CONTÍNUA

Feira-livre como experiência de Bem Viver: uma expressão pulsante das resistências cotidianas

Free fair as an experience of Good Living: a pulsating expression of dayly resistance

Samanta Borges Pereira
LETRA/UFLA, Brasil
Tayrine Parreira Brito
UNICAMP, Brasil
Viviane Guimarães Pereira
UNIFEI, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 53, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 13 Junho 2022

Aprovação: 11 Novembro 2022



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623532022180

Resumo: Neste artigo, propomos enunciar aproximações entre as práticas presentes nas feiras-livres com elementos centrais da filosofia ameríndia do Bem Viver. Apesar da força do mercado varejista na venda de produtos alimentícios, a feira resiste com sua forma e conteúdo peculiares, sendo um importante espaço de comercialização da produção da agricultura familiar e tradicional e de acesso a alimentos saudáveis. As relações e sociabilidades que se desenrolam nesse espaço fazem da feira mais que mero mercado, sendo um lugar de ritmo, encontros, passeios, aonde se vai para comprar, para rever amigos, família, histórias de vida. Diante disso, nosso objetivo neste ensaio teórico é discutir a feira-livre como um espaço de resistência e uma experiência de Bem Viver, muito mais complexa do que a lógica economicista é capaz de compreender. Convivialidade, coletividade, pessoalidade, informalidade, confiança, vínculo territorial, saberes seculares, valorização cultural, outros modos de produção e consumo são alguns dos muitos elementos materiais e simbólicos que representam a feira-livre como um espaço plural que se expressa em uma ética e valores não exclusivamente mercadológicos. A feira é uma experiência de resistência que se materializa no cotidiano da classe trabalhadora, sejam estes produtores, feirantes ou consumidores. Defendê-la, colocando em evidência sua expressão social, que carrega símbolos contrários à modernidade ocidental, é promover a construção de caminhos para “adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2019).

Palavras-chave: convivência, pertencimento, complementaridade, alternativa contra-hegemônica, descolonização.

Abstract: In this article, we propose to enunciate approximations between the practices present in free fairs with central elements of the Amerindian philosophy of Good Living. Despite the strength of the retail market in the sale of food products, the free fair resists with its peculiar form and content, being an important space for commercialization of family and traditional farming productions and access to healthy foods. The relationships and sociability that take place in this space make the fair more than just a market, being a place of rhythm, meetings, walks, where people go to shop, to see friends, family, life stories. Therefore, our objective in this theoretical essay is to discuss the free fair as a space of resistance and an experience of good living, much more complex than the economistic logic is capable of understanding. Conviviality, collectivity, personality, informality, trust, territorial bond, secular knowledge, cultural appreciation, other modes of production and consumption are some of the many material and symbolic elements that represent the free fair as a plural space that is expressed in an ethics and values not exclusively market values. The fair is an experience of resistance that materializes itself in the daily life of the working class, whether they are producers, traders or consumers. Defending it, highlighting its social expression, which carries symbols contrary to Western modernity, is to promote the construction of ways to “postpone the end of the world” (KRENAK, 2019).

Keywords: coexistence, belonging, complementarity, counter-hegemonic alternative, decolonization.

Introdução

Este texto argumenta em defesa da feira-livre como uma experiência de Bem Viver, para que ela se mantenha livre das formas reduzidas da vida e das relações sociais. Essa prática secular, presente tanto no interior, quanto nos grandes centros urbanos, se configura como um espaço de geração de renda para milhares de famílias, de experiências de convívio e coletividade, e tem resistido às formas hegemônicas de produção, trabalho, consumo, conhecimento e convivência, que têm nos distanciado do nosso lugar e da nossa relação com a natureza, gerando uma crise sistêmica sem precedentes.

Essa crise social, econômica e política tem suas raízes no paradigma ocidental de mercado mundial, crescimento econômico, corporativismo, capitalismo e consumismo (MAMANI, 2010), que está colocando em risco não uma civilização específica, mas o destino da humanidade (SOLÓN, 2019). Trata-se de uma crise de vida (MAMANI, 2010). A busca infinita pelo lucro à custa do planeta tem causado a extinção de espécies, a perda da biodiversidade, a degradação humana, o esgotamento dos limites da natureza (SOLÓN, 2019) e o nosso descolamento do organismo Terra, alienando-nos do nosso mínimo exercício de ser (KRENAK, 2019).

Esse modelo de sociedade pautado na apropriação capitalista da natureza, em que tudo é transformado em mercadoria, não se restringe a essa forma econômicoinstrumental de pensar e explorar os recursos naturais (ASSIS, 2014). A exploração ininterrupta e total da natureza desconsidera a história, a cultura e as relações sociais locais, nas quais os elementos materiais estão envolvidos, exercendo dominação sobre as pessoas, seus territórios e seus projetos emancipatórios. Diante disso, as lutas em defesa da natureza precisam ser entendidas como a defesa da diferença cultural, ecológica e econômica (CASTRO-GÓMES, 1998; ESCOBAR, 2005).

A experiência social em todo o mundo é muito mais ampla que a experiência ocidental de mundo e essa riqueza está sendo desperdiçada. As ideias daqueles que defendem que não há alternativas se nutrem desse desperdício de experiências (SOUSASANTOS, 2006). Para Sousa-Santos (2006, grifo nosso), o que não existe é ativamente produzido como tal para ser uma alternativa não-credível ao que existe, condição que ele chamou de sociologia das ausências. Ele propõe transformar experiências impossíveis em possíveis, convertendo as ausências, em presença. A contemporaneidade é especialista em criar ausências de sentido de viver em sociedade e do próprio sentido da experiência da vida, o que gera intolerância com relação a quem é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar (KRENAK, 2019).

Nesse sentido, a feira-livre se apresenta como uma alternativa que faz frente às formas de concentração de renda, de homogeneização dos espaços, de produção insustentável, do trabalho explorado e da lógica mercantil de viver a vida, ainda que seja atravessada pela modernidade. A palavra feira tem origem no termo latino feria, que significa “dia de festa”, e esse sentido mantém uma relação intrínseca com os aspectos festivos presentes nessa experiência (BARBOSA, 2011). A denominação livre se deve ao fato de ocupar, geralmente, um espaço público, como ruas, praças ou mercados municipais, com circulação livre de pessoas, sejam feirantes, vendedores ambulantes, consumidores, frequentadores ou transeuntes, diferenciando-se dos comércios que acontecem em espaços privados.

