparável” entre esses (supostamente distintos) domínios da compreensão (humana).

Em sentido análogo, a sanha de tudo separar leva o Ocidente a certo extremo na distinção entre natureza e cultura. Essa não integração seria, no fundo, a razão pela qual nós, seres humanos já temos deixado nossas marcas em nosso planeta mesmo quando nós não mais aqui estivermos, exaurindo “as fontes de vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa” (KRENAK, 2020c, p. 46-47)11. Como dá a entender o autor, essa perda de sentido comum, ou, antes, perder o sentido de termos uma casa comum que pode ser cuidada, compartilhada por todos, parece estar na origem desse desgaste, dessa exaustão que leva ao esgotamento da Terra e a essa profunda e destrutiva marca que lhe imprimimos, o Antropoceno. O esgotamento da Terra estaria diretamente ligado à exclusão da vida de inúmeras comunidades locais (bem como seus saberes, suas práticas, suas tradições, suas línguas, suas epistemologias, suas cosmologias) que não têm suas vidas integradas à lógica da mercadoria e que continuam a vivenciar a Terra como casa comum. Na contramão dessa exclusão está a abstração excludente de uma humanidade única.

A ideia de que o autor é um xamã cultural a transitar entre vários “nós” faz aqui se sentir com força. Nessa referência, esse pronome possui uma ambígua elasticidade por significar tanto a nossa geração, como também a nossa condição de espécie humana. Além disso, “nós” parece remeter ao nosso passado enquanto espécie, justamente porque nalgum momento experimentamos esse planeta como uma casa, ou mesmo um lar - isto é, como um lugar seguro, confortável, e mesmo acolhedor e aconchegante. A amplitude do termo “nós” parece ir profundamente ao encontro de um sentido de pertencimento coletivo que comumente envolve a ancestralidade e o porvir, muito próprio das nações indígenas. Parece ser nessa direção que Krenak menciona que em alguns períodos, momentos históricos que já não são o nosso, é bom que se diga, tivemos, enquanto espécie, a sensação de que “tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020c, p. 47).

Essa sensação cai em declínio porque se exclui “as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria” (KRENAK, 2020c, p. 47). Como se sabe, essa mentalidade e as ações nela baseadas colocam em risco todas as outras formas de vida que não estão alinhadas a essa concepção geral; uma espécie de pensamento (que se pretende como) único (aceitável) e que, por isso, exclui da “humanidade” todos aqueles que não se coadunam com ela. Antípoda desse modo de pensar é a “corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito a vida dos seres” (KRENAK, 2020c, p. 47). Segundo parecer de Krenak, desumanizar ou despersonalizar os seres da natureza contribui decisivamente para agravar o risco iminente de destruição do planeta tal como o conhecemos: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista” (KRENAK, 2020c, p. 49)12.

Essa despersonalização, contudo, não me parece ser . único modo ou porquê lidamos com as realidades ditas naturais como objetos que podemos abusar e, a partir disso, torná-los mercadorias e transformá-los em dejetos e rejeitos. Um motivo “mais brando” e conciliatório com visões predominantes no Ocidente pode ser entrevisto nas explicações de certo domínio e primazia das relações técnico-científicas promovidas pelos seres humanos em sua relação com a natureza. Seja como for, mais adiante o próprio Krenak parece oferecer uma alternativa interpretativa como causa dos significativos problemas da atual relação humano-natureza, explicitado com força e vivacidade: “o divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra” (KRENAK, 2020c, p. 49). Poder-se-ia afirmar que este divórcio é, na verdade, uma separação extremamente violenta. No entanto, se essa metáfora pode se prestar a se aproximar do tema a partir de uma relação esponsal, o próprio texto de Krenak direciona a concepção dessa relação noutros termos: trata-se de se desvincular com nossa mãe, a Terra. E o resultado não pode ser outro que nossa própria orfandade - não só das populações indígenas, mas de todos (cf. KRENAK, 2020c, p. 49).

Ecologia política e pessoa coletiva

Assumir que o que está no mundo é mercadoria, recurso, algo a ser consumido, leva-nos a tudo consumir e, por isso mesmo, coloca em risco não só a espécie humana, como leva consigo (à ruína) outros mundos possíveis. Em vez de constituir relações outras apoiadas “na cooperação, na solidariedade, nos afetos” (KRENAK, 2019a, p. 25); em vez de se pensar no bem e nos interesses comuns, a (re)produção do capital pensa sob a lógica da concorrência, da dominação, da concentração de riqueza a um ponto tal que estamos chegando à saturação: “A Terra não vai poder suprir toda a demanda que está sendo ampliada, e os recursos que a gente poderia pensar como comum estão sendo exauridos. E nós teremos uma situação de carência total” (KRENAK, 2019a, p. 26).

Não por acaso se faz necessário projetar uma ecologia política, que parte de uma epistemologia contra-hegemônica para reconstruir a relação entre “sujeitos coletivos e a existência orgânica em comum”. Tal ecologia “expõe as estruturas assimétricas de poder que atingem essa relação comum sujeito / ambiente e promovem a individualização / espoliação, com a apropriação do trabalho e das formas ecológicas de subsistência com a construção de um ‘eu-saqueador’ / ‘eu-espoliador’” (KRENAK, 2018, p. 1).

Essas duas últimas noções, debitárias, de Enrique Dussel (1993) e Ramón Grosfoguel (2016) explicitam aquilo foi insinuado na introdução do presente artigo: a ideia de sujeito ou pessoa coletiva não pretende se posicionar diante da realidade da mesma forma com a vasta tradição da Filosofia Ocidental pensa a si mesmo e seus agentes. A saber: como um sujeito do conhecimento, um sujeito epistêmico que pode conhecer o mundo, a realidade através de alguma prática intelectual que, individualmente, desvenda, descobre, verifica a verdade, os objetos, as coisas, a si mesmo etc. O paradigma é o cogito de Descartes (2007), posto em xeque pelos dois filósofos latino-americanos supracitados, mas também pelo próprio Krenak em outra ocasião: “Atuar no mundo para a vida, continuar existindo, não como uma reprodução material da vida, mas como uma continuação da experiência mágica de existir. Em vez de afirmar ‘Penso, logo existo’, mudar a frase para ‘Eu estou existindo’” (KRENAK, 2019c, p. 17).

Ora, como é sabido, o filósofo francês pretende que seu cogito, ergo sum seja edificado como o ponto de partida do conhecimento indubitável. É, pois, a partir dessa noção de eu pensante (res cogitans) que todo o restante pode ser apreendido e julgado como verdadeiro ou falso, claro e distinto ou obscuro e confuso, certo e seguro ou duvidoso e enganoso. Não é o caso de reconstruir aqui as linhas argumentativas do filósofo francês, mas apenas sinalizar como Dussel e Grosfoguel apontam o quanto essa concepção cartesiana espelha, no fundo, um ideário conquistador-saqueador que se coaduna fortemente com a mentalidade colonial que dizimou muitos dos povos ameríndios.

Ademais, a ressignificação do cogito proposta por Krenak se alinha àquilo que já fora mencionado antes a respeito do gozo ou fruição da vida que é característico dos povos originários, em consonância com aquele exercício de ser que experimenta a existência a partir de parâmetros outros que não os da humanidade zumbi. No mais, ao propor uma ecologia política que transmute esse “eu” (fechado - sobre si, sobre o que pretende conhecer...) que historicamente deflagrou a conquista e o saque dessas terras, o horizonte não se volta para a ênfase epistêmica - não pelo menos convencionalmente aceita no Ocidente -, mas para a ampliação mesma de nossa relação pessoal com o mundo, com o real do qual somos parte.

Nesse sentido, mesmo a ideia de uma “ecologia”, sem mais, é uma ideia advinda de uma epistemologia do Norte, branca, que continua a insistir na ideia - aparentemente generosa - de preservar a Natureza. A contra-epistemologia proposta aqui - no Sul - pretende integrar sujeito coletivo e o lugar onde vivem. Do contrário, a “Natureza” continuará a ser vista como recurso a ser expropriado - ainda que algo dela precise ser conservado. Saqueia-se tais recursos, porque não se consegue entender a condição do outro, ou, antes, constrói-se - dita-se, determina-se - o lugar do outro, que costuma ser o da produção de miséria e pobreza (KRENAK, 2018, p. 1)13.