Apesar do poder que o mercado varejista representa na venda de produtos alimentícios, a feira-livre resiste com sua forma e conteúdo peculiares, sendo presença marcante em diversas regiões do país e do mundo. Conforme aponta Acosta (2015), o mercado, enquanto estrutura de dominação, responde aos interesses dos atores sociais vinculados ao poder. Para o autor, pensar em alternativas demanda questionarmos o mercado como referência de todos os esforços econômicos. Nesse sentido, a feira-livre emerge como uma experiência e uma prática em que nem tudo é regido pela lógica da acumulação do capital.

Segundo o extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), existem no Brasil 5.119 feiras-livres em 1.176 municípios, nos 26 estados e no Distrito Federal, além de 1.331 feiras agroecológicas ou com produção orgânica em 624 municípios (SNA, 2015). Elas são importantes canais de escoamento da produção da agricultura familiar e oferecem a oportunidade de comprar o produto diretamente do produtor (GONÇALVES; ABDALA, 2013; MACHADO; SILVA, 2004). Mas as relações de sociabilidade que se desenrolam nesse espaço fazem delas mais do que mero espaço de comercialização (GONÇALVES; ABDALA, 2013).

A dinâmica da feira é regida por uma lógica simbólica de pertencimento local e valorização cultural que resiste à lógica racional globalizante e que permite que as pessoas se identifiquem com o todo, ao mesmo tempo em que a atividade econômica ocorre (JESUS; DENARDIN; SULZBACH, 2020; SILVA; SILVA, 2016). Além disso, sua diversidade produtiva garante as necessidades nutricionais e alimentares e a valorização da produção local, tradicional, contribuindo para o debate sobre soberania alimentar (DIAS-JUNIOR, 2019; GONÇALVES et al., 2020).

A feira é um lugar de ritmo, de encontros, de passeios, é terapia, é aonde se vai para comprar, para rever amigos, família, histórias de vida e também onde se faz política (PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; SABERES DO BRASIL, 2008). Esses elementos presentes na feira se aproximam e se inter-relacionam com os fundamentos do Bem Viver, filosofia em construção, baseada no modo de vida ameríndio e da concepção indissociável entre ser-humano e natureza (ACOSTA, 2015) e se refere às diversas experiências, visões e propostas que se empenharam em viver harmoniosamente com a natureza, podendo ser consideradas uma alternativa ao modelo de desenvolvimento convencional (GUDYNAS; ACOSTA, 2011).

Diante disso, nosso objetivo neste ensaio teórico é discutir a feira-livre como um espaço de resistência e uma experiência de Bem Viver, muito mais complexa do que a lógica economicista é capaz de compreender. Enunciaremos aproximações entre as práticas presentes nas feiras-livres com elementos centrais do Bem Viver, apresentando-a como uma prática já existente que está contribuindo para “adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2019).

Este ensaio argumentará em favor da feira-livre como experiência de Bem Viver, discussão que está organizada em duas seções: (i) A feira-livre como espaço de múltiplas relações, apresentando as formas complexas de comercialização, socialização, convivência, das múltiplas relações entre passado e presente, campo e cidade, feirante e freguês, trabalho, renda, modos de vida e relação com a natureza; (ii) A feira-livre como experiência de resistência e Bem Viver, apresentando o imbricamento entre a multiplicidade das relações presentes na feira com os elementos de convivialidade, equilíbrio, complementaridade, diversidade e decolonialidade presentes no Bem Viver. Nas considerações finais, retomamos o objetivo para reforçar a importância da feira-livre como uma solução tradicional e não hegemônica que contribui com a defesa dos bem comuns e das múltiplas formas de vida e de viver.

1 A feira-livre como espaço de múltiplas relações

A feira-livre resistiu às mudanças ocorridas na vida social ao longo do último século e se apresenta como um espaço onde passado e presente se encontram. As formas complexas de comercialização e relações presentes na feira vêm sendo percebidas pelo Estado, pelos movimentos sociais e pesquisadores como estratégias legítimas e alternativas aos mercados convencionais.

As formas de organização das feiras no Brasil podem ser compreendidas a partir de três origens principais: (i) as feiras centenárias que antecederam os mercados convencionais e representavam o principal espaço de trocas comerciais da época (COSTA; SANTOS, 2016); (ii) as feiras organizadas na década de noventa, fomentadas por políticas públicas de desenvolvimento local e regional (CORONA; VASQUES; GODOY, 2018); (iii) as feiras agroecológicas e culturais, que também ganham destaque nos anos noventa e se apresentam como uma releitura das feiras convencionais, oferecendo produtos livres de agrotóxicos (ARAÚJO; LIMA; MACAMBIRA, 2015).

Na atualidade, as feiras-livres se desenham como uma mescla dessas formas, pois se mantêém como espaço de trocas comerciais, são fomentadas por políticas públicas ou ações governamentais - como o apoio da prefeitura e/ou da EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) - e oferecem produtos sem agrotóxicos, ainda que nas feiras convencionais ocorra a presença de ambos (produção com e sem agrotóxicos). Além disso, se configuram como um espaço importante de trabalho e geração de renda para muitas famílias (RIBEIRO, 2007; SACCO DOS ANJOS; GODOY; CALDAS, 2005) e são frequentemente mencionadas como fonte complementar de renda (DORNELES et al., 2019; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017).

Ainda que não seja, em sua maioria, fonte principal de renda - pela própria multiplicidade de estratégias de geração de renda da agricultura familiar, mas também por não se configurar como uma prática hegemônica, não recebendo o apoio frequentemente dado a outros mercados - a feira resiste, fazendo-se mais ampla do que apenas um espaço de comercialização. No âmbito coletivo, apresenta uma estrutura de fornecedores (os feirantes) muito mais diversificada e fragmentada, com rendas mais distribuídas, contrastando com as rendas concentradas do varejo.