Parte dessa contra-hegemonia se manifesta, de saída, na concepção de que há uma existência comum entre os sujeitos coletivos e o lugar em que esses sujeitos se agarram à terra. O desgarramento que procuram impor é parte da violência colonial, fruto de um processo político marcado por aquela relação assimétrica de poder, característica da expansão e da conquista capitalista. Tal violência é responsável tanto por romper a percepção do coletivo, como por construir e promover uma ideia de individualização que é consequência de um certo desmembramento entre o humano e o lugar como suporte da vida. Numa palavra, “o individualismo separado das relações ecológicas com o lugar é a promoção do encercamento, da privatização e apropriação dos projetos coletivos de existência em um planeta comum” (KRENAK, 2018, p. 1).

Por outro viés, tudo o que está “fora de nós” é vertido em coisa, propriedade, objeto, recurso, mercadoria etc. Antípoda dessa cosmovisão, os povos originários se mantêm agarrados à terra porque veem, nessa ligação, sua ancestralidade mesma, sua presença e sua pertença àquela realidade como pessoas, sujeitos coletivos.

Segundo essa epistemologia hegemônica, esse pertencimento, essa composição - sujeitos coletivos / lugar como suporte de vida - deve, então, ser desmembrada, desgarrada, desterrada. Essa gente deve ser desmembrada, desgarrada e desterrada de seu lugar como suporte de vida; o que significa, dizer, nesse contexto, que pouco importa o seu jeito de estar no mundo e que o modo de vida dessa gente deve dar lugar aos mecanismos que, ainda hoje, continuam a atualizar a lógica de capitalismo colonial - conquistar, saquear, expandir. Mesmo que a consequência seja causar desequilíbrios e doenças. Sabe-se que o atual momento da pandemia de Covid-19 tem sua origem na instauração de um desequilíbrio ecológico, cuja origem histórica remete à violência colonial da expansão do capitalismo. Urge, pois, libertar-se dessa lógica extrativista, exploratória, desterrante, depredatória, desgarrante daqueles que se apegam e se agarram a seus lugares. Uma ecologia política visa o des-locamento dessa epistemologia hegemônica que se presta a empobrecer, a tornar miseráveis as pessoas e as paisagens que cruzam o caminho do suposto desenvolvimento. Ao contrário disso, ecologia “é estar dentro da terra, dentro da natureza. Ecologia não é você adaptar a natureza ao seu gosto. É você estar dentro do gosto da natureza” (KRENAK, 2019b, p. 23.).

Em suma, o desligamento da terra, e, com isso, o esquecimento de nossa condição originária de estarmos ligados uns aos outros por uma sabedoria ancestral, faz com que se projete tudo o que está fora de nós como mercadoria. Essa separação da terra faz com que ela mesma seja algo fora de nós. A partir disso, resulta a triste conclusão silogística de que a terra, a natureza, o cosmos se converte em coisa, objeto, produto, realidade a ser consumida. Tudo o que não somos “nós” se converte em mercadoria. Algo que pode ser adquirido, usado e, em geral, descartado depois de consumido.

Exceção a essa regra são aqueles que se mantêm agarrados à terra, procuram proteger as florestas, os rios, as montanhas, em vez de exaurir essas realidades como recursos. Para curar a mentalidade reinante que assume de antemão que tudo o que está fora de si é um recurso a ser consumido como mercadoria, a saída bem pode passar pela promoção de uma verdadeira metanóia que promova uma espécie de integração mais profunda entre a comunidade humana em geral, ativando uma espécie de rede de solidariedade-aprendizado que colabore para a construção de um aparato ético-político que não exclua as formas de vida que se pretendam integradas à terra, mas também que aprenda delas e com elas.

O que deveríamos era provocar a irrupção de um pensamento rebelde que fosse capaz de pensar, junto com cada lugar onde nós vivemos, a potência que a terra tem para se fazer respeitar. Se é um organismo vivo, precisa ser respeitado. Nós não temos que cuidar da terra, nós temos que respeitar esse organismo vivo. E nós só estamos aqui porque ela ainda nos suporta, nos acolhe, nos abriga, dá comida, põe a gente pra dormir, desperta. Em nossa pouca paciência e pouca capacidade de escuta, achamos que podemos nos desfazer desse organismo vivo, do qual somos células. Não é um comentário místico, não estou fazendo nenhuma transcendência. Eu só estou lembrando a vocês que este organismo vivo integra a nós também. Somos células desse organismo vivo. É de uma traição absurda a gente ignorar a nossa origem na Terra e discriminar todos os outros seres que têm origem nesse organismo vivo da Terra que poderia reconstruir, ou construir, junto com cada um de nós, uma teia de plena experiência criativa com o organismo vivo da Terra. Nós ficamos rendidos a uma dieta cerebral e temos pouca comunhão com tudo o que a Terra nos possibilita (KRENAK, 2006, p. 92-93).

A necessidade de se fazer irromper um pensamento rebelde se alinha diretamente àquilo que já foi mencionado de se elaborar um pensamento que vá de encontro à forma mentis pasteurizante e homogênea que costuma lidar com tudo o que não seja membro do elitista, excludente e mortal clube da humanidade como algo que pode ser apropriado e consumido. O respeito, o cuidado, o zelo e, muito mais profundamente que isso, a integração orgânica com aquilo que nos cerca tem como ponto de partida a consciência de pertencimento a um lugar, e, além disso, o que parece estar em jogo é também o movimento pendular que oscila de uma ligação local para uma espécie de “conexão cósmica”. No fundo, tem-se, então, que essa dimensão macrocósmica se espelha em uma noção microcósmica: somos células desse organismo vivo. Não é demais frisar que os povos indígenas não se consideram isoladamente, como se essa dimensão celular dissesse respeito exclusivamente à condição individual, ela é experienciada enquanto povo, enquanto pessoa coletiva.

Conclusão

Ampliada a compreensão de sujeito ou pessoa, para além dos vieses epistêmicos que pretendem se impor hegemonicamente na Filosofia Ocidental, o lugar da incerteza floresce, já que é preciso aprender a coexistir com outros modos de vida e mesmo com outras realidades que não são humanas, propriamente falando. É preciso, pois, ensaiar outro pensamento que não o de matiz cartesiano, no qual o pensamento individualhumano é o ponto arquimediano para construir epistemicamente o mundo e, nele, nosso lugar. O antropocentrismo é um filhote de Descartes. Oposta a essa concepção individual (seja ela da ordem intelectiva, seja ela da ordem biológica) reinante de modo egoísta e doente no Ocidente é a ideia de sujeito coletivo. “A experiência do sujeito coletivo é potência e invenção de vida” (KRENAK, 2020b, p. 100-1).

Tudo isso, essa espécie de conspiração, ou, antes, uma conjuração, já que não é possível ser realizada em um plano meramente individual, singular e fechado, essa experiência de ativar o princípio vital de habitar a incerteza “só é possível com mais de um” (KRENAK, 2020b, p. 101), através da perspectiva de um sujeito aberto que ativa uma troca de campos e de lugar com outros, que jamais podem ser configurados como uma invenção pessoal, já que possuem densidade e potência próprias; o que, nesse contexto, significa dizer que esse outro jamais pode ser percebido (e muito menos experienciado) efetivamente enquanto o sujeito não se expandir para além daquela individualidade fechada e singular.

É nesse espírito que, em uma emblemática passagem, o autor, depois de ser declarado liderança Krenak, jornalista, educador, filósofo, é provocado a responder quem ele é hoje. Além de afirmar que não se compreende dessas formas, sua resposta aponta àquela ancestralidade que orienta como que, xamanisticamente, seu agir filosófico. Sua busca por ser fiel ao coração, aos seus ancestrais, passa tanto por não neutralizar esse lugar, como por evitar permanecer em um lugar em que seja interpretado pelas pessoas de uma ou de outra forma determinada - etiquetada poder-se-ia acrescentar. O que realmente importa é “entender que cada situação desafia a gente a ser jornalista, a pensar, a atuar no mundo”, dado que, em certo sentido, ressalta seu maior interesse na vida (exercício de ser) do que nos papeis que as pessoas interpretam. A ideia principal é, pois, entender o mundo, interagindo com ele “no sentido de expandir a vida, e não reduzi-la a uma mediocridade”, ideia essa que advém de uma continuidade de pensamento de seus “velhos”.