Há produtos da feira que carregam uma história de vida que dão base para o aspecto econômico e social de cada feirante que trabalha naquele espaço (DORNELES et al., 2019). Para Pereira, Brito e Pereira (2017), esses produtos apresentados na feira demonstram o capricho e o cuidado do trabalho das famílias agricultoras. Esse esmero não se baseia em uma estética normativa, mas em padrões regionalizados que, se analisados por um olhar moldado apenas pela lógica comercial, podem parecer caóticos. É, assim, um espaço pautado em outros valores e estética, onde o feirante se sente recompensado pelo reconhecimento do seu trabalho pelos frequentadores (SANTOS; SANTOS, 2020). Alguns feirantes “ganham fama” pelos seus produtos, dada a qualidade e o capricho, que requerem um saber especializado, que passa pelo preparo e beneficiamento da produção, mas também pela forma de atendimento.

A presença dessas práticas carrega uma história produtiva e um conjunto de saberes que contribuem tanto para a diversificação da produção ofertada, melhorando o fluxo de consumidores e seu potencial econômico, quanto para o fortalecimento desse espaço no seu aspecto histórico de tradição cultural, além de influenciar no enriquecimento dos hábitos alimentares da população local, contribuindo na formação de um paladar regionalizado, mais adequado à disponibilidade dos alimentos, respeitando o tempo da natureza, e mais vinculado à identidade local.

Os feirantes são pessoas que estão ligadas àquele tipo de atividade que o avô participou, o pai participou, que conecta a sua família e a sua história à arte de fazer feira (ALLENDE, 2019; DORNELES et al., 2019; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; SABERES DO BRASIL, 2008). Podemos considerar o encontro do passado com o presente, moldando o que poderá haver como futuro, num embate constante entre o tradicional e o moderno.

A presença de produtos locais, artesanais, da culinária tradicional, demonstra a diversidade produtiva presente na feira, que garante refeições mais diversificadas, tanto para os consumidores, quanto para os agricultores/feirantes, contribuindo para a saúde e a segurança alimentar e nutricional (DIAS-JUNIOR, 2019; GONÇALVES et al., 2020; PEREIRA; BRITO; PEREIRA; 2017; POZZEBON; RAMBO; GAZOLLA, 2018; ROCHA et al., 2010; UGUEN et al., 2015).

Os produtos da feira são reconhecidos pelos consumidores como de alta qualidade, mais saudáveis, livres ou com uso reduzido de agrotóxicos, mais frescos e produzidos com base em um conhecimento acumulado (MACHADO; SILVA, 2004; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; RIBEIRO, 2007; ROCHA et al., 2010). Apesar da forte presença de supermercados, hipermercados e atacarejos - grandes redes do varejo alimentar - que atendem as cidades, a oferta de produtos locais, inclusive alimentos costumeiros, exclusivos da feira, confirma seu caráter diversificado, tanto em nível alimentar, quanto simbólico, de identidade e de sociabilidade (COSTA; SANTOS, 2016; DIAS-JUNIOR, 2019; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017).

Os mercados convencionais representam o padrão alimentar mundial, onde se encontram os mesmos produtos, do norte ao sul do Brasil e em diversas regiões pelo mundo. Ploeg (2009) destaca dois modelos de interação entre a agricultura e a sociedade: 1) o primeiro está centrado na construção e reprodução de circuitos curtos e descentralizados, que ligam a produção e o consumo de alimentos, ou seja, a agricultura e a sociedade regional; 2) o segundo é fortemente centralizado, constituído por grandes empresas de processamento e comercialização de alimentos, operando em escala mundial, modelo que ele se refere como império alimentar.

Os impérios alimentares são um regime, cujas regras se baseiam numa combinação de conhecimento científico, práticas de engenharia, tecnologias do processo produtivo, características de produtos, interesses empresariais, engenharia financeira e ciclos de planejamento e controle. A agricultura capitalista e a empresarial estão essencialmente ligadas ao consumo mundial, enquanto a agricultura camponesa é, essencialmente, (embora não exclusivamente), baseada em circuitos curtos e descentralizados.

A feira-livre, ao contrário dos mercados convencionais, representa os costumes locais, os alimentos nativos e os preparos regionais. Nela se encontra peixe, açaí in natura, carne de porco, camarão, farinha, como na feira de Cametá (PA), localizada na região norte (DIAS-JÚNIOR, 2019), quitandas, arroz vermelho, colorau, presentes na feira de Conceição do Mato Dentro (MG), na região sudeste (PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017), condimentos naturais e ervas, conforme encontrado na feira de Cascavel (CE), na região nordeste (COSTA; SANTOS, 2016), produtos amazônicos, plantas não convencionais (PANC), plantas com ação medicinal, comercializados na feira de Manaus (AM), na região norte (UGUEN et al., 2015), fubá da paixão produzido com sementes crioulas, presentes na feira do município de Remígio (PA), na região nordeste do país (LAURENTINO et al., 2021), entre outras tantas variedades características de cada localidade e região.

Esses produtos carregam consigo um caráter cultural latente que remete os fregueses/consumidores à sua infância, suas origens, suas raízes, ligadas a um passado rural (CASSOL; SCHNEIDER, 2017; CORONA; VASQUES; GODOY, 2018; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017;). Além da garantia nutricional, a feira contribui para a soberania alimentar, ou seja, o direito dos povos de desenvolver e preservar os seus alimentos, levando em consideração a sua diversidade produtiva e cultural (SILIPRANDI; ZULUAGA, 2014).

Das estratégias para manter o caráter cultural, simbólico, popular e democrático das feiras, Pereira, Brito e Brito (2017) e Gonçalves et al. (2020) mencionaram a garantia da gestão autônoma dos agricultores-feirantes sobre a feira. Cerdeño (2006) ressaltou o fortalecimento da presença de consumidores/frequentadores que buscam uma alimentação consciente dos efeitos positivos de uma dieta rica em frutas e hortaliças para a saúde humana. Maluf (2004) defende a produção de uma dieta ambientalmente sustentável, valorizando as dimensões do local e vinculada àqueles que produzem.