A existência pensada desse modo é mágica e sua atuação, performaticamente filosófica. Como já foi indicado, Krenak subverte o cogito cartesiano para afirmar, através da resistência indígena, esse modo de existir (KRENAK, 2019c, p. 17). Se, pois, ao intelectual ocidental cabe cumprir suas responsabilidades institucionais produzindo atividades que, em certa medida, justificam seu papel e mesmo sua “etiqueta” de pensador; Ailton Krenak é cônscio de que sua atuação como intelectual indígena lhe traz uma responsabilidade de outra ordem: atualizar o sentido da herança ancestral que o atravessa14.

Referências

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DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, , p. 25-49, jan./abr. 2016.

KRENAK, Ailton. A gente resiste de um lugar fundado na nossa memória. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO (org.); VISCONTI, Jacopo Crivelli (curadoria). Primeiros ensaios: publicação educativa da 34ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Bienal de São Paulo, 2020a. p. 97-105.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020b.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020c.

KRENAK, Ailton. Ailton Krenak. Lisboa: OCA, 2019a. (Coleção Tembetá).

KRENAK, Ailton. Depoimento. Olympio, Belo Horizonte, n. 2, p. 18-42, 2019b.

KRENAK, Ailton. O tradutor do pensamento mágico. Revista Cult, São Paulo, n. 251, ano 22, p. 10-17, nov. 2019c.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 201204.

KRENAK, Ailton. Ecologia política. Ethnoscientia, Altamira, v. 3, n. 2, p. 1-2, 2018. Número Especial.

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MEIRELLES, Maurício. Nossos mundos estão em guerra. Olympio, Belo Horizonte, n. 2, p. 11-17, 2019.

ØDEMARK, John. Touchstones for sustainable development: indigenous peoples and the anthropology of sustainability in Our Common Future.Culture Unbound, Norrköping, v. 11, p. 369-393, 2019.