Feirantes-agricultores e consumidores são os protagonistas do processo de comercialização e significação das relações sociais, culturais e econômicas presente nas feiras (GODOY, 2005), lugar que Silva e Silva (2016) afirmam ser onde as classes populares exercem seu poder de escolha de consumo, no qual predomina o fator cultural e a memória alimentar. Há que se destacar a importância das feiras no oferecimento de produtos mais baratos, possibilitando que famílias das classes populares e trabalhadoras tenham acesso a uma alimentação saudável (CRUZ et al., 2008, PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; ROCHA et al., 2010; SATO, 2007).

Para muitas comunidades, a feira nasce da necessidade de sobreviver e alimentar suas famílias com dignidade. Podemos mencionar a história de oficialização da feira-livre em 1914 na cidade de São Paulo, descrita por Sato (2007) como resultado de um movimento grevista de trabalhadores que reivindicavam alimentos básicos mais baratos. Outro exemplo são as feiras dos reassentados, que nascem da necessidade de enfrentar a dureza de (re)organizar e (re)territorializar suas vidas em novas terras, novas paisagens, junto a outras famílias com diferentes valores culturais, se propondo a trabalhar coletivamente, lutando pelo direito de uma nova vida, de produzir para viver (ALLENDE, 2019).

Outra peculiaridade da feira é a existência do escambo (COSTA; SANTOS, 2016; GROOT; GROOT, 2017), ou da “compra fiada ou pendurada”, para ser paga na semana seguinte (GONÇALVES; ABDALA, 2013), condições somente possíveis, dada a possibilidade de relacionamento direto entre o agricultor-feirante e consumidor e dos fortes laços de confiança (DORNELES et al., 2019; GONÇALVES; ABDALA, 2013; MACHADO; SILVA, 2004) e de pessoalidade presentes no ato de “fazer a feira”, em que feirante e fregueses não são indivíduos isolados, mas se legitimam como sujeitos desse espaço a partir das relações estabelecidas.

A diversidade dos tipos de feiras e a particularidade/singularidade de cada feira espalhada por todo o Brasil, com características únicas de cada lugar, mostram que as feiras são heterogêneas, em contraponto à homogeneidade e padronização dos mercados convencionais (supermercados, hipermercados, grandes lojas de varejo). Das feiras-livres existentes no Brasil, podemos comumente encontrar quatro tipos principais:

(i) as feiras-mercado, que possuem, geralmente, uma infraestrutura no formato de um galpão, mas sua ocupação pelos feirantes e consumidores transpassa os limites da infraestrutura, ocupando também as ruas (CARDOSO et al.; 2016; PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017). O principal exemplo desta categoria no Brasil é o “Ver o Peso” em Belém (PA), considerado a maior feira-livre do país: um espaço em que o colonialismo não é predominante e que a cultura local resiste há anos (CARDOSO et al., 2016).

(ii) as feiras universitárias, geralmente vinculadas a projetos de extensão registrados nas universidades, sendo ainda raros os estudos sobre as feiras-livres que acontecem nesses espaços (SPECHT et al., 2019), provavelmente por serem um fenômeno ainda recente. A regulação e o funcionamento da feira universitária dependem da tutela da instituição e do empenho dos feirantes e das pessoas envolvidas no projeto de extensão. Essa articulação entre feirante e universidade é que vai estabelecer a expressividade dessa feira na sociedade (SPECHT et al., 2019). Além disso, a feira universitária também é uma possibilidade de transpor os muros da universidade, que é um espaço público, mas visto como um espaço restrito, por conta da estrutura desigual da nossa sociedade.

(iii) as feiras da agricultura familiar, o tipo de feira mais comum nos municípios interioranos, do sul ao norte do país, com suas características regionais, que podem ser percebidas pelo tipo de produto, pelos sons, cheiros e costumes das pessoas que ocupam o espaço. Geralmente, elas acontecem em espaços permanentes, com o tráfego de veículos bloqueado (PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; SANTOS; SANTOS, 2020).

(iii) as feiras da CEASA (atravessadores), que vêm tomando espaço, principalmente em regiões mais urbanizadas, em que o rural fica distante, tanto em termos geográficos quanto da lógica de sociabilidade. De acordo com Verano e Medina (2019), municípios com população acima de 200 mil habitantes possuem pouca participação da agricultura familiar nas feiras. As formas de organização e infraestrutura são parecidas com a da feira da agricultura familiar, havendo como principal distinção a ausência dos agricultores, ou seja, de quem realmente produz o que está sendo comercializado. São geralmente feiras que oferecem produtos padronizados, parecidos com os dos mercados convencionais, mas apresenta baixos preços, que são atrativos para a população (SATO, 2007).

A feira da CEASA e a feira da agricultura familiar possuem semelhanças no que diz respeito ao seu aspecto de feira - o atendimento personalizado, o barulho, a cooperação e a auto-organização (SATO, 2007). É preciso atentar-se para o crescimento desse espaço que pode enfraquecer a feira da agricultura familiar. Entretanto, é preciso também compreender as contradições presentes nos diferentes espaços: a necessidade de consumidores que precisam de preços mais acessíveis, dado o seu baixo poder aquisitivo, além da aquisição de alimentos do CEASA pelos próprios feirantes, que precisam diversificar sua produção para garantir a comercialização de seus próprios produtos.

Não diferenciamos aqui as feiras agroecológicas, pois elas têm transitado pelos tipos de feiras, ocorrendo em universidades, mas também nas ruas e praças, sendo ocupada por agricultores familiares, mas também por outros sujeitos. A despeito dessas ambiguidades, que devem ser elucidadas para que possam ser minimizadas, as feiras fazem parte das estratégias adotadas por famílias agricultoras para sua manutenção. Diante desse desafio de permanência e existência, as estratégias para produção e reprodução das famílias agricultoras são muitas, e uma delas é fundada nas trocas que elas mantêm com o mercado, sendo as feiras um local privilegiado para a sociedade rural, além de oportunizar a aquisição de alimentos pelas camadas mais populares, assegurando uma alimentação de qualidade.

As feiras também podem servir para reafirmar a indissociabilidade entre rural e urbano. A concepção oficial, que segue o critério político-administrativo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), associa o rural a tudo aquilo que não é urbano, numa classificação de natureza residual: áreas rurais como aquelas que se encontram fora dos limites das cidades. A perspectiva adotada aqui é de uma interação do rural com o urbano e vice-versa, em que os processos sociais, as dinâmicas econômicas e os traços culturais que ocorrem no espaço rural são fluídos, permeáveis, transpassados e de algum modo integrados à sociedade contemporânea (SCHNEIDER, 2009) e as feiras, esses aparentemente modestos mercados locais, são capazes de demonstrar o transpassamento rural/urbano, sendo lugar de trabalho, organização e cultura, longe de ser sistema socioeconômico homogêneo, atualizando códigos próprios de relações sociais no contato com outros, e não raras vezes também usam princípios e regras que advêm dessa inserção. A existência de uma relação com o sistema monetário acontece porque há uma relativa integração da comunidade rural ao sistema econômico mais amplo. Essa integração se dá pela venda de um excesso da produção de mantimentos, ou pela criação ou extração de algum outro produto que se destina ao mercado (DURHAM, 1984).

A feira-livre é uma experiência que nos transpassa e nos transforma pelos seus “fazeres”, saberes, sabores, cores, sons, cheiros, ritmos, festividade (BARBOSA, 2011; DORNELES et al., 2019; GONÇALVES; ABDALA, 2013; VEDANA, 2013), que se misturam com a paisagem local (PEREIRA; BRITO; PEREIRA, 2017; RIBEIRO, 2007) e que resiste à homogeneização e padronização dos espaços e às relações utilitaristas, impessoais e mercantilizadas.

2 A feira-livre como experiência de (re)existência e Bem Viver

Pesquisadores de diferentes áreas já demonstraram que comunidades do chamado “Terceiro Mundo” se relacionam com a natureza de maneiras diferentes das formas modernas e encontraram práticas significativamente distintas de se relacionar com o biológico e o natural. Algumas características comuns entre essas comunidades denotam uma representação complexa da vida social, na qual o mundo natural é indissociado do mundo social, além de possuírem um forte vínculo territorial entre os sistemas simbólico/culturais e as relações produtivas, baseadas em lógicas profundamente complexas (ESCOBAR, 2005).

É nessa perspectiva que a filosofia do Bem Viver é pensada (e repensada) e se apresenta como um ensejo para traçar coletivamente uma nova forma de viver. Trata-se um processo que tem sua gênese na matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a natureza - como os povos andinos e amazônicos - e que vêm questionando o modelo de desenvolvimento hegemônico pautado na deterioração da natureza e de formas de vidas comunitárias, baseado na vitória à custa do sofrimento alheio (ACOSTA, 2015; MAMANI, 2010; SOLÓN, 2019).

Essas cosmovisões reconhecem a diversidade e a necessidade de compartilhar a existência a partir de éticas e valores não mercadológicos (GUDYNAS; AGOSTA, 2011), uma ética do suficiente, como disse Leonardo Boff, que abrace toda a comunidade, e não apenas o indivíduo (ACOSTA, 2015). Essas cosmovisões têm alimentado o debate global sobre a urgência de fazer visível saberes e concepções de mundo que foram subjugados ao longo do tempo, buscando construir uma sociedade que, dentre outras coisas, tenha uma diversidade de mercados para não vivermos em uma sociedade mercantilizada (GUDYNAS; AGOSTA, 2011).

O Bem Viver é um projeto em construção que vê possibilidade de resistência a esse modelo dominante de economia e sociedade, que também se configura como alternativa contra-hegemônica de civilização (SILVA; GUEDES, 2017). Dessa perspectiva, conhecer outras formas de vida e de trabalho, de experiências de desenvolvimento e práticas locais, que tragam à tona outros conhecimentos, códigos de conduta ética e espiritual em relação ao entorno, valores humanos, visão de futuro (ACOSTA, 2015) ajudará a elucidar caminhos para pensar práticas mais cooperativas e solidárias, de tratamento da terra e da natureza, das identificações que as constituem e que produzem sentidos aos diversos elementos socioculturais que organizam a vida coletiva.

A sensibilidade com outras formas de vida pode ser materializada na contemplação, na atenção e no cuidado com o outro, seja uma pessoa, uma árvore ou um valor compartilhado. Despertar para a totalidade/amplitude da vida e para a compreensão crítica dos sistemas produtivos é parte dos desafios a serem superados, no sentido de uma nova humanidade, que resgata valores e saberes primordiais, capazes de gerar novos modos de produção e consumo (BOFF, 2005; CARRASCO; AGUIRRE, 2018; SOUSA-SANTOS, 2005).

Solón (2019) afirma que é fundamental ir ao cerne da proposta para avançar na sua real implementação. O autor afirma que qualquer tentativa de definir o Bem Viver irá asfixiá-lo. Entretanto, ele apresenta algumas facetas que podem ser nevrálgicas para a construção teórica e a prática de alternativas sistêmicas, sintetizadas em cinco elementos centrais: (i) sua visão do todo ou da Pacha; (ii) a convivência na multipolaridade; (iii) a busca do equilíbrio; (iv) a complementaridade da diversidade; (v) a descolonização (SOLÓN, 2019).

É nesse sentido que a feira-livre se configura como uma experiência de Bem Viver. Experiência, não no sentido do mero acontecimento, que provoca sensações excitantes e efêmeras e que demanda novos estímulos, reduzidos ao instantâneo, mas como experiência que demanda um gesto de interrupção, que nos faça parar para sentir e permitir que a experiência nos transpasse e nos transforme (BONDÍA, 2002). A feira pode ser a oportunidade de vivermos “a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, de poder contar uns com os outros” (KRENAK, 2019, p. 13). Viver bem exige reconhecermos todas as experiências (SOLÓN, 2019) e a riqueza social de experiências do mundo que está sendo desperdiçada (SOUSASANTOS, 2006). Para combater esse desperdício é necessário um outro modelo de racionalidade, que expanda o presente e crie “espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo” (SOUSA-SANTOS, 2006, p. 239).