Notas

1 O que chamei aqui de vocação corresponde a uma espécie de “papel inato” que o autor atribui a si ao comentar a pro-vocação de ser um “tradutor entre dois mundos”. Na ocasião, Krenak apresenta a ideia de que há vários outros papeis que são percebidos e assumidos de forma análoga no interior das comunidades indígenas (KRENAK, 2019c, p. 12-13).
2 Talvez seja possível afirmar, ousadamente, a partir da proposta de Bensusan (2019), que a produção filosófica de Ailton Krenak parte do “saber local”, que lhe é próprio como pessoa coletiva, para se fazer traduzível para nós, ocidentais. Creio que o desenvolvimento da ideia de “xamanismo cultural”, mais a frente, ajuda mesmo a enriquecer e a colorir essa ideia da produção filosófica a partir de um “saber local”.
3 Cf., por exemplo, o artigo de Boaventura Sousa dos Santos, “Para além do pensamento abissal”: SANTOS, Boaventura Sousa dos. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Novos Estudos, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004. Acesso em: 01 out. 2020; e o texto supracitado de Nurit Bensusan (2019, p. 24-5).
4 Essa é uma das teses centrais de Ideias para adiar o fim do mundo. A partir de algumas passagens desse texto de Krenak, a sequência de meu desenvolvimento apresenta, de forma própria, algumas contraposições entre essa ideia de uma humanidade única e a ideia de sujeito ou pessoa coletiva.
5 Termo utilizado na língua borum, dos Krenak, para fazer referência aos brancos (KRENAK, 1999, p. 24). Na entrevista “Eu e minhas circunstâncias”, o termo aparece grafado como “Craí” (KRENAK, 2015, p. 250).
6 Sobre a concepção de Krenak como um crítico da epistemologia moderna Ocidental, cf. o artigo coletivo “Pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade: sobre uma expressão de Ailton Krenak” (DANNER, L. F.; DANNER, F.; DORRICO, J. Pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade: sobre uma expressão de Ailton Krenak. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa, v. 19, n. 3, p. 74-104, 2019. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/1277. Acesso em: out. 2020.).
7 Para uma leitura dessa ação de Krenak enquanto “evento artístico”, vale a pena conferir o artigo de Jaenisch (Poéticas e políticas da relação: apontamentos a partir da ação de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte e seu deslocamento para espaços de arte contemporânea. Iluminuras, Porto Alegre, v. 18, n. 43, p. 215-239, jan./jul. 2017) e também o já mencionado texto “Nossos mundos estão em guerra”, que destaca, inclusive, como esse evento bio-político-estético pode ser visto como uma espécie de “atuação xamânica” (MEIRELLES, 2019). Já Mandagará (Brasil, é assim que os indígenas usam a voz. Pernambuco. Complemento Cultural do Diário Oficial do Estado, Recife, n. 150, p. 12-17, ago. 2018) destaca os aspectos retórico-corporais dessa intervenção de Krenak.
8 Para Maurício Meirelles (2019), algo dessa habilidade xamânica de transitar entre mundos própria do pensamento de Ailton Krenak também é perceptível no uso que faz do pronome “nós” e suas variações (“nos”, “nossa/o(s)”): dependendo do contexto, refere-se ao coletivo humano; ao passo que, em outros contextos, refere-se especificamente aos indígenas. John Ødemark (2019, p. 387-388), ainda que não se valha da expressão “xamanismo cultural”, também chama a atenção para essa variabilidade do termo “nós” em Ailton Krenak.
9 Sobre a noção de inutilidade da vida e a tensão que ela provoca, cf., sobretudo, as páginas 87 e 110 de A vida não é útil (KRENAK, 2020b).
10 Em outra passagem de A vida não é útil, Krenak faz uma espécie de menção interpretativa do conceito de “perspectivismo ameríndio” de Eduardo Viveiros de Castro, indicando que a noção de sujeitocoletivo “implica uma condição que emerge [...] da natureza” (não da cultura) (2020b, p. 1oo). Igualmente digno de nota, é um trecho de uma entrevista em que Krenak é provocado a caracterizar seu “pensamento mágico” a partir da já clássica apropriação do antropólogo brasileiro: tratar-se-ia de uma “inconstância da alma selvagem”? (cf. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017, p. 299-346). Krenak, então, aproveita o ensejo para apresentar ele mesmo as considerações e as ponderações do que está em jogo nessa dinâmica: trata-se de “uma forma de preservar a nossa integridade, a nossa ligação cósmica”, numa ligação de distintos mundos, de trânsito entre mundos, de andar em diversos lugares, mas de fazê-lo sempre amparado pela coletividade, pela tradição, pela ancestralidade que torna qualquer sujeito-indígena uma estrela no seio de uma constelação (KRENAK, 2019c, p. 12). Infelizmente, não será possível abordar aqui esse valiosíssimo tema sem que se extrapole bastante o objetivo do presente artigo. Contudo, dada a importância desse conceito do antropólogo brasileiro, não quis deixar de trazer a referência.
11 Novamente parto de algumas noções presentes em Ideias para adiar o fim do mundo, para dessa vez articular, de forma própria, xamanismo cultural e a separação radical entre seres humanos e a “natureza”.
12 Em outro trecho anterior ao que fora citado no corpo do texto, Krenak já havia se expressado em termos semelhantes: “Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma [refere-se ao Watu, Rio Doce] é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nessa casa comum que chamamos Terra” (KRENAK, 2020c, pp. 47-48). O já mencionado perspectivismo ameríndio pode (e deve!), justamente, calibrar, ajustar a abertura ocidental para essas personalidades das realidades ou entes “naturais”.
13 O pensamento de Krenak faz pensar nas expressões “epistemologia do Norte” e “contra-epistemologia do Sul”, de Boaventura de Sousa Santos (cf. nota 3).
14 “Os intelectuais da cultura ocidental escrevem livros, fazem filmes, dão conferências, dão aulas nas universidades. Um intelectual, na tradição indígena, não tem tantas responsabilidades institucionais, assim tão diversas, mas ele tem uma responsabilidade permanente que é estar no meio do seu povo, narrando a sua história, com seu grupo, suas famílias, os clãs, o sentido permanente dessa herança cultural” (KRENAK, 1992, p. 201).


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