A feira é uma experiência de Bem Viver porque ela é uma experiência coletiva, em resistência às formas individualistas de vida, em uma convivência na multipolaridade e de complementaridade na diversidade (SOLÓN, 2019). Muitas das pessoas que estão na feira, sejam feirantes, consumidores ou frequentadores, não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, que transmitem suas visões sobre o mundo através do tempo (KRENAK, 2019). As feiras são locais de um saber-fazer da negociação, onde os feirantes possuem suas estratégias de conquista do freguês, o que não significa ficar à mercê da vontade do cliente. A pechinha é a prática da negociação (GONÇALVES; ABDALA, 2013) para um acordo melhor para todos e o poder de compra é um elemento somativo - e não exclusivo - nessa relação (SILVA; SILVA, 2016).

Informalidade e pessoalidade são características fundamentais de sociabilidade da feira. A relação de intimidade permite que, nesse espaço, ainda aconteçam os pagamentos “fiado” ou que o feirante possa guardar o melhor produto para o freguêsamigo (GONÇALVES; ABDALA, 2013). Pereira, Brito e Pereira (2017, p. 73) destacam que, sejam fregueses ou gente de fora, os feirantes “conhecem todo mundo”. Para Castro e Castro (2016), a depender do grau de fidelidade, proximidade ou intimidade, os fregueses podem ser representados pelos feirantes como “freguês de verdade”, “freguês antigo”, “freguês nem sei de quando”, freguês de sempre”, sendo diferenciados dos consumidores eventuais.

A pessoalidade não pode ser compreendida pela racionalidade dominante. Gonçalves e Abdala (2013) disseram que a ortodoxia liberal entenderia a pessoalidade como uma ambiguidade, considerando que o mercado segue leis gerais de impessoalidade. Sousa-Santos (2006) aponta que as visões que afirmam que não há alternativa fora do pensamento racional dominante transformam experiências possíveis em ausências. Para a lógica liberal, a pessoalidade da feira é uma ausência, pois está fora do campo de compreensão da racionalidade dominante.

As noções de mercado e cidadania pautadas na ortodoxia liberal deveriam ter extinguido as relações de pessoalidade no espaço público (GONÇALVES; ABDALA, 2013). No entanto, a feira mostra que relações de convivência e complementaridade em equilíbrio não só são possíveis, elas estão presentes diariamente nas diversas feiras espalhadas pelo país, que transformam a pessoalidade ausente em uma presença possível nas relações sociais. Essas vidas se conectam umas às outras, numa relação interdependente entre feirante-freguês, feirante-feirante, freguês-freguês, que se encontram nesse espaço de passado e presente, campo e cidade, em gradações de proximidade e intimidade, através de suas histórias, das lembranças de infância, da relação com a natureza, da vida rural.

Indivíduo e comunidade são polos de uma mesma unidade, já que não existe comunidade sem indivíduo e sem seres singulares não existe comunidade (SOLÓN, 2019). Nas tentativas de romper com os paradigmas dominantes, a feira-livre se destaca, pois está fundamentada por um conjunto de interações profundamente imbricadas a um passado rural, e que não se restringe a relações puramente de oferta e demanda (CASSOL; SCHNEIDER, 2017). Além disso, também resiste à lógica da superexploração, do hiperconsumo e do desperdício, motores desse sistema (SOLÓN, 2019). Na lógica dos grandes varejos, somos estimulados ao consumo e ao desperdício, para que novamente sejamos levados a novos consumos. Bondía (2002) nos alerta sobre não vivermos a experiência, pois somos constantemente levados de um estímulo a outro, excitante e efêmero, sem deixar que nada nos transpasse. Ao sujeito do estímulo, tudo o excita, mas nada lhe acontece (BONDÍA, 2002). Zeca Baleiro (1999) já cantou que “lugar de ser feliz não é supermercado”, espaço onde tudo é efêmero.

Mas a feira pode ser lugar de ser feliz. A sua experiência é pensada a partir da experiência/sentido, que nos ensina a “dar sentido ao que somos e ao que nos acontece” (BONDÍA, 2001, p. 21). Lá há a venda de alimentos mais saudáveis, mais acessíveis, mas também a aquisição de produtos com história e memória. Na feira também se vai para passear, rever amigos, encontrar familiares, conversar sobre a vida, fazer pequenos negócios, atualizar-se das notícias, trocar conhecimentos, fazer feiraterapia. Nesse sentido, ela se contrapõe à noção de cidade-consumo, na qual as ruas e praças não são mais um lugar para ficar, mas apenas para passar de um lugar de consumo a outro (IBÁÑES, 2020). Ela recupera a noção de comunicação, de encontro, de compartilhamento e de convivência nos espaços das ruas e calçadas da cidade (IBÁÑES, 2020).

A feira apresenta a visão do todo. A saúde está no alimento, mas também no fortalecimento dos laços, na receita de chá ou na culinária ensinada pelo feirante. É o lugar dos vivos e também dos mortos, nas lembranças dos antepassados, muitos que trabalharam naquele mesmo lugar, na mesma banca e que se fazem presentes nas histórias e memórias. Para o Bem Viver, tudo está interconectado e forma uma unidade, incluindo passado, presente e futuro. O tempo não é linear, mas cíclico, em espiral, quando o futuro se entronca com o passado (SOLÓN, 2019).

Contudo, o fazer acontecer da feira, assim como o acontecer da vida, não ocorre sem conflitos. Compreender o jogo de forças que a transpassa exige evitar maniqueísmos e aceitar os conflitos que circunscrevem esse espaço. Diante disso, não a idealizamos, mas a compreendemos como um espaço onde existe tensão permanente. As pesquisas sobre as diferentes feiras brasileiras apresentaram embates cotidianos, como disputas de oferta e contra-oferta (CASTRO; CASTRO, 2016; SATO, 2007), atritos e assimetrias entre feirantes e fregueses durante uma negociação (BARBOSA, 2011; JESUS; DENARDIN; SULZBACH, 2020), brigas com maus pagadores (BARBOSA, 2011), presença de relações estritamente mercantis entre vendedor e consumidor (CORONA; VASQUES; GODOY, 2018; VEDANA, 2013), pequenos furtos (BARBOSA, 2011), desentendimentos na disputa pelo ponto (GONÇALVES; ABDALA, 2013), aborrecimentos com concorrências desleais, como roubar freguês ou baixar demais o preço (GONÇALVES; ABDALA, 2013; RIBEIRO et al., 2007).

Foram também apresentados os embates com o poder público, buscando evitar iniciativas de “reforma” de feiras históricas, sem a participação popular e com riscos de elitização e apropriação desses espaços (CARDOSO et al., 2016), ou impedir tentativas de interferir na organização da feira, gerando favoritismos e desequilibrando os acordos sociais estabelecidos (RIBEIRO et al., 2007), além de desavenças com fiscais (GONÇALVES; ABDALA, 2013). Admitimos, também, as contradições que transpassam o espaço das feiras. A modernização da agricultura fez surgir um tipo de agricultor individualista e competitivo (ALMEIDA, 1998), perfil também presente nesses lugares. As contradições atravessam todo e qualquer fenômeno social e, ao assumi-las, permitimo-nos superar os idealismos.

Entretanto, o levantamento bibliográfico realizado para esta elaboração teórica não encontrou menções a esse perfil individualista. Os autores analisaram as feiras com um olhar predominantemente qualitativo e sociológico, procurando evidenciar e fortalecer as relações de reciprocidade e solidariedade. O feirante está inserido no sistema capitalista e acaba estabelecendo relações dentro dessa sociedade, atualizando códigos próprios de relações sociais no contato com outros, e não raras vezes também usam princípios e regras que advêm dessa inserção. A existência de uma relação necessária com o sistema monetário acontece porque há uma relativa integração da comunidade rural ao sistema econômico mais amplo. Essa integração se dá pela venda de um excesso da produção de mantimentos, ou pela criação ou extração de algum outro produto que se destina ao mercado (DURHAM, 1984). A feira é um espaço de comercialização, mas não podemos restringir todas as relações de compra e venda a uma relação utilitarista e meramente econômica.

Esse é um ponto fundamental da defesa da feira enquanto experiência de Bem Viver. Ainda que inserida nesse modelo de sociedade e que existam indivíduos participantes com interesses puramente individualistas, a feira, enquanto espaço não uniforme, é regida por outra lógica. Nela ainda se encontram práticas de interconhecimento, inter-relação nas formas de organização da vida coletiva, redes de relações sociais com regulação e valores próprios, estratégias de vida baseadas no seu patrimônio sociocultural e territorial, característicos do modo de vida campesina (WANDERLEY, 1996) e com fortes enlaces com a perspectiva do Bem Viver. A ansiada harmonia preconizada pelo Bem Viver não pode admitir a crença em um futuro paraíso plenamente em equilíbrio, pois sempre haverá tensões nas sociedades humanas e no relacionamento com seu entorno (ACOSTA, 2015).

No documentário “Saberes do Brasil” (2008), o maestro Mozart Vieira dá diversos depoimentos sobre a sua relação com a feira, que “é o termômetro da vida da gente do interior [...] e tem o dom da sabedoria”, nas suas palavras. Dentre as suas muitas falas sobre a importância da feira na vida das pessoas, selecionamos aquela que nos ajuda a vislumbrar a feira na sua visão de todo e como experiência de Bem Viver:

A figura que vende o feijão é aquela figura dando aula do tempo de sabedoria pra gente. Quando eu tô comendo feijão, eu lembro do camarada que me vendeu feijão, eu me sinto mais feliz, porque tem uma lição de vida. Você leva um banho de civilização. São expressões faciais ricas, aquelas pessoas ligadas àquilo, que tão vendendo aquilo há 30, 40, 50 anos, que o avô vendeu, o pai vendeu. [...]. As famílias são ligadas àquele tipo de mercadoria que eles comercializam. (SABERES DO BRASIL, 2008)

A feira contrapõe a noção da cidade como lugar em oposição ao rural e distanciado da natureza (IBÁÑEZ, 2020). Ela leva o campo para a cidade, interage com a cidade, troca, aprende, ensina. À medida que migrávamos para as cidades, fomos perdendo o vínculo com a natureza e a própria noção de que somos natureza. Nosso imaginário foi reconstruído para esquecermos que nosso alimento não vem da prateleira, mas vem da terra. A feira recupera fragmentos da nossa memória e nos lembra de que aquele alimento tem trabalho, saber, história e natureza.

Bondía (2002) nos alerta que para viver a experiência é preciso parar para pensar, para olhar, para escutar, sentir mais devagar, suspender o automatismo da ação, falar sobre o que nos acontece, cultivar a arte do encontro, ter paciência, dar-se tempo e espaço. Em meio a ritmos, cores e sons, a experiência da feira interrompe os automatismos que nos tomam a vida cotidiana e nos coloca para escutar as histórias, para ver as pessoas, para sentir os cheiros, para aprender com quem sabe diferente, para valorizarmos os encontros e nos encontrarmos em outro tempo e espaço. Ela nos impele a ter outra relação com o tempo-espaço; não está aberta 24 horas por dia, à disposição das nossas vontades, explorando trabalhadores que precisam abrir mão de suas vidas para servir outras. Isso nos torna menos dependentes das lojas e supermercados que funcionam em tempo integral e parecem ser uma comodidade, mas acabam nos levando a achar que podemos nos exaurir no trabalho intempestivamente. A feira exige uma ressignificação da nossa rotina: reorganizar a vida e fazer uma pausa para poder estar naquele espaço.

Ela também é resistência aos espaços padronizados dos supermercados e hipermercados. A feira tem uma estética própria, mas nunca é igual: muda de semana para semana, muda de lugar para lugar. Mas ela não muda para ser substituída por algo novo. Há outro freguês, um novo feirante, outro produto que não havia na colheita passada. Há sotaques diferentes, palavras diferentes, vestimentas diferentes, cheiros e saberes, de acordo com a cultura local. Na feira-livre, “tem gente de todo tipo” (SABERES DO BRASIL, 2008). É também lugar de se permanecer por mais tempo, dialogar com mais vagareza, trocar conteúdos afetivos, palavras de conforto e incentivo, o que não significa que todas as relações estabelecidas sejam dessa natureza, pois há também a presença daqueles que são levados somente com a intenção de comprar alguma coisa, e o fazem com maior objetividade (CASTRO; CASTRO, 2016).

Há que se atentar para os riscos de que esse caráter simbólico da feira-livre não seja reduzido à lógica do nicho de mercado, que pode levar à perda da diversidade produtiva das comunidades e famílias agricultoras e à apropriação pela grande indústria agroalimentícia (SABOURIN, 2013; WILKINSON, 2002). A gourmetização dos alimentos populares pode elevar o preço e restringir o acesso a esses alimentos, intensificando a lógica de diferenciação social (ORSI, 2017). Essa gourmetização pode levar, ainda, ao processo de gentrificação do espaço da feira, “enobrecimento urbano excludente” como disse Silva e Peixoto (2015), que expulsa trabalhadores e pessoas das classes populares de lugares historicamente ocupados por eles, em favor de investimentos de capital. Feirantes, trabalhadores e moradores resistem ao avanço desse projeto em portos públicos de Belém, que têm buscado mantê-los como lugar de trocas econômicas e culturais múltiplas, de valorização da vida cotidiana da rua (SILVA; PEIXOTO, 2015).

A autonomia da feira e dos feirantes é condição fundamental para que elas se mantenham livres das lógicas mercantilizantes da vida e não abram espaço para apropriações de suas práticas, de seus saberes e de suas histórias. O apoio das prefeituras, através de programas e políticas públicas, das universidades, ou de organizações da sociedade civil são fundamentais, seja para as feiras que estão iniciando, seja para as já consolidadas, que precisam de fomento e estrutura para se manterem dignamente. Mas a visão autogestionária deve ser priorizada, pois sua ausência pode colocá-las em risco de desaparecimento.

Considerações finais

As feiras têm o poder de gerar oportunidades àqueles excluídos pelo sistema econômico moderno (GODOY, 2005). Muitas nascem da necessidade de sobrevivência. Em “Torto Arado”, romance de Itamar Vieira Júnior, ganhador de diversos prêmios de literatura em 2019-2020, a feira se faz presente como um espaço de resistência cotidiana. É lá que, principalmente, as mulheres vão para vender os produtos do seu trabalho e conseguir algum dinheiro que não seja apossado pelo seu patrão.

Quando não havia trabalho me agarrava à colheita do buriti e do dendê, e seguia com Maria Cabocla e outras mulheres para a feira da cidade. [...]. Na feira, vendemos o saco de linhagem com a massa do buriti sem muito esforço. Com o dinheiro, passei no armazém e comprei arroz, feijão, açúcar, farinha de milho e café. [...]. Teria comprado cadernos com o dinheiro das coisas que vendia na feira, e os teria enchido das palavras que não me saem da cabeça. (VIEIRA-JUNIOR, 2018, p. 135-164)

Ao contar a dura realidade dos trabalhadores do sertão, Itamar Vieira Júnior ilustra a importância da feira, traçada para sobreviver às explorações e às injustiças que assolam vidas e sonhos. Essas resistências vão propiciando condições para que o cenário fique propício para transformações em um âmbito maior (SCOTT; MENEZES; GUERRA, 2002). Neste sentido, ainda que se estabeleçam relações mercantis, seria um equívoco dizer que as feiras são regidas dentro da lógica capitalista de lucro e acumulação, já que esta somente acontece através da exploração do trabalho e dos recursos. A feira é regida pela lógica da sobrevivência, muito mais próxima de uma economia substantiva baseada nas necessidades de reprodução. Os feirantes são trabalhadores que abastecem e se relacionam, na maior parte das vezes, com outros trabalhadores.

Outro elemento a ser considerado é que temos feiras de norte a sul do país, nos pequenos e grandes municípios que expressam também essas realidades. A feira que ocorre na grande cidade de São Paulo não é a mesma do interior do Nordeste. Não existe homogeneidade entre elas, mas há algo em comum: o encontro das necessidades da venda e da compra por algo essencialmente básico para a sobrevivência humana que é o alimento. A busca pelos alimentos exclusivos da feira, sobretudo nas do interior, contribui com a manutenção viva dos conhecimentos tradicionais, valorizados de maneira popular e acessível nas feiras. O acúmulo desse conhecimento quase sempre tem um protagonismo feminino, especialmente os processados que passam pela cozinha onde o trabalho é predominantemente realizado pelas mulheres. O papel e a presença das mulheres nas feiras-livres não foram discutidos neste texto e são poucas as pesquisas que trouxeram essa discussão na centralidade, cabendo aprofundamentos em pesquisas futuras.

Neste ensaio, defendemos a feira-livre como espaço de resistência e experiência de Bem Viver, como uma prática presente nas nossas vidas e que pode ajudar a “adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2019). As feiras se apresentam, não sem contradições e assimetrias, como espaços descolonizados, seja no âmbito da alimentação fora da lógica da superexploração da natureza, seja na ocupação das ruas pelas pessoas, ou ainda nas relações de coletividade, convivialidade/convívio e pertencimento presentes neste espaço. A experiência de fazer-feira é rica e complexa: onde também se interage, negocia, passeia, ouve e conta histórias, encontra amigos e familiares e onde o passado se encontra com o presente.

Pretendemos contribuir para reafirmar práticas de produção e consumo associadas a comunidades e territórios, que misturam história e cultura, reconhecendo as contradições presentes, mas fortalecendo as possibilidades de geração de renda e emancipação, de compreensão de hábitos alimentares e de costumes, de preservação de saberes e da natureza, contribuindo na luta pelo direito à vida digna.

A feira-livre como experiência de Bem Viver é a possibilidade de existência de um trabalho recompensador, de uma produção em harmonia com a natureza, colaborativo, de uma riqueza mais distributiva e de espaços mais plurais e diversos em oposição à superexploração da natureza e das pessoas, competitivo, concentrador de riqueza e homogeneizador das formas de vida e de viver. Vida longa às feiras!

